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Contos

O Conto carro para à frente da venda e traz a


• Narrativa breve, com unidade de novidade da telefonia, a caixa que vai
ação (sem ações secundárias) e um alterar a vida não só do casal como de toda
enredo simples a aldeia. Apesar da oposição inicial da
• Nº reduzido de personagens, mulher, Batola, habituado a receber
habitualmente pouco complexas ordens, impõe-se e a telefonia fica um mês
• Concentração de espaço e tempo “à experiência”. Os habitantes, que
geralmente voltavam para as suas casas
após o extenuante dia de trabalho,
1. “SEMPRE É UMA COMPANHIA”,
encontram-se agora na venda e ouvem as
MANUEL DA FONSECA
notícias da guerra, comentam assuntos,
RESUMO DO CONTO ouvem música, as mulheres dançam. Num
mês, a aldeia conhece uma dinâmica social
Batola, apelido de António Barrasquinho, é
nunca antes vista. Da clausura, do
o ocioso proprietário de uma venda
isolamento físico, mas principalmente
(pequena mercearia onde se pode servir
social, passou-se para um convívio salutar,
vinho e pequenas refeições) no Alentejo,
tendo também ocorrido transformações
entregue a uma vida de monotonia e de
individuais. Toda a aldeia de Alcaria
solidão, e que tem na sua enérgica mulher
mudou. Mas também Batola, que passou a
o pilar que sustenta o casamento e os
acordar cedo, a atender os clientes na
negócios. A esposa é vítima de violência
venda, a vaticinar sobre os assuntos da
física nos dias em que Batola, por não
guerra. Ao fim de um mês, a aldeia tinha
conseguir encarar a humilhação que sente
“um sopro de vida” nunca antes sentido e
perante aquela mulher determinada, bebe
Batola tinha conquistado a admiração da
em demasia. Batola vai relembrando o
mulher. Assim, a telefonia acabou por ficar,
velho Rata, mendigo que percorria outras
porque “sempre é uma companhia”
terras e que voltava à venda rico em
naquele deserto.
novidades que faziam o Batola viajar pelo
mundo. No entanto, após o suicídio de
Rata, já só resta ao dono da venda
relembrar as tardes inteiras perdidas
(ganhas?) a ouvir o mendigo e evitar
enfrentar aquela vida de “sonolência
pegada”. Porém, tudo muda quando um

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CARACTERIZAÇÃO DAS PERSONAGENS saber, a permitir a transformação do seu


marido, o que a leva, no final, a abandonar
BATOLA o seu tom superior e a pedir ao Batola que
tome a decisão de conservar ou não a
É o arquétipo da ociosidade, de olhos
telefonia
“semicerrados” para não enxergar a
monotonia da sua existência. Bebendo
VELHO RATA
muito, Batola arrasta-se na venda, numa
existência entediante, que foi suavizada Companhia habitual de Batola, esta figura
até à morte do Rata. Incapaz de tomar uma marginal permitia a comunicação do dono
posição face à atitude controlada da da venda com o mundo, visto que trazia
mulher, António afoga a sua impotência e novidades que evitavam o seu alheamento.
a sua humilhação no vinho, acabando por Incapaz de enfrentar o imobilismo que o
agredir a mulher, situação bem conhecida reumatismo lhe impôs, suicida-se,
por todos na aldeia e que dura há já 30 atirando-se pela ribeira da aldeia.
anos. Pela primeira vez, assume uma
atitude assertiva quando resolve ficar com VENDEDOR E CALCINHAS
a telefonia, ainda que contra a vontade da Persuasivo, como todos os vendedores,
mulher, e altera o seu comportamento a instala o conflito no casal, já que a mulher
partir daí – torna-se ativo e energético. Ao do Batola é avessa à compra da telefonia.
fim de um mês, consegue a admiração da Com malabarismos linguísticos, consegue
mulher que, “com uma quase expressão de agradar ao casal e acaba por instaurar a
ternura”, dá-lhe a possibilidade de escolher mudança. O ajudante, Calcinhas, é uma
se ficam com o aparelho ou não. figura que assiste passiva à encenação do
vendedor.
MULHER DO BATOLA
Responsável pela organização de toda a CEIFEIROS E HABITANTES DA
logística da venda. Possui “um sossego de ALDEIA
maneiras que se vê logo que é ela quem ali Habituados a uma vida dura e estéril, os
põe e dispõe”. Enérgica, dedica-se à lida inicialmente tristes e sorumbáticos
doméstica depois de “aviar aquela meia ceifeiros passam a juntar-se ao final do dia,
dúzia de fregueses de todas as na venda, para ouvir a telefonia e afastar a
manhãzinhas”. Ao ceder ficar com a solidão permanentemente das suas vidas.
telefonia 1 mês, à experiência, embora
contrariada, a figura feminina está, sem o

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RELAÇÃO ENTRE AS PERSONAGENS

HABITANTES
BATOLA VENDEDORES

MULHER O vendedor e
Calcinhas trazem a “civilização” à aldeia de
Nesta Alcaria e permitem a ligação dos seus
relação fria e infeliz, é abordado o tema da habitantes ao mundo.
repressão sexual a que as mulheres nas
décadas de 40/50, sobretudo num SOLIDÃO E CONVIVIALIDADE
ambiente provinciano, estavam sujeitas. Em Alcaria, movimentam-se personagens
Apesar de ditar as leis quanto à pobres, marginais (o relembrado Rata)
organização da casa e da venda, a mulher mas, acima de tudo, personagens
de Batola era vitima de violência física e solitárias, inadaptadas à triste realidade
estava submetida ao poder varonil de em que vivem. Tudo muda com a chegada
quem descarrega as frustrações da sua da telefonia.
Força motriz que altera o
solidão permanente na pessoa com quem
partilha esta mesma existência solitária. O modo de vida daquela
equilíbrio é atingido quando a mulher aldeia
observa as transformações que se
operaram em Batola durante o período da
experiência da telefonia, dirigindo-se de Os aldeões passam a jantar à pressa para
forma conciliadora ao seu marido. voltarem a venda. Deslumbrados pela
súbita ligação ao mundo, por saberem “o
que acontece fora dali”, sentindo que “não
CASAL HABITANTES DA estão já tão distantes as suas pobres
ALDEIA casas”. A animação reina na pequena
povoação e os dias passam tão velozmente
Entre este casal e os habitantes da aldeia que nem percebem que o período de
há uma relação distante, devido à árdua experiência (1 mês) está a terminar. A
vida dos ceifeiros no campo, que lhes tira a venda acaba por ser o epicentro de um
vontade de conviver no fim de mais um dia universo onde se encontram histórias mais
de jornada. No entanto, a partir do dia em ou menos picarescas, mais ou menos
que a telefonia se instala na venda, tudo se dramáticas, mas onde há, acima de tudo, o
altera e o convívio é evidente. abrir-se ao outro.
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CARACTERIZAÇÃO DO ESPAÇO: 2. “GEORGE”, MARIA JUDITE DE


FÍSICO, PSICOLÓGICO E CARVALHO
SOCIOPOLÍTICO RESUMO DO CONTO
George é o pseudónimo de uma
Espaço Aldeia de Alcaria, com
personagem feminina que analisa o seu
físico “quinze casinhas
desgarradas e nuas”, percurso de vida ao longo de 3 fases:
“rodeada pela solidão dos
Na primeira sequência narrativa,
campos”. É um espaço 1ª é apresentada Gi, uma jovem
caracterizado pela pobreza,
mas essencialmente pela cheia de sonhos e ambições e que vão de
clausura face ao mundo. encontro aos projetos traçados pelos pais,
que passam por um casamento tradicional
Espaço Alteração do e por uma vida sossegada. Contudo, Gi tem
psicológico comportamento das na liberdade o seu porta-estandarte, daí
personagens após a
renunciar ao noivo e a uma relação
instalação da telefonia.
- Mulher (autoritária e duradoura. As mudanças constantes de
oponente -> passa a look ou a vontade de alugar casas já
respeitar o novo Batola) mobiladas são a expressão dessa vontade
- Batola (ocioso e letárgico de ser independente e de não estar presa a
-> torna-se ativo) convenções nem espaços.
- Ceifeiros (solitários e
condenados a uma Na segunda sequência
existência árida -> 2ª narrativa, assiste-se ao diálogo
esperança de comunicação entre duas mulheres, facilmente
com o mundo).
identificadas – a Gi da juventude dialoga
Espaço Espaço rural pobre, duras agora, vinte anos depois, com a adulta
social condições de vida dos George. Esta identificação é pressagiada
ceifeiros, alheamento pela pergunta que coloca à jovem sobre se
social e falta de ainda desenha, ao que esta responde que
informação.
tem “jeitinho”, ou ainda pelo beijo (que
não é efetivamente) trocado na despedida.
O comboio chega e George despede-se do
seu passado, embarcando numa viagem
rumo ao futuro.

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Na terceira sequência
3ª narrativa, esboça-se o retrato
Realidade
George recusou ser igual a
de uma idosa, Georgina, de 70 anos, com
que George conversa – a terceira etapa da tantas outras mulheres
vida. O ciclo completa-se e a foto de Gi que daquela vila, daquela época. Abandonou o
acompanha George é a mesma que agora seu diminutivo (Gi), abandonou
aparece, com o pormenor dos óculos. A convenções, desatou laços afetivos e
idosa confronta George com as suas tornou-se dona de si mesma, conseguindo
opções de vida concretizar o seu sonho de ser pintura.

O reencontro com as memórias do Imaginação


passado, personificado em Gi, o conflito Georgina, a velha que já não
interior na adulta George ou a solidão pinta, que tem as economias
profunda que envolve Georgina no banco e que olha com
constitui o universo ficcional deste calma desesperança o silêncio fatal, é,
conto. afinal, o paradigma da condição humana: a
vida corre inexoravelmente para a morte.

AS TRÊS IDADES DA VIDA E O


DIÁLOGO ENTRE REALIDADE, A fragmentação do “eu” revela, então, o
MEMÓRIA E IMAGINAÇÃO profundo vazio que já se anunciara na voz
de um dos amores fugazes da personagem,
Memória quando lhe aponta que o desapego não
Ao percorrer a sua vida, George passa de uma máscara, porque, em suma,
reencontra-se com o passado “toda essa desertificação” é produto do
representado na juventude irreverente de esforço ou sofrimento.
Gi. Este reencontro faz aflorar as
recordações do tempo em que tudo era
possível e em que não havia limites para os
sonhos que desafiam as fronteiras das
convenções sociais. O confronto com Gi
reaviva a memória de quem procurou
sempre fugir da vila situada no “cu de
Judas”, mas também de si própria.

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METAMORFOSES DA FIGURA usou quando partiu da casa paterna. Um


FEMININA dia regressa, ao fim de 20 anos, à vila onde
morou para vender a casa de família que
Através de uma persuasiva técnica
recebeu de herança e à qual associa a
narrativa assente em flashes
velhice e a clausura. George quer enterrar
cinematográficos, ler “George” é ler o
o seu passado e rejeita liminarmente a
percurso de uma figura ao longo das 3
estabilidade que essa casa parece
etapas da vida, acompanhando as naturais
proporcionar. A pintora cultiva o
transformações ocorridas, ao mesmo
alheamento social, recusa laços ou
tempo em que se mergulha na solidão da
objetos que a prendam, que a oprimam,
existência de um “ser para a morte”.
daí não ter mobília própria quando muda
Irreverente e sonhadora de casa, para poder, em qualquer
Com tendência artística, no domínio momento, partir. O mesmo se pode dizer
pictórico, rebela-se contra o poder dos das suas relações fugazes.
pais, que esperam dela uma existência
quotidiana, tal como a deles. Ao sair da Pragmática e desencantada
casa e da vila, Gi está a abandonar não Georgina, a par das ouras figuras já
só os pais e os planos que estes tinham referidas, tem traços indefinidos, no
projetado para ela, bem como o noivo e entanto, o seu sorriso é distinto do da
o enxoval. Ela quer subverter jovem Gi, pois Georgina ronda os 70 anos
estereótipos e ser uma mulher livre e de idade e está consciente da
independente. Recusa a vida inexorabilidade da morte. A figura que
convencional e a falta de loucura viaja no comboio com George não tem
saudável do noivo, cujos planos passam planos, nada espera e tem a certeza da
por “comprar uma terra, construir uma solidão que a todos espera. Se tivesse
casa a seu modo”. ouvido George falar sobre as economias
guardadas no banco e que são, na
Autónoma e reconhecida
Vive em Amsterdão, é uma aclamada perspetiva da mulher de 45 anos, a
pintora nos marchands das grandes garantia de que não se está só, certamente
cidades europeias, preza a liberdade e teria esboçado um sorriso condescendente
vive entre caras malas de rodinhas, que de quem sabe que a aridez da existência
lhe possibilitam a mobilidade que ela não se preenche com valores materiais: “o
tanto preza e que são tão distantes da dinheiro no banco”.
“velha mala de cabedal riscado” que

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Assumindo-se como arauto da sabedoria,


a velha anuncia a George que no futuro
moram a solidão e a melancolia. Assim, as
naturais metamorfoses físicas acarretam,
necessariamente, metamorfoses
psicológicas.

COMPLEXIDADE DA NATUREZA
HUMANA
A solidão é presença
indelével num conto
marcado pela inquietação e
pela profunda consciência
da passagem do tempo e do vazio da
existência. O encontro com o fantasma do
futuro, a velha Georgina, é a certeza de que
a condição de exílio que a personagem para
si escolheu ao negar casas próprias,
mobílias ou bibelots que carregam
recordações levou a uma existência
“desertificada”.

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