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Interpretação do conto "Sempre é uma companhia", de Manuel da Fonseca

Feito por Estela Rodrigues

Ponto I:

Questão 1:

António Barrasquinho era um homem que vivia uma vida absorvida pela monotonia e
pela solidão. Acordava todos os dias vagarosamente e, dominado pela sonolência, ia para a sua
venda, onde passava o tempo a beber vinho, com as mãos pousadas no queixo. Aí ficava
Batola, com um olhar apático. Não existia nada vida deste homem que o motivasse. Não tinha
ninguém para conversar e não havia nenhuma atividade que o estimulasse a agir para além do
consumo de álcool, que servia como uma maneira de desvincular-se da rotina desmotivadora a
que estava preso (evasão espacial).

Outro fator que dava um pouco de emoção a esta vida inundada pela inércia era a
raiva que sentia pela mulher. Era ela quem tomava conta da casa e da venda. Quando não
podia atender os clientes, Batola era obrigado a fazê-lo. Assim que acabava a tarefa, sentava-
se e bebia, ruminando a fúria que sentia por ela, algo que durava há anos. Este sentimento
provinha da atitude autoritária e inflexível adotada pela mulher, sendo que o personagem vivia
submisso aos desejos da mesma. Por vezes, estes episódios chegavam ao ponto em que o
álcool lhe fornecia a energia e a sensação de poder suficiente para se darem casos de violência
física contra a mulher.

O Batola teve em tempos um grande amigo- o mendigo Rata. Este contava-lhe


histórias sobre as terras vizinhas que ele visitava, deixando o Sr. Barrasquinho encantado.
Através destes relatos, o personagem viajava para fora daquela aldeia abandonada pelo
mundo, algo que o entusiasmava e que o fascinava. Porém, após a sua situação de saúde ter
agravado, impedindo-o de andar, o Rata suicida-se, deixando Batola sem ninguém com quem
falar. A maneira que ele tinha de sair da monotonia da vida que levava tinha-lhe sido retirada.
De vez em quando, contudo, o personagem ainda recorda o velho mendigo.

Depois da hora de almoço, António Barrasquinho sentava-se num banco do lado de


fora da venda. Aquilo que via não lhe agradava; todos os dias confrontava-se com a mesma
paisagem: campos silenciosos e repletos de solidão. Este silêncio remete para o abandono da
pequena aldeia, esquecida por todos e o Batola sentia-o. Na verdade, este personagem sentia-
se como um “animal solitário” que “uiva” numa tentativa de chamar por alguém com quem
possa conversar e com quem se identifique. O Sr. Barrasquinho ficava, então, à espera do
entardecer, que parecia “demorar anos”. Finalmente, ao final do dia, ia para a cama a bocejar,
da mesma maneira como acordou.

Contudo, após o surgimento do vendedor na aldeia, que lhe propõe ficar com uma
telefonia durante um mês, a vida de Batola ganhou um novo rumo. Começou a ter muita gente
com quem conversar. Os dias para ele passavam, agora, rapidamente. Levantava-se cedo e
atendia os clientes, falava com eles sobre o que tinham ouvido na noite anterior, e até fazia
conjeturas sobre aquilo que ouvia da guerra. Batola sentia-se animado, energético e motivado.
Finalmente foi-lhe proporcionada a convivência que tanto desejava, bem como a oportunidade
única de aprender mais sobre o mundo fora da aldeia numa escala muito superior àqueles
relatos dados pelo Rata.
Porém, num ápice, o final do mês chega. Os dias que passavam, em tempos,
vagarosamente, corriam rapidamente graças à telefonia. Batola não se deu conta de o tempo
passar e, portanto, não convenceu, não chegou a tentar fazer a sua mulher mudar de ideias.
Apesar de este objeto ter dado uma nova vida a António Barrasquinho, este era um homem
honesto e estava pronto a devolver a telefonia. Nesse dia, Batola caiu numa grande tristeza,
por ter que voltar à vida que o desmotivava e o deixava infeliz.

Questão 2:

A mulher do Batola é descrita no início do conto como uma mulher bastante


trabalhadora. Era quem geria a vida do casal e o seu negócio. Atendia os clientes e fazia a lida
da casa, não dependendo no marido. Para além de independente e dinâmica, esta personagem
mostrava-se ser também bastante autoritária. A mesma impunha a sua vontade, fazendo com
que Batola vivesse de acordo com as vontades dela. Este facto causava revolta no personagem
masculino.

Durante a estadia do vendedor da telefonia na venda, ocorre um confronto entre ele e


a mulher de Batola. Neste episódio pode-se observar que esta personagem é bastante atenta e
perspicaz, possuindo espírito de comerciante e, por isso, desconfia e não cede às técnicas de
sedução do homem citadino.

No final da narrativa, esta personagem feminina aparece como alguém que se


distanciou da venda, sendo que passou a aparecer raramente no estabelecimento. Quando
chega o dia de devolver a telefonia, a personagem repensa na sua posição (algo que seria
impensável no início do conto, uma vez que era bastante inflexível no que toca às suas
vontades) e pede de modo submisso e ternurento para ficarem com o objeto, revelando que o
Batola ganhou o respeito e admiração da mulher (tornou-se um marido trabalhador e bem-
humorado). Pela primeira vez, esta personagem é descrita com uma postura diferente à de
dominadora.

Questão 3:

A relação do Batola e da mulher é marcada, essencialmente, pela submissão do


personagem masculino perante a mulher. Esta é quem toma o controle da vida do casal e,
portanto, a sua opinião tem de prevalecer, o que cria revolta no Batola. Esta relação tornou-se
uma disputa para que cada um tenha a sua vontade concretizada sendo que, no final, a mulher
sai sempre impune. Esta raiva perante a sua vida conjugal, juntamente com o seu dia a dia
monótono, fazem o Batola refugiar-se no álcool, o que agrava o sentimento de fúria dentro do
personagem e que despoleta episódios de violência doméstica.

Acima de tudo, o Batola sente-se sozinho até mesmo no seu casamento. Até ao
momento da venda da telefonia, a mulher mostra-se inflexível perante as vontades do marido.
Contudo, pela primeira vez, este impõe-se perante ela, mesmo não sendo bem-sucedido.

A verdadeira marca da evolução desta relação mostra-se no dia em que a telefonia


seria devolvida. A mulher é descrita, agora, como alguém que se mostra mais flexível,
empática e aberta à opinião do marido. Esta não exige algo, simplesmente pede para ficarem
com a telefonia, num tom próximo a uma expressão de ternura. Os sentimentos dóceis
demonstrados evidenciam que existiu uma evolução favorável: a relação tornou-se mais
próxima e mais humana.
Questão 4:

No início do conto é descrita a vida destes aldeões: estes viviam em função do


trabalho. Acordavam de manhã cedo e iam trabalhar. Ao final do dia saíam dos seus postos de
trabalho para ir descansar para casa. Encontravam-se exaustos devido aos trabalhos agrícolas
árduos que os empregavam. Não existiam momentos de lazer e, por isso, nunca paravam na
venda do Batola para conversar. Estavam todos adaptados àquela rotina e, por isso, não
tomavam consciência do isolamento e do abandono da aldeia.

Após a aquisição da telefonia, as pessoas da aldeia esqueceram-se do cansaço.


Jantavam rapidamente todas as noites para ir ouvir as notícias do mundo e as músicas que
eram tocadas e ficavam até altas horas da noite na venda a discutir sobre os inúmeros
assuntos que iam ouvindo. Calavam-se todos quando as notícias estavam a dar, e ouviam,
atentos. Até uma festa foi organizada na venda do Batola, onde os aldeões dançaram,
beberam e namoraram. De manhã cedo, os trabalhadores trocavam algumas ideias ainda
sobre os assuntos da noite passada com António Barrasquinho. Os habitantes ganharam um
objetivo nas suas vidas, perceberam que viver não era só trabalho, conheceram a sensação de
ser feliz, de se sentirem integrados no mundo, antes desconhecido e bem distante, e agora
próximo, ganhando, assim, sentimentos de confiança, autoestima e capacidade de
socialização.

Contudo, na noite anterior ao dia que completaria um mês da chegada da telefonia,


todos saíram da venda do Batola infelizes, pois iriam voltar para a uma vida de trabalho, de
isolamento em relação ao mundo exterior. Já não era só o Batola que tinha consciência do
quão monótona e sem vida era a vida que estes camponeses levavam.

Ponto II:

Num primeiro contacto com o vendedor, Batola assume uma posição de desconfiança
em relação ao homem, pois nunca ninguém visitava a aldeia. Contudo, devido a ser um
homem do campo simples e ingénuo, rapidamente ganha apreço pelo vendedor da telefonia,
que se mostra bastante sociável e simpático (“(…) gesticula e sorri, sorri sempre (…)”). Este
homem citadino começa uma conversa que o Batola não consegue acompanhar, deixando-o
confuso e vulnerável ao jogo de sedução e manipulação do personagem.

A rapidez com que o vendedor fornece múltiplas informações sobre o aparelho


enquanto faz perguntas que não esperam por resposta deixam o Batola perdido, o que faz com
que este se sinta desconfortável. Olha para a mulher que se encontra observadora, numa
tentativa de perceber a posição da mesma em relação ao que está a acontecer. Derrotado
pelas técnicas de persuasão do vendedor, começa a assinar os papéis para a compra da
telefonia.

Finalmente, a mulher, que se manteve atenta e observadora, intervém e o proíbe o


Batola de comprar o rádio. A mesma mostra-se inflexível e inatingível pelos métodos utilizados
pelo vendedor. O Sr. Barrasquinho tenta impor-se; contudo, após a ameaça feita pela mulher
de que iria sair de casa, o vendedor é obrigado a mudar a sua estratégia e a propor um acordo.
Mais uma vez, a mulher cautelosa e com espírito de comerciante, desconfia da proposta feita
pelo homem. No final, o Batola fica incumbido de convencer a mulher, embora não planeasse
manter o acordo de qualquer maneira.
Ponto III

A corrente neorrealista tem por base a denúncia das diferenças sociais existentes
entre as diferentes classes. Neste conto, podemos verificar essa característica através do
contraste entre duas realidades: a vida citadina, moderna e com fortes relações com a
tecnologia, representada pelo vendedor e pelo Calcinhas; e a vida campestre, relatada através
da narração do dia-a-dia do Batola. É ainda evidenciado o desprezo que as personagens vindas
da cidade sentem pela realidade rural (“Que sítio!…”).

Outra marca do neorrealismo presente na obra é a crítica às condições precárias em


que o povo vive, através da descrição de “casinhas nuas", sem eletricidade, abandonadas no
meio dos campos. O trabalho dos habitantes desta aldeia é descrito como um trabalho árduo,
de sol a sol, que os deixa exaustos. Devido ao cansaço, quando acabam o longo dia de
trabalho, os aldeões partem para as suas casas para descansarem. Deste modo, não existe
espaço para o lazer na vida destas pessoas, algo que também é fortemente criticado.

Finalmente, o movimento neorrealista é marcado pela criação de personagens que


possuem comportamentos relacionados com o espaço onde vivem, característica esta que está
expressa na obra especialmente através de Batola. António Barrasquinho era um homem que
gostava de conviver, de conhecer o mundo. Contudo, nada disto era possível devido a dois
fatores essenciais: ao abandono da aldeia alentejana (objeto de crítica) pelos responsáveis
políticos e ao facto de todos os outros aldeões estarem resignados com a sua vida quotidiana.
Deste modo, Batola tornara-se uma pessoa pouco enérgica e desmotivada. Porém, com a
mudança dos hábitos, devido à chegada da telefonia, este homem transforma-se em alguém
motivado, responsável e trabalhador. Através deste exemplo é possível verificar como as
personagens neorrealistas são influenciadas a nível comportamental pela sua circunstância. Há
também a mensagem de que a cultura e o conhecimento, representados no conto pela
telefonia, representam um dos caminhos para a integração na sociedade, para a realização
pessoal e coletiva, logo um meio de alcançar a felicidade.

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