Você está na página 1de 3

“Sempre é uma companhia” de Manuel da Fonseca

CARACTERIZAÇÃO DAS PERSONAGENS E RELAÇÃO ENTRE ELAS

 Em «Sempre é uma companhia», a ação gravita em torno de duas


personagens nucleares: o Batola, que é o protagonista, e a sua mulher. O leitor
acompanha mais de perto o drama pessoal e íntimo destas duas figuras, mas vai
também lendo sobre as angústias e os problemas do Rata e dos outros habitantes
da aldeia.
 Batola é um homem de estatura mediana, «atarracado» e de «pernas arqueadas»,
e tem cara redonda. No que diz respeito à sua personalidade, o protagonista do
conto revela-se, inicialmente, preguiçoso, passivo e conformado com a sua
situação. Mas é também agressivo (com a sua mulher), pouco polido e fraco, visto
que se entrega ao vício da bebida, e não consegue ultrapassar a situação existencial
em que se encontra (frustração, vazio interior).
 Pela sua forma de sustento, Batola e a mulher, que têm loja aberta, vivem de forma
mais desafogada do que os trabalhadores agrícolas da aldeia. No entanto, o
protagonista debate-se com o problema da solidão, do vazio existencial e da
frustração. Numa segunda parte do conto, após a aquisição da telefonia, a
personagem ultrapassa a solidão em que se encontrava e ganha ânimo, vitalidade
e gosto pela vida.
 Por contraste, a mulher do Batola é caracterizada como o oposto do retrato inicial
do marido. Fisicamente, ela é alta, séria («grave»), tem «rosto ossudo» e «olhos
negros». Na sua «serenidade de maneiras», revela ser dinâmica, determinada,
organizada, sensata. É ela que gere a casa e o negócio da família: a venda. O seu
nome nunca é mencionado, sublinhando a ideia de que importa mais o papel que
desempenha do que a sua identidade.
 A relação matrimonial entre Batola e a mulher é marcada por um aparente vazio de
sentimentos e pela frieza: coexistem, em vez de criar um espírito de comunhão e de
partilha entre si, e mal falam. O silêncio acaba por se abater sobre aquele lar. Os
dois vivem em estado de tensão, ira e revolta e o resultado desse mal-estar, em
certos casos, desemboca na violência, quando Batola agride a companheira.
 Já a personagem Rata vive na miséria. Apesar de manter uma amizade com o
Batola, estabelece um contraste com ele: a vida do protagonista prima pelo
imobilismo; por seu lado, o Rata sai frequentemente da aldeia e calcorreia o
Alentejo. Porém, quando a miséria e a doença o condenam a uma vida estagnada
e de grande privação, suicida-se.
 Acompanhamos também a existência dura, desgastante e carenciada de uma
personagem coletiva: os ceifeiros e demais trabalhadores agrícolas da aldeia, que
trabalham «de sol a sol» e que não parecem ter forma de ultrapassar as suas
difíceis condições de existência.
 Uma palavra sobre o vendedor de telefonias: trata-se de um homem elegante, afável
e cativante, como qualquer vendedor deve ser. Além disso, é convincente e
calculista.

Página 1 de 3
CARACTERIZAÇÃO DO ESPAÇO: FÍSICO, PSICOLÓGICO E
SOCIOPOLÍTICO

 A ação de «Sempre é uma companhia» decorre em Alcaria, uma aldeia


do Alentejo profundo, na primeira metade dos anos 40 do século XX. Neste espaço
físico, o olhar do narrador incide na vida do casal que é proprietário da loja da
aldeia. É sobretudo na casa destes comerciantes, um espaço formado pela parte
habitável e pela venda, que a trama narrativa conhece os momentos mais
relevantes.
 O espaço da aldeia e, mais ainda, a casa do Batola são espaços concentracionários
e propiciadores de claustrofobia, que colocam as personagens nucleares sob
grande pressão. É inevitável que os habitantes de Alcaria sintam o lugar como
uma prisão que determina as vidas vazias, rotineiras e carenciadas que têm.
 O drama íntimo que Batola vive é retratado por um narrador omnisciente que, em
certos momentos, adota o ponto de vista da personagem para narrar a história. É
sobretudo nesses momentos que tem acesso aos pensamentos, às angústias e às
ansiedades do protagonista do conto e que os apresenta ao leitor. Estes momentos,
em que entramos na mente da personagem para auscultarmos os seus
pensamentos e sentimentos, são momentos de espaço psicológico.
 No conto, abre-se ainda o espaço social (ou sociopolítico) quando os ambientes e as
vivências das personagens conduzem à análise e à crítica da organização e das
práticas de uma comunidade. Alcaria é uma localidade rural que não tem contacto
com o resto do mundo e que ficou parada no tempo. No isolamento geográfico,
na vida dos seus habitantes e no atraso tecnológico (apenas uma casa tem
eletricidade, e não existia uma única telefonia na aldeia), encontramos
um microcosmos da pobreza e do atraso cultural do Portugal do Estado Novo (cf.
página 251). Indiretamente, podemos concluir que as políticas do governo central
são também responsáveis pelo fechamento e pela situação socioeconómica de
Alcaria.
 Na segunda parte da narrativa, opera-se uma mudança nesta comunidade. A
compra de uma telefonia, que transmite notícias e música, abre uma linha
de comunicação com o resto do país e com o mundo. O isolamento da comunidade
atenua-se porque os seus habitantes passam a saber o que acontece noutros
lugares: recebem, por exemplo, informação sobre a Segunda Grande Guerra.

Página 2 de 3
SOLIDÃO E CONVIVIALIDADE

 A existência da telefonia na venda do Batola introduz alterações no modo de vida


das personagens e na convivialidade que mantêm entre si.
 Como antes vimos, a primeira parte do conto é marcada pelo isolamento
geográfico da aldeia e pela solidão do Batola. A relação fria e tensa com a mulher
pauta-se pelo afastamento e pelo silêncio. Por outro lado, sendo Batola um
comerciante, a solidão do protagonista deve-se também ao facto de ter uma
ocupação que o afasta do contacto regular com os trabalhadores agrícolas que
formam o grosso da população de Alcaria e que pouco frequentam a sua venda.
O isolamento da personagem, em tempos, era quebrado pelas conversas com o
Rata, mas esse contacto humano também se perde quando este último se suicida.
 O modo de vida da população da aldeia altera-se quando Batola adquire uma
telefonia. Os habitantes começam a sair de suas casas à noite para irem até à loja
escutar a rádio, ora a fim de saber notícias do País e do mundo, ora para ouvir (e
dançar ao som da) música. A convivência entre os membros da comunidade
aumenta.

A IMPORTÂNCIA DAS PERIPÉCIAS INICIAL E FINAL

 No início de «Sempre é uma companhia», o narrador apresenta o protagonista do


conto e, de seguida, dá a conhecer ao leitor os traços centrais da sua personalidade
e a relação que tem com a mulher pelo processo de caracterização indireta, no
breve episódio em que um cliente entra na loja. Batola demora-se para não ter de
aviar a criança que foi comprar café, esperando que seja a mulher a fazê-lo.
Conclui-se então que a inércia e a frustração minam Batola e que a relação com a
mulher se pauta pela frieza, pelo ressentimento e pelo despeito.
 Na peripécia final, que corresponde ao desenlace da ação, a mulher de Batola recua
na sua intransigência e comunica ao marido que aceita que ele compre
definitivamente a telefonia, que tanto animava a loja e a aldeia. Antes a
personagem ameaçara sair de casa se o marido adquirisse o aparelho, e o
protagonista convence-se de que tem de abdicar do rádio para que tal não suceda.
 Esta alteração da decisão da mulher de Batola tem consequências para a
comunidade e para a sua relação matrimonial. Os habitantes poderão continuar a
juntar-se para conviver ao som da música e a escutar as notícias do exterior. Por
outro lado, a mulher do protagonista percebeu como a telefonia tinha alterado a
atitude e o ânimo do marido e ficou agradada com esse facto, se é que não ficou
ela própria rendida às emissões radiofónicas. Como o desenlace do conto é aberto,
podemos conjeturar que o casal se voltou a aproximar e que ressurgiram os afetos
e a partilha entre ambos.

Página 3 de 3

Você também pode gostar