«Sempre é uma companhia», incluído na obra O Fogo e as Cinzas, de
Manuel da Fonseca, é um conto neorrealista que retrata um Portugal tipicamente rural, esquecido do mundo exterior e isolado do resto do país. É o retrato social e económico do Alentejo dos anos 40 do século XX. Pretende-se, com esta curta narrativa, denunciar uma enorme precariedade social do país durante o período do Estado Novo. Podemos dizer que o título do conto remete para os benefícios que, durante a Segunda Guerra Mundial, a introdução de um novo meio de comunicação, a radiotelefonia, traz à isolada população da aldeia de Alcaria. Este muda a vida de uma população deprimida, quebrando as rotinas, a falta de convivialidade e a solidão partilhada por todos aqueles habitantes. o Exemplo «Um sopro de vida paira agora sobre a aldeia. Todos sabem o que acontece fora dali. E sentem que não estão já tão distantes as suas pobres casas.» A vida na aldeia é inicialmente marcada pela solidão, pela tristeza, pelo isolamento e pela negatividade. Trata-se de uma população «escravizada» pelos grandes latifundiários, que vive exclusivamente para o trabalho no campo, não tem outros interesses nem ocupações. Os seus dias são todos iguais, tendo-se instalado uma rotina monótona e opressiva. As suas vidas são vazias, sem animação, entusiasmo ou felicidade. Alcaria parece mergulhada em «cinzas», num completo estado de letargia. A pequena descrição do dia-a-dia permite compreender que há poucos habitantes na aldeia, que a rotina é pesada, opressiva, lenta e mortífera para quem vive ali. o Exemplo «E o Batola, por mais que não queira, tem de olhar todos os dias o mesmo: aí umas quinze casinhas desgarradas e nuas; algumas só mostram o telhado escuro, de sumidas que estão no fundo dos córregos.» O narrador inicia a história com enfoque no protagonista António Barrasquinho, conhecido por todos como o Batola. A atribuição de alcunha a esta personagem é outro traço que aproxima a ficção da realidade, pois é algo comum nos meios rurais. Este tem um negócio familiar, partilhado com a sua mulher, uma «venda», loja onde comercializam alguns produtos básicos. O espaço é rudimentar e é descrito num tom disfórico, sugerindo-se alguma escuridão, falta de recursos económicos e algum desleixo, tal como acontece com o seu dono.
Batola bebe em demasia, agride a mulher e esta realidade é conhecida
na aldeia. A loja, na maioria do tempo, está vazia, não há um cliente diferente que anime os dias do casal e lhe dê mais trabalho. Podemos considerar aqui outro reflexo de solidão e do isolamento. Nestes dias, de pouca agitação e conversa, Batola vive desesperado. Agarra-se à bebida como forma de evasão a uma vida sem propósito e recorda o seu velho amigo Rata. Era um antigo habitante de Alcaria que se suicidara. Batola costumava alimentá-lo e ouvir as suas histórias de mendigo «viajante». Era a única personagem que, antes da vinda da telefonia, permitia o contacto entre Alcaria e o mundo exterior, as principais vilas e cidades daquele Alentejo interior, esquecido pela grande e voraz Lisboa, centro do poder. Sozinho, sem o velho amigo, apenas consigo mesmo, António Barrasquinho observa o que se passa ao seu redor. O seu horizonte entedia-o, entristece-o e rouba-lhe qualquer motivação ou alegria. Vê os ceifeiros a regressarem a casa derrotados pela faina diária; o tempo passa muito lentamente, o ar pesa-lhe nos ombros e o ambiente envolvente é espelho opressivo e deprimente do estado de espírito de Batola e das restantes personagens (espaço psicológico). o Exemplo 1 o Exemplo 2 «São ceifeiros, exaustos da faina, que recolhem. Breve, a aldeia ficará adormecida, afundada nas trevas.» Este é o quadro de uma população rural. A ação é minimizada, desenvolvendo-se em torno de uma peripécia banal e fortuita: a chegada de um vendedor de telefonias à aldeia de Alcaria, devido a um engano no caminho. Este desvio acidental é o ponto de partida para a mudança da ação. o Exemplo «Apressado, conta que veio por ali devido a um engano no caminho.» Este homem encontra o estabelecimento do protagonista. Apressa-se a dizer maravilhas do aparelho que traz consigo, com o objetivo de o vender a Batola. Por sua vez, este concorda em ficar com a radiotelefonia sem grandes hesitações. No entanto, a sua mulher opõe-se determinantemente, ameaçando deixar o lar. O vendedor apazigua o casal, deixando o aparelho na venda por um período experimental – um mês. o Exemplo
«Vagarosa, no tom de quem acaba de tomar uma resolução inabalável,
apruma-se, muito alta, dominadora e diz: – António, se isso aqui ficar eu saio hoje mesmo de casa. Escolhe.» É seguro afirmar que também o relacionamento de Batola com a mulher se altera. Parece que a figura feminina, inicialmente dominadora, se anula, se «apaga», enquanto a masculina, constantemente apática, se afirma, se «acende»: ela resguarda-se em casa (nos fundos da venda), evitando frequentar o estabelecimento, agora tido como um espaço de festa e de convívio, dominado por um Batola renascido. No entanto, vimos a saber, no fim da narrativa que ela estava atenta aos novos hábitos, que estava ligada à animação vivida na venda, através das fissuras e juntas das tábuas que isolavam as duas divisões. Durante este mês, na «companhia» da radiotelefonia, opera-se uma enorme transformação na vida dos aldeões: têm acesso às notícias de todo o mundo, designadamente aos acontecimentos referentes à Segunda Guerra que se alastrava pelo mundo, fazem previsões, escutam música que os conforta e alegra, passam a frequentar a «venda», tornando-a um espaço vivo, de convívio e de felicidade partilhada em sorrisos e conversas.
O aparelho veio quebrar o silêncio e a monotonia dos dias cinzentos e
sempre iguais. Trouxe novidades, temas e discussões entre os habitantes. A venda passou a ser um local movimentado e vivo, um espaço de lazer como não havia até então. A telefonia faz Alcaria renascer das «cinzas», ganhando intensa vitalidade alimentada pelo «fogo». O mês experimental passou rapidamente e, próximos da hora da despedida daquele objeto mágico (porque ninguém duvidava que Batola iria mais uma vez obedecer ao tom imperioso da sua mulher), os habitantes saem da venda vencidos de novo, completamente desolados com a ideia de perder a radiotelefonia que tanta vida lhes devolveu. Entretanto, Batola prepara a sua devolução, quando é surpreendido pela sua mulher, que, inesperadamente, aceita ficar com o aparelho na venda.
Chegados ao final do texto, reparámos que, na última fala da mulher
de Batola, o advérbio «sempre» perde o costumado valor temporal, passando a significar «pelo menos» e reforçando, assim, o caráter argumentativo da sua última afirmação. Deduzimos que os habitantes de Alcaria não viram as suas ingratas condições de vida alteradas. O trabalho de sol a sol, as casas humildes, o único fio de eletricidade pendurado a entrar na venda do Batola e da mulher, o esquecimento a que foram largados permanecem. No entanto, a radiotelefonia dá-lhes alento, vigor e esperança naquele «deserto», diminuindo a distância do mundo exterior a que estão condenados e devolvendo-lhes ânimo e partilha. Importa ainda destacar que o aparelho foi a oportunidade de gerar uma dinâmica na relação entre pares e de integrar e promover culturalmente esta população abandonada num pequeno meio rural. o Exemplo «Então, ela desabafa, inclinando o rosto ossudo, onde os olhos negros brilham com uma quase expressão de ternura: – Olha… Se tu quisesses, a gente ficava com o aparelho. Sempre é uma companhia neste deserto.» Este conto não oferece apenas aos seus leitores vários retratos humanos que atravessam outros tempos e outros espaços, não se fixa apenas numa descrição do passado de um país. A reflexão sobre a condição humana a que o conto convida excede os tempos e o lugar da ação, pois são temas transversais.
O suicídio, a adoção de comportamentos antissociais, o refúgio no
isolamento, as relações afetivas conturbadas e a necessidade de evasão são algumas linhas de reflexão que o conto promove. Através da sua leitura, somos alertados para a intemporalidade de certos temas, comportamentos e valores e para a urgência em agir perante as situações mais difíceis. Mostra-nos que, por vezes, um pequeno detalhe, uma mudança ligeira pode permitir a conquista de muitos resultados positivos.
Por último, o leitor de atualmente, envolvido num mundo tecnológico e
de comunicação constante, pode também pensar acerca da importância da convivialidade no comportamento pessoal, familiar e comunitário. As interações sociais em presença são, sem dúvida, fundamentais para o desenvolvimento individual e, até, para a saúde e bem-estar de um grupo.