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GUIA DE URBANISMO

SOCIAL

LA BORATÓRIO ARQ.FUTURO DE CIDADES DO INSPER


GUIA DE URBANISMO
SOCIAL

Correalização:
Núcleo de Urbanismo Social do Laboratório Arq.Futuro de
Cidades do Insper e Diagonal

Organização:
Carlos Leite, coordenador do Núcleo de Urbanismo Social

LA BORATÓRIO ARQ.FUTURO DE CIDADES DO INSPER

SÃO PAULO 2023


O que é o Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper
Resultado de uma parceria firmada em 2019 entre o Insper — Insti-
tuto de Ensino e Pesquisa e a plataforma Arq.Futuro, o Laboratório
tem na interdisciplinaridade e na inovação, a orientação para o
ensino e a pesquisa sobre a cidade, com a missão de contribuir
para o impacto real na vida das populações urbanas.

Por que um “Laboratório de Cidades”?


As abordagens tradicionais do urbanismo já não são capazes de
equacionar os complexos desafios enfrentados pelas cidades
contemporâneas. Com o extraordinário aumento da disponibilidade
de dados georreferenciados e a evolução de métodos analíticos, a
pesquisa interdisciplinar sobre os conglomerados urbanos avançou
muito em diversos países.

No Brasil, entretanto, constata-se uma carência de práticas inovado-


ras na gestão das cidades e uma escassez de avaliação de impacto
sobre a eficácia das políticas públicas para a sua transformação.
O Laboratório Arq.Futuro de Cidades tem como objetivo enfrentar
esses desafios, integrando-se a uma escola de negócios que é
referência nas suas atividades acadêmicas de pesquisa e ensino.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Como funciona o Laboratório?
Estruturado em núcleos, o Laboratório Arq.Futuro de Cidades do
Guia de urbanismo social (livro eletrônico) /
organização Calos Leite. --1. ed.-- São Paulo: BEI Editoal:
Insper se integra aos programas educacionais e centros de pes-
Núcleo de Urbanismo Social do Laboratório Arq.Futuro de quisa existentes na instituição de modo transversal, oferecendo
Cidades do Insper e Diagonal, 2023. PDF. grande liberdade para a reflexão e o estabelecimento de múltiplas
associações e criando um ambiente particularmente propício ao
Vários colaboradores.
ISBN 978-65-86205-34-3 aprendizado, à pesquisa e à inovação.

1. Arquitetura — Aspectos sociais 2. Arquitetura sustentável — A proposta é que o conhecimento sobre cidades seja compreendido
Aspectos ambientais 3. Cidades — Aspectos sociais
não como uma especialização e sim como um campo de atuação
4. Paisagismo 5. Planejamento urbano 6. Políticas públicas I.
Leite, Carlos. no qual profissionais de diversas disciplinas aplicam seus conhe-
cimentos e ferramentas.

23-146825 CDD - 711

Índice para catálogo sistemático: LA BORATÓRIO ARQ.FUTURO DE CIDADES DO INSPER

1. Urbanismo social 711


Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
V
A Diagonal é uma consultoria pioneira em Gestão Social, que apoia
empresas, organizações e governos a elevarem seu padrão ESG
_APRESENTAÇÕES
(governança ambiental, social e corporativa) e a gerarem impacto
socioambiental positivo para a sociedade.
UMA CONTRIBUIÇÃO EM FAVOR DE
CIDADES DESENVOLVIDAS, JUSTAS,
Ao longo da sua trajetória, executou ações em mais de 22 países
INCLUSIVAS E SUSTENTÁVEIS
e mil municípios brasileiros, e sua atuação integrada, humanizada
e disruptiva foi um marco para a gestão social do Brasil, tendo
As cidades — a maior invenção da espécie humana, como atesta o
influenciado a evolução de políticas públicas voltadas ao trabalho
economista norte-americano Edward Glaeser — vivem, atualmente,
social, ao relacionamento e ao diálogo com as comunidades.
um desconcertante paradoxo. Enquanto no Norte Global, sobretudo,
elas vêm ganhando “inteligência”, explorando o uso de tecnologias
As bases metodológicas de sua atuação partem do princípio de
e desenvolvendo práticas de sustentabilidade para melhorar o seu
que todos os problemas são integrados, simultâneos, sistêmicos e
funcionamento e a qualidade de vida dos cidadãos, no Sul Global
interdependentes; além da certeza de que para propor soluções para
os direitos mais básicos seguem distantes da maioria da população.
os problemas complexos dos territórios e de suas comunidades, é
necessária uma abordagem integrada e que leve em consideração
Superar essa vergonhosa contradição, que a pandemia de covid-19
diferentes perspectivas e olhares.
apenas escancarou aos olhos do planeta, é mais que um desafio
para a sociedade contemporânea: é um dever moral. Dentre as
O território é visto como a base do trabalho, porém, para conhecê-lo
ferramentas disponíveis para realizar essa complexa e incontornável
profundamente, a Diagonal compreende-o como matriz da vida
tarefa, o urbanismo social tem se revelado uma das mais eficazes. A
social, econômica e política de cada comunidade em que atua. E,
estratégia, que teve como uma das referências o projeto Favela-Bairro,
para isso, combina conhecimento interdisciplinar às tecnologias
do Rio de Janeiro, consagrou-se mundo afora a partir de Medellín.
sociais e digitais, tendo como premissas a participação, a cocriação
Nos anos 1990, a metrópole colombiana chegou a ser a mais violenta
e o diálogo social, pois acredita que só é possível traçar planos
da Terra. Graças ao urbanismo social — cujo propósito é, por meio da
estratégicos que incorporam ações realmente sustentáveis por
inclusão cidadã, promover uma transformação real nas comunidades
meio da escuta ativa, do acolhimento e da cooperação.
pobres —, em 2013 ela foi considerada a mais inovadora do globo.

O trabalho participativo constrói as soluções com a população e


Sendo um país que tem cerca de 85% dos seus habitantes morando
não apenas para ela, favorecendo o desenvolvimento sustentável e
em cidades, e quase um quarto deles em situação de pobreza, o Brasil
estabelecendo uma relação mais humana, justa e duradoura entre
precisa cada vez mais do urbanismo social (e, de fato, já o adotou,
as pessoas e seus territórios.
com êxito, em algumas localidades). Daí a pertinência e a importância
de uma obra como esta que o Laboratório Arq.Futuro de Cidades do
Insper traz agora ao público, em uma correalização com a empresa
Diagonal. Trata-se do primeiro livro do gênero nessa área lançado no
país. Sua ambição é falar de perto a todos os agentes envolvidos nas
questões das populações periféricas brasileiras, fornecendo-lhes
conhecimento teórico e indicações de práticas bem-sucedidas para
ajudá-los a superar as dificuldades que assolam tais territórios.
VI VII
O presente Guia, que inaugura a nossa “Coleção Urbana”, é outra PELA TRANSFORMAÇÃO PREMENTE DA REALIDADE
iniciativa pioneira do Laboratório, que, em 2020, criou o primeiro SOCIOAMBIENTAL DE UMA IMENSA PARCELA DA
curso de pós-graduação lato sensu em urbanismo social do Brasil, POPULAÇÃO DO PAÍS
já em sua terceira turma.
É com grande satisfação que vemos a consolidação deste Guia
Ambos, obra e curso, têm em sua organização o Núcleo de Urbanis- de Urbanismo Social e sua disponibilização abrangente a fim de
mo Social do Laboratório, cuja missão destaca a qualificação dos que possa se constituir em mais um subsídio ao planejamento de
territórios vulneráveis de modo propositivo, com vistas à promoção intervenções em assentamentos precários e bairros marcados por
de cidades desenvolvidas, justas, inclusivas e sustentáveis. altos índices de vulnerabilidade socioambiental. Neste trabalho,
vários profissionais sintetizam suas experiências individuais e
A solução dos problemas das populações urbanas passa necessa- coletivas, elencando caminhos possíveis ante as dificuldades e
riamente pela gestão compartilhada. É preciso não só “enxergar” potencialidades que se apresentam nas ações que visam diminuir
as comunidades invisibilizadas como também “ouvi-las”. Esse diferenças históricas ou recentes de padrão de vida urbana nas
processo de escuta está na raiz do urbanismo social cujas diretrizes periferias desassistidas das grandes cidades brasileiras.
o Laboratório anseia contribuir para difundir e consolidar no país.
Por um motivo simples: é o caminho mais robusto, solidário, ético A experiência da Diagonal, de mais de 32 anos de consultoria socio-
e curto para que todos os brasileiros possam realmente, um dia, ambiental em planos e projetos de habitação de interesse social e de
considerar as cidades como a maior invenção humana. urbanização de áreas degradadas de diversos portes e matizes setoriais
(habitação, saneamento, mobilidade e outros), aponta a importância
do trabalho social junto às comunidades impactadas, com foco na
organização e mobilização para uma participação social efetiva nos
processos de intervenção que contemplem, para além das melhorias
físicas urbanísticas, ações no âmbito das dimensões da sustentabili-
dade ambiental e do desenvolvimento local das comunidades.

Tal processo de trabalho social estabelece uma aproximação dos


agentes públicos com a comunidade, a partir da qual se evidencia
como grande desafio a articulação das políticas sociais nesses
territórios. Articular na ponta, no território, o que muitas vezes
não está presente na estrutura central da gestão pública tem se
mostrado uma difícil tarefa na condução das discussões acerca das
demandas das comunidades envolvidas. Não se pode ignorar que
as necessidades das comunidades exigem uma visão integrada da
totalidade dos aspectos e problemas que afligem a vida de famílias
em situação de vulnerabilidade que vão além das questões tratadas
Tomas Alvim pela intervenção física e urbanística, reivindicando um arcabouço
Coordenador-Geral de políticas sociais — educação, saúde, trabalho e renda, cultura,
Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper esporte, assistência social, segurança e outras.

VIII IX
A perspectiva do urbanismo social vem lançar luz sobre a importân-
cia do acolhimento das diversas necessidades sociais dos bairros.
_PREFÁCIOS
Realça a relevância de um planejamento territorial a partir de
uma compreensão mais abrangente da questão social, buscando
O TERRITÓRIO IMPORTA: SUPERANDO AS
articular, no tempo, intervenções estruturantes com outras de ca-
DESIGUALDADES COM INTERSETORIALIDADE,
ráter pontual, mas igualmente importantes para a melhoria da vida
CONTINUIDADE E PROTAGONISMO LOCAL
cotidiana desses bairros. Sua ênfase na implementação de planos
locais integrados, a partir de processos de participação delibera-
Perto do final deste primeiro quarto do século XXI, estamos viven-
tivos, também induz à necessidade de articulação desses planos
ciando, enquanto humanidade, um conjunto de novas e velhas crises,
locais com uma agenda de planejamento global do município para
uma das quais é o crescimento das desigualdades. O abismo que
que não surjam descolados do orçamento geral da cidade. Nesse
separa as condições de vida das camadas mais altas para as mais
sentido, a experiência da Diagonal tem mostrado a importância de
baixas da população só cresce em termos materiais e subjetivos,
uma liderança capaz de articular políticas sociais, possibilitando
com a tecnologia e a ciência levando uns a experimentar arte,
resultados satisfatórios no atendimento holístico das demandas
cultura e viagens por meio da realidade virtual, além da superação
das comunidades vulneráveis.
de doenças crônicas e sonhos de vida em outros planetas, enquanto
outros ainda não dispõem de algo tão simples como um banheiro ou
Esses argumentos reforçam os princípios nos quais a Diagonal acre-
água corrente em suas casas. A intensidade dessas desigualdades
dita e que adota em sua atuação junto às prefeituras, governos esta-
tem se ampliado, bem como a velocidade com que crescem, de
duais e federal, empresas privadas e organismos multilaterais, tanto
modo a ser possível imaginar um ponto de não retorno social, uma
no Brasil quanto em outros países. Parte desse conteúdo compõe
situação em que já não seremos capazes de conectar os mundos e
capítulos do presente Guia, trazendo aspectos de uma metodologia
construir uma sociedade efetivamente justa e inclusiva.
de abordagem muito similar e aderente ao que defende o urbanismo
social: qual seja, colaborar para a busca de um planejamento urbano
É urgente, portanto, repensar as formas como lidamos com o processo
efetivo em áreas de vulnerabilidade, imprescindível para a redução
de desenvolvimento e, em particular, como construímos alternativas
das desigualdades socioambientais das cidades, propósito central
para a superação das vulnerabilidades na ponta mais frágil desse
que vem mobilizando toda a nossa trajetória.
cenário. Infelizmente, estamos acostumados a buscar soluções rá-
pidas, setoriais e generalizáveis para um fenômeno que, na verdade,
Esperamos que a leitura deste Guia contribua para a transformação
é complexo e específico. As famílias que se encontram em situação
premente da realidade socioambiental de uma imensa parcela da
de vulnerabilidade vivenciam um conjunto de restrições materiais
população brasileira.
e de oportunidades que se articulam para dificultar as possíveis
estratégias de saída. Não se trata apenas de uma questão de baixa
renda. É a falta de renda em conjunto com a menor mobilidade, com
educação e saúde de mais baixa qualidade, ausência de saneamento
básico, pouca oferta de opções culturais e de entretenimento e mais
um conjunto de condições que criam uma vulnerabilidade sistêmica.
Ou seja, não é possível resolver a questão com ações e políticas
Kátia Mello
setoriais e pontuais. É preciso abarcar esse conjunto de aspectos
Copresidente da Diagonal
que condicionam a vida das pessoas em situação de vulnerabilidade.
X XI
Mas, ao mesmo tempo que essa multiplicidade de vulnerabilidades URBANISMO SOCIAL: O GRANDE DESAFIO DO
pode ser identificada, e de certa maneira, generalizada para diversos FUTURO DE NOSSAS CIDADES
territórios, as soluções específicas que devem ser construídas não
são genéricas. Elas devem levar em consideração as condições Desde o início do século XX, as cidades latino-americanas, do
particulares de cada local e de cada família, com um olhar atento norte do México até a Patagônia argentina, caracterizaram-se pela
para o fato de que não é apenas de vulnerabilidades que essas pes- superurbanização. Ausentes do horizonte de políticas públicas
soas se constituem. Cada uma delas, em seus bairros e territórios, territoriais, elas facilitaram décadas de ocupação irregular de suas
desenvolve estratégias próprias de sobrevivência, bem como rotinas periferias e, com isso, deram margem ao aumento da pobreza, da
potentes de convívio e colaboração que constroem suas histórias de desigualdade social e da injustiça.
luta e superação dentro desse difícil contexto. As novas soluções de
combate às desigualdades têm que considerar essa potência local As cidades que se urbanizaram informalmente em decorrência de
como fonte propulsora do desenvolvimento territorial. É nas histórias diversos fatores, como o êxodo rural em sua direção, a busca de
específicas que está a chave de articulação dos aspectos mais ur- oportunidades e, recentemente, em decorrência da migração de
gentes e que podem dar início a um ciclo positivo de superação das outros países por problemas políticos, assentaram-se em territórios
vulnerabilidades. Nesse sentido, o fortalecimento das organizações sem capacidade de suporte (serviços públicos, ruas, equipamentos
locais, com respeito e estrutura para a sua atuação, seria o modo de qualidade e moradia digna).
de impulsionar projetos intersetoriais de transformação contínua e
efetiva para os territórios. Tais assentamentos, desconectados da cidade formal, distantes de
sua dinâmica social e econômica, são hoje o grande problema de
Entendemos que esses são os grandes valores por trás do urbanismo nossas urbes e o maior desafio a assumir nas próximas décadas. Por
social, conceito que este Guia nos convida a aprofundar. Para nós, isso, é preciso construir políticas públicas que permitam a disponi-
falar em urbanismo social é reconhecer que os territórios urbanos bilização simultânea de todas as ferramentas de desenvolvimento,
são o lugar onde a vida efetivamente acontece e, que por isso, mes- possibilitando identificar e enfrentar as carências presentes em
mo eles devem ser o motor da transformação social. Por meio dos bairros, favelas e outros conglomerados socialmente vulneráveis
territórios se constitui sentido de pertencimento, se compartilham e, assim, pagar a dívida histórica que a cidade e a liderança insti-
anseios sociais, se constroem projetos concretos. tucional têm com os seus cidadãos e seus territórios.

A superação das desigualdades é urgente. A valorização dos territórios A referida política pública, que para os fins deste texto denomi-
é um caminho estruturante para que possa ser efetiva. Esperamos namos urbanismo social, é uma iniciativa que focaliza o cidadão
que gestores e líderes sociais possam se inspirar nas reflexões aqui como sujeito e a cidadania como coletivo e sociedade. A estratégia
trazidas para que tenhamos cada vez mais ações promovendo a propõe um estudo tangível e imaterial do território e, com base
intersetorialidade, a continuidade de políticas e o protagonismo local. nisso, a geração e formulação de programas e projetos de forma
integral e urbanisticamente definidos como ações sistemáticas
Maria Alice Setubal e não isoladas, com o objetivo de proporcionar o maior impacto
Presidente do Conselho Curador da Fundação Tide Setubal possível na população e sua vinculação com a dinâmica da cidade
formal, melhorando todos os indicadores de cobertura básica da
Mariana Neubern de Souza Almeida vida urbana e, com ela, a qualidade de vida.
Diretora-executiva da Fundação Tide Setubal

XII XIII
Na América Latina têm sido realizados programas específicos no
âmbito do urbanismo social. As experiências de Projetos Urbanos
_SUMÁRIO
Integrais (PUIs), como as desenvolvidas no Rio de Janeiro, caso do
programa Favela-Bairro; modelos como o de Medellín; as iniciativas
em Iztapalapa, no México, e as ações que vêm sendo realizadas no
Recife (os Centros Comunitários da Paz — Compaz) e estão come-
_APRESENTAÇÕES 7
çando na capital paulista são, entre outras, as apostas para assumir
o desafio de transformar os territórios de maior vulnerabilidade. No _PREFÁCIOS 11
entanto, de acordo com minha experiência em vários países, elas
muitas vezes não constituem uma política pública integral; não 01_ SUMÁRIO EXECUTIVO 16
representam uma decisão dos governantes das cidades.
02_ URBANISMO SOCIAL: CONCEITOS 32
Por fim, e enfatizando o título dado a esta breve apresentação, temos
quatro desafios realmente importantes para o futuro. Primeiro, 03_ PLANO DE AÇÃO LOCAL 66
fazer prevalecer a diretriz política por meio da qual os governos
entendam que muitos dos problemas dos referidos territórios vul- 04_ DIMENSÃO GOVERNANÇA 80
neráveis existem devido à sua fragmentação em relação à cidade
05_ DIMENSÃO TERRITORIAL 102
formal e à dívida social acumulada. Em segundo lugar, destacar a
importância de estudar, compreender e atuar naquelas localidades
06_ DIMENSÃO SUSTENTABILIDADE URBANA 152
em favor de seus habitantes para buscar soluções conjuntas, a
fim de conseguir, mediante projetos enquadrados em uma política 07_ DIMENSÃO SOCIOECONÔMICA E CULTURAL 190
pública como o urbanismo social, implementar o PUI. Terceiro:
dignificar o cidadão e, finalmente, dar o primeiro passo que nos 08_ TÓPICOS EM POLÍTICAS PÚBLICAS 210
leve, a todos, do medo à esperança.
09_ TÓPICOS EM REGULAÇÃO URBANA 226
Carlos Mario Rodriguez
Urbanista e professor do Instituto Tecnológico de Monterrey 10_ TÓPICOS EM FORMAS DE FINANCIAMENTO 240

11_ TÓPICOS EM CIDADE E CRIANÇAS 254

12_ TÓPICOS EM SAÚDE URBANA 272

13_ TÓPICOS EM MULHERES E TERRITÓRIOS 284

14_ TÓPICOS EM MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO 298

15_ CASOS REFERENCIAIS 310

XIV
Capítulo 01 : Sumário Executivo

01_ 1.1_ O QUE É O GUIA?


QUAL O OBJETIVO?

SUMÁRIO EXECUTIVO Este Guia apresenta um “cardápio” amplo de tópicos e temas sobre
a pauta do urbanismo social, aqui entendida e abordada de forma
abrangente. Sabe-se que provavelmente nenhum caso referencial ou
programa de urbanismo social contempla todos os itens apresentados
nos quinze capítulos do livro. A ideia é oferecer às leitoras e aos leitores
1.1_ O que é o Guia? Qual o objetivo?
as diversas alternativas e oportunidades que possam ser utilizadas
e que sirvam de referência tanto no conteúdo do capítulo específico
1.2_ A quem interessa?
como nas indicações apresentadas em “Para saber mais” — ou ainda
O público-alvo
nos casos referenciais citados em diferentes momentos da obra e
analisados na parte final do trabalho, o Capítulo 15.
1.3_ Como organizamos as
dimensões do urbanismo social e o
Conforme está explicado no Capítulo 2, o termo “urbanismo social”
Guia?
foi consagrado internacionalmente no início do século XXI com a
experiência colombiana, em especial de Medellín. Assim, a referência
1.4_ O contexto
primordial é essa; não por acaso, existem muitos artigos acadêmicos e
livros sobre o urbanismo social de Medellín (vários, aliás, citados neste
1.5_ Onde encontrar mais
Guia). Isso não implica que o caso de Medellín não tenha limitações ou
informações?
críticas, como também se aponta no mencionado capítulo.

1.6_ Quem contribuiu?


O caso de Medellín inclui alguns elementos que justificam a sua
fama e referência como o grande modelo na América Latina de
“urbanismo social”, trazendo, assim, os conceitos do que se entende
por essa estratégia de atuação de modo amplo: (i) a continuidade do
programa por quase quinze anos e várias gestões municipais; (ii) a
efetivação de uma entidade pública empoderada que coordena as
diversas políticas e ações públicas e as integra e territorializa nos PUIs
(Projetos Urbanos Integrais), a EDU (Empresa de Desenvolvimento
Urbano); (iii) a construção de modelos de governança compartilhada
entre a gestão pública, a academia e, claro, com protagonismo da
comunidade local; (iv) a efetiva implantação de ações, projetos e obras
em diversos territórios, com destaque para a construção de grandes
equipamentos públicos-âncora (bibliotecas-parque; UVA — Unidades
de Vida Articulada e outros) com altíssima qualidade arquitetônica;
AUTORES (v) as entregas rápidas de espaços públicos de qualidade articulados
Núcleo de Urbanismo Social com outros elementos do plano urbanístico e, em especial, com os

17
Guia de Urbanismo Social Capítulo 01 : Sumário Executivo

sistemas de mobilidade urbana, tendo como destaque as estações do Ainda no Capítulo 2, comenta-se sobre os tradicionais programas de
Metrocable (teleférico); (vi) a ênfase na redução da violência urbana, urbanização de favelas, desenvolvidos no Brasil desde a década de
desde a seleção inicial dos territórios (sempre aqueles com índices 1990, referenciando-se o pioneiro e premiado Favela-Bairro, que teve
de maior violência), passando pelas abordagens sociais e urbanas lugar no Rio de Janeiro, com o propósito de esclarecer as diferenças
integradas às de cultura e educação como estratégia de ação (em e as aproximações entre os dois conceitos.
contraposição à postura policial repressora). Vale lembrar ainda que
o programa de urbanismo social iniciado em 2004 continha uma Nesse sentido, destaca-se que este não é um “guia de urbanização de
nova visão de cidade, em essência mais inclusiva socialmente, ou favelas”, pois: (i) o urbanismo social apresenta algumas especificidades
seja, tratava-se de um projeto amplo e abrangente, com estratégias e diferenças e (ii) já existem diversos e ótimos livros, teses, artigos
gerais e integradas de transformação e não apenas de ações ou e manuais publicados no Brasil e América Latina a respeito daquele
planos específicos para alguns territórios. tema, seja via produção acadêmica consistente ou por intermédio de
órgãos públicos e organizações multilaterais2 (apontam-se alguns
E o termo “urbanismo social”? De fato, popularizada desde o início desses trabalhos nos Capítulos 2 e 15).
do programa pelo prefeito Sergio Fajardo e sua equipe em Medellín
(gestão 2003-7), a expressão adjetivou a palavra urbanismo, en- As cidades sempre foram palco de disputas no uso do território, e nos
fatizando sua demanda focada no impacto social, e o sucesso do países com imensas desigualdades sociais, como o Brasil, é nelas que
programa a tornou um conceito com o qual se passou a trabalhar os problemas se concretizam e quaisquer programas e ações no campo
em diversas cidades da América Latina. Naturalmente, a expressão do urbanismo e afins se polemizam. Não se intenciona, no presente
trouxe consigo esperadas polêmicas. Questiona-se por que agregar Guia, alimentar competição entre programas — cada qual tem o seu
a palavra “social” se “todo urbanismo deva ser social”1. Para este contexto histórico e local — e, sim, evidenciar suas especificidades,
Guia, justifica-se o uso da expressão sobretudo por se reconhecer além, é claro, de apresentar nossas definições de urbanismo social.
na prática do urbanismo social trazido da experiência de Medellín um
programa de urbanismo com algumas especificidades. Obviamente, Não existe um “modelo único” de urbanismo social; o que se tem são
não se intenciona no Guia buscar rivalizar ou deixar de reconhecer diversos processos e programas nos quais, em diferentes situações
a enorme importância e pioneirismo dos programas de urbanização e contextos específicos, utilizam-se itens variados do “cardápio” do
de favelas que são anteriores, pioneiros e inspiraram o programa de urbanismo social, mais completos ou parciais, mais ou menos dura-
Medellín e, sim, trabalhar no âmbito das especificidades dos projetos douros, mais ousados ou restritos. E haverá ações e programas que
de urbanismo social, assim como apontar diversos elementos que serão nominados de urbanismo social, de modo polêmico. O que se
são comuns às duas abordagens, as quais, portanto, não devem ser procurou trazer no Guia foi aportar o referencial amplo de temas de
vistas como excludentes. urbanismo social e apresentar alguns casos concretos. Propõe-se aqui
um aprendizado sobre os diversos temas, processos, estratégias e
lições que tenham potencial de replicabilidade nas cidades brasileiras.
1  Ao avaliar as inúmeras ações e programas de urbanismo no mundo inteiro, ao
longo da história, há que considerar, naturalmente, uma imensa pluralidade e di-
versidade de enfoques: desde as políticas e ações públicas promotoras de instru-
O objetivo final do urbanismo social é a promoção de melhores
mentos urbanos e seus planos até inúmeros projetos e ações de caráter privado e condições de vida à população que vive nas favelas por meio da qua-
imobiliário. Ou seja, existem “urbanismos” de caráter público e social, assim como há
“urbanismos” não sociais que promovem exclusão. E, entre os dois extremos, exis- lificação integrada dos territórios precários com base na governança
tem inúmeros “urbanismos” com enfoques variados e mesclados. Vale aqui lembrar
da expressão consagrada no Brasil, inclusive legalmente, do conceito e termo “ha-
bitação social”. Essa expressão diferencia e qualifica a palavra “habitação”, dando 2  BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento); Cities Alliance; Banco Mundial;
foco para aquela específica de interesse social. CAF (Banco de Desenvolvimento da América Latina).

18 19
Guia de Urbanismo Social Capítulo 01 : Sumário Executivo

compartilhada entre a população local e a gestão pública, atuando


de modo integrado e com continuidade dos programas. Trata-se de
demanda social urgente no Brasil, pois estima-se que cerca de 17
PARA SABER MAIS, VER:
!
1.2_ A QUEM INTERESSA?
O PÚBLICO-ALVO
▸ Instituto Locomotiva,
milhões de pessoas, 8% da população, residam em favelas3, e que 2021. Educação, cultura, Como em todo guia, ou manual, procurou-se fazer deste um produto
o déficit habitacional no país seja de aproximadamente 5,8 milhões periferia e racismo: prático, de linguagem objetiva e acessível ao grande público, não
um levantamento do
de moradias (18,5 milhões de pessoas)4. Instituto Locomotiva
especializado. O objetivo é que quem mais precise promover, de
para a Central Única das algum modo, práticas de urbanismo social nas diversas cidades
Favelas.
do Brasil encontre aqui explicações, definições, conceitos, meto-
▸ Fundação João dologias e exemplos concretos.
Pinheiro, 2021. Déficit
Existem diversos termos para favelas no Brasil: comunidades, territó- habitacional no Brasil.
rios de vulnerabilidade social, territórios periféricos, bairros informais, Assim, os públicos-alvo do Guia são: (i) lideranças comunitárias
assentamentos precários (usada pelos governos, assim como favelas), e moradores das favelas das cidades brasileiras; (ii) gestores
"áreas degradadas, ocupadas desordenadamente e sem infraestrutura", públicos; (iii) lideranças do terceiro setor; (iv) meio acadêmico e
aglomerados subnormais (IBGE) e outros. Optou-se no Guia pela utilização demais interessados em promover melhorias nos territórios e na
do termo favela por ser o mais comumente utilizado e provavelmente o de vida dos moradores das favelas, por meio das diversas práticas de
maior aceitação pelas comunidades desses territórios. Obviamente não urbanismo social aqui apresentadas.
se deve impor ao termo nenhum tipo de significado pejorativo ou precon-
ceituoso, muito pelo contrário: trata-se, sobretudo, do reconhecimento do

1.3_
termo junto à sua população, com seus desafios e potencialidades, como COMO ORGANIZAMOS AS
se mostra ao longo do Guia. DIMENSÕES DO URBANISMO
SOCIAL E O GUIA?

Por se tratar de objeto de estudo em área multi e interdisciplinar,


O Guia tem como objetivos: organizou-se o presente Guia e seus diversos conteúdos em termos
▸ Apresentar um elenco de possíveis soluções e propostas, apren- de dimensões e tópicos de atuação. Eles ajudam a visualizar como
dizados e referências para a promoção do urbanismo social de o programa está estruturado e permitem abordar cada aspecto em
modo amplo em nossas cidades; uma sistematização de conceitos, separado, sem prejuízo da proposta de integralidade das diversas
práticas e metodologias orientados para a replicabilidade; ações. Tudo deve se conectar no território e no seu uso pela comu-
nidade. Assim, as dimensões e sua organização no Guia são estas:
▸ Servir de apoio técnico e instrumento de mobilização na imple-
mentação de programas de urbanismo social, especialmente junto
INSTITUCIONAL E GOVERNANÇA
às comunidades das favelas e suas potencialidades;

▸ Gerar impacto social pela divulgação e disseminação ampla e ▸ O Capítulo 4, A governança diz respeito aos espaços de tomada de decisão e aos
gratuita de conhecimentos em urbanismo social. principalmente, e atores (stakeholders) que participam desse processo em determinado
também o 3 e o 5
território. Deve-se refletir sobre a forma de organização de tais atores,
abordam aspectos
dessa dimensão. seja nos órgãos públicos — nas suas diversas escalas e setores de
3  MEIRELLES, Renato; ATHAYDE, Celso. Um país chamado favela: a maior pesquisa
atuação —, privados ou nas entidades comunitárias, tendo em vista
já feita sobre a favela brasileira. São Paulo: Gente, 2014
os objetivos do programa. Aspectos como transparência, participação
4  Ver: O déficit habitacional no Brasil. Fundação João Pinheiro, 2019.

20 21
Guia de Urbanismo Social Capítulo 01 : Sumário Executivo

social, capacidade de gerenciamento de processos e resultados devem relação mais bem-sucedida entre a ocupação urbana e a natureza,
ser considerados no desenho institucional, do mesmo modo que novas de modo a garantir condições socioambientais satisfatórias para
formas de governança compartilhada podem ser desenvolvidas. a população nos bairros e nas comunidades. Essas dimensões olham
para os seguintes aspectos: Sistema de Espaços Livres e Infraestrutura
TERRITORIAL Verde, Sistema de Abastecimento de Água e de Esgotamento Sanitário,
Drenagem da Superfície, Coleta e Disposição dos Resíduos Sólidos e
O ordenamento territorial implica a correlação entre um conjunto de ▸ O Capítulo 5, Orgânicos, Gestão de Riscos Urbanos e Educação Ambiental e Ações
políticas setoriais que se relacionam direta ou indiretamente com a sobretudo, e também o 3 e Instrumentos de Redução dos Impactos das Ações Climáticas. Como
e o 15 abordam aspectos
política de desenvolvimento urbano a partir de diferentes escalas. dessa dimensão. as periferias são impactadas e podem ser territórios de recuperação
Em linhas gerais, devem ser consideradas ações de um conjunto de ambiental e ações de sustentabilidade urbana? Como reduzir áreas
políticas, programas, planos, ações e projetos relacionados aos seus de risco ambiental levando sempre em conta as comunidades locais?
diversos elementos: Sistema de Infraestrutura; Sistema de Transporte Como promover a justiça ambiental nas periferias?
e Mobilidade; Sistema de Áreas Protegidas, Áreas Verdes e Espaços
Livres; Sistema de Equipamentos Urbanos e Sociais; Serviço de JURÍDICA (MARCOS REGULATÓRIOS)
Moradia Social; Sistema de Proteção do Patrimônio Cultural, dentre
outros. Tais sistemas podem ser entendidos como o hardware com o ▸ O Capítulo 9, O elemento jurídico alude aos instrumentos que prezam pela
qual o programa deve dialogar, da mesma maneira que as dimensões sobretudo, e também o promoção da função social da cidade e da propriedade e da ges-
10, abordam aspectos
de governança e participação social se refeririam ao software. tão democrática urbana. Trata ainda de todos os demais itens da
dessa dimensão.
regulação urbana que podem ajudar na promoção de cidades mais
SOCIOECONÔMICA E CULTURAL justas e inclusivas e na qualificação dos territórios de vulnerabili-
dade social. Tais instrumentos podem responder ao desequilíbrio
As dimensões socioeconômica e cultural dizem respeito ao conjunto ▸ Contudo, o Capítulo 7, de forças no que diz respeito ao desenvolvimento local de áreas
de políticas públicas e recursos locais que tratam desses aspec- em especial, e também urbanas vulneráveis e suas populações. Para essa dimensão é
o 2, 4, 5, 8, 11, 13 e 15
tos em termos de desenvolvimento social, empreendedorismo, tratam dessa dimensão. importante realizar o levantamento e a análise do marco regula-
artes, hábitos e costumes presentes que atendem determinado tório aplicável, especialmente em relação à política urbana e às
território ou são produzidos pela comunidade da área em ques- interfaces com as demais políticas setoriais que dialogam com o
tão. Relacionam-se aos programas de tais políticas e, como eles, escopo do programa.
dialogam com os territórios quanto à abrangência, qualidade,
prioridades e mecanismos de integração de serviços. Aqui também FINANCEIRA
se apresentam as fundamentais ações que emergem nas diversas (FORMAS DE FINANCIAMENTO)
comunidades a partir de seus moradores, os diversos processos
bottom-up, a potência das favelas. Essa temática está presente de ▸ O Capítulo 10 aborda
Refere-se ao potencial ou formato de investimentos público e/ou de
modo transversal em diversos capítulos do livro. aspectos dessa agências multilaterais de financiamento (Banco Mundial, BID, CAF
dimensão.
etc.), assim como àqueles derivados da política fundiária, utilizados
SUSTENTABILIDADE URBANA para viabilizar os programas de urbanismo social. A depender das
▸ O Capítulo 6,
estruturas organizacionais, normas legais e interesses políticos, as
principalmente, e
As dimensões ambiental e de sustentabilidade abordam a melhoria também o 5 abarcam formas de viabilização do projeto podem ser distintas e, por vezes,
do padrão de vida em todos os espaços da cidade por meio de uma aspectos dessa inovadoras para o investimento público.
dimensão.
22 23
Guia de Urbanismo Social Capítulo 01 : Sumário Executivo

Além de tais dimensões — as mais tradicionais, por assim dizer —,


apresentam-se alguns tópicos que complementam o cardápio da obra.
São temas e pautas de crescente importância em nossas cidades e
1.4_ O CONTEXTO

nos territórios de vulnerabilidade social:


Este Guia emerge do Núcleo de Urbanismo Social do Laboratório
Arq.Futuro de Cidades do Insper, que tem como missão congregar
▸ Tópicos em políticas públicas — Capítulo 8
de forma integrada, multidisciplinar e inovadora as dimensões de
▸ Tópicos em cidade e crianças — Capítulo 11 extensão e impacto social, pesquisa aplicada, ensino e capacitação.
Trata-se do primeiro centro especializado no tema no Brasil com
▸ Tópicos em saúde urbana — Capítulo 12
tal agenda emergencial, que consiste em uma complexa pauta de
▸ Tópicos em mulheres e territórios — Capítulo 13 promoção das cidades inclusivas, com a qualificação dos territórios
de vulnerabilidade social de modo propositivo e transformador,
▸ Tópicos em monitoramento e avaliação de impacto — Capítulo 14
incremental e contínuo.

A pauta específica dos Planos de Ação Local — que, em uma situação O Núcleo busca atuar como um “laboratório de conceituação”,
ideal, deve aglutinar em seu escopo todas as dimensões e tópicos estudos de caso e pesquisa baseada em dados e evidências, visan-
mencionados, integrando-os e territorializando-os — está no Capítulo 3. do à construção de conhecimento em urbanismo social e unindo
pesquisadores e instituições das áreas pública e privada, do âmbito
Por fim, no Capítulo 15 abordam-se alguns casos referenciais no acadêmico e do terceiro setor, além de lideranças comunitárias, e
Brasil e na América Latina. promovendo parcerias com instituições multilaterais.

O Guia surge também alinhado à Pós-graduação em Urbanismo


Social do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper. Pioneiro
no país, o curso traz uma agenda emergencial para as cidades
brasileiras: capacitar profissionais a estarem aptos a trabalhar
na qualificação dos territórios de vulnerabilidade social. Inserida
no Núcleo de Urbanismo Social, a pós-graduação é resultado de
uma parceria entre Insper, Itaú Cultural e Arq.Futuro e compõe, de
maneira transversal, uma plataforma interdisciplinar que oferece
grande liberdade para a reflexão e o estabelecimento de múltiplas
associações, propício ao aprendizado, à pesquisa e à inovação. Tal
plataforma compreende que o conhecimento sobre as cidades deve
ser entendido como um campo de atuação no qual profissionais
de diversas áreas desenvolvam as competências e habilidades
necessárias à atuação em favelas.

24 25
Guia de Urbanismo Social Capítulo 01 : Sumário Executivo

1.5_ ONDE ENCONTRAR MAIS


INFORMAÇÕES?
M. Rubano e Vigliecca & Associados; Lucas Bueno (FAU-USP); Lucas
B. Rosin (EACH/USP); Marcus A. Y. Salusse, Juliana M. Mitkiewicz e
Luiz F. C. S. Durão (Insper); Marcos Rosa (FAU-USP); Martín Motta
e Mariana Poskus (CAF — Banco de Desenvolvimento da América
Ao longo do Guia, apresentamos destaques de conteúdo em formato Latina); Murilo Cavalcante (Prefeitura de Recife); Nadia Somekh
de box e em “Para saber mais” damos indicações de leitura para (CAU-BR); Observatório de Olho na Quebrada de Heliópolis; Portal de
quem tiver interesse em se aprofundar nos tópicos discutidos no Dados Urbanos do Insper; Renato Anelli, Angélica Alvim e Andresa
livro. Sendo um guia prático e não um produto acadêmico, pro- Marques; Antonio Fabiano Jr. (FAU-Mackenzie); Ricardo Henriques
curou-se evitar citações e referências bibliográficas, exceto em (Instituto Unibanco); Roland Krebs e Markus Tomaselli (Urban Design
passagens nas quais isso era absolutamente necessário. Nesses Lab, Universidade Técnica de Viena); Sérgio Magalhães (FAU-UFRJ);
casos elas são apresentadas como notas de rodapé. Sempre que Simone Gatti (WRI Brasil / FICA); Ygor Santos Melo e Camila Jordan
possível, tanto as indicações de “Para saber mais” como as de (TETO Brasil); Vera S. Luz (PUCCAMP).
referências acadêmicas são acompanhadas de hiperlinks para
os conteúdos disponíveis na internet. Imagens e fotografias dos Cabe destacar que o Guia contou com a colaboração fundamental
casos estão no Capítulo 15. não só de pesquisadores da academia, mas também de profissionais
técnicos e gestores públicos e de lideranças que atuam diariamente
nos territórios de vulnerabilidade social e favelas, em especial as que

1.6_
integram o Núcleo Mulheres e Territórios.

QUEM CONTRIBUIU?
Em cada capítulo, apontam-se os nomes dos autores e das respectivas
instituições/entidades às quais eles são ligados. Nos casos de autoria de
membros dos núcleos do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper
O Guia é uma iniciativa do Núcleo de Urbanismo Social, em parceria
ou da Diagonal — os mais recorrentes no Guia —, creditamos ambas,
com outras áreas do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper —
enquanto os autores aparecem referenciados nos quadros adiante.
Arquitetura e Cidade; Cidade e Regulação; Habitação & Real State;
Mobilidade Urbana; Mulheres e Territórios e Saúde Urbana — e a
A organização e a coordenação-geral do Guia ficaram a cargo de Carlos
empresa Diagonal, que tem longa, ampla e reconhecida experiência
Leite, coordenador do Núcleo de Urbanismo Social, com apoio de Ana
prática no assunto. Em diversos temas específicos, contou-se com
Letícia Salla, pesquisadora do mesmo núcleo. O Núcleo teve ainda a
a colaboração de entidades parceiras e de especialistas, além dos
participação de Fernando Túlio em 2020 e 2021 e de Laryssa Kruger
membros do Núcleo de Urbanismo Social e da Diagonal: Anaclaudia
em 2022, ambos colaborando na estruturação dos temas da pesquisa.
Rossbach (Lincoln Institute of Land Policy); André L. Duarte (Insper);
Camila Maleronka (Insper); Carlos Mario Rodriguez (Instituto Tec-
A revisão editorial dos textos é de Rinaldo Gama, coordenador de
nologico de Monterrey); Elisabete França (Prefeitura de São Paulo);
Conteúdo do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e inte-
Fernanda Almeida (Territórios Clínicos, FTAS); Fundação Tide Setubal
grante da equipe BEĨ.
(FTAS); Gabriela Massuda; Gareth Doherty (Harvard University
Graduate School of Design); Fernanda Moreira; Hubert Klumpner e
O projeto gráfico e a diagramação são de Mariana Demuth e da
Klearjos E. Papanicolaou (Urban Think Thank Next, Zurique); Instituto
San.po Arquitetura e Design.
Alana; Instituto Pólis; Jorge Melguizo (Medellín); José Brakarz; Lizete

26 27
Guia de Urbanismo Social Capítulo 01 : Sumário Executivo

A seguir, a participação dos diversos autores nos respectivos capítulos: Nesta página estão listados os núcleos do Laboratório Arq.Futuro de
Cidades do Insper e os integrantes deles que colaboraram com o Guia:

CAPÍTULO AUTORES NÚCLEO COORDENADOR EQUIPE

1  Sumário Executivo Núcleo de Urbanismo Social


Urbanismo Social Carlos Leite Ana Letícia Salla, Laryssa Kruger
2  Urbanismo social: conceituação Núcleo de Urbanismo Social; Lucas Bueno

3  Plano de Ação Local Núcleo de Urbanismo Social; Diagonal


Carmen Silva; Cleide Alves,
Carlos Mario Rodriguez; Fundação Tide Setubal; Eliana Silva, Ester Carro, Evaniza
Mulheres e Territórios Juliana Mitkiewicz
4  Dimensão governança Núcleo Mulheres e Territórios; Antonio Fabiano Jr. Rodrigues, Joelma Sousa, Marília
e Vera S. Luz. Di Santis

Diagonal; Portal de Dados Urbanos do Insper;


Núcleo Arquitetura e Cidade; Murilo Cavalcante; Cidade e Regulação Victor Carvalho Pinto José Antonio Apparecido Junior
Núcleo de Urbanismo Social; Núcleo de
5  Dimensão territorial Mobilidade Urbana; Núcleo Habitação & Real Adriano Borges Costa, Evandro
Mobilidade Urbana Sérgio Avelleda
State; Núcleo de Mulheres e Territórios; Núcleo de Luís Alves
Urbanismo Social; Nadia Somekh.
Saúde Urbana Paulo Saldiva Paulo Afonso André

6  Dimensão sustentabilidade urbana Diagonal; André L. Duarte; FAU-Mackenzie


Arquitetura e Cidade Laura Janka
Núcleo de Urbanismo Social; Núcleo Mulheres
e Territórios; Marcus A. Y. Salusse, Juliana M. Habitação & Real State José Police Neto
7  Dimensão socioeconômica e cultural
Mitkiewicz e Luiz Fernando C. S. Durão; Marcos
Rosa; TETO Brasil

8  Tópicos em políticas públicas Lucas B. Rosin; Ricardo Henriques; Jorge Melguizo


A equipe da Diagonal que participou do livro foi esta:
9  Tópicos em regulação urbana Núcleo Cidade e Regulação; Instituto Pólis
Coordenação-geral: Katia Mello
10  Tópicos em formas de financiamento Camila Maleronka; Anaclaudia Rossbach; Diagonal Coordenação técnica: José Guilherme Schutzer

Instituto Alana; Núcleo de Urbanismo Social; CAPÍTULOS AUTORES


11  Tópicos em cidade e criança Núcleo Mulheres e Territórios; Observatório de
Olho na Quebrada de Heliópolis
José Guilherme Schutzer, Katia Mello e Vilma Dourado
3  Plano de Ação Local Matos Maia Gomes
12  Tópicos em saúde urbana Núcleo de Saúde Urbana; Fernanda Almeida
Andressa Capriglione, Letícia Canonico, Paulo Olivato,
5  Dimensão territorial Rodrigo Tavares
13  Tópicos em mulheres e territórios Núcleo Mulheres e Territórios
Dimensão Daniela Lira Mariz, Deise Coelho, Fabio Pereira dos
6
14  Tópicos em monitoramento e avaliação Ana L. M. Salla; Fundação Tide Setubal sustentabilidade urbana Santos, José Guilherme Schutzer, Rafael Costa e Silva

Núcleo de Urbanismo Social; Gabriela Massuda; Tópicos em formas de


10 financiamento
Andressa Capriglione e Deise Coelho
Sérgio Magalhães; José Brakarz; Elisabete França;
15  Casos referenciais Diagonal; Lizete Rubano e Vigliecca & Associados;
Sandra Capriglione, Laís Rebeque Dagola, Carolina de
CAF; UTT_next; Roland Krebs e Markus Tomaselli;
Gareth Doherty; Simone Gatti (WRI Brasil / FICA). 15  Casos referenciais Queiroga Jucá, Kátia Mello e Vilma Dourado Matos Maia
Gomes

28 29
Guia de Urbanismo Social

AGRADECIMENTOS

O coordenador do Guia, Carlos Leite, agradece especialmente a


Tomas Alvim, coordenador-geral do Laboratório Arq.Futuro de
Cidades do Insper, e a Katia Mello, presidente da Diagonal, pelos
apoios fundamentais durante todo o período de desenvolvimento
desta obra — da fase de pesquisas à edição final, passando pelo
amplo trabalho de alinhamento das contribuições dos diversos
colaboradores. Registra ainda um agradecimento ao revisor edi-
torial, Rinaldo Gama.

30
Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

02_ 2.1_ DEFINIÇÕES, ORIGEM E CONTEXTO

URBANISMO SOCIAL: CONCEITOS “O urbanismo social coloca o cidadão no centro da


transformação; não é a cidade que se transforma, mas, sim, o
cidadão que se transforma e acaba por transformar a cidade.”
Jorge Melguizo1

2.1_ Definições, origem e contexto


O termo “urbanismo social” tornou-se internacionalmente conhe-
cido no início do século XXI, com a experiência colombiana, em
2.2_Medellín: contexto e
especial de Medellín. A referência primordial é essa; não por acaso
singularidade (o que é replicável e o
existem muitos artigos acadêmicos e livros sobre o Urbanismo
que é específico)
Social dessa cidade2.

2.3_ Programas de urbanização


Reforça-se aqui a importante explicação apresentada no Capítulo 1:
de favelas e urbanismo social:
semelhanças e complementaridades
O caso de Medellín inclui alguns elementos que justificam a
sua fama e referência como o grande caso na América Latina
em “urbanismo social”, trazendo, assim, os conceitos do que se
entende por urbanismo social de modo amplo: (i) a continuidade do
programa por quase quinze anos e várias gestões municipais; (ii)
a efetivação de uma entidade pública empoderada que coordena
as diversas políticas e ações públicas e as integra e territorializa
nos PUIs (Projetos Urbanos Integrais), a EDU (Empresa de Desen-
volvimento Urbano); (iii) a construção de modelos de governança
compartilhada entre a gestão pública, a academia e, claro e com
protagonismo, a comunidade local; (iv) a efetiva implantação de
ações, projetos e obras em diversos territórios com destaque
para a construção de grandes equipamentos públicos-âncora
(Bibliotecas-Parque; UVA — Unidades de Vida Articulada e outros)
com altíssima qualidade arquitetônica; (v) as entregas rápidas de
espaços públicos de qualidade articulados com outros elementos

1  Nascido na Comuna 13, o bairro periférico mais violento na época do narcotrá-


fico e do protagonismo de Pablo Escobar, Jorge Melguizo foi secretário de Cultura
Cidadã e de Desenvolvimento Social de Medellín e um dos responsáveis pela pro-
AUTORES moção do urbanismo social. É atualmente escritor, consultor em diversas cidades
da América Latina e professor do curso de Pós-graduação em Urbanismo Social do
2.1_ 2.3_ Núcleo de Urbanismo Social; Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper.

2.2_ Lucas Bueno. 2 Ver Capítulo 15, com os casos referenciais.

33
Guia de Urbanismo Social Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

do plano urbanístico e, em especial, com os sistemas de mobilidade No Guia também se pretende mostrar que alguns desses elemen-
urbana, com destaque para as estações do Metrocable (teleférico); tos trabalhados pelo urbanismo social já vêm sendo aplicados
(vi) a ênfase na redução da violência urbana, desde a seleção e desenvolvidos em outras intervenções no Brasil e nos demais
inicial dos territórios (sempre os com índices de maior violência), países da América Latina inspirados pela experiência de Medellín,
passando pelas abordagens sociais e urbanas integradas às de mesmo que ainda de modo parcial, em especial os casos do Compaz
cultura e educação como estratégia de ação (em contraposição à (Centro Comunitário da Paz) no Recife, desde 2016, e das Utopias
postura policial repressora). Vale lembrar ainda que o programa de Iztapalapa, desde 2018, na cidade do México. Destaca-se que
de urbanismo social iniciado em 2004 continha uma nova visão a experiência pioneira de Medellín, as de Recife e Iztapalapa e as
de cidade, essencialmente mais inclusiva socialmente, ou seja, mais recentes sendo desenvolvidas no estado do Pará (Usinas da
tratava-se de um projeto amplo e abrangente, com estratégias Paz — Territórios pela Paz) e na cidade de São Paulo (Urbanismo
gerais e integradas de transformação e não apenas ações ou Social em São Paulo, em fase de planejamento e licitação de obras)
planos específicos para alguns territórios. têm com elemento protagonista a escolha dos territórios com
altos índices de violência (ver esses casos no Capítulo 15). Menos
No Capítulo 1 apresentou-se a explicação e a justificativa do uso enfáticos no protagonismo da redução da violência, mas com ins-

!
do termo “urbanismo social”. pirações no urbanismo social e abordagens específicas, pode-se
citar os programas Rede CUCA (Centros Urbanos de Cultura, Arte,
Urbanismo social não é uma experiência que surge de modo isolado PARA SABER MAIS, VER: Ciência e Esporte) em Fortaleza, Vida Nova nas Grotas, em Maceió,
na Colômbia. É o resultado de aprendizados, da construção de ▸ Artigo Medellín: e Mais Vida nos Morros, em Recife.
inspiração para resgatar
conhecimentos e de práticas coletivas que tornaram possível a
as cidades brasileiras.
transformação e qualificação das favelas na América Latina, cujas Outras Palavras, 2022. Aqui já se anota, então, um elemento particular dos programas de
populações há décadas vêm sofrendo com a violência de conflitos, ▸ Os diversos webinários urbanização social que o diferencia dos programas de urbanização
a pobreza, as desigualdades, as carências de infraestrutura urbana e publicações na página de favelas — o foco na atuação em territórios de maior violência,
do Laboratório Arq.
de todo tipo e de habitação digna. E que, reconhecidamente pelos com robustas ações modeladas para sua redução — e que teve
Futuro de Cidades do
seus autores de Medellín, é influenciado pelo caso pioneiro e Insper. no Brasil uma experiência pioneira, mesmo que infelizmente de
premiado de urbanização de favelas, o programa Favela-Bairro , 3
curta duração na sua concepção original abrangente, o programa
desenvolvido no Rio de Janeiro na década de 19904. Ou seja, UPP Social (Unidades de Polícia Pacificadora), criado no Rio de
deixa-se claro que ambos os conceitos — urbanismo social e Janeiro em 2010 e que chegou a implantar alguns equipamentos-
urbanização de favelas — não são aqui vistos como excludentes âncora inspirados nas Bibliotecas-parque de Medellín, as Praças
ou objeto de disputa e sim como abordagens complementares e do Conhecimento, pontos de referência dos serviços públicos nos
derivadas do desenvolvimento em contextos diversos. bairros pacificados.

Ou, como apontado no documento do Pacto pelas Cidades Justas,


movimento da sociedade civil reunindo quase trinta instituições da
sociedade civil para promoção do urbanismo social em São Paulo
3  Sobre o programa Favela-Bairro, ver item 2.3, adiante.
em parceria com a Prefeitura da cidade criado em 2020:
4  Programas de urbanização de favelas (ou “assentamentos informais”), “Mejo-
ramiento de barrios” (espanhol) ou “Slum upgrading programs” (inglês) são os ter-
mos utilizados na literatura, bastante ampla, sobre o tema produzida no Brasil e na
América Latina, na academia, em programas estatais e nas agências internacio-
O papel do urbanismo como instrumento contra a violência das
nais de fomento como BID, CAF, Banco Mundial, ONU Habitat ou Cities Alliance. cidades foi amplamente comprovado pela experiência de Medellín,
Ver item 2.3, adiante.
34 35
Guia de Urbanismo Social Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

na Colômbia. A transformação ocorreu graças a um projeto que O urbanismo social, em situações ideais com programas completos,
integrou a construção de espaços e equipamentos públicos de opera uma transformação integral no território, promove a quali-
qualidade, soluções inteligentes de mobilidade e investimento ficação e a geração rápida de espaços públicos e a construção de
contínuo em educação e cultura. Sobretudo, o sucesso se deveu equipamentos públicos-âncora que, juntos e integrados à rede
ao fato de que o projeto não se vinculou a uma gestão ou mandato, de mobilidade urbana, se transformam rapidamente em lugares
tendo sido mantido pelas sucessivas administrações da cidade. públicos qualificados para a vida comunitária ocorrer, elemento
essencial de vitalidade urbana e de empoderamento da comunidade
Medellín foi a cidade que conseguiu consolidar, de maneira articulada, local da favela. Ainda, busca-se promover a oferta de infraestrutura
diversas intervenções simultâneas que geraram um resultado urbano urbana e da mobilidade urbana, a construção de habitação social e a
e social surpreendente em um período relativamente curto, dado o recuperação do sistema natural associado às estruturas ecológicas
escopo de todas elas. Isso não significa que esse processo é isento do território, além da redução da violência urbana. Para tanto, é
de desafios e críticas. Nenhuma política pública é infalível nem tem o determinante o restabelecimento e o incentivo às relações sociais
poder de resolver por completo todos os problemas a que se propõe. e culturais solidárias, com o propósito de recuperar o tecido social
local e de consolidar uma relação de confiança junto aos atores pro-
O surgimento de tal política pública e da metodologia de intervenção motores. Esses processos são ainda caracterizados pela presença
participativa centrada na comunidade visando à qualificação de de ferramentas e instrumentos participativos nas diversas etapas
favelas ou territórios de vulnerabilidade social é resultado de um do projeto (desenho, implementação e pós-implementação), que
conhecimento coletivo acumulado ao longo dos anos por diversos objetivam estabelecer abordagens inclusivas levando em conside-
atores, e em várias cidades, que encontrou ambientes com condições ração perspectivas, demandas e potencialidades das comunidades
mais ou menos favoráveis para a sua implementação. Medellín, em questão. Seu escopo é amplo, complexo e variado de caso
por variadas razões, como veremos mais à frente, não é um caso para caso, porém se busca promover a adequada integração das
considerado de fácil replicação. Nem deveria ser. As especificidades comunidades às cidades, objetivando melhorar as condições de
históricas, culturais, sociais, jurídicas e financeiras de cada cidade vida dos habitantes daquelas áreas e ampliar o direito à cidade.
demandam adaptações e traduções de estratégias empregadas
em circunstâncias distintas. O contexto local importa, o processo Assim, o urbanismo social não apresenta um desenho ou solução
importa. O que se propõe aqui, vale reiterar, é justamente um únicos e sim pressupostos que permitem a criação de diversas
aprendizado sobre os processos e estratégias — lições que tenham soluções “personalizadas” para os problemas locais complexos.
potencial de replicabilidade — e não das soluções específicas em Soluções essas que também surgem e são viabilizadas a partir
si desenvolvidas para o contexto de Medellín ou outras cidades das possibilidades institucionais e arranjos de governança, com a
que, mais recentemente, também têm promovido o urbanismo presença do Estado e de atores locais.
social. Esse exercício de análise também permite aprender com
os impasses e desafios encarados nessas cidades, com a possibili- Desse modo, o urbanismo social convida ao diálogo multidisciplinar
dade de antecipá-los durante o processo de adaptação da política que lida com a diversidade e os desafios dos conflitos sócio-urbanos
para outros territórios, lembrando que se aprende com os erros e e ambientais, aportando uma visão sistêmica tanto dos problemas
acertos, limitações e avanços e, sempre que possível, por meio quanto das soluções. Ressalta-se que as questões que afetam
de análises de avaliação e monitoramento calcadas em dados e as favelas são muitas vezes estruturais e interligadas, podendo
evidências (ver Capítulos 14 e 15). constituir causa ou consequência de outros problemas lá presentes.
A própria concepção de vulnerabilidade social é entendida como

36 37
Guia de Urbanismo Social Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

um conceito multidimensional no qual privações de acesso e de A perspectiva de urbanismo social traz elementos de transfor-
garantia de direitos se acumulam e se interconectam. Assim, as mações urbanas, ambientais e arquitetônicas visando melhorias
diversas ações e políticas do urbanismo social devem procurar socioeconômicas, físicas e sociais do território através de práticas
promover os acessos básicos ao direito à cidade e à moradia inclusivas para regenerar conexões em áreas vulneráveis. Apesar
digna, assim como também às ações afirmativas, à pluralidade e de demandarem grandes investimentos e esforços para as trans-
diversidade de gênero e étnico-raciais, à equidade socioeconômica, formações físicas do território, as obras de arquitetura e urbanismo
à acessibilidade, à inclusão digital e social. ! de alta qualidade técnica são concebidas como importantes fer-
PARA SABER MAIS, VER: ramentas que conduzirão à mudança. Ou seja, “o melhor para os
Ressalte-se que o urbanismo social busca sempre valorizar a ▸ Conceito de mais pobres”, como dizia o ex-prefeito de Medellín (2003-7), Sergio
experiência e história local das comunidades, integrando-as, de vulnerabilidade social Fajardo, o gestor público pioneiro do urbanismo social junto com o
ver IPEA. Atlas da
forma participativa, aos projetos: o reconhecimento da potência Vulnerabilidade Social. arquiteto e urbanista Alejandro Echeverri, nomeado e devidamente
das favelas e das vozes da comunidade local é essencial. A imple- empoderado por Fajardo como gerente-geral da EDU, Empresa de
!
Brasília: Instituto de
Pesquisa Econômica
mentação busca manter um alto nível de comprometimento com a Desenvolvimento Urbano.
Aplicada (IPEA), 2017
execução e entrega das obras (sejam elas de grande ou pequena mais adiante. PARA SABER MAIS:

escala). Esse compromisso também se estende à construção ▸ Atualmente Alejandro Ainda: não é a obra em si que transforma o território, mas o tecido
sólida de colaboração local e de articulação institucional, nas Echeverri é Diretor social de confiança institucional e comunitária consolidado no
da Urbam EAFIT em
quais o processo de governança compartilhada e integrada das Medellín, professor exercício cidadão e participativo ao longo do processo de trans-
intervenções entre as instâncias governamentais e comunitárias convidado em diversas formação física e social e após sua conclusão.
universidades e
é fundamental. O urbanismo social deve nascer ancorado em um
membro do Conselho do
plano integrado de ação local, que integra e territorializa todas Laboratório Arq.Futuro
as políticas públicas e ações, de curto, médio e longo prazo. Há de Cidades do Insper.

uma governança pública local forte que reúne todos os setores e


promove entregas rápidas de elementos catalisadores da trans-
formação territorial, como os equipamentos-âncora.

Urbanismo social, deve-se acentuar, é um chamado para a ação — as


ações de infraestrutura são fundamentais para garantir e melhorar
as condições de vida local, ao mesmo tempo que funcionam como
instrumentos para unir a população em torno de um objetivo con-
creto em comum. Essas intervenções podem eventualmente ser
reduzidas, desde que sejam substanciais, ou seja, obras significativas
para o desenvolvimento adequado da comunidade e que estejam
alinhadas às suas demandas. Os projetos podem começar por ca-
minhos diferentes, contudo é essencial promover ações integradas
tanto no planejamento quanto na fase de implementação.

38 39
Guia de Urbanismo Social Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

A seguir são apresentados alguns dos processos importantes para


PRINCIPAIS ASPECTOS E PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS DO uma abordagem de urbanismo social:
URBANISMO SOCIAL EM MODO ABRANGENTE
CONHECIMENTO DOS TERRITÓRIOS E
DAS DINÂMICAS LOCAIS
▸ Forte engajamento de lideranças políticas empoderadas na coordenação do programa, tanto de
figuras públicas como de lideranças comunitárias; A complexidade dos problemas inerentes aos territórios das fa-
velas representa um desafio para a implementação de quaisquer
▸ Governança integrada e compartilhada das intervenções, tanto entre as instituições da gestão
políticas públicas. Conhecer os obstáculos que cada comunidade
pública (secretarias, agências governamentais etc.) quanto com a comunidade e, quando possível,
enfrenta é um diferencial na efetivação de políticas bem-sucedidas.
com outras instituições (terceiro setor, academia);
Para o urbanismo social, é fundamental compreender a situação
▸ Participação social deliberativa da comunidade local nas diversas etapas do projeto (desenho, concreta dos territórios — as condições de pobreza e desigualdade
planejamento, implementação e pós-implementação) e controle social visando a uma gestão e seus principais desafios; como elas se manifestam e se perpe-
democrática da cidade na escala local; tuam — antes de enfrentá-la. Esse conhecimento profundo sobre
espaços e as comunidades moldará o planejamento e a execução
▸ Estabelecimento de relações de confiança entre os atores promotores e a comunidade, consolidando
dos projetos às necessidades e costumes locais. Além disso, é uma
um tecido social solidário;
abertura para a construção de uma relação de confiança entre as

!
▸ Abordagem integrada (sistêmica) do planejamento, desenho e implementação dos diversos projetos comunidades e a gestão pública, que deverá perdurar ao longo de
e ações: infraestrutura, mobilidade, equipamentos sociais, habitação social, espaços públicos etc.; todo o projeto, sendo essencial nas diferentes etapas.
PARA SABER MAIS, VER:
▸ Planos integrados de ação local: ações de curto, médio e longo prazo e processo incremental
▸ Capítulo 5 sobre a CONSTRUÇÃO DE PLANOS DE AÇÃO
contínuo: “Nada se faz, em qualquer setor ou secretaria da administração pública, sem que não Dimensão Territorial.
LOCAL OU INTEGRADOS
esteja no PUI”, como se dizia — e fazia — em Medellín;

▸ Ações concretas de entrega rápida: espaços públicos recuperados e criados, preferencialmente Os Planos integrados ou de Ação Local são ferramentas que definem
integrados à mobilidade urbana; e orientam as estratégias de intervenção no território. Nele estão
definidos os projetos de pequeno e grande porte e as ações que
▸ Equipamentos-âncora públicos com alta qualidade dos projetos arquitetônicos e das obras e com
serão implementadas no curto, médio e longo prazo. Ele guiará as
formas de autogestão ou cogestão junto à comunidade e à sociedade civil organizada;
ações integradas e integrais que acontecem sob um processo de
▸ Atuação prioritária em territórios com indicadores de grande violência por meio da adoção de governança compartilhada e transparente. Um exemplo de Plano
abordagens sociais e urbanas integradas às de cultura e educação como estratégia de ação (em de Ação Local são os PUIs de Medellín, que articulavam ao mesmo
contraposição à postura policial repressora);
! tempo várias ferramentas, estratégias e programas de urbanização
buscando uma melhoria sistemática dos territórios em que atuavam.
▸ Priorização da agenda pública em territórios de alta vulnerabilidade social, visando à mitigação PARA SABER MAIS, VER:

ou redução das assimetrias no acesso aos serviços urbanos; ▸ Adiante a seção a


CONVERGÊNCIA E VISÃO
respeito dos PUIs e o
▸ Monitoramento e avaliação das intervenções no território por meio de evidências: ações que Capítulo 3, sobre Planos COMPARTILHADA DO PROJETO
efetivamente não impactem em melhoria na qualidade de vida nos territórios devem ser revistas. de Ação Local.

Um dos aspectos mais importantes do urbanismo social é a


compreensão de que os projetos convergem e se concretizam

40 41
Guia de Urbanismo Social Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

nos territórios. Os projetos a serem implementados devem ser para democratizar o entendimento dessas informações. Devem
compartilhados e discutidos detalhadamente num mesmo espaço ainda encorajar a comunidade a pensar sobre soluções estimulan-
decisório, alcançando de maneira compreensível os diferentes tes e inovadoras para o seu território, superando o mero debate do
atores envolvidos. Isso previne disputas e descompassos entre básico, do essencial, e se aproximando da dimensão do “sonhar”.
agentes que possam vir a ter uma atuação de oposição, capaz de Apresentar possibilidades em ambientes com grandes restrições e
atrasar ou mesmo impedir o andamento do projeto. Ter um espaço ter a capacidade de traduzir demandas e sonhos é o primeiro passo
decisório compartilhado entre todos os atores também contribui para ativar potencialidades tanto pessoais quanto da comunidade.
para que a comunidade se sinta parte do processo. Trata-se, afinal,
de construir e realizar intervenções com a comunidade e não apenas Por sua vez, a população local deve utilizar esse espaço de diálogo
para a comunidade. Ações descoordenadas entre secretarias da para apresentar suas demandas, percepções e contrapontos sobre as
administração pública, por exemplo, podem levar a processos mais propostas dos técnicos e do poder público. Também é uma oportuni-
longos, com disfunções burocráticas e desconectadas do nível local. dade para construir conhecimento a respeito de temas que afetam a
A construção de uma visão compartilhada entre a comunidade e vida da comunidade, como a interdependência entre os problemas, e
aqueles que planejam e executam as intervenções age como um sobre os processos políticos existentes na produção e implementação
fio condutor do projeto. de projetos. Usar esse espaço participativo, no qual a contribuição de

APROXIMAÇÃO MULTIDISCIPLINAR
! todos tem o mesmo peso e importância, é essencial para a construção
de projetos melhores e mais alinhados às demandas locais.
PARA SABER MAIS, VER:
DO TERRITÓRIO E PROCESSO DE
▸ Capítulo 5, sobre a
COMUNICAÇÃO ABERTO E INCLUSIVO GOVERNANÇA COMPARTILHADA NOS
Dimensão Territorial.
COM A POPULAÇÃO TERRITÓRIOS DE INTERVENÇÃO

O engajamento da população passa por um esforço intencional e A governança compartilhada, para o urbanismo social, diz respeito
conjunto de aproximação entre o poder público e as comunidades. aos espaços de participação e de tomada de decisão, bem como aos
Isso implica que o diálogo com a população local não deve ser res- atores que participam desse processo nos territórios que passam
ponsabilidade unicamente de assistentes sociais, mas também de pelas intervenções de qualificação. A governança compartilhada
outros gestores especialistas, que precisam conhecer os espaços e busca unir tanto as instituições quanto a comunidade em si. Sua
seus moradores para compreender suas demandas e preocupações. criação demanda uma reflexão sobre o modo de organização desses
Essa pode não ser uma aproximação fácil — muitas comunidades atores (instituições públicas em suas distintas escalas e setores de
sofrem repetidas vezes com a falta de acesso e atenção de políticas atuação, entidades privadas ou organizações comunitárias) presentes
públicas e esperam há anos por soluções para os serviços urbanos e atuantes nos territórios, consolidando mecanismos de gestão social,
mais básicos. Ao mesmo tempo, os servidores podem frustrar ou não financeira e institucional e atribuindo responsabilidades e obrigações
saber gerenciar a quantidade de demandas e desafios apresentados aos agentes do território. Tal processo consiste na criação de grupos de
pela população que precisam atender. Entender os lados dessa organizações que trabalham coletivamente como uma rede e que têm
relação é parte essencial para criação de um ambiente cooperativo. como ponto forte o envolvimento dos parceiros na tomada de decisões
Para que eles dialoguem são necessários paciência, linguagem clara que afetarão a implementação e o planejamento das intervenções
e inclusiva e esforços coletivos. Os técnicos precisam considerar locais, bem como a flexibilidade e a responsividade às necessidades
a dificuldade que os habitantes possam ter para compreender do território e de sua população. É um modelo que, para ser eficiente,
linguagens e conteúdos de caráter técnico, buscando ferramentas exige comprometimento e esforços dos participantes, com recursos e

42 43
Guia de Urbanismo Social Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

tempo dedicados ao seu funcionamento — daí a importância de uma ASPECTOS FINANCEIROS E


boa articulação com a comunidade, do compromisso com prazos e da
promoção de entregas que darão credibilidade às ações.
! JURÍDICOS PARA MANUTENÇÃO E
CONTINUIDADE DOS PROJETOS
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Capítulo 4, sobre
LIDERANÇA E COORDENAÇÃO O desenvolvimento de projetos de urbanismo social, assim como
Governança.
POLÍTICA COMO CHAVE PARA de outras intervenções urbanas, precisa estar de acordo com o
INTEGRAR AS POLÍTICAS PÚBLICAS arcabouço jurídico e os marcos legais vigentes nas cidades onde
os planos serão implementados. Uma dificuldade recorrente é
Um dos pontos mais desafiadores do urbanismo social é a coor- que nem sempre os marcos legais levam em consideração ca-
denação política e a presença de uma liderança forte na figura racterísticas e desafios específicos de territórios das favelas – e
do prefeito (e/ou de seus secretários, ou de um grupo gestor que parcela considerável da população urbana vive em bairros
específico). Por se tratar de uma política que presume eficiente irregulares, "invisíveis", portanto, à aplicação das políticas pú-
coordenação institucional, integração intersetorial e destinação blicas e suas ações.
orçamentária expressiva no médio e longo prazo, o prefeito é a
liderança que pode colocar todos esses atores na mesa para Outro ponto importante é compreender que se, mesmo após a
dialogar e priorizar a agenda em seu governo. intervenção, esses territórios continuarem sem acesso a serviços
públicos básicos — como coleta de lixo, manutenção da rede de
Tais alinhamentos políticos e institucionais reclamam muita co- esgoto, oficialização de ruas, iluminação adequada etc. —, haverá
ordenação, de modo que o apoio dos secretários e dos demais um processo de deterioração que ameaçará todo o avanço e os
servidores é igualmente importante para que o projeto seja bem- benefícios levados até aquela população. Sem a devida manu-
-sucedido. A construção e a condução do processo são coletivas e tenção dos serviços públicos, qualquer bairro se deteriora. Por
participativas não apenas em relação à comunidade como também isso, a regularização desses bairros e o fornecimento de serviços
entre os órgãos e secretarias do governo local. Não se trata uni-
camente do estabelecimento de metas compartilhadas e sim de
! públicos básicos é um fator essencial para que o investimento
governamental não tenha sido em vão.
PARA SABER MAIS, VER:
uma visão compartilhada do projeto, que é aprimorado por meio
das contribuições de cada área. Isso evita que os projetos sofram ▸ Capítulo 9, sobre MANUTENÇÃO E CONTINUIDADE
Tópicos em Formas de
com sobreposições de competências e disputas internas na ges- Financiamento; DOS PROJETOS
tão pública. Além da legitimidade do voto e do apoio que atores
▸ Capítulo 8, a respeito
eleitos venham trazer às políticas, a burocracia, representada dos Tópicos em Outros dois grandes dilemas enfrentados em quaisquer políticas
pelos servidores públicos, pode ter um papel crucial como agente Regulação Urbana. públicas são (i) a manutenção e (ii) a continuidade de projetos
incentivador ou de resistência aos projetos de urbanismo social. A ! implementados durante uma gestão pelos seus sucessores. O
boa comunicação e o alinhamento entre os distintos atores internos PARA SABER MAIS, VER: ciclo eleitoral é, claro, parte do processo democrático, assim como a
em relação ao poder público podem fazer a diferença no encami- ▸ Item 2.2, sobre o caso alternância no poder. Prefeitos vêm e vão; entretanto, como garantir
nhamento das várias etapas de tramitação que a política pública de Medellín. a continuidade dos projetos ao longo dos anos e das gestões? Pro-
demanda. Os servidores, além de terem condição de atuar como ▸ SILVEIRA, Mariana jetos socialmente considerados positivos e cujo valor é percebido e
Costa. O ativismo da
facilitadores, ainda podem ser parceiros ou até mesmo contribuir compartilhado com a população têm mais chances de sobrevida. A
burocracia estatal nas
de forma engajada com a agenda, trazendo possíveis inovações e políticas públicas. Jornal comunidade e os processos (e espaços) de participação e controle
perspectivas complementares. Nexo, 2020. social são dois elementos cruciais. Muitas vezes a realização de

44 45
Guia de Urbanismo Social Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

grandes projetos é evitada por haver receio de riscos políticos


associados (rejeição e críticas). Uma forma de diminuir esse risco CONSTRUÇÃO DA PERCEPÇÃO SOBRE A
é dividi-lo com outros atores (desde a população até servidores POLÍTICA PÚBLICA
públicos e secretários), consolidando mecanismos de gestão
social, institucional e financeira, atribuindo responsabilidades e
Ao partilhar de uma visão positiva sobre uma política pública ou projeto,
obrigações para os agentes do território. Ao incentivar uma ampla
a sociedade dá maior legitimidade a ela e, por isso, pode contribuir para
participação na formulação dos projetos com as diferentes partes
garantir a sua continuidade, apesar dos desafios existentes. Por esse motivo,
interessadas, cria-se uma lógica coletiva alinhada com demandas
é importante desenvolver um trabalho constante de conscientização da
e necessidades locais, bem como capacidades institucionais. Ao
população — como um todo, não apenas dos territórios que estão no foco
espalhar a decisão entre instituições e entes públicos, não se está
das intervenções — a respeito do valor e dos bons resultados gerados a partir
compartilhando apenas o poder de decisão; ao mesmo tempo,
das ações propostas. Persuadir a opinião pública pode não ser uma tarefa
reduz-se o risco associado a certas políticas e projetos. A partici-
fácil, então aqui estão algumas sugestões de como fazer isso de modo sério:
pação comunitária em todo o processo orienta à apropriação social
coletiva da comunidade, que cobrará dos agentes e dos usuários ▸ Monitorar indicadores sociais e processos de avaliação dos resultados
a manutenção e conservação do projeto. com base em evidências;

▸ Divulgar essas informações de maneira transparente e acessível em


Outra abordagem possível é introduzir algumas etapas do projeto
diferentes meios de comunicação;
de maneira incremental ao longo do tempo. Isso permite que certos
aspectos sejam discutidos e incorporados de modo gradual, evitando ▸ Participar de fóruns de debate com outras comunidades e organizações
mudanças bruscas que possam gerar atritos e questionamentos. Um da sociedade civil, apresentando as experiências, os resultados alcançados
prazo maior também permite processos participativos mais robustos e compartilhando desafios;
e elaborados. Ambas as estratégias diminuem os riscos porque
▸ Apresentar experiência e processos de monitoramento e avaliação
constroem visões compartilhadas, fortalecendo a legitimidade. Os
em espaços de debate no ambiente acadêmico, como universidades,
possíveis problemas e conflitos vão surgindo e sendo solucionados
encontros e seminários;
durante o processo, e não somente após a entrega da intervenção.
Quando uma política é construída de forma participativa, cria-se ▸ Compartilhar as boas experiências em órgãos multilaterais.
um vínculo com aquela ação, que passa a ser de todos, gerando
▸ Ver mais nos Capítulo 8 e 14.
incentivos para a sua continuidade.

46 47
Guia de Urbanismo Social Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

ENTREGAS RÁPIDAS DE
AÇÕES CONCRETAS
PRINCIPAIS DESAFIOS DA ABORDAGEM DE
URBANISMO SOCIAL
A dinâmica das entregas representa um importante diferencial
no urbanismo social: implementar as ações concretas e de modo
▸ Baixa articulação institucional dentro do governo para atuar de maneira
rápido e contínuo, superando o campo do planejamento, gargalo
recorrente nos programas de urbanização de favelas no Brasil e na coordenada no mesmo projeto com as mesmas metas e os mesmos objetivos;
América Latina. Entregas rápidas e recorrentes são fundamentais
▸ Descontinuidade ocasionada por mudanças nas gestões, tanto pelo
para garantir maior aderência, credibilidade e participação da
ciclo eleitoral quanto pela troca de secretários e equipe das secretarias;
comunidade local.
▸ Sustentabilidade dos projetos, intervenções de longo prazo e com alto
Uma característica importante que distingue o urbanismo social custo de implementação e manutenção posterior;
é a rapidez dos projetos. A base dessa característica está na
▸ Manutenção das intervenções no território, especialmente se não
necessidade de implantar ações físicas e materializadas no terri-
houver ação coordenada para oficialização da respectiva localidade e
tório, como um compromisso social do poder público para aquela
fornecimento de serviços públicos;
comunidade. O aspecto central é consolidar ações concretas no
território, como os equipamentos-âncora e os espaços públicos ▸ Manutenção da mobilização e engajamento da população (processos
que promovem a qualificação da vida coletiva de forma imediata. participativos e de governança) sem que haja mudanças ou entregas
Paralelamente a isso, trabalha-se em processos e projetos mais concretas acontecendo.
complexos, e consequentemente mais morosos, como a promoção
de infraestrutura e de habitação social (via de regra, em mais de
uma gestão). Aqui vale a máxima "não se trata do que fazer, mas
como de fazer". Naturalmente, é fundamental ter bons processos Bons projetos e bons planos de intervenção integrada fazem a
de planejamento e projetos de alta qualidade de futuras interven- ! diferença — inclusive para a manutenção posterior dos bairros
ções, no entanto é necessário superar essa etapa, consolidando e projetos — desde que combinados com processos planejados
PARA SABER MAIS, VER:
ações concretas no território que ratifiquem os compromissos dos de entregas rápidas e alinhados com as ações incrementais e
▸ Capítulo 3, sobre
agentes promotores com a comunidade. Planos de Ação Local. sistêmicas de médio e longo prazo.

▸ Capítulo 15, com casos


Materializar ações programadas nos planos de intervenção local, referenciais.
independentemente de seu porte, contribui para a transformação ▸ CAVALCANTI, Murilo.
do cenário habitual de estagnação e descontinuidade de projetos, Conexão Recife Medellín
Compaz — Laboratório de
o que leva ao perigoso descrédito da população com o poder
boas práticas urbanas.
público, cristalizando a ideia de que se “produzem muitos planos Recife: Cepe, 2022.
sem que nada saia do papel”. ▸ PONZI, Túlio, LEITE,
Carlos. Urbanismo Social
com as cores do Recife,
Revista Piauí, 2021.

48 49
Guia de Urbanismo Social Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

2.2_
MEDELLÍN: CONTEXTO E dinâmicas de participação, que respondesse ao conjunto de deman-
SINGULARIDADE (O QUE É das dos habitantes, ao mesmo tempo que se reconstruía a coesão
REPLICÁVEL E O QUE É ESPECÍFICO) do tecido social e se reintegravam os espaços físicos, reconectando
as zonas historicamente excluídas ao restante da cidade.

Na década de 1990, Medellín chegou a ser considerada a cidade mais Naturalmente, há uma história prévia que contextualiza a emer-
violenta do mundo, com índices altíssimos de homicídios: em torno de gência do programa de urbanismo social na gestão do prefeito
380 mortos por 100 mil habitantes em 19915. A metrópole colombiana Sergio Fajardo em 2014, que passa (i) pela emergência no âmbito
era campo de um violento conflito interno — que envolvia atores do nacional colombiano de um marco regulatório urbanístico inovador
Estado aplicando fortes políticas de repressão contra o narcotráfico, e robusto — derivado das leis colombianas de reforma urbana — e a
as guerrilhas e os grupos paramilitares —, em um cenário que refletia criação de instrumentos jurídicos locais; (ii) pelas especificidades
uma complexa dinâmica local de disputa nas áreas sociais, políticas da estrutura urbana e econômica de Medellin; (iii) pelo ambiente
e econômicas. Foi naquele contexto que Medellín desenvolveu e político, por arranjos institucionais e agentes estratégicos para a
implementou o urbanismo social, concebido a partir da mediação proposta de mudanças sociais e espaciais mencionadas adiante
de conflitos e da abertura de diálogo institucional com a comuni- e (iv) pelas transformações inovadoras e impactantes que vinham
dade e consolidado com os projetos urbanos integrais executados ocorrendo havia alguns anos na capital do país, Bogotá6.
posteriormente. Sublinhe-se que as intervenções de urbanismo
social em si não trataram problemas de violência local por meio No Capítulo 15 aprofundamos o caso de Medellin, e aqui destacamos
de ações de forças policiais e sim de abordagens construtivas de três iniciativas locais que foram fundamentais para a construção,
prevenção e mediação de conflitos nos assentamentos informais coordenação e implementação das intervenções de urbanismo
dos “bairros populares” — favelas — de Medellín, localizados nas social: a Empresa de Desenvolvimento Urbano (EDU), os Projetos
encostas do vale, em regiões íngremes e de alto risco. Urbanos Integrais (PUIs) e a Empresa Pública de Medellín (EPM).
Elas, além de inovadoras, são parte do que tornou a metrópole
Como em outros centros urbanos, a violência, a pobreza e as colombiana um caso singular, no qual financiamento, planejamento,
desigualdades sociais dominavam as regiões periféricas ou zonas articulação interinstitucional e implementação integrada transfor-
excluídas da cidade, que eram ocupadas e comandadas por diferen- maram não apenas as comunidades mas a cidade como um todo.
tes grupos armados. Esse contexto e os diversos atores em disputa
evidenciam a enorme dificuldade e urgência de implementação EMPRESA DE DESENVOLVIMENTO
naquele território de projetos urbanos para a entrada (e perma- URBANO (EDU)
nência) do governo em tal área e para a conquista da confiança da
população local no governo municipal. A presença da violência na O urbanismo social em Medellín é marcado pelo robusto exercício
vida e nos espaços urbanos do cotidiano, ao lado da complexidade da coordenação interinstitucional. Os PUIs foram coordenados
social dos territórios, exigia do Estado uma resposta maior do que e implementados pela Empresa de Desenvolvimento Urbano
os meros deveres básicos de fornecimento de serviços públicos. A (EDU) — instituição jurídica municipal essencial para viabilizar a
solução encontrada foi um modelo de intervenção aberto a novas transformação urbana e social.

6  Mariana Wilderom em LEITE, Carlos et al. Social Urbanism in Latin America: Cases
5  Disponível em: Urbanismo Social que promove segurança. Arq.Futuro/Casa Vo- and Instruments of Planning, Land Policy and Financing the City Transformation with
gue, 2019. Social Inclusion. Cham: Springer Nature, 2020.

50 51
Guia de Urbanismo Social Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

Com uma proposta inovadora, a EDU é uma empresa pública mu- PROJETOS URBANOS INTEGRAIS (PUIS)
nicipal que possui patrimônio próprio e autonomia administrativa
e financeira. Com essas características, a EDU liderou todo o Os PUIs começaram a ser realizados em 2000 e são uma evolução
processo de implementação das intervenções (elaboração, coor- dos Programas de Melhoramento Integral de Bairros Subnormais
denação institucional, planejamento e implementação via PUIs). (PMID). Atuam em três dimensões —física, social e institucional —,
Essa empresa pública tornou-se um poderoso espaço institucional promovendo ações integradas entre as diferentes secretarias com
intersetorial para a articulação de órgãos públicos e privados. A o objetivo de reduzir as desigualdades socioterritoriais e ampliar o
EDU começou a mobilizar e coordenar diferentes agentes de acordo direito à cidade às comunidades afetadas. As ações são destinadas
com a competência necessária de cada intervenção sob sua super- à promoção e qualificação do espaço público, construção de equipa-
visão: agências de planejamento, Empresas Públicas de Medellín mentos de uso coletivo — os chamados equipamentos-âncora — como
(EPM), as diversas secretarias municipais etc. Essa capacidade de bibliotecas, escolas, creches, recuperação do sistema natural, promo-
articulação, planejamento, gestão e monitoramento de resultados ção da regularização fundiária e construção de moradias populares.
desenvolvida pela EDU foi fundamental para a expansão dos PUIs.
Os projetos consolidados promoveram, articulados entre si, novas
formas de apropriação do espaço público urbano, a partir da acessi-
bilidade e da inclusão, por meio de articulações locais com equipes
especializadas e multidisciplinares. Os PUIs propunham programas e
projetos complementares focados na educação, empreendedorismo,
segurança, convivência, saúde, esporte e recreação. Eles concentra-
vam esforços de atuação em bairros com certo grau de consolidação
DESTAQUES DA ATUAÇÃO DA EMPRESA DE
urbana porém baixo índice de desenvolvimento humano, segregados
DESENVOLVIMENTO URBANO (EDU)
e com altos índices de pobreza e violência — onde a ausência do
Estado era notável.
▸ Espaço institucional intersetorial empoderado de articulação de órgãos
públicos e junto à sociedade;
Os PUIs sempre foram os instrumentos essenciais à promoção do
▸ Mobilização e coordenação de diferentes órgãos de acordo com a urbanismo social, alinhando as diversas ações e políticas públicas,
competência necessária a cada intervenção sob a sua supervisão, como integrando-as e territorializando-as.
agências de planejamento e de implementação (diversas secretarias);
RECORTES DE ATUAÇÃO DOS PUIS
▸ Capacidade de articulação, planejamento, formulação e gestão, o que
se revelou fundamental para a metodologia integrada proposta pelo
No âmbito físico
urbanismo social.
▸ Intervenções concretas em infraestrutura, equipamentos de uso
coletivo, saneamento e habitação, com priorização das zonas mais
conflituosas das comunas, criando ambientes seguros contra os
diversos riscos;

▸ Recuperação de áreas ambientalmente degradadas e consolidação


de sistema de espaço público associado à mobilidade e aos projetos
definidos para cada zona.
52 53
Guia de Urbanismo Social Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

No âmbito social EMPRESAS PÚBLICAS MUNICIPAIS (EPM)


▸ Reconhecimento das lideranças e agentes locais dos territórios,
estabelecendo atores-chave para a comunicação e o desenvolvimento A implementação de políticas públicas sociais e urbanas complexas
das etapas subjacentes; e de escopo tão extenso quanto as realizadas em Medellín necessita
de consideráveis investimentos. Outro órgão de grande relevância
▸ Implementação de conselhos gestores e de processos participa-
para as ações foi a Empresas Públicas Municipais de Medellín
tivos para resolução de conflitos associados aos territórios e para
(EPM), que se mostrou essencial para o financiamento das amplas
o planejamento das atividades previstas, legitimando as ações
obras de reintegração física e social do território.
definidas para o território;

▸ Amplo diagnóstico das condições de vida da população local, A EPM constitui um grupo empresarial que atua na área de infraestru-
residente na área de intervenção, procurando identificar os prin- tura, incluindo geração e distribuição de energia elétrica, tratamento
cipais problemas para o exercício digno da vida, seja associado ao e distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto, distribuição
acesso à terra, à moradia, ao saneamento básico, aos serviços ou à de gás encanado, coleta e destinação de resíduos sólidos e serviços
infraestrutura pública. de telecomunicação, entre outros. Controlada pela prefeitura de
Medellín, presta serviço também para várias cidades da Colômbia
No âmbito institucional
e de outros países da América Latina. É considerada referência
▸ Articulação com agentes estabelecidos nos territórios, de maneira
internacional em matéria de governança corporativa de empresas
a consolidar parceiros locais, fortalecendo a gestão institucional e
públicas. Entre 2001 e 2011, a EPM contribuiu com US$ 877 milhões,
ampliando os laços com a comunidade;
uma média de 50% de seus lucros para o município, o que, por sua
▸ Definição de instrumentos, mecanismos e responsabilidades para vez, representa 27% dos recursos de investimento da cidade7.
a efetivação dos projetos estipulados;

▸ Gestão financeira responsável e articulada entre secretarias e


2.2.1_ ALGUMAS LIMITAÇÕES E CRÍTICAS AO
instituições promotoras, determinando responsabilidades e atribui-
URBANISMO SOCIAL
ções para a execução dos projetos;

▸ Planejamento da gestão durante e após a execução dos projetos, A abordagem no presente Guia é sempre no sentido de analisar e
elencando as atribuições e responsabilidades pertinentes para cada referenciar uma experiência duradoura que permita uma reflexão
agente da comunidade e das instituições participantes. crítica sobre os seus avanços e limites.

Apesar dos vários e robustos ganhos em potencial apresentados, o


A promoção dos PUIs orientados através dos eixos de mobilidade
urbanismo social não está isento de avaliações mais críticas sobre
projetados para a cidade — como os metrocables (teleféricos) —
seus conceitos e implementações. Tais reparos demonstram a
permitiu a transformação integral desses territórios, promovendo a
complexidade que as políticas públicas urbanas podem enfrentar na
articulação das comunidades e da cidade formal, potencializada pela
sua implementação em ambientes sociais complexos e os revezes
estratégia do equipamento-âncora como impulsionador das atividades
a que elas estão sujeitas se houver baixa aderência política e/ou
e como um contrato social com a comunidade, e a qualificação dos
social ao projeto que vem sendo desenvolvido.
espaços públicos, estruturando um sistema que expande o caráter
das transformações sociais instituídas nos territórios em questão.
7  Mariana Wilderom. Ibidem.
54 55
Guia de Urbanismo Social Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

PROGRESSIVA DESCONTINUIDADE A “GENTRIFICAÇÃO” CAUSADA PELO


DAS AÇÕES E PROGRAMAS APÓS URBANISMO SOCIAL
TRÊS GESTÕES
Trata-se do processo de valorização urbana que ocorre após a
Os projetos de urbanismo social em Medellín existem há quase transformação e a qualificação de territórios precários, com a
vinte anos. Os diferentes prefeitos apoiaram com maior ou menor consequente expulsão da população local de baixa renda, impos-
intensidade a continuidade do que foi implementado por outros sibilitada de lá continuar vivendo devido à elevação dos custos e a
governantes. Mas mesmo lá, porém, o prosseguimento dos projetos dificuldade de atrair população de baixa renda para esses lugares.
ainda é dependente de um ciclo político favorável. Depois de três Vale lembrar que o fenômeno da valorização dos preços — particu-
gestões, a continuidade ou manutenção daquilo que fora implanta- larmente da terra e dos imóveis — ocorre inexoravelmente em todos
do foi sendo reduzida gradativamente conforme acontecia a troca os territórios que se qualificam, em quaisquer cidades do mundo.
de prefeitos. Apesar dessa falta de disposição para seguir com O que se tenta fazer nos processos de transformação urbana é
os projetos de urbanismo social atualmente, cabe apontar que a atenuar o fenômeno por meio de alguns instrumentos de política
institucionalização deles e a forte aderência da população podem fundiária, dentre eles: a demarcação de áreas/zonas destinadas
ser apontados como fatores que contribuíram para que a política exclusivamente à moradia social — e, quando for necessário, a
e os equipamentos não fossem desmobilizados por completo. construção de moradia social nesses lugares — para a manutenção
da população local; a promoção dos instrumentos de captura da
A CRÍTICA AO “MARKETING URBANO”, “CITY BRAND” valorização do solo.
E APRESENTAÇÃO DA CIDADE COMO O “MEDELLÍN !
MIRACLE” OU O “MODELO MEDELLÍN” PARA SABER MAIS, VER: Por fim, como qualquer processo de transformação urbana du-
▸ Capítulo 9.
radouro em uma grande cidade (Medellín tem aproximadamente
Junto com a surpreendente transformação pela qual passou a 2,5 milhões de habitantes) — e esse é um dos maiores méritos do
cidade colombiana , começaram a surgir algumas críticas:
8
urbanismo social dessa cidade —, há sempre limitações conjunturais
de difícil superação. Ainda assim, “talvez o elemento fundamental
▸ Crítica ao uso do “modelo Medellín” de urbanismo social como e catalisador da transformação urbana de Medellín tenha sido o
uma fórmula com apelo de marketing que permitiria “exportar” o que conjunto de estratégias participativas que ativaram diferentes
se fizera naquele município para outras cidades da América Latina, estruturas e representações da sociedade civil dentro do processo
sem levar em conta os seus contextos locais e suas peculiaridades; político. Ao convidá-los a pensar, desenvolver e pactuar planos e
intervenções, vislumbrou-se a possibilidade de um novo contrato
▸ Crítica ao fato de que supostamente o sucesso de Medellín
social. Esse talvez tenha sido o maior mérito de Fajardo: criar o
haveria sido capturado pela publicidade turística, gerando, assim,
ambiente adequado para que isso acontecesse. E talvez seja tam-
uma forte e valiosa marca, uma “city brand”. Esse fator teria sido
bém o seu maior legado, pois, na medida em que a população tem
responsável por um grande afluxo de visitantes, vindos de diversos
reconhecido os seus direitos de cidadão na tomada de decisões,
lugares do planeta, só para conhecer os territórios transformados
pode, afinal, vir a exigi-los”9.
pelo urbanismo social, as chamadas comunas.

8  Medellín: da mais violenta à mais inovadora do planeta, BBC Brasil, 2013. 9  Mariana Wilderom. Op. cit.

56 57
Guia de Urbanismo Social Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

!
2.3_
PROGRAMAS DE URBANIZAÇÃO DE FAVELAS
E URBANISMO SOCIAL: SEMELHANÇAS E
PARA SABER MAIS, VER:
COMPLEMENTARIDADES
▸ Publicações da Urbam EAFIT, Medellín;

▸ ALCALDÍA DE MEDELLÍN. Guía de la Transformación Ciudadana, 2004-2011. Nas cidades brasileiras, a atuação da gestão pública no que se
Medellin: Alcaldía de Medellín, 2011;
refere às favelas foi até o final dos anos 1980, pautada pela lógica
▸ ALCALDÍA DE MEDELLÍN e BID. Medellín, Transformación de una Ciudad. de erradicação desses espaços e não pelo seu reconhecimento e
Medellin: Alcaldía de Medellín e BID, 2009;
pela busca por solucionar seus problemas. Tais territórios eram
▸ CAVALCANTE, Murilo (org.). As lições de Bogotá e Medellín: Do caos à referência
mundial. Recife: INTG, 2014;
encarados como anomalias, em vez de resultado de fatores estru-
turais, e suas peculiaridades e potencialidades passavam ao largo.
▸ Publicações e webinários do Núcleo de Urbanismo Social;

▸ ANTONUCCI, Denise e BUENO, Lucas. A construção do espaço público em


Medellín. Quinze anos de experiência em políticas, planos e projetos integrados.
As características dos assentamentos precários são muito diversas,
São Paulo: Arquitextos, 2018; variando em localização (morros, vales, periferias urbanas), tamanho
▸ COELHO, Tiago. Como escapar do inferno. Outras Palavras, 2022; e densidade (com poucas famílias ou milhares de habitantes), tipo
▸ Capítulo 15 (Casos Referenciais). e qualidade de construções, situação da propriedade (ocupações
em áreas públicas ou privadas), situação de (i)legalidade e regulari-
zação fundiária, grau de consolidação e níveis de integração com a
chamada cidade formal, isto é, aquela regularizada, equipada e com
infraestrutura. O que esses territórios geralmente têm em comum
é a forte carência de infraestrutura urbana, baixo acesso a serviços
e equipamentos públicos essenciais, significativa segregação em
relação à cidade formal, precariedade associada a suas formas de
morar e a incerteza na posse da terra onde estão localizados, além
da presença de crescentes e variados modos de violência urbana.

A relação entre Estado e favelas no Brasil veio se transformando


ao longo das décadas, passando pela repressão, tolerância, su-
bordinação, relativa aceitação, reconhecimento de existência e
permanência e, finalmente, por sua legitimação na cidade, incluindo
o reconhecimento e valorização das potências locais construídas
pelas comunidades. São transformações alcançadas tanto por mu-
danças nos marcos institucionais quanto por pressões sociais — de
maneira progressiva e através de um longo processo de lutas pelos
direitos básicos à cidade e à moradia10. A partir daí tem emergido em
diversas cidades brasileiras o entendimento sobre a necessidade de
metodologias que permitam intervenções mais abrangentes, capazes

10  O Capítulo 5 aborda mais o tema da habitação social.


58 59
Guia de Urbanismo Social Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

de incluir todo o território, apesar de ainda estarem distantes do As ações de urbanização de favelas podem ser utilizadas em
necessário e da urgente demanda por ganhar escala e continuidade11. territórios onde predominam formas de ocupação mais precárias,
como palafitas, ruas sem asfaltamento, sem ligação de esgoto
Em geral, no Brasil e nos demais países da América Latina, os pro- etc. Nesses casos, serão necessários investimentos maiores em
gramas de urbanização de favelas têm como aspectos centrais a infraestrutura urbana, como saneamento e recuperação de áreas
promoção de habitação social e de infraestrutura urbana essencial. de risco. A provisão habitacional também se torna essencial,
E, nos programas mais completos, chamados integrais, as ações tendo em vista a condição de precariedade existente. Por sua vez,
incluem: mapeamento e reassentamento de famílias situadas em no urbanismo social, ainda que haja projetos de infraestrutura e
áreas de risco; o provimento de infraestrutura urbana (sistemas de expansão de acesso a esses serviços básicos, os programas atuam
água, esgoto, saneamento, energia elétrica, drenagem e iluminação); prioritariamente em territórios cujo grau de precariedade física
promoção de obras de contenção e estabilização de encostas; aber- não seja tão amplo e intenso a ponto de monopolizar a urgência
tura de ruas; promoção de moradia; construção de espaços públicos; de investimentos apenas para essas ações essenciais e custosas.
inserção de equipamentos públicos essenciais e, na sequência, as
dimensões de regularização fundiária e dos direitos básicos de Seja por impasses relacionados à descontinuidade de gestão, con-
cidadania (endereço oficial). tingenciamento orçamentário ou baixa integração entre secretarias
e coordenadorias que cuidam de políticas setoriais de maneira
Durante todo o processo, há o acompanhamento social junto à independente, os programas de urbanização de favelas, salvo
comunidade e o empenho para que ela participe do processo. Tais exceções, infelizmente têm revelado descontinuidade ao longo
ações são fundamentais para promover a inserção da população no do tempo, não conseguindo concluir todas as entregas previstas
contexto legal da cidade e, na situação ideal, visa-se transformar uma inicialmente. A população, mobilizada e inserida no processo de
favela com inúmeros problemas e carências em um “bairro regular”, escuta e de decisão, acaba muitas vezes deixando de acreditar no
com melhores condições de vida. Daí o nome do programa brasileiro processo. Além do efeito simbólico de confiança nas instituições
pioneiro nessa frente: Favela-Bairro (ver Capítulo 15). públicas, essa prática tem o efeito de deslegitimar as contribui-
ções advindas do processo participativo. Por isso, parte central da
Como tais intervenções são bastante complexas, morosas e de alto política de urbanismo social são as entregas contínuas, de curto,
custo, além de essencialmente dependentes de ações públicas, médio e longo prazo e de baixa, média e alta complexidade. Assim,
com frequência não é possível entregar “o pacote completo”, de é sempre possível enxergar o que está sendo realizado, mantendo
modo que o que foi planejado, muitas vezes, não tem êxito em sua o engajamento e a legitimidade da comunidade.
totalidade. Com frequência, os programas são interrompidos ou
executados apenas em parte; isso por diversas razões: ausência de Os programas tradicionais de urbanização de favelas dão um
uma liderança política forte com essa pauta empoderada na gestão, enfoque maior a dois elementos: (i) melhorias de infraestrutura
baixa integração setorial das políticas públicas e suas as ações, urbana e (ii) moradia. Ambos são os mais custosos e morosos.
ausência de financiamento para todas ações, falta de priorização do Apesar de serem demandas essenciais e urgentes na promoção
programa por parte dos prefeitos, descontinuidade de gestão etc. da qualificação do território e consequente melhoria nas condi-
ções de vida da comunidade, talvez a abordagem integrada e que
11  BONDUKIi, Nabil (org.). A luta pela reforma urbana no Brasil: do seminário de
contempla entregas rápidas de elementos menos complexos e
habitação e reforma urbana ao plano diretor de São Paulo. São Paulo: Instituto Casa morosos do urbanismo social — espaços públicos, urbanismo tático
da Cidade, 2018.
e equipamentos públicos — possa complementar os programas.
SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.
60 61
Guia de Urbanismo Social Capítulo 02 : Urbanismo Social — Conceitos

Deve-se ressaltar a enorme diferença de contexto em escala !


dessas demandas essenciais — melhorias de infraestrutura urbana PARA SABER MAIS, VER:

e promoção de moradia — entre Medellín e duas grandes cidades ▸ ALIANÇA DE CIDADES e PMSP (Prefeitura da Cidade de São Paulo). Urbanização
brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro, cujos tamanhos de população de favelas em foco — Experiências de seis cidades. Washington: The Cities Alliance,
2008;
e carências são muito maiores.
▸ CARDOSO, A. L. Avanços e desafios na experiência brasileira de urbanização de
favelas, Cadernos Metrópole, 2007;
Nesse sentido, remete-se o leitor do Guia a algumas experiências
▸ CARDOSO, Adauto e DENALDI, Rosana (orgs.). Urbanização de favelas no Brasil:
de urbanização e favelas amplamente estudadas nas duas grandes um balanço preliminar do PAC. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2018;
metrópoles nacionais: o já mencionado programa Favela-Bairro,
▸ FERREIRA, L.; OLIVEIRA, P. e IACOVINI, V. Dimensões do Intervir em Favelas. São
no Rio de Janeiro (com mudanças de nome no decorrer do tempo, Paulo: Peabiru TCA / Coletivo LabLaje, 2019;
entre paralisações e retomadas), e os programas em São Paulo nos ▸ IBAM. Estudo de avaliação da experiência brasileira sobre urbanização de favelas e
mananciais, em Paraisópolis e em Heliópolis. Adiante são apontadas regularização fundiária. IBAM: Rio de Janeiro, 2002;

referências a essas e experiências em outras cidades do país. ▸ LIBERTUN DE DUREN, Nora R. E OSORIO RIVAS, Rene. Favela-Bairro: 10 anos
depois. Washington: BID, 2020;

Ao se lembrar dos elementos característicos e das singularidades ▸ MAGALHÃES, Sérgio e CONDE, Luiz Paulo. Favela-Bairro: Uma outra história da
cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: RioBooks, 2021;
do urbanismo social apontadas no item “2.1_ Definições, origem
▸ Plataforma Global por el Derecho a la Ciudad. Decálogo para el Mejoramiento​
e contexto”, deve-se novamente ressaltar que há muitas aproxi-
Integral de Barrios;
mações e semelhanças entre os dois conceitos, a começar pelo
▸ SILVA, M. N.; CARDOSO, A. L. e DENALDI, R. Urbanização de favelas no Brasil :
objetivo central: a promoção da melhoria das condições de vida trajetórias de políticas municipais. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2022;
das comunidades que vivem nas favelas. As abordagens podem
▸ VILLAROSA, Francesco di e MAGALHÃES, Fernanda. Urbanização de favelas —
ser vistas como complementares, e as lições advindas — sucessos Lições aprendidas no Brasil. Washington: BID, 2012;
e reveses — dos casos de urbanismo social e dos programas de ▸ ZUQUIM, Maria de Lourdes (org.), 2014. Práticas recentes de intervenções
urbanização de favelas no Brasil e na América Latina como um contemporâneas em cidades da América Latina. São Paulo: FAU-USP, 2014;

todo devem servir para os aprendizados, sejam quais forem as ▸ Capítulo 15, Incluindo textos da Diagonal, Elisabete França, Jose Brakarz e
Sérgio Magalhães.
abordagens.

Lembre-se ainda de que há muito mais experiências desenvolvidas


Diante de todos esses critérios e orientação, pode restar a dúvida se
por meio dos programas de urbanização de favelas nas cidades do
projetos de urbanismo social somente poderão ser implementados
chamado Sul Global, assim como é farta a produção bibliográfica
nessas condições ideais. Como mencionado no item 2.1, existem
a respeito no meio acadêmico, livros, manuais e referências publi-
algumas iniciativas que bebem das experiências e aprendizados de
cadas por governos, instituições do terceiro setor e multilaterais.
tal estratégia de intervenção e tentam adaptá-los às suas realidades
e possibilidades locais.
Apontamos a seguir algumas de destaque.

O urbanismo social como foi implementado na Colômbia tem


especificidades que vão além dos projetos e contextos urbanos
e sociais locais, refletindo uma forma própria de organização do
Estado naquele país e algumas especificidades regionais muito

62 63
Guia de Urbanismo Social

relevantes e de enorme dificuldade de replicar em outros contextos


(como apresentado na seção sobre Medellín).

Inspirar-se em políticas bem-sucedidas de outros governos ou re-


plicá-las não é uma novidade na área da gestão pública. No entanto,
esse movimento de transferir políticas não é tão simples quanto
parece. Ele é o processo no qual o conhecimento sobre políticas
de um determinado tempo ou local é usado no desenvolvimento da
gestão em outro tempo ou local. Transferir, porém, não é apenas
“copiar e colar” uma política ou uma “boa prática”. Esse processo
pode ser bem complexo, a depender dos contextos (e problemas)
locais e do escopo da política de interesse. Transferir uma política
para um contexto diverso daquele em que foi originalmente dese-
nhado apresenta vários desafios, obstáculos e riscos que devem
ser levados em consideração para que ela se converta em uma
iniciativa exitosa após sua transferência. É possível tomar empres-
tado boas soluções, mas é necessário adaptá-las e customizá-las
às possibilidades e realidades locais do município adotante.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ SALLA, Ana Leticia. Desafios na Transferências de políticas públicas: experiências


de urbanismo social em perspectiva comparada. São Paulo: Revista Exame, 2021.

▸ Capítulo 15 (Casos Referenciais)

64
Capítulo 03 : Plano de Ação Local

03_ 3.1_ PLANO DE AÇÃO LOCAL

PLANO DE AÇÃO LOCAL 3.1.1_ INTRODUÇÃO

Dentro de uma metodologia de planejamento urbano, e não apenas


no contexto do urbanismo social, um Plano de Ação Local tem a
3.1_ função de articular justamente o planejamento do território e as
Plano de Ação Local priorizações de projeto, considerando as questões orçamentárias
e os objetivos traçados, de forma a organizar as diversas ações
3.2_ previstas, tanto em relação à sua temporalidade — curto, médio e
Contribuições para a metodologia longo prazo — quanto à espacialidade. Tudo isso por meio da terri-
do Plano de Ação Local torialização das ações previamente definidas e também das ações
estratégicas e sistêmicas, além de alinhar-se desde o início com o
processo de governança compartilhada.

Diante de um cenário de descontinuidade de políticas públicas e


considerando os ciclos político-administrativos de gestão, o Plano
de Ação Local pode funcionar como garantia de implementação
a médio e longo prazo dos programas elaborados, assim como a
destinação planejada dos investimentos previstos.

Como comentado no Capítulo 1 (e será detalhado no Capítulo 14), a


maior referência de Plano de Ação Local em urbanismo social são os
PUIs, Projetos Urbanos Integrais de Medellín. No Brasil, infelizmente,
há poucos casos de desenvolvimento e implantação de Planos de
Ação Local e mesmo de Planos de Bairro — que poderiam incorporar
Planos de Ação Local dentro deles.

No caso da cidade de São Paulo, por exemplo, o Plano Diretor Estra-


tégico de 2014 (PDE) define que a cada quatro anos é necessária a
! realização dos Planos de Ação das Subprefeituras, “que têm o objetivo
PARA SABER MAIS, VER: de detalhar as propostas e intervenções necessárias, na escala local,
▸ Prefeitura de São para o desenvolvimento urbano e ambiental da região”, articulando o
Paulo. Portal Gestão planejamento territorial, as leis orçamentárias (como o Plano Plurianual
AUTORES Urbana SP.
— PPA, a Lei de Diretrizes Orçamentárias — LDO e a Lei Orçamentária
3.1_ Núcleo de Urbanismo Social Anual — LOA) e o Programa de Metas de cada gestão.
3.2_ Diagonal
67
Guia de Urbanismo Social Capítulo 03 : Plano de Ação Local

Utilizando como referência os marcos legais mencionados — PDE e como a cobrança pela continuidade dos projetos, estão diretamente
Plano de Ação das Subprefeituras, entre outros (Planos de Bairro,
por exemplo) —, a iniciativa do Pacto pelas Cidades Justas reuniu, em
! ligadas aos interesses da própria comunidade beneficiada.

2019, diferentes entidades da sociedade civil para a implementação PARA SABER MAIS, VER:

de estratégias para projetos de urbanismo social em algumas áreas ▸ Pacto pelas Cidades 3.1.2_ FASES DE IMPLEMENTAÇÃO DO PLANO DE
Justas. Produto 5:
da cidade de São Paulo, através de uma metodologia estabelecida
Relatório Final.
AÇÃO LOCAL NO URBANISMO SOCIAL
pelo Plano de Ação Local.
O Plano de Ação Local tem como objetivo viabilizar a implementação
A experiência do Pacto pelas Cidades Justas no âmbito do ur- de programas e projetos estratégicos para favelas, levando em
banismo social foi também inspirada no projeto de Medellín conta a diversidade de cada localidade em transformação, suas
para territórios em situação de vulnerabilidade social. Portanto, problemáticas sociais e ambientais. Sendo assim, ele funciona
além da implementação de um planejamento urbano integrado, como um importante instrumento para urbanização e integração
realizado a partir de diagnósticos técnico e social-participativo e desses territórios à cidade formal — através da priorização de
de um planejamento detalhado para cada localidade, os projetos recursos para transformações no espaço físico urbano e também
seguem diretrizes de: (i) priorização dos investimentos em áreas das intervenções sociais, com a participação e gestão ativa das
em situação de alta vulnerabilidade; (ii) articulação territorial das comunidades locais.
ações públicas e da sociedade civil; (iii) participação comunitária
em todas as etapas de projeto; (iv) implementação de um modelo Pode-se considerar o Plano de Ação Local um mapeamento de
de governança integrado e compartilhado na escala local; e (v) todas as ações planejadas e contextualizadas dentro do território
avaliação e monitoramento dos impactos das políticas públicas. beneficiado, integrando as questões orçamentárias (fontes de
financiamento, investimentos públicos e/ou privados), os atores
Sendo assim, o Plano de Ação Local, de acordo com a metodologia envolvidos no processo (comunidade, poder público, setor privado,
elaborada pelo Pacto, é montado a partir da priorização das ações sociedade civil etc.), os modelos de gestão, os tipos de intervenções
propostas nos Planos Urbanos Integrados e Programas Sociais e a priorização dos projetos.
Integrados, a fim de colocar em prática as diretrizes propostas
em um período de tempo de médio prazo. Essas priorizações se Sua viabilização segue uma metodologia com quatro eixos prin-
dão a partir das avaliações e consultas com a equipe técnica, cipais de ação:
secretarias envolvidas e também diretamente nos territórios,
levando em consideração aspectos como: (i) urgência e gravidade ▸ Planejamento;
do problema; (ii) custo; e (iii) oportunidade (se está dentro de um
▸ Formulação;
contexto de implementação facilitada pelas condições gerais que
influenciam no andamento do projeto/programa). ▸ Implementação e Gestão;

▸ Avaliação e Monitoramento.
Vale ainda ressaltar que, assim como todos os processos de im-
plementação de projetos e planejamento realizados pela via do Na etapa de Planejamento, é realizada uma análise de reconhe-
urbanismo social, o Plano de Ação Local deve considerar as formas cimento da área de intervenção, de suas características e pro-
organizadas de participação contínua e permanente da população blemáticas. Para isso são feitos diagnósticos físicos, espaciais e
local e das lideranças comunitárias, pois a priorização de ações, bem socioparticipativos, tais como:

68 69
Guia de Urbanismo Social Capítulo 03 : Plano de Ação Local

▸ Diagnóstico Físico: morfologia urbana definição dos objetivos propostos, é necessá- implementação coerente e coordenada deve Ressalta-se também a importância de ga-
(topografia, hidrografia, uso e parcelamento rio realizar um detalhamento das atividades prever, portanto, espaço para aprendizados rantir a transparência dentro da estrutura
do solo, traçado viário etc.); definidas para cada lugar específico, soman- e acomodações, que devem ser comparti- de governança, com o acompanhamento
do-se ao planejamento estratégico sobre as lhados na rede de governança. das atividades dos atores que a compõem,
▸ Diagnóstico Social: composição da popu-
demandas locais e suas prioridades, pois, além da necessidade de prestar contas à
lação e sua caracterização (nível de escolari-
além dos projetos de estruturação urbana e Nos modelos de gestão no urbanismo social sociedade, à população e aos órgãos de
dade, saúde pública, segurança pública etc.);
qualificação ambiental dos territórios, existe é fundamental que exista a capacitação controle. O accountability (prestação de
▸ Diagnóstico de Inserção Política e Insti- a preocupação de que as ações estratégicas dos líderes comunitários e a tomada de contas/transparência) funciona como uma
tucional: análises de programas e políticas dos programas sociais promovam a qualifica- responsabilidade pela população local, estratégia para continuidade dos projetos ao
estatais e municipais, ações preexistentes ção da vida das pessoas que habitam essas pois a transformação do espaço físico não longo do tempo, além de fortalecer o senso
em benefício da população local, secretarias áreas, com ações que vão desde a comple- está desassociada da transformação social, de responsabilidade dos gestores públicos
envolvidas e suas atividades; mentação de renda à segurança alimentar, impactada diretamente pela integração da locais perante às ações pactuadas.
passando pela inclusão digital, a capacitação comunidade e seu envolvimento na apro-
▸ Diagnóstico Participativo: identificação
profissional e o empreendedorismo, além de priação e gestão do espaço construído de
das demandas junto aos moradores e demais
toda uma ativação do território através de modo coletivo. O planejamento e a gover-
atores envolvidos (prefeitura, profissionais
atividades culturais e de educação. nança compartilhada permitem justamente
e técnicos e entidades da sociedade civil),
que a comunidade local esteja incluída nos
estabelecendo as agendas prioritárias.
A etapa de Implementação e Gestão com- processos de deliberação e tomada de deci-
pactua com todo o processo anterior de sões de todas as etapas do Plano de Ação
A etapa de Formulação é iniciada após a diagnóstico, planejamento e formulação, Local, de forma que o desenvolvimento dos
identificação dos problemas levantados na estabelecendo de maneira clara uma organi- projetos possa ser monitorado e avaliado
etapa de diagnósticos. Nela, portanto, são zação da governança entre todos os atores pelos próprios moradores.
desenvolvidas as estratégias e soluções envolvidos nos projetos e seus objetivos.
que darão andamento aos projetos e sua É de extrema importância que haja uma A etapa de Avaliação e Monitoramento é uma
execução. Nessa fase, a participação da comunicação e uma gestão transversal continuidade do modelo de governança com-
comunidade local e seu envolvimento na entre a totalidade desses atores para que partilhado. Segundo experiências de urba-
formulação dos projetos são essenciais para todas as fases do projeto estejam alinhadas, nismo social acompanhadas pelo Programa
o seu desenvolvimento. O processo coletivo coordenadas, e que consigam sair do papel Pacto pelas Cidades Justas, o monitoramento
de desenho e discussão é geralmente rea- como planejado, dentro dos prazos de curta, das entregas do Plano de Ação Local e a
lizado no formato de oficinas participativas média e longa duração. avaliação de seus impactos no território são
Saiba mais sobre a metodologia de
comunitárias, nas quais são expostas as parte fundamental para a efetividade das
urbanismo social, com foco nos Pla-
propostas dos participantes e definidas No campo das políticas públicas, a imple- intervenções. Esse modelo de governança
nos de Ação Local desenvolvido pelo:
as ações prioritárias dentro do território, mentação é compreendida não como a mera organiza entidades da sociedade civil junto à
Pacto pelas Cidades Justas.
por meio de mapas, práticas de desenho e execução daquilo que foi planejado, mas população local para que, de maneira colabo-
visualização de imagens representativas. como um complexo processo de interação rativa, sejam capazes de avaliar e monitorar a
entre atores, no qual a intervenção pública implementação dos projetos nos territórios,
Juntamente com o exercício de territoriali- é continuamente influenciada e redefinida através da coleta de dados e do acompanha-
zação das ações de cada área estudada e a pelas ações que a põem em prática. Uma mento periódico e a longo prazo.

70 71
Guia de Urbanismo Social Capítulo 03 : Plano de Ação Local

3.2_ CONTRIBUIÇÕES PARA A


METODOLOGIA DO
PLANO DE AÇÃO LOCAL
INFOGRÁFICO 01:
LEITURA TERRITORIAL INTEGRADA DAS DESIGUALDADES

Precariedade
Desigualdade Social
Serão apresentadas a seguir três contri- deflagra uma sequência de ações e impac- Territorial
buições metodológicas para a construção tos desfavoráveis à condição humana nesse
de Planos de Ação Local no que tange às hábitat. Essa realidade constantemente Periferia marcada pela POLÍTICAS PÚBLICAS Territórios vulneráveis
inseguridade do solo/ marcados pela
questões de governança e participação co- produzida e reproduzida em territórios de FOCALIZADAS E UNIVERSALIZADAS
relevo, da infraestrutura, desigualdade econômica
munitária. A primeira dá relevância ao olhar vulnerabilidade dá lugar a grandes espaços da construção, da estrutural impactando em:
metodológico para a desigualdade, para as de precariedade. Nesse sentido, é neces- condição jurídica da
posse do terreno.
questões de nível macro e micro das polí- sário olhar para o território em questão
ticas públicas no combate às duas formas fundamentando-se minimamente em dois
Qualidade de vida:
de desigualdade, a territorial e a social. A princípios básicos: a abordagem integrada capacidade de
segunda realça a inclusão dos processos de e interdisciplinar e a participação e o pro- subsistência-renda,
qualidade ambiental

VULNERABILIDADES
Contradição;
mobilização, organização e fortalecimento tagonismo das comunidades. (água, esgoto, lixo),
social relacionados à elaboração de Planos Gera uma cadeia para a PRECARIEDADE DESIGUALDADE qualidade dos
cidade inteira; TERRITORIAL SOCIAL domicílios, propriedade;
de Ação Local. A terceira contribuição lança o Estão ancoradas na abordagem integrada e
deslocamentos nas
olhar para a leitura e análise das instituições interdisciplinar dois procedimentos: a leitura Crescimento geográfico ruas, ofertas de
e organizações locais, como um instrumento territorial integrada das desigualdades e as desigual. serviços básicos (saúde,
educação, transporte
relevante para o planejamento dos processos estratégias globais de combate a elas. Os público, lazer).
de governança e participação, englobando esquemas a seguir ilustram esses dois as-
os desafios relacionados à prática da gestão pectos de leitura e planejamento das ações
participativa e a necessidade de considerar a junto às áreas em condição de vulnerabilidade.
Vulnerabilidades Baixo índice de
interdependência entre plano global e local, No primeiro, ressalta-se a importância do socioambientais; desenvolvimento
com exemplos de práticas desenvolvidas cruzamento de ambas as dimensões da vulne- humano:
A precariedade territorial POLÍTICAS PÚBLICAS COMO DIREITO educação infantil,
pela Diagonal. rabilidade de uma comunidade — a territorial nas cidades brasileiras mortalidade, violência,
BASEADAS EM EVIDÊNCIAS
e a social — e a necessidade da focalização e é mais do que a imagem padrão de tolerância/
da desigualdade, é intolerância a
da universalização das políticas públicas no
condenação de todas as heterogeneidades de
3.2.1_ OLHAR INTEGRADO DAS território, entendidas como um direito. No cidades de coexistirem gênero, etnia, opção
DESIGUALDADES segundo, enfatiza-se a relevância de consi- com um urbanismo sexual, opção religiosa,
de risco. trabalho feminino.
derar os dois níveis de ações que intervêm no
Favelas, de forma geral, se confundem planejamento territorial: o macro, que orienta
com áreas urbanas degradadas, pois são as ações globais e estruturantes da organiza-
Fonte: Diagonal.
o reflexo de uma construção humana pau- ção do território, e o micro, que olha e articula
tada pela necessidade, recursos escassos as ações locais dentro das especificidades
e busca de uma localização urbana para de cada área, em uma perspectiva de outra
morar. São um produto social contraditório, temporalidade, visando ao atendimento de
no qual a ocupação do núcleo de vivência demandas históricas e urgentes.

72 73
Guia de Urbanismo Social Capítulo 03 : Plano de Ação Local

INFOGRÁFICO 02: processo de implementação, buscando abrir espaço para o protagonismo comunitário. Tais
ESTRATÉGIAS GLOBAIS DE ATAQUE diretrizes participativas e deliberativas constituem parte dos preceitos do urbanismo social
e devem ser incorporadas em seus projetos. O fluxograma apresentado a seguir ilustra
sinteticamente os principais processos de elaboração de planos de ação que agregam a
VISÃO GLOBAL DAS
ESTRATÉGIAS GLOBAIS contribuição do trabalho social, incorporando suas principais linhas ou eixos de atuação, nas
NÍVEL MACRO ÁREAS DEGRADADAS
DE ATAQUE distintas fases das obras/intervenções:
[região, município ou estado]

RETROALIMENTAÇÃO ▸ Principais problemas; ▸ Propostas e Programas de

▸ Principais demandas de Ações Globais;

cada área; ▸ Propostas de captação


INFOGRÁFICO 03:
▸ Quadro geopolítico e das de recursos (opção de
implantação gradual). FLUXOGRAMA DOS PLANOS DE AÇÃO LOCAL EM FAVELAS
organizações.

PROCESSO 1 PROCESSO 2
ESPECIFICIDADES DE PROJETOS E AÇÕES AÇÕES INICIAIS E PLANO DE TRABALHO DIAGNÓSTICO
NÍVEL MICRO
CADA ÁREA ESPECÍFICAS

AÇÕES INVESTIGAÇÕES, AÇÕES


▸ Diagnóstico integrado da ▸ Projetos específicos;
PRELIMINARES ANÁLISES E ESTUDOS PRELIMINARES
área e individualizado por ▸ Implantação e
unidade familiar; monitoramento das ações.
▸ Diagnóstico integrado Mobilização da Pesquisa de Fontes Diagnóstico Socioeconômico;
Comunidade; Secundárias;
geopolítico.
Diagnóstico Sócio-organizativo;

Pesquisa Diagnóstico Urbanístico;


Fonte: Diagonal. Socioeconômica-
Discussão do
Ambiental; Diagnóstico Jurídico e Fundiário.
Programa Melhorias
para o Bairro;
Pesquisa Sócio-
organizativa
3.2.2_ PARTICIPAÇÃO E PROTAGONISMO COMUNITÁRIO
(quantitativa);
Discussão do Plano de
Trabalho da Equipe, Diagnóstico Integrado e Diretrizes
No Brasil, a evolução das abordagens participativas dentro das Levantamento do
diagrama de fluxos e da Intervenção.
experiências de urbanização integrada de assentamentos precários cronograma; Perfil das Instituições;

deu protagonismo ao trabalho social de mobilização, organização e


Estudos sobre
fortalecimento das comunidades impactadas pelas obras, estrutu- Discussão do papel
Tendência da Terra;
rando e proporcionando visibilidade à importância desse trabalho no da comunidade
e definição do
contexto das intervenções. modelo de gestão Estudos Urbanísticos e
participativa. Ambientais.

A própria normatização realizada no âmbito do Ministério das Cida-


des — atual Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional
Fonte: Diagonal.
(MDR) — para o financiamento de projetos reforça essa relevância no

74 75
Guia de Urbanismo Social Capítulo 03 : Plano de Ação Local

3.2.3_ DIAGNÓSTICO SÓCIO-ORGANIZATIVO COMO INSU- PESQUISAS QUALITATIVAS


Com o intuito de exemplificar as perspec-
MO NOS PROCESSOS DE GOVERNANÇA E PARTICIPAÇÃO
tivas de uma análise integrada das orga-
A pesquisa qualitativa procura, junto às
nizações sociais, demonstra-se a seguir
O desenvolvimento de um Plano de Ação Integrado demanda um lideranças e a atores de referência, indivi-
uma das possibilidades de avaliação das
diagnóstico sócio-organizativo do território, composto pelo mape- dualmente ou em grupo, resgatar a história
organizações visando à governabilidade dos
amento das instituições/organizações locais, além de pesquisas das comunidades, coletando suas principais
planos e as atenções para capacitação e
qualitativas que contribuam para a compreensão do sistema de reivindicações, mobilizações e formas de
ações participativas, incluindo as estratégias
governança local. lutas. Com as informações coletadas, junto
a serem adotadas.
a essas lideranças e aos moradores mais
MAPEAMENTO DAS INSTITUIÇÕES antigos, é possível situar num contexto his-
Exemplos de aspectos a serem considerados
tórico o processo de ocupação das áreas, as
para a construção da Matriz de Avaliação
O trabalho integrado com a comunidade requer um amplo diagnóstico etapas mais importantes do desenvolvimento
das Organizações/Instituições Comunitárias:
das organizações comunitárias e institucionais inseridas nos terri- das comunidades e os traços marcantes da
tórios que envolvem a ação, tomando como base o cadastramento dinâmica das relações sociais internas e ex-
VARIÁVEIS DE ANÁLISE
e georreferenciamento de todas as unidades presentes e operantes ternas, inclusive no que diz respeito ao poder.
nas comunidades. Poderá ser complementado com organizações/ ▸ Mobilidade para mudança e resistência;
instituições do entorno ou da cidade em forma de tabela. O roteiro utilizado é semiestruturado em
▸ Organização e representatividade;
torno das seguintes referências básicas:
▸ Formalidade ou informalidade;
Os dados básicos do mapeamento devem contemplar: ▸ Histórico de ocupação;
▸ Identificação; ▸ Relações políticas (institucionais/partidárias);
▸ Organizações comunitárias: processos
▸ Reivindicações por grau de necessidade;
▸ Natureza das organizações (formal ou informal); de lutas e reivindicações;
▸ Situação fundiária;
▸ Objetivos; ▸ Participação em conselhos e movimentos
populares; ▸ Pontos críticos.
▸ Serviços prestados;
▸ Principais demandas das comunidades;
▸ Capacidade de atendimento;
▸ Correlação de forças internas e externas.
▸ Convênios (caso existam);

▸ Parcerias, canais de reivindicação;


retângulo
As informações obtidas, somadas aos cadas-
▸ Identificação e papel dos líderes; tros, fornecem quadros das relações sociais
que permitem o planejamento de diversas
▸ Constituição da organização (estatuto);
frentes de trabalho, ações conjuntas e de-
▸ Representação em conselhos gestores de governos; finição de estratégias com menor margem
de erro. Descrever em cada comunidade as
▸ Indicação de outras lideranças da comunidade ou fora dela;
análises e marcar os pontos facilitadores e
▸ Redes de comunicação virtuais; dificultadores colabora muito para a iden-
tificação e priorização de ações de acordo
▸ Outros dados necessários ao objetivo do projeto integrado.
com as especificidades dos grupos locais.
76 77
Guia de Urbanismo Social Capítulo 03 : Plano de Ação Local

DESAFIOS E OBSTÁCULOS PARA O 3.2.4_ A INTERDEPENDÊNCIA e elevado consumo de recursos orçamen- Em Boa Vista/RR, o Programa Braços Aber-
PROTAGONISMO SOCIAL ENTRE PLANO GLOBAL E PLANO tários e de financiamentos — os principais tos — elaborado nos primeiros meses de
DE AÇÃO LOCAL investimentos no tempo e no espaço, pro- gestão de Teresa Surita na prefeitura (2001-
A proposição de novas linhas de ação que porcionando pouca margem decisória e de 2004), desenvolvendo metodologia similar
envolvem processos de governabilidade so- As experiências obtidas no desenvolvimento atendimento a outras demandas sociais da à de Curitiba, acima mencionada — foi o
cial integrada prevê mudanças significativas das ações de acompanhamento social das vida do bairro. Configura-se, assim, a prática instrumento de planejamento das ações
e desafios em diversos aspectos. Exemplos: intervenções em áreas vulneráveis indicam corrente de um planejamento de cima para estruturais e locais da cidade, com foco na
▸ Tarefas: que passarão de simples, já en- que os melhores resultados têm correspon- baixo (top-down), no qual a racionalidade participação social. Para tanto, foi criada a
tão vivenciadas, para multidimensionais, dido aos momentos em que os Planos de econômica se impõe sobre uma questão que Secretaria de Gestão Participativa e Cidada-
mais complexas no fazer e nas relações Ação Local são discutidos e priorizados na é política: a discussão do uso do território. nia, designada a trabalhar todo o processo
que estabelecem; formulação de um planejamento territorial de relação com a população, organização
mais amplo da cidade. É nesse processo Algumas poucas experiências de elaboração e levantamento de dados, informações e
▸ Papéis: de beneficiários do poder público
que as questões locais são articuladas com de Planos de Ação Local derivados de uma pesquisas, além de definir planos locais
para gestores de programas;
aquelas mais gerais dos municípios, na discussão mais ampla dos problemas e do de ação integrada, com a participação das
▸ Valores: de solidariedade e responsabilida- combinação dos aspectos estruturais das orçamento da cidade podem ser relatadas, comunidades. Valendo-se da estratégia de
de social nos “negócios” (empreendimentos); políticas setoriais com as múltiplas necessi- como as que aconteceram em Curitiba (PR), engajamento e envolvimento da população
dades sociais e urbanísticas de cada bairro, em 1999, e Boa Vista (RR), entre 2001-2004. no processo, o programa combinou a reali-
▸ Serviços de apoio e assistência: para
em suas carências históricas e nas novas, zação de obras estruturais da cidade e do
serviços de gerenciamento e execução de
surgidas nos tempos atuais. Nesse trânsito Na capital paranaense, o Plano Decidindo bairro, de médio e longo prazo, com entregas
ações que envolvem fatores econômicos e
de escalas, o orçamento pode ser priorizado Curitiba, elaborado na primeira gestão do rápidas, de curto prazo, focando aquelas de
financeiros, técnicos e sociopolíticos num
de modo mais claro para os agentes técnicos prefeito Cássio Taniguchi (1997-2000), vi- alto impacto e baixo custo e que gerassem
contexto determinado.
e de governança — e de maneira transparente sou aplicar para toda a cidade metodologia emprego e renda para as pessoas.
Os obstáculos para a participação popular para as comunidades envolvidas. de intervenção desenvolvida em áreas e
e o protagonismo social podem ser sinte- assentamentos vulneráveis, que pressupu- A priorização de investimentos e intervenções
tizados pela falta dos seguintes aspectos: Trata-se da busca pela construção de pla- nha abordagem territorializada, integrada, urbanísticas e sociais nos bairros mais vul-
▸ Experiência dos três lados (governos, nejamento e pactos territoriais olhando para focalizada, participativa e negociada com a neráveis de Boa Vista configura exemplo de
comunidades e parceiros privados); a totalidade, e que não sejam sobrepujados comunidade. Desse plano decorreram inter- urbanismo social em que as demandas locais
pelos planos e pactos setoriais orientados venções integradas em toda a cidade. Em do bairro assumem protagonismo no processo
▸ Organização pontual para reivindicar e
e/ou determinados por uma lógica predomi- bairros periféricos, múltiplas ações setoriais de decisão e escolhas do poder público.
garantir o objeto de suas demandas (flui de
nantemente econômica, na qual se ressalta desenvolvidas se articularam às necessida-
acordo com os moradores e as emergências);
o poder político de determinados agentes des identificadas e priorizadas, tendo como
▸ Organização para a autogestão; e de classe social. centro as demandas da comunidade. Essas
ações são exemplos de urbanismo social,
▸ Conhecimento sobre custos, variáveis téc-
Em muitas intervenções de urbanização pois tiveram como foco o atendimento das
nicas e processos envolvidos na realização
integrada de assentamentos precários as principais questões do lugar, enquanto to-
dos seus objetivos;
políticas setoriais de saneamento e mobili- talidade que expressa o acontecer solidário
▸ Visão pontual e segmentada sobre o am- dade estrutural tendem a determinar — em das relações sociais e a construção e ressig-
biente local e a cidade. virtude de sua rigidez técnica-tecnológica nificação da paisagem do bairro de vivência.

78 79
Capítulo 04 : Dimensão Governança

04_ 4.1_ PROCESSOS DE GOVERNANÇA NO


URBANISMO SOCIAL

DIMENSÃO GOVERNANÇA O urbanismo social em Medellín como política pública territorial


visou construir uma governança corresponsável do território,
focando a relação entre Estado e sociedade no cidadão como
sujeito de transformação social, econômica e cultural. Essa ideia de
4.1_ governança, nascida no início dos anos 1990, levantou a necessidade
Processos de governança no de boas práticas na forma como o Estado intervém no território e
urbanismo social define instâncias e cenários de discussão com uma estrutura menos
piramidal e mais horizontal, gerando, assim, espaços de tomada
4.2_ de decisão compartilhada, o que implica o empoderamento da
Diretrizes para construção de um sociedade nas ações levadas a cabo na comunidade.
modelo de governança territorial
para o urbanismo social A governança como estratégia de eficiência requer uma demanda
por processos de planejamento que permitam pensar e repensar
4.3_ o território de modo democrático. No urbanismo social, e espe-
Eixos para construção de uma boa cificamente nos Projetos Urbanos Integrais (PUIs) — que são
governança territorial mediados por processos de planejamento tangíveis da área em
questão —, isso se faz com a leitura conjunta do território pelo
4.4_ Estado e pela sociedade.
Diagnóstico dos principais
problemas de governança O reconhecimento do território por todos os seus intervenientes
e o acompanhamento constante durante os processos de imple-
4.5_ mentação garantem a sustentabilidade, a melhoria das condições
Diretrizes para a modelagem de econômicas, o aumento dos indicadores da qualidade de vida dos
uma boa governança territorial habitantes e por último, mas não menos importante, a construção
AUTORES do capital social.
4.6_
4.1_ Carlos Mario Rodrigues (Instituto
Objetivos, instâncias e instrumentos A governança é o principal objetivo desses processos enqua-
Tecnologico de Monterrey);
drados no urbanismo social. A partir dos diferentes programas
4.2_ a 4.7_ Pedro Marin e Andrelissa
4.7_ e projetos que visam à democratização dos territórios, eles são
Ruiz (Fundação Tide Setubal);
Mobilização e protagonismo implementados e fazem da transformação da cidade intervenções
[Box A Maré que Queremos] Núcleo
comunitário integrais nas quais todas as ferramentas de desenvolvimento
Mulheres e Territórios;
estão disponíveis de forma simultânea.
[Box Ações cooperativas academia-
-comunidade-escola pública no Jardim
Ângela] Vera S. Luz (PUC-Campinas) e
Antonio Fabiano Jr. (FAU-Mackenzie).
81
Guia de Urbanismo Social Capítulo 04 : Dimensão Governança

4.2_ DIRETRIZES PARA CONSTRUÇÃO


DE UM MODELO DE GOVERNANÇA
TERRITORIAL PARA UM
O QUE É GOVERNANÇA?

Governança é um termo amplo que pode ser usado em diversos contextos.


URBANISMO SOCIAL
Aqui, porém, entendemos governança como arranjos formais e informais
nos quais participam representantes do poder público, entidades privadas
Uma das premissas do urbanismo social é a necessidade do
locais e organizações comunitárias que estão presentes nos territórios.
estabelecimento de um modelo de governança diferenciado para
Esses arranjos são espaços de articulação, de participação e de tomada
os territórios que são objeto de intervenção. A descontinuidade
de decisões que afetam tanto o território e sua população quanto as
administrativa, as dificuldades das diversas pastas de trabalharem
próprias intervenções. Nele se constitui uma interdependência entre
de acordo com o mesmo planejamento e o baixo nível de institucio-
diferentes atores estatais e não estatais que produzem e implementam
nalização das instâncias participativas locais, como os conselhos
as políticas públicas na área em questão. É um espaço para discutir e
gestores de equipamentos públicos, são características frequentes
alinhar os diferentes interesses do território. Lembrando que o sucesso
na atuação do poder público em favelas.
na mobilização comunitária é um dos aspectos determinantes para a
construção de modelos bem-sucedidos de governança territorial.
Os capítulos anteriores já demonstraram que o sucesso do ur-
banismo social em casos de referência como Medellín e Recife
também estão atrelados a modelos consistentes e inovadores de
governança compartilhada no território. Isso porque o sucesso Nos capítulos anteriores, vimos que não há um único modelo de
da implementação das intervenções urbanas e das diretrizes de urbanismo social, uma “receita pronta” que funcione para todos
integração de políticas sociais aqui propostas depende, em grande os contextos. Da mesma forma, a implementação de um modelo
parte, da capacidade do poder público de fortalecer a coordenação de governança para o urbanismo social deve ser pensada a partir
intersetorial e de estreitar seus laços com a sociedade civil local, da realidade de cada território, em diálogo próximo com os atores
além de garantir a continuidade dos investimentos necessários envolvidos no processo.
ao longo do tempo.
Sendo assim, em vez de algo pronto, apresentaremos a seguir
Para alcançar tais objetivos, é de interesse do poder público pro- algumas diretrizes para a construção de um modelo de governança
mover mudanças significativas na maneira como as políticas para que permita enfrentar os desafios elencados acima e dar um salto de
o território são planejadas, implementadas e avaliadas. A esses ! qualidade na capacidade de implementação das ações planejadas
arranjos formais e informais de interdependência entre diferentes no âmbito de projetos de urbanismo social. Essas diretrizes foram
PARA SABER MAIS, VER:
atores estatais e não estatais que produzem e implementam as elaboradas no âmbito do projeto de cooperação entre o Pacto pelas
▸ Capítulo 15 (Casos
políticas públicas no território chamamos de governança . 1
Referenciais) Cidades Justas e a Prefeitura Municipal de São Paulo a partir de
um extenso trabalho de levantamento sobre o funcionamento das
! instâncias de participação local nos territórios-alvo no diagnóstico
PARA SABER MAIS, VER: sobre a governança dos Centros Educacionais Unificados, bem
▸ Comitê das Bacias como nos estudos de benchmark a respeito dos principais casos
1  MARQUES, Eduardo. Government, political actors and governance in urban poli- Hidrográficas dos Rios
cies in Brazil and São Paulo: concepts for a future research agenda. Brazilian Political
de referência: Medellín; Compaz e Porto Digital, no Recife; Comitê
Piracicaba, Jundiaí e
Science Review, [s. l.], v. 7, p. 8-35, 2013. Capivari (PCJ). das Bacias Hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, no
STOKER, Gerry. Governance as theory: five propositions. International Social
Estado de São Paulo (CBH-PCJ).
Science Journal, [s. l.], v. 50, p. 17-28, 2002. DOI 10.1111/1468-2451.0010.
82 83
Guia de Urbanismo Social Capítulo 04 : Dimensão Governança

4.3_ EIXOS PARA CONSTRUÇÃO


DE UMA BOA GOVERNANÇA
TERRITORIAL
aconteçam na ordem em que têm que acontecer e que haja efetiva
ação intersetorial no enfrentamento dos problemas.

Por fim, é necessário garantir o accountability, ou seja, a transpa-


rência no processo e a responsabilização contínua daqueles que
Estudos sobre governança2 estabelecem três principais eixos
participam da estrutura de governança. Tal prática se dá de duas
que devem orientar o desenho de um modelo dessa natureza que
maneiras principais. A primeira é interna, e se manifesta na medida
produza bons resultados.
em que os atores que compõem a rede de governança necessitam
dar satisfações uns aos outros na condução das atividades do
Em primeiro lugar, um arranjo de governança deve ser capaz de
cotidiano. A segunda é externa, e refere-se à prestação de contas
produzir um planejamento compartilhado, ou seja, que todos os
da estrutura de governança à população do território, aos órgãos
atores envolvidos no desenho das políticas públicas participem
de controle e à sociedade como um todo.
de sua construção e estejam cientes de quais objetivos devem
ser perseguidos no curto, médio e longo prazo. Esse planejamento
Ambas as formas de accountability são vitais para garantir a con-
definido no e com o território deve ser efetivamente transmitido
tinuidade do projeto no tempo, considerando as descontinuidades
às instâncias superiores de todas as organizações envolvidas na
administrativas que são características do regime democrático no
governança, de modo que o plano local esteja contemplado nos
Brasil. O fortalecimento do accountability interno fortalece o senso
instrumentos centrais de planejamento físico e orçamentário. Para
de responsabilidade dos gestores públicos locais e da burocracia
o poder público, isso significa que instrumentos de planejamento
de nível de rua perante o projeto e a sociedade civil envolvida. A
como planos setoriais, planos regionais, planos estratégicos, Plano
▸ Burocracia de nível cobrança entre pares torna mais difícil que o novo gestor de um
Plurianual e Lei Orçamentária Anual devem trazer de maneira de rua se refere ao
equipamento público local adote práticas muito diferentes daquelas
explícita o planejamento pactuado nos territórios-alvo dos proje- servidores públicos
que atuam diretamente pactuadas. Já o accountability externo mantém o projeto em evi-
tos de urbanismo social, de forma a garantir a priorização dessas
no atendimento à dência perante a população local e à sociedade como um todo ao
ações em face do imenso conjunto de demandas com as quais as população — são a face
do Estado em contato
longo do tempo, criando novos constrangimentos que favorecem
secretarias têm de lidar no dia a dia.
com os cidadãos. a continuidade das ações pactuadas.

Uma boa estrutura de governança deve também favorecer uma


implementação coerente e coordenada das ações pactuadas na
etapa do planejamento. A implementação será coerente se seguir,
PRINCIPAIS DIRETRIZES PARA A
sempre que possível, o planejamento estabelecido, sendo que os
CONSTRUÇÃO DE UM MODELO DE
inevitáveis ajustes no planejamento original devem ser feitos de
GOVERNANÇA
modo integrado, com a participação e a ciência de todos os atores
envolvidos. A dimensão da coordenação refere-se à capacidade
▸ Planejamento compartilhado;
das diversas áreas responsáveis pela implementação das ações
de compartilhar conhecimento técnico, protocolos e recursos na ▸ Implementação coerente e coordenada das ações pactuadas na etapa
condução das atividades planejadas, garantindo que as ações do planejamento;

▸ Accountability ou transparência no processo e responsabilização contínua


2  PIERRE, Jon; PETERS, Guy. Governing complex societies: trajectories and scena- daqueles que participam da estrutura de governança.
rios. Houndmills, Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2005. ISBN 978-0-230-51264-1.
84 85
Guia de Urbanismo Social Capítulo 04 : Dimensão Governança

4.4_ DIAGNÓSTICO DOS PRINCIPAIS


PROBLEMAS DE GOVERNANÇA
BAIXO NÍVEL DE
PARTICIPAÇÃO COMUNITÁRIA

Como consequência do problema apontado anteriormente, verifi-


A modelagem de uma estrutura de governança orientada pelos ca-se um alto nível de fragmentação e um baixo grau de institu-
eixos apresentados anteriormente deve partir da consolidação cionalidade das instâncias de participação social nos territórios. A
do diagnóstico dos principais problemas e lacunas da estrutura atuação nas instâncias formais de participação, como o conselho

!
atual em cada território. Com base nos levantamentos conduzidos participativo ou os conselhos gestores de equipamentos públicos,
pela equipe do Pacto pelas Cidades Justas nos três territórios que não é vista pelas lideranças públicas locais como estratégica na
foram objeto de intervenção na cidade de São Paulo, foi possível PARA SABER MAIS, VER: busca por soluções para o território, uma vez que essas instâncias
identificar quatro problemas principais relacionados à governança ▸ Capítulo 5 (Dimensão não têm se mostrado capazes de fornecer respostas efetivas para
Territorial), sobre
naquele contexto. Esses problemas, embora detectados no processo a elaboração de
os problemas. Em tal contexto, as lideranças comunitárias do
de diagnóstico de três casos específicos, tendem a se reproduzir diagnóstico local. território também têm dificuldade de mobilizar pessoas em torno
em outros contextos de vulnerabilidade social, razão pela qual de objetivos coletivos.
iremos discuti-los a seguir.
POUCA INTEGRAÇÃO DAS
Entretanto, recomendamos que cada processo de intervenção POLÍTICAS LOCAIS
territorial tenha sua etapa própria de diagnóstico dos problemas de
governança, de modo que o processo de modelagem seja conduzido Os funcionários do poder público responsáveis pela implementação
de maneira mais adaptada ao contexto local. das políticas públicas na ponta têm pouca interação significativa
entre si na formulação, construção ou implementação de políticas.
BAIXA RESPONSIVIDADE ÀS Há uma dificuldade do poder público de engajar esses servidores
DEMANDAS LOCAIS em torno de objetivos comuns, bem como de estabelecer uma
escuta ativa e contínua dos funcionários. Essa integração torna-se
A baixa capacidade de resposta das diversas secretarias municipais ainda mais difícil quando envolve quadros de diferentes níveis de
às demandas apresentadas pela população tem gerado um forte governo (estadual e municipal) que atuam no mesmo território.
sentimento de frustração, apatia e descrédito em relação ao poder
público nas favelas. Décadas de demandas ignoradas, promessas DESCONTINUIDADE
não cumpridas e intervenções que levam muito mais tempo para POLÍTICO-ADMINISTRATIVA
ocorrer do que deveriam fizeram com que as lideranças e a popu-
lação em geral nutram um forte sentimento de desconfiança em As mudanças políticas oriundas de eleições ou trocas de secreta-
relação ao poder público e à própria possibilidade de mudanças riado ou subprefeitos costumam levar a alterações relativamente
significativas na qualidade de vida no território. Nesse cenário, frequentes da equipe responsável pela direção de equipamentos
a mobilização da população local em torno de um projeto de ur- públicos vitais para o sucesso do projeto de urbanismo social.
banismo social participativo como o proposto neste Guia é tarefa
especialmente desafiadora.

86 87
Guia de Urbanismo Social Capítulo 04 : Dimensão Governança

4.5_ DIRETRIZES PARA A MODELAGEM


DE UMA BOA GOVERNANÇA
TERRITORIAL
é fundamental que as decisões tomadas tenham consequências,
refletindo no trabalho de todas as secretarias envolvidas.

COORDENAÇÃO INTERSETORIAL

Com base nos problemas aqui apresentados, estabelecemos as


Um planejamento comum e compartilhado entre as equipes téc-
seguintes diretrizes de modelagem para um novo sistema de
nicas locais de todas as secretarias com presença no território é
governança local compartilhada:
um primeiro passo importante no sentido de construir uma coor-
denação intersetorial mais robusta. Outro passo fundamental diz
PACTUAÇÃO CLARA DE OBJETIVOS
respeito à criação de instâncias de coordenação intersecretarial
na escala territorial e na escala central em torno de temas de
Os objetivos comuns a serem perseguidos no âmbito do projeto
natureza intersetorial. Desafios concretos e de interesse comum
de urbanismo social no curto, médio e longo prazo devem ser de
tendem a facilitar o início de um processo mais amplo de integra-
conhecimento de todos os atores do território e, ainda, ser objeto
ção de políticas públicas. Um exemplo de desafio desse tipo é o
de priorização no planejamento físico e orçamentário de cada pasta.
de proteção da primeira infância, que mobiliza áreas tão diversas
Esse processo de priorização é fundamental não apenas para dar
quanto Saúde, Educação, Assistência e Desenvolvimento Social,
orientação integrada às equipes técnicas locais e facilitar o pro-
Segurança Pública, além dos Conselhos Tutelares.
cesso de coordenação intersetorial no território como também para
garantir que haja recursos orçamentários para financiar as ações
APOIO À MOBILIZAÇÃO COMUNITÁRIA
pactuadas com os atores da comunidade em questão, garantindo
responsabilidade e diminuindo o sentimento de frustração da socie-
Para além dos mecanismos formais de participação, é preciso
dade civil local. Nesse sentido, é fundamental que o planejamento
estabelecer incentivos para a mobilização comunitária mais ampla,
não seja apenas uma “lista de desejos” irrealista, mas constitua, isto
que permita integrar ao processo de urbanismo social pessoas
sim, uma programação de ações possíveis de serem implementadas
que não têm experiência prévia com processos de construção
nos tempos previstos e com os recursos disponíveis.
coletiva. Para tanto, é importante empoderar lideranças locais e se
apoiar nas microrredes dos atores que já estão mobilizados, além
CENTRALIZAÇÃO DOS PROCESSOS
de identificar temas que têm o potencial de mobilizar pessoas no
PARTICIPATIVOS LOCAIS
território. Ações de urbanismo tático, por exemplo, têm o potencial
de mobilizar novas pessoas em torno de processos mais complexos
A fragmentação de espaços de participação social no território
de planejamento comunitário.
desmobiliza a população local e pulveriza a energia comunitária
em torno de diversos pequenos conselhos sem poder efetivo de
COMPARTILHAMENTO DA GOVERNANÇA
influenciar as políticas públicas na área em questão. Combater essa
COM A SOCIEDADE CIVIL
fragmentação de espaços participativos requer a concentração de
recursos institucionais e de mobilização de modo a fortalecer um
As experiências bem-sucedidas de governança em urbanismo
fórum que de fato seja reconhecido no território como interlocutor
social demonstram que formas inovadoras de parceria com a
na definição e monitoramento das políticas públicas para a localida-
sociedade civil costumam render bons frutos. No caso do Porto
de. Tal fórum deve ser intersetorial; neles, o planejamento do bairro
Digital de Recife, referência no modelo de governança, a direção
como um todo é debatido e deliberado. Para que seja fortalecido,
88 89
Guia de Urbanismo Social Capítulo 04 : Dimensão Governança

do equipamento público é tripartite e compartilhada entre


governo, academia e sociedade civil. Em São Paulo, um Termo
de Parceria poderia instituir a sociedade civil como guardiã do
4.6_ OBJETIVOS, INSTÂNCIAS E
INSTRUMENTOS

Plano de Ação Local e empoderá-la para atuar como responsável Com base nas diretrizes e nos eixos elencados, é possível propor
formal por seu monitoramento. um modelo de governança que englobe o uso de instrumentos
de planejamento existentes e a criação de novas instâncias de
A figura a seguir resume essa construção das diretrizes de mo- coordenação de modo a reunir os atores relevantes em torno de
delagem a partir da consolidação do diagnóstico dos principais objetivos específicos relacionados à construção e implementação
problemas da governança nos territórios: de um projeto de urbanismo social. A figura a seguir traz propostas
de instrumentos e instâncias pensados a partir dos três eixos da
boa governança: planejamento compartilhado, implementação
coerente e coordenada e accountability.
INFOGRÁFICO 01:
PROBLEMAS E DIRETRIZES PARA GOVERNANÇA LOCAL
INFOGRÁFICO 02:
OBJETIVOS, INSTRUMENTOS E INSTÂNCIAS DE
PROBLEMAS DIRETRIZES COORDENAÇÃO DO MODELO DE GOVERNANÇA
retângulo

RESPONSIVIDADE ÀS DEMANDAS SOCIAIS OBJETIVOS PACTUADOS


IMPLEMENTAÇÃO
Baixa capacidade de resposta às demandas apresen- Priorizar os objetivos pactuados no território no PLANEJAMENTO
COERENTE E ACCOUNTABILLITY
tadas pela população, gerando frustração e apatia. planejamento físico e orçamentário de cada pasta, COMPARTILHADO
COORDENADA
garantindo responsividade.
retângulo retângulo
▸ Unificar e integrar ▸ Implementar as ▸ Monitoramento
retângulo retângulo
o planejamento para políticas previstas no participativo da imple-
INTEGRAÇÃO DAS POLÍTICAS LOCAIS COORDENAÇÃO INTERSETORIAL
intervenções no território. planejamento de forma mentação do plano.
Dificuldade de engajar funcionários da ponta em Criar instâncias de coordenação intersecretarial na
torno de objetivos comuns. escala territorial e central em torno de temas de integrada. ▸ Garantir a
OBJETIVOS ▸ Garantir a priorização
natureza intersetorial (ex: primeira infância).
pelas diversas pastas ▸ Implementação do responsabilidade continuada
em seus respectivos planejamento pactuado do Poder Público pelos
retângulo retângulo
planejamentos físicos e sem descontinuidade. objetivos pactuados, mesmo
PARTICIPAÇÃO COMUNITÁRIA FOMENTO À MOBILIZAÇÃO E CENTRALIZAÇÃO orçamentários. com mudanças políticas.
Baixo nível de participação social, fragmentação e DAS INSTÂNCIAS PARTICIPATIVAS
baixo grau de institucionalidade das instâncias de
Criar incentivos para a mobilização comunitária e ▸ Plano de Bairro. ▸ Termo de Parceria ▸ Termo de Parceria com a
participação social.
concentrar recursos institucionais para fortalecer
▸ Programa de Metas, com a Organização da Organização da Sociedade
um fórum participativo que de fato seja reconhecido PROPOSTAS DE
no território. INSTRUMENTOS PPA, LOA, Planos Setoriais. Sociedade Civil (OSC). Civil (OSC).

▸ Protocolos específicos ▸ Observatório local.


retângulo retângulo para políticas integradas.
DESCONTINUIDADE GOVERNANÇA COMPARTILHADA
Descontinuidade político-administrativa relacionada Estabelecer parceria com a sociedade civil para atuar
▸ Conselho Gestor do ▸ Comitê intersecretarial ▸ Conselho Gestor do Plano
aos ciclos eleitorais. como guardiã do planejamento e como responsável
por seu monitoramento. Plano de Bairro. de Urbanismo Social. de Bairro.
PROPOSTAS DE
INSTÂNCIAS DE ▸ Núcleo de
▸ Comitê intersecratarial ▸ Núcleo de
retângulo COORDENAÇÃO
Fonte: Pacto pelas Cidades Justas. retângulo de Urbanismo Social. Desenvolvimento Local Desenvolvimento Local (em
(em parceria com a OSC). parceria com a OSC).

Fonte: Pacto pelas Cidades Justas.


90 91
Guia de Urbanismo Social Capítulo 04 : Dimensão Governança

No eixo do planejamento compartilhado, órgãos de coordenação territorial do poder coerente a execução das políticas previstas fornecendo apoio e aconselhamento técnico
temos como objetivos principais a unificação público em torno da pactuação de objetivos no planejamento de forma integrada e a não no desenho de projetos urbanos e protocolos
e integração do planejamento das interven- compartilhados para a área em questão. descontinuidade em relação ao planejado. de integração de políticas.
ções no território e a garantia da priorização Os aprendizados e dificuldades naturais da
pelas diversas pastas em seus respectivos Mas o Plano de Bairro não deve ser o único etapa de implementação devem ser retroa- A coordenação do processo de implementa-
planejamentos físicos e orçamentários. A instrumento público de planejamento em limentados ao processo de planejamento; ção seria, dessa maneira, compartilhada por
função desse planejamento unificado é que as ações de desenvolvimento ter- contudo, não devem ser usados como pre- um Núcleo de Desenvolvimento Local, “braço
traduzir as ações estabelecidas no projeto ritorial pactuadas no urbanismo social textos para abandonar o projeto original. local” do poder público no território, e pela
de urbanismo social em um pacto entre estejam refletidas: como já foi dito, é fun- OSC. O Comitê Intersecretarial de Urbanismo
poder público e população local para o damental que o os planos estratégicos, o Há duas propostas de instrumentos para Social a que nos referimos no eixo anterior
curto, médio e longo prazo, tendo em vista Plano Plurianual (PPA), a Lei Orçamentá- atingir esses objetivos. Em primeiro lugar, também tem um papel a cumprir, facilitando
as demandas da área em questão, as prio- ria Anual (LOA) e os planos setoriais de é necessário estabelecer protocolos es- as negociações em torno da construção de
ridades político-administrativas da gestão políticas públicas garantam os devidos pecíficos para a integração de políticas. O protocolos integrados. Por fim, é importante
pública e a disponibilidade de recursos. recursos e esforços institucionais e polí- segundo instrumento representa uma das estabelecer fóruns de integração de políticas
ticos para que o planejamento territorial maiores inovações do modelo de gover- locais que reúnam as equipes técnicas do
No contexto paulistano em que tal proposta seja priorizado nos processos internos de nança proposto no âmbito do projeto do território em torno de desafios comuns, como
de modelo de governança está baseada, cada órgão do poder público. Para discutir Pacto pelas Cidades Justas com a Prefei- no exemplo da proteção da primeira infância
compreendeu-se que o melhor instrumento a incorporação do planejamento territorial tura Municipal de São Paulo. Trata-se do mencionado antes.
para consolidar esse planejamento unifi- no planejamento central das secretarias, estabelecimento de um Termo de Parceria,
cado é o Plano de Bairro, um dispositivo pleitear e decidir a destinação de recursos baseado no Marco Regulatório das Organi- Por fim, no eixo de accountability, temos
que tem como base a participação da po- oriundos de fundos públicos e dar visibi- zações da Sociedade Civil (MROSC), com como objetivos a viabilização do monito-
pulação no planejamento da cidade e que lidade ao projeto por parte do chefe do organizações sem fins lucrativos (OSC) que ramento participativo da implementação
está previsto em diversos Planos Diretores Executivo deve existir um fórum de alto possam colaborar de diversas maneiras do plano e a garantia da transparência do
municipais. No entanto, diferentes instru- nível que congregue funcionários de médio com o processo de implementação, moni- processo e responsabilização contínua do
mentos poderão ser adotados em outros e alto escalão das secretarias envolvidas toramento e avaliação do urbanismo social Poder Público pelos objetivos pactuados,
contextos, a depender das possibilidades no projeto de urbanismo social. Nessa pro- nos territórios. mesmo com mudanças políticas. O Termo
e institucionalidades locais. posta denominamos tal instância “Comitê da Parceria com a OSC é instrumento-chave,
Intersecretarial de Urbanismo Social”. A organização ou rede de organizações a sendo a responsabilidade pelo monitora-
A criação do Plano de Bairro ou outro serem selecionadas teriam experiência em mento do plano um dos objetivos principais
instrumento integrado de planejamento Uma vez pactuados os objetivos e concluído mobilização social e gestão intersetorial e da construção de tal parceria. Caberá às
territorial deve ser conduzida por uma o processo inicial de planejamento territo- capacidade de articulação com os atores do OSCs selecionadas construir estratégias de
instância de coordenação e participação rial, entramos na etapa de implementação. território. Essa OSC pode atuar sensibilizan- monitoramento e avaliação na forma de um
com enfoque territorial. No caso de São Uma implementação coerente e coordenada do e mobilizando os atores do território em “observatório local”, acompanhando de perto
Paulo, tal instância foi denominada Con- deve prever espaço para aprendizados e torno da implementação do plano, incluindo as ações do projeto, reunindo dados e dando
selho Gestor do Plano de Bairro. É esse o acomodações, que, por sua vez, devem ser equipes técnicas, associações de bairro e publicidade à atualização dos indicadores
fórum que permitirá centralizar o processo compartilhadas na rede de governança. As- movimentos sociais locais, somando esfor- de impacto. Em parceria com o Núcleo de
de participação no território, reunindo a sim sendo, temos como principais objetivos ços de coordenação aos do poder público. Desenvolvimento Local, serão elaborados
sociedade civil local, equipes técnicas e os no eixo de implementação coordenada e Outra maneira como a OSC pode contribuir é ainda relatórios periódicos de prestação

92 93
Guia de Urbanismo Social Capítulo 04 : Dimensão Governança

de contas, os quais chegarão às instâncias


de coordenação responsáveis pelo controle
do processo no território.
4.7_ MOBILIZAÇÃO E PROTAGONISMO
COMUNITÁRIO

Falar sobre estratégias de participação comunitária é pensar o


Como foi possível notar, a governança de um território não apenas como espaço urbano: é considerá-lo também
projeto de urbanismo social não diz respeito em sua condição de território de direitos, onde espaço, seres e sub-
apenas às esferas com atuação específica jetividades compõem uma organização para um bem viver coletivo.
nos territórios-alvo. Ela envolve também as
estruturas de coordenação central das se- Talvez o motivo determinante para uma comunidade se mobilizar
cretarias e do poder público como um todo. ou não seja o quanto ela se identifica com o território em questão,
sobretudo em áreas de ocupações, nas quais há muita rotatividade
em função das precárias condições de habitação. Moradores de
territórios periféricos são afetados pela rotina exaustiva de trabalhar
longe de casa, o que gera anseio por mudanças, todavia não possi-
bilita brechas para uma vivência mais intensa das questões locais.
O bairro é muitas vezes apenas o território de moradia, o lugar para
o qual se retorna no fim do dia, não permitindo o estabelecimento
de vínculos sociais mais profundos.

Por isso, ao lidar com mobilização é necessário primeiro aproximar


a população do sentido de território; promover a identificação
local, pois haverá baixo engajamento se o objetivo principal for
apenas individual — ou seja, melhorar a própria vida para sair dali.
O território precisa ser mais do que uma delimitação geográfica
sobre a qual recai uma proposta de transformação: há um sentido a
ser construído. A peça-chave de todo esse processo são os atores
envolvidos e suas expectativas em relação àquele espaço em
que vivem. A relação das pessoas na construção de um território
pressupõe identidade com o lugar e o que viver ali representa
para elas. A participação comunitária, portanto, não pode ser
traduzida em uma receita e sim em estratégias que precisam se
moldar às questões socioespaciais de maneira a fortalecer as
potências locais a fim de que possam contribuir com o processo
de forma autêntica e estimulante. Também é importante perceber
o que freia a participação, como o descrédito no próprio potencial
individual e a falta da vivência de coletividade.

94 95
Guia de Urbanismo Social Capítulo 04 : Dimensão Governança

Outro elemento que dificulta a mobilização comunitária em ter-


MOBILIZAÇÃO COMUNITÁRIA E
ritórios periféricos é uma espécie de “cultura da ruptura” que
PLANEJAMENTO TERRITORIAL: REFLEXÕES
predomina nesses locais. Como por muito tempo eles não foram
A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DO
o foco do poder público, passaram-se longos períodos sem que se
JARDIM LAPENA
conseguisse algo concreto capaz de servir de estímulo à participação
comunitária — ou, como é bastante comum, alcançando coisas pela
O Jardim Lapena, um dos três territórios com atuação do Pacto pelas
metade. Nada se conclui, ou seja, o provisório quase sempre se
Cidades Justas em São Paulo, tem uma longa história de mobilização
torna permanente nesses locais. Isso, sem contar a demora, às
social, iniciada por líderes comunitários em 1965.
vezes de gerações, para se obter alguma transformação. Sendo
assim, encontra-se nessas áreas uma complexidade de problemas Na última década, a mobilização popular no local foi responsável por
que só se resolverão a partir de um olhar interdisciplinar e inter- conquistas importantes, como a construção dois CEIs (Centro de Educação
setorial por parte da gestão pública, aliado com a participação Infantil), uma UBS (Unidade Básica de Saúde), um acesso ao bairro pela
comunitária, capaz de alcançar camadas que uma ação de melhoria estação São Miguel da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropoli-
pensada somente pelo poder público jamais alcançaria, dadas as tanos) — que não constava no projeto original da nova estação — além de
especificidades locais. melhorias expressivas no saneamento básico e na coleta de resíduos sólidos.

Em 2017, o Jardim Lapena iniciou o processo de construção do seu Plano


Apesar dos desafios a serem superados, implementar projetos
de Bairro, cujo objetivo era conectar as ações de participação comunitária
baseados no urbanismo social no Brasil é uma abordagem pro-
já existentes com um instrumento de planejamento urbano estabelecido
missora. Medellín constitui uma referência que traz esperança
pelo poder público. Sua metodologia de construção foi desenvolvida em
de que é possível fazer grandes mudanças nos territórios de
parceria com moradores e organizações locais e contou com a composição
favelas e periferias, com base em um trabalho focado na me-
de um grupo fixo de participação, mas com entrada sempre aberta, deno-
lhora das condições de vida dos moradores desses espaços e no
minado Colegiado Plano de Bairro Jardim Lapenna, o que gerou sentido
desenvolvimento local.
de protagonismo e identidade ao movimento de transformação local.

Não existe, sublinhe-se, uma receita para a participação comunitária,


no entanto é possível afirmar: ninguém melhor do que uma comunidade
ribeirinha, por exemplo, para saber o que de fato faz diferença para quem
vive em beiras de rios; ninguém melhor do que um jovem da periferia de
uma grande cidade para saber qual política pública atende seus anseios
e os de seus pares; ou seja, quem vive as adversidades e dinâmicas locais

! são os melhores consultores para qualquer projeto local. Essa é a riqueza


da participação comunitária: abrir espaços para as diferentes vozes,
PARA SABER MAIS, VER: descentralizar planejamentos e decisões e, sobretudo, estabelecer uma
▸ Fundação Tide governança territorial, na qual cada um tem o seu papel e os cidadãos
Setubal. 2019. podem realmente se reconhecer como sujeitos políticos da sua cidade.

96 97
Guia de Urbanismo Social Capítulo 04 : Dimensão Governança

EXEMPLOS DE INICIATIVAS COMUNITÁRIAS: AÇÕES COOPERATIVAS ACADEMIA-


A MARÉ QUE QUEREMOS, O SONHO QUE COMUNIDADE-ESCOLA PÚBLICA NO JARDIM
MOVIMENTA A LUTA ÂNGELA

A Maré que Queremos é um conjunto de mo- 3_ Regularização das Ruas: Propõe-se a ga- O conjunto de três intervenções apresentadas a seguir tem como âncora a
vimentos que buscam articular ações estrutu- rantir o reconhecimento dentro do processo Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Chácara Sonho Azul, locali-
rantes a partir da mobilização, do envolvimento de urbanização dos espaços e territórios do zada no Fundão do Jardim Ângela, periferia da zona sul de São Paulo — um
e do fortalecimento de agentes atuantes no conjunto de 16 favelas da Maré e incidir, de modelo de escola-comunidade, sob direção e coordenação pedagógica de
contexto territorial das dezesseis favelas do maneira política, na garantia e na efetivação de Antonio Norberto Martins, Shirlei do Carmo e Kelly Batista. Tais iniciativas,
Complexo da Maré e que impactam de modo uma gestão pública que promova a regularização idealizadas e construídas entre os anos 2016 e 2017, se estruturam pela
direto na qualidade de vida dos moradores. Ele das comunidades. Desse modo, é incentivada a compreensão do ensino acadêmico associado à pesquisa permanente e
se baseia em três iniciativas estruturantes que inclusão urbana definitiva em equilíbrio com a como ponte inexorável de atividades de extensão com ações reais no local.
caminham juntas: natureza e o meio ambiente, junto com projeto
Por meio de construção de relação e colaboração entre os professores
Maré Verde. Em julho de 2021, o Programa de
1_ Fórum das Associações dos Moradores/ FAM: Vera S. Luz e Antonio Fabiano Jr, alunos e alunas do último ano do curso
Engenharia Ambiental (PEA-UFRJ) convidou a
Reúne-se mensalmente, desde 2010, visando à de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Campinas e lideranças comunitárias
comunidade para participar do seminário “Segun-
melhoria da qualidade de vida dos moradores da do Jardim Ângela, o desafio a ser pensado e continuamente reformulado
das Ambientais”, a partir do trabalho realizado
região nas mais diferentes áreas, especialmente foi a perspectiva do alargamento democrático, atrelada a processos de
pelo Maré Verde — Campanha Climão.
no âmbito da política urbana, direito socioam- formação do ser político técnico-científico.
biental, educação, saúde e segurança pública. As metodologias das ações do projeto Maré que
Dentro do escopo do Trabalho Final de Graduação (TFG), ao longo de
Em tais encontros, são identificadas e debatidas Queremos envolvem produções de diagnósticos
dois anos alunos e alunas daquela instituição universitária elaboraram
diferentes reivindicações da população local, e conhecimento, mobilização e formação de dife-
um projeto urbano em escalas sucessivas — metropolitana, regional e
promovendo o fortalecimento de lideranças rentes grupos, coletivos, iniciativas e atores locais
local — e desenvolveram projetos de arquitetura compromissados com o
comunitárias e iniciativas do território, aproxi- estratégicos na articulação de diferentes redes de
território escolhido. Esses direcionamentos propositivos geraram também
mando-as dos representantes do poder público. parcerias, incidência política e práticas.
atuações efetivas junto à comunidade, da pequena escala local à sistêmica,
2_ Missão em Foco: Busca apoiar jovens, suas Abordar as realidades mareenses a partir de uma articulando essas ações concretas como horizonte possível. Vislumbrou-se
iniciativas e fazeres, que pensam no desenvolvi- perspectiva de interseccionalidade implica que também uma reflexão crítica e propositiva e, em certa medida, um apoio aos
mento territorial da Maré. A partir dessa articu- as políticas públicas considerem os impactos modos e formas de articulação da parceria academia-comunidade como
lação em rede e de processos de formação — o distintos que são gerados em relação ao terri- modelo de participação comunitária, para o fortalecimento dos sistemas
que inclui ferramentas para o desenvolvimento tório, classe social, etnia e meio ambiente, entre de estabelecimento de programa de necessidades, projeto e gestão.
de projetos e gestão de equipes —, o propósito é outros. Além disso, que levem ao reconhecimento
Dentre as atividades propostas realizadas figuraram:
contribuir para que tais ações sejam ainda mais territorial e ao direito à cidade, possibilitem e
potentes e próximas do que almejam. A iniciativa condicionem as práticas de desenvolvimento. ▸ O desenvolvimento de forro térmico no galpão da escola, iniciado e concluído em

é do Itaú Social, Redes da Maré e Projeto Maré Assim, figuram no radar do diálogo: informação, 2016, estruturado em três etapas: i) campanha de recolhimento de isopor utilizado na

que Queremos. O último Missão em Foco ocorreu participação e mobilização, urbanismo, susten- FAU/PUC-Campinas para os trabalhos acadêmicos dos alunos ao longo de um ano;

em 2020 e, no momento (outubro de 2022), não tabilidade, regularização urbana, equipamentos ii) instalação de duas faixas desse material sobre tecidos de chita atirantados para

há previsão de abertura de novas inscrições para comunitários, integração ambiental e gestão proteção térmica da cobertura da área coletiva da escola; iii) instalação completa

o processo de mentoria. comunitária, entre outros temas. do forro da cobertura;


98 99
Guia de Urbanismo Social

▸ Aperfeiçoamento do ateliê de artes da escola, iniciado e concluído em 2016,


estruturado em duas etapas: i) criação de crowfunding para arrecadação
de valores em dinheiro para a aperfeiçoamento de ateliê de arte para a
comunidade dentro da EMEI Chácara Sonho Azul; ii) acompanhamento
técnico de restauração de sistema de esgotos e instalação de pia de
trabalho no ateliê de arte e educação da EMEI Chácara Sonho Azul;

▸ Plantio de árvores de espécies nativas da Mata Atlântica em área pública


para criar espaço de estudo ambiental, convívio e sombreamento para
atividades comunitárias da escola, em 2017. Essa iniciativa foi realizada
em três etapas e fez parte da programação da 11ª Bienal Internacional de
Arquitetura de São Paulo: i) preparação de terreno em área verde pública
contígua à EMEI Chácara Sonho Azul para cultivo de horta educativa em
extensão à atividade já existente; ii) construção de um muro na área que,
antes, em projeto, estava destinada à praça pública aberta. Construir
um muro na cidade já tão segregada e confinada, onde a disputa pelo
território urbano é fato declarado, constante e intrínseco em sua lógica,
se apresentou necessário como posicionamento coletivo no propósito da
sua preservação; como ato de resistência à grilagem praticada em área
contígua; como resposta necessária para a luta diária; iii) Plantio em
mutirão com a comunidade.

Tais atividades foram premiadas no 23º Prêmio IAB (Instituto de Arquitetos


do Brasil) – 2022, categoria Urbanismo, Planejamento e Cidade. Mais do
que isso, ainda reverberam em ações no território, com a professora Vera
S. Luz integrando a comissão do Fórum Fundão das Águas, em defesa
da represa Guarapiranga, o Fórum de Pesquisadores do M’Boi Mirim e o
Fórum em Defesa da Vida, da Sociedade Santos Mártires.

100
Capítulo 05 : Dimensão Territorial

05_ 5.1_ DIAGNÓSTICOS TÉCNICO-TERRITORIAL


E SOCIAL-PARTICIPATIVO

DIMENSÃO TERRITORIAL RECONHECIMENTO E PERTINÊNCIA:


UMA ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR
E PARTICIPATIVA SOBRE O TERRITÓRIO

O urbanismo social tem duas características fundamentais em


5.1_ Diagnósticos técnico-territorial
seu processo de transformação das favelas e áreas de maior
e social-participativo
vulnerabilidade social visando a sua qualificação.

5.2_ Dados em territórios informais


A primeira delas é o reconhecimento, característica que, por meio
de uma jornada exploratória e crítica sobre diferentes aspectos
5.3_ Mapeamento de territórios
relacionados à condição local, é responsável pela identificação
invisibilizados
e reflexão sobre as principais questões presentes no território.
Orientada por uma abordagem multidisciplinar e territorializada
5.4_ Identificação de
sobre diferentes temas e políticas setoriais, essa característica
potencialidades
ajuda a revelar as particularidades físicas e sociais do local e
sua situação atual de maneira integrada, constituindo-se numa
5.5_ Processos de urbanização
fotografia sobre a realidade imediata da comunidade.

5.6_ Desenho urbano e urbanismo


A segunda característica é a pertinência, um complemento essencial
tático
à primeira, pois o reconhecimento da realidade local, de acordo
com a abordagem proposta pelo urbanismo social, é inseparável do
5.7_ Espaços públicos, de
AUTORES olhar de quem vive o cotidiano da área. A pertinência, nesse sentido,
convivência e áreas verdes
compreende uma abordagem inclusiva que valoriza a perspectiva
5.1_ 5.2_ 5.4_ 5.5_ 5.7_ Diagonal;
da própria comunidade, que, ao explorar as questões presentes em
5.3_ Adriano B. Costa e Evandro L. Alves 5.8_ Equipamentos públicos e
seu território, identifica as principais demandas e potencialidades
(Portal de Dados Urbanos Insper); sociais e equipamentos-âncora
do local, além de conferir ao futuro das intervenções o devido
5.6_ Diagonal e Núcleo Arquitetura e
pertencimento comunitário.
Cidade; 5.9_ Tópicos em mobilidade urbana
5.8_ Murilo Cavalcante e Núcleo Urba-
nismo Social; LEITURA TÉCNICA PRELIMINAR
5.10_ Tópicos em habitação social
5.9_ Núcleo Mobilidade Urbana;
5.10_ Núcleos Habitação & Real State e Em geral, o reconhecimento do território tem seu início na leitura
de Urbanismo Social; 5.11_ Tópicos em segurança pública
técnica multidisciplinar. Seu olhar exploratório é responsável
5.11_ Núcleo Mulheres e Territórios
pela reunião dos primeiros dados e indicadores sobre os temas e
(5.11.1) e Murilo Cavalcante (5.11.2).
políticas setoriais de interesse, organizando, em suas respectivas
BOX Urbanismo social e Arquitetura
dimensões, uma leitura preliminar sobre o território que será objeto
Popular: Nadia Somekh (CAU-BR)
103
Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

Do ponto de vista prático, essas duas características, reconhecimento pesquisas territoriais com dados continuamente atualizados é de
e pertinência, estão reunidas na abordagem que orienta o processo de grande relevância para a formulação do diagnóstico técnico, seja
elaboração do diagnóstico técnico-territorial e sócio-participativo. Base para uso no desenvolvimento de Planos de Ação Local, Planos de
para o planejamento das intervenções, o diagnóstico deve ser compre- Bairro e exposição no diálogo com a comunidade local, seja na
endido como um exercício de construção coletiva, conciliando análises
técnicas e práticas do cotidiano para identificar os principais problemas
! formulação de políticas públicas e ações visando à qualificação
dos territórios mais vulneráveis.
presentes no território. O objetivo principal é que o diagnóstico organize PARA SABER MAIS, VER:

uma leitura integral dos fatores que interferem na qualidade de vida das ▸ Insper Metricis. A LEITURA COMUNITÁRIA E VIVÊNCIA LOCAL
lupa na cidade: Painel
pessoas e sua relação, contribuindo para a fundamentação das propostas
de indicadores de
de intervenção e tomada de decisão. desenvolvimento Embora os processos de intervenção urbana tragam, atualmente,
de áreas urbanas componentes participativos em suas discussões, o urbanismo
vulneráveis. 2021;
social apresenta uma ruptura com os modelos de intervenção
▸ Rede Nossa São Paulo.
das intervenções. Aqui teremos as primeiras impressões sobre o mais fechados, optando pela valorização da experiência local e
Mapa da desigualdade.
local, o que auxiliará na identificação de questões prioritárias para 2021; pelo engajamento deliberativo das comunidades na elaboração
discussão coletiva e aprofundamentos. ▸ PMSP Geosampa. dos projetos de intervenção.
Mapa digital da cidade
de São Paulo;
Para a elaboração da leitura técnica, a equipe responsável tem Esse caráter deliberativo é o ponto disruptivo da abordagem
como fontes principais dados e documentos públicos já consoli- ▸ Pacto pelas Cidades proposta pelo urbanismo social, ao inserir o cidadão no centro
Justas. Diagnóstico
dados, como o Censo Demográfico ; diagnósticos setoriais (saúde,
1
participativo do processo de transformação de sua comunidade e pela sua
educação, assistência social etc.); e planos municipais (Plano para elaboração escala local. Por esse motivo, o engajamento e a participação
de projetos de
Municipal de Habitação, entre outros). A análise desses dados, de da comunidade são fundamentais desde o início. Ao considerar o
integração de políticas
maneira crítica e integrada, é o que permite localizar o território setoriais visando ao território enquanto ator de mudança, o urbanismo social estabelece
em seus diferentes níveis de necessidades, seja pela ausência de desenvolvimento local; uma camada humana no processo de leitura integrada dos aspec-
equipamentos públicos e serviços essenciais, ausência ou insufi- ▸ Fundação Tide tos que organizam a área em questão, refletindo em si a própria
Setubal. Territórios de
ciência de infraestrutura urbana básica, entre outros aspectos que organização social da comunidade.
direitos — Um guia para
compreendem a investigação. construir um Plano de
Bairro com base na Utilizando métodos de produção de dados primários sobre a vivência
experiência do Jardim
Objetivamente, trata-se de um exercício que situa o território em Lapena. 2019. local, tais como mapeamento de atores, mapas comunitários, rodas
relação aos principais temas e políticas setoriais de forma articulada de diálogo e pesquisas qualitativas, o componente participativo
com a cidade, auxiliando na identificação das condições externas e auxilia na construção do olhar em primeira mão sobre as principais
internas que configuram a condição de vulnerabilidade local. questões que caracterizam o cenário de vulnerabilidade das áreas,
bem como na identificação das demandas da população para o
As cidades brasileiras, em sua maioria, refletem, no uso do território, projeto de intervenção.
imensas desigualdades quanto ao acesso às diversas oportunidades.
As favelas são os territórios com maiores carências. O acesso às

1  Os dados do Censo Demográfico podem ser acessados em diferentes níveis terri-


toriais (distritos, bairros e setores). Ver: Sidra.

104 105
Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

5.2_ DADOS EM TERRITÓRIOS INFORMAIS que dificilmente os dados secundários poderiam fornecer. Essa
abordagem, focada na perspectiva das pessoas que residem
no território, é um olhar contextualizado e autêntico sobre as
principais questões que integram a leitura do diagnóstico. Tal
Um princípio para a implementação de um projeto de intervenção tipo de pesquisa, que tem a possibilidade de ser estruturada para
de qualidade em um território é o seu reconhecimento adequado. abordar questões objetivas do diagnóstico sobre diversos temas,
Para isso, é importante recorrer a dados fundamentados e bem não descarta a alternativa de ser realizada tanto individualmente
elaborados. Assim será possível o desenvolvimento de um bom — através de entrevistas com lideranças e pessoas de referência
diagnóstico e planejamento da intervenção. da comunidade — como de modo coletivo, com grupos focais que
tragam um olhar específico sobre determinadas questões, caso de
No entanto, um desafio comum na elaboração de um diagnóstico mulheres que tenham interesse em discutir questões de gênero,
técnico e participativo é a indisponibilidade de dados e informações ou de jovens focados nas perspectivas de mercado de trabalho.
sobre o território das comunidades. Em geral, não há uma variedade
de dados disponíveis sobre os diversos temas de uma investigação Além da pesquisa qualitativa, outro método de produção de dados
territorial como a proposta pelo urbanismo social. Esses dados, primários em conjunto com a comunidade é o mapeamento comu-
classificados como secundários, quando disponíveis, ainda correm o nitário, que consiste na identificação espacializada de questões
risco de estarem defasados, ou seja, em descompasso com o momento relevantes para o diagnóstico. Ele pode ser realizado com mapas
atual da comunidade. Isso pode comprometer a investigação e o impressos ou digitais e permite aos participantes a elaboração de
nível de planejamento das intervenções que buscam a melhoria de um exercício de reconhecimento sobre o território, contribuindo
suas condições na localidade. Além disso, há outras questões que para o desenvolvimento de uma perspectiva espacial a respeito
demandam informações mais qualificadas e atuais que esses dados das principais demandas e potencialidades do local.
não conseguem fornecer no nível de leitura que se pretende — como
é o caso das formas de acesso às políticas setoriais de saúde, edu-
cação e assistência social pela perspectiva da própria comunidade.

Diante desse desafio, a própria comunidade surge como um im-


portante recurso para produzir e organizar esses dados sobre
sua realidade. A produção de dados comunitários, nesse sentido, Pode-se, então, trabalhar na produção de dados primários, através do
é uma fonte importante de dados primários atualizados para a mapeamento comunitário e da pesquisa qualitativa em complementação
identificação de questões relevantes no território, auxiliando na aos dados secundários, quando existentes.
leitura e contribuindo para que o diagnóstico forneça os principais
elementos para o planejamento das intervenções futuras. Dessa
maneira, tanto a leitura técnica quanto a comunitária podem se valer
de métodos de coleta de dados primários que utilizem a perspectiva
da própria comunidade na produção de informações atualizadas.

Dentre as principais formas de produção desses dados, a pesquisa


qualitativa auxilia na compreensão de significados e situações

106 107
Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

5.3_ MAPEAMENTO DE TERRITÓRIOS


INVISIBILIZADOS
recorrente diferença entre as contagens populacionais realizadas
por diferentes fontes para uma mesma comunidade. Um exemplo
ilustrativo é a favela de Heliópolis, em São Paulo, que tem 65 mil
habitantes segundo o Censo de 2010, 180 mil segundo a subprefei-
O DESAFIO DA INFORMAÇÃO SOBRE AS FAVELAS E tura de Ipiranga, 140 mil moradores segundo a Secretaria Municipal
TERRITÓRIOS DE VULNERABILIDADE SOCIAL de Saúde e mais de 200 mil moradores segundo a UNAS, União
de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região,
Territórios ocupados pelas parcelas mais pobres da população organização da comunidade local. Ao competirem entre si, as
nas grandes cidades tendem a concentrar maior vulnerabilidade informações, avalizadas pelo poder público e de caráter oficial,
socioambiental, a estar localizados perto de lixões, aterros sani- acabam confundindo o tomador de decisão, gerando um cenário
tários, áreas inundáveis, plantas industriais. Somada à falta de de incerteza que pressiona os agentes a implementar soluções que
infraestrutura e serviços adequados, essa situação cria um cenário podem agravar os problemas, quando não os leva a se omitirem do
complexo, merecendo um olhar aprofundado de tomadores de de- dever de implementar soluções.
cisão nas esferas governamentais e da sociedade civil organizada.
Mas, analisando o problema mais de perto, torna-se fundamental Há várias causas possíveis para essa dificuldade de obter in-
também ressaltar que esses territórios não são negligenciados formações censitárias básicas sobre a população residente em
apenas pela falta de infraestrutura urbana e de serviços públicos: favelas. Destacamos, primeiramente, um problema relacionado à
eles padecem ainda de uma carência sistemática de dados confiáveis metodologia de pesquisa, dado que o Censo Demográfico trabalha
sobre a realidade local, que informem em maiores detalhes seus com amostras que nem sempre são representativas em escala
problemas e suas potencialidades. territorial mais local, comunitária — ou seja, informações sobre
bairros, comunidades, aldeias, vilarejos etc. Há também o problema
Para além dos já bastante conhecidos problemas relacionados à de, muitas vezes, ocorrerem intensos fluxos migratórios em tais
informalidade e à vulnerabilidade social, é importante também territórios, o que dificulta uma boa medição e um monitoramento
constatar que tais territórios são invisibilizados nos processos dessa medição nos espaçados intervalos de tempo entre uma
tradicionais de aplicação de metodologias de mapeamento e de pesquisa censitária e outra. Contudo, saltam aos olhos também
caracterização socioterritorial. Sua complexidade não está bem problemas que não são de natureza estritamente metodológica,
representada nos mapas e nos números oficiais e nem se encontram como a dificuldade de estruturar e interpretar de maneira coor-
bem representados os desafios vividos cotidianamente por seus denada os resíduos informacionais de atendimentos de políticas
habitantes. Isso acaba por dificultar muito uma tomada de decisão públicas presentes no território — isto é, a falta de “diálogo” entre
baseada em evidências que seja capaz de garantir a implementação o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), a UBS (Uni-
das soluções mais efetivas de transformação social, gerando um dade Básica de Saúde), as escolas etc.—, bem como a dificuldade
círculo vicioso de sobrevulnerabilização, especialmente para pessoas de implementar pesquisa de modo mais adequado em função do
que carregam no seu corpo grandes marcadores da diferença social controle que grupos civis armados exercem sobre a comunidade.
(pobres, mulheres, pessoas não brancas, pessoas LGBTQIA+ etc.).
E cabe destacar também que a incorporação de tecnologias de
Uma das dimensões desse problema de maior destaque em debates fronteira ao processo de coleta, produção e sistematização de
especializados e junto à opinião pública é a baixa representativi- informações em tais territórios é peça essencial na jornada de supe-
dade de pesquisas censitárias nas favelas, evidenciada por uma ração dessa situação de invisibilização informacional que estamos

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

diagnosticando aqui, no entanto, não é garantia de sucesso por si


mesma. A figura a seguir é ilustrativa da invisibilização também
existente em soluções high tech, destacando o forte “contraste car- ALGUNS EXEMPLOS PODEM SER LISTADOS
tográfico” na comparação entre as mesmas comunidades informais EM UM ROL NÃO EXTENSIVO DE PRÁTICAS
no Google Maps (à direita) e no OpenStreetMap (à esquerda). No
▸ A destacada experiência do Censo da Maré, que mobilizou o complexo
exemplo, podemos observar que o mapeamento do Complexo do
de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, para a realização de uma pesquisa
Alemão, na cidade do Rio de Janeiro, produzido pelo Google Maps
censitária no território;
apresenta menos detalhes de configuração espacial do que aquele
produzido pela iniciativa Open Street Map. Esse contraste pode ser ▸ A interessante ferramenta “Mapa de Direitos”, da TETO Brasil, que se
atribuído a um maior viés da ferramenta do Google para “colocar utiliza de BI (Business Intelligence) e de aprendizado de máquina (Machine
no mapa” apenas lugares onde transitam os carros. Learning) para estruturar informações a partir dos registros de atendimentos
realizados pela instituição;

▸ A inovadora experiência da Fundação Tide Setubal com seu projeto A


Lupa na Cidade, no Jardim Lapena, periferia de São Paulo, que mobiliza
um sofisticado instrumental de métricas relacionadas a uma Teoria da
Mudança e organiza indicadores de diagnóstico socioterritorial aplicados
junto a grupos de tratamento e de controle;

▸ O interessante projeto Observatório de Olho na Quebrada, em Heliópolis,


que tem se colocado como uma referência em produção de informações
Fonte: Google Maps/Open Street Map. sobre a maior favela de São Paulo e que constrói um importante ciclo de
formação de jovens e adultos para o trabalho com pesquisa socioespacial
BOAS PRÁTICAS NA PRODUÇÃO DE aplicada à comunidade;
INFORMAÇÃO SOBRE AS FAVELAS E
▸ A pioneira aplicação da metodologia LiDAR na maior favela do Brasil, a
TERRITÓRIOS DE VULNERABILIDADE SOCIAL
Rocinha, no Rio de Janeiro, que foi implementada pela Prefeitura da cidade
em parceria com o MIT (Massachusetts Institute of Technology) no projeto
Nas primeiras tentativas de encontrar formas de superar o desafio
Favelas 4D e que oferece uma importante alternativa ao uso de drones e
da informação em territórios invisibilizados, pode ficar a impressão
outras técnicas de identificação do ambiente construído por sensoriamento
de um "beco sem saída". Contudo, um olhar mais atento é capaz de
remoto, que sofrem resistência em razão de reivindicações de privacidade;
enxergar uma série de experiências inovadoras de mapeamento que
nos ajudam a vislumbrar soluções sistemáticas para tal problema. São ▸ O projeto Territórios da Cidadania, organizado pela ONU-Habitat em
experiências que chamam a atenção por serem, em geral, muito ricas Juiz de Fora (MG), que promove parcerias com o poder público local e
em termos de caráter participativo e também porque normalmente se incorpora aprendizados da atuação da instituição no Brasil em termos de
utilizam de uma relação orgânica com a dinâmica territorial e/ou de diagnósticos participativos e facilitação do uso de tecnologias de fronteira.
inventivas aplicações de tecnologias de fronteira em geoprocessa-
mento e em ciência de dados — e que podem ser complementares a
processos oficiais de mapeamento, inclusive oferecendo perspectivas
de aperfeiçoamento das teorias e métodos aplicados.

110 111
Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

Experiências como essas nos remetem a uma série de ações de INFOGRÁFICO 01:
diagnóstico, monitoramento e avaliação que devem ser estudadas QUAIS DIRETRIZES DE TRABALHO PODEMOS DESTACAR A PARTIR DA ANÁLISE DE
de perto e que podem ser tomadas como boas práticas. São ações ALGUMAS BOAS PRÁTICAS DE MAPEAMENTO DE TERRITÓRIOS INVISIBILIZADOS?
que possuem várias camadas de complexidade e que apresentam
resultados que merecem acompanhamento e detalhamento mais Boas práticas em análise de dados em territórios populares podem ser

profundo, mas é possível concluir algumas questões a partir de consideradas parte do movimento Data for Good. São resultados de processos de

uma análise geral. DADOS PARA O BEM trabalho cada vez mais vinculados à era do Big Data e orientados a dados (data-
(DATA FOR GOOD) driven), porém, mais que isso, são intrinsecamente relacionadas ao propósito de

Podemos, em primeiro lugar, destacar algumas diretrizes que são gerar impacto positivo em termos de desenvolvimento social e sustentabilidade,

comumente tidas como boas práticas em qualquer contexto de sendo esses resultados lucrativos ou não.

aplicação de ciência de dados e que se manifestam nessas prá-


ticas de referência em territórios populares. É possível ver nelas retângulo É essencial para coleta, produção e sistematização de informações em territórios
abordagens muito diretas para questões como reprodutibilidade,
REPRODUTIBILIDADE populares. Os métodos, transparentes, são compartilhados com as partes
produtização, escalabilidade de soluções e também forte interação
interessadas e podem ser reproduzidos por pesquisadores e servidores públicos.
com movimentos/princípios hoje largamente promovidos pelas
comunidades de desenvolvimento como Dados para o Bem (Data retângulo
for Good), Software Livre e Dados Abertos. Boas práticas de mapeamento e diagnóstico socioespacial em territórios

populares são fortemente ligadas aos princípios do movimento de Dados

São diversas as hipóteses de trabalho que podemos inferir de ex- retângulo


DADOS ABERTOSAbertos. Há um intenso esforço de compartilhar, além dos métodos e

periências de mapeamento em territórios invisibilizados. Podemos retângulo procedimentos de tratamento de dados, os dados em si.

destacar algumas: primeiramente, a constatação de que há uma


sistemática falta de evidência para essas comunidades que está retângulo
Soluções em análises de dados em territórios populares são fortemente
prejudicando a tomada de decisão de políticas públicas relacio-
orientadas à produtização e ao ganho de escala. Mesmo que circunscritas
nada a eles; a ideia de que questões de governança são melhores PRODUTIZAÇÃO/
solucionadas com o fortalecimento da rede de sociedade civil retângulo
ESCALABILIDADE
a iniciativas pequenas, geralmente aparecem como projetos pilotos que

pretendem ser aplicados não apenas ao contexto específico de cada projeto


organizada que já atua nos territórios; a visão de que é prioridade
como também a problemas relacionados e a outros territórios similares.
trabalhar com a integração e a incorporação das coisas que já exis-
tem antes de se lançar a explorar novos caminhos metodológicos;
retângulo
a perspectiva de que novas tecnologias de fronteira no campo da
computação visual, do geoprocessamento e da ciência de dados
têm muito a contribuir; a aplicação em contextos de projetos pilo-
tos e experimentais antes de aplicar soluções em larga escala; e retângulo
também a noção de que existe um enorme ganho para processos
de mapeamento e diagnóstico socioterritorial se forem feitos de
modo integrado em Planos de Ação Local (ver Capítulo 3).

112 113
Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

INFOGRÁFICO 02:
QUAIS HIPÓTESES DE TRABALHO SÃO SUGERIDAS PELA ANÁLISE DE ALGUMAS
BOAS PRÁTICAS DE MAPEAMENTO DE TERRITÓRIOS INVISIBILIZADOS?

Investir tempo e recursos na produção de melhores Para tornar os eventos de mapeamento um processo

H0: Há falta de evidências sobre evidências sobre a realidade socioespacial da cidade que também seja orientado para a transformação

a cidade informal, prejudicando a informal para fins de monitoramento e avaliação H5: O mapeamento deve ser integrado da realidade social desses territórios, é desejável

tomada de decisão configura um melhor cenário para a redução da a um Plano de Ação Local para garantir que, em vez de pensar problemas em separado, o

vulnerabilização social de seus habitantes. melhores resultados processo seja vinculado a uma ampla concertação de

interesses e iniciativas de intervenção social na forma


retângulo retângulo
Apostar que instituições atuantes em territórios de um Plano de Ação Local.

H1: Uma rede de sociedade civil vulnerabilizados adaptarão seus processos de

organizada no território produz melhor trabalho para fins de mapeamento é algo preferível
retângulo retângulo
Por fim, cabe ressaltar a mais crítica e mais simples das hipóteses: a
governança a investir em abordagens de especialistas que ainda
conscientização acerca do fato de que há uma importante trajetória
não atuam no local.
de aprendizado sendo construída por essas e outras iniciativas, que
pode (e deve) ser fortalecida e priorizada pelas partes interessadas
retângulo retângulo
Processos e atividades de mapeamento que já estão
no desenvolvimento territorial local. Não há necessidade nem
H2: A prioridade é integrar o em curso têm qualidade técnica razoável e sua
serventia de pensarmos esse processo como algo que parte de
que já existe integração deve ser priorizada em relação a novas
uma folha em branco, o que nos leva a ter como questão primordial
intervenções de mapeamento.
pensar primeiramente em caminhos que promovam a integração e o
retângulo retângulo
Tecnologias de fronteira — sobretudo no campo da aprimoramento metodológico dos bons processos de mapeamento
H3: Novas tecnologias podem computação visual — podem enriquecer os processos que estão em curso.
contribuir de forma decisiva de mapeamento que já estão em curso e produzir

novos percursos metodológicos a serem explorados. Podemos pensar nisso como a meta muito direta de um primeiro
passo para contornar os gargalos de informação em territórios
retângulo retângulo
Para uma solução de mapeamento que alinhe atores invisibilizados. Nela, o verbo integrar aparece como a palavra-chave.
estratégicos para uma metodologia comum de E integrar as experiências exige não apenas o simples ato de juntar
H4: É preferível iniciar com um trabalho e que seja, ao mesmo tempo, replicável os produtos resultantes do trabalho desses agentes mapeadores.
projeto piloto a todos os territórios invisibilizados é necessário Exige também viabilizarmos cenários em que esses diversos levan-
começar com um projeto piloto em um território tamentos possam construir momentos de aprendizagem em comum
específico. e se tornem processos comparáveis entre si, promovendo, assim,
um grande apoio à tomada de decisão baseada em evidências para
territórios hoje invisibilizados. Trata-se de uma iniciativa bem-vinda
retângulo retângulo
e urgente promovermos espaços físicos e virtuais para que essa
convivência de experiências aconteça e floresça no país.

114 115
Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

5.4_ IDENTIFICAÇÃO DE
POTENCIALIDADES
INFOGRÁFICO 03:
CATEGORIAS DE ANÁLISE INTEGRADA SOBRE AS
POTENCIALIDADES DA COMUNIDADE

Etapa fundamental no processo de planejamento das intervenções,


Envolve o conhecimento, as competências e
a identificação das potencialidades locais pode ser considerada o
capacidades locais (educação e experiência)
ponto mais importante da síntese do diagnóstico técnico-territorial POTENCIAL
existentes na comunidade e que facilitam
e social-participativo. Essa síntese, integrando as leituras da carac- HUMANO
a criação de bem-estar pessoal, social e
terização preliminar com a vivência local, auxilia na identificação
econômico.
dos fatores que podem contribuir para alavancar as intervenções
e maximizar seus resultados no cotidiano da comunidade.
retângulo retângulo
Abrange não somente o tamanho de sua
população como também a existência, a
Para colocar tal olhar em prática, o primeiro passo é a definição POTENCIAL
quantidade e a distribuição no território das
das categorias de análise integrada. Essas categorias, além de SOCIAL
instituições públicas e privadas e suas redes
orientar o exercício de reflexão conjunta sobre a intervenção local,
de equipamentos e serviços.
vão definir as estratégias de ação, planejando o fio condutor de
todo o processo de transformação da área em questão. Dentre
retângulo retângulo
É refletido pela existência de uma
as categorias de análise integrada sobre as potencialidades da
adequada infraestrutura urbana e
comunidade, esse exercício pode, por exemplo, direcionar seu olhar
ambiental que possibilite um padrão de
para os potenciais humano, social e urbano — categorias essas
vida digno para a população. Nesse quesito
que permitem uma visão abrangente a respeito da diversidade de
entram os dados sobre infraestrutura de
temas e questões locais.
POTENCIAL mobilidade e acessibilidade, saneamento,
URBANO energia etc., além das condições
Outras categorias podem ser definidas em conjunto com a comu-
habitacionais (dos domicílios, conjuntos,
nidade por meio de oficinas de integração técnica e comunitária.
bairros), da regularização jurídico-
O ideal é que essas categorias permitam uma reflexão ampla
fundiária e da segurança urbana, por meio
sobre todas as questões abordadas no diagnóstico e, sempre que
dos serviços nessa frente, do controle das
possível, façam do exercício de integração um espaço de debate
áreas de risco etc.
no qual a comunidade enxergue sua própria perspectiva de análise.

retângulo retângulo

116 117
Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

5.5_ PROCESSOS DE URBANIZAÇÃO As favelas, por sua vez, não contam com projeto de parcelamento
e ocupação do solo e a maior parte da infraestrutura básica está
ausente. Tomamos as favelas como exemplo para discussão de
infraestrutura por serem assentamentos nos quais estão presentes
elevados graus de vulnerabilidade social. A intervenção nos pro-
Verificam-se dois distintos processos de ocupação urbana: o de
cessos de urbanização das favelas requer uma análise cuidadosa
produção da cidade formal e o da cidade informal. Nas áreas for-
do tecido urbano, ao associarmos as questões de vulnerabilidade
mais sua configuração física se dá por meio da realização de três
social às de riscos diversos — e incluindo severas situações de
operações de estruturação do espaço. Os parâmetros em cada uma
insalubridade e isolamento territorial. Deve-se considerar reverter
delas são: (i) parcelamento (a divisão de grandes glebas, por meio da
tais situações com ações técnicas, contudo sem perder de vista
rede viária, em porções menores, as quadras) e microparcelamento
um cuidadoso acompanhamento e envolvimento dos moradores.
(a divisão das quadras em lotes); (ii) implantação de infraestrutura;
e (iii) construção das edificações.
Intervir tanto em áreas formais quanto informais da cidade
pressupõe reconhecer a sua conexão os sistemas que possuem
A cidade formal, portanto, corresponde aos bairros mais centrais,
rebatimentos nas escalas micro e macro. Para isso, pode-se
consolidados e dotados de maior infraestrutura urbana, que podem,
trabalhar com as camadas territoriais, enquanto leitura cartográ-
todavia, se mesclarem em situações e práticas de informalidade
fica de cada uma das grandes temáticas, inter-relacionando-as,
(bem como nas áreas informais podem existir traços de formalidade).
conforme o quadro a seguir:
As áreas formais costumam apresentar uma estrutura viária legível,
em uma malha mais ou menos regular, mais ou menos densa, sobre
a qual podem ainda ser realizadas intervenções diversas como
redesenho das suas espacialidades, novas articulações viárias,
ampliação e adequação das infraestruturas existentes, qualifi-
cação de espaços públicos, novos equipamentos, adensamento
habitacional etc.

As chamadas áreas informais correspondem às configurações nas


quais predominam precariedades diversas. Uma das operações
citadas anteriormente está ausente ou incompleta. No caso dos
loteamentos irregulares, por exemplo, o parcelamento do solo
foi realizado por meio de um projeto técnico com os lotes comer-
cializados, porém o empreendedor não cumpriu a obrigação de
fornecer toda a infraestrutura básica2. Frequentemente, algumas
ações ainda devem ser endereçadas, envolvendo a implantação
de infraestrutura por meio das redes oficiais, pavimentação das
vias, qualificação dos passeios públicos e, ao mesmo tempo,
regularização fundiária dos lotes, entre outras.

2  Lei Federal No 6.766/79.

118 119
Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

INFOGRÁFICO 04: As informações cartográficas e quantitativas necessárias à tarefa


CAMADAS TERRITORIAIS INTER-RELACIONADAS de construção do mapeamento têm obtido importante ajuda dos
programas de georreferenciamento dos dados coletados em campo
CAMADAS SUBCATEGORIAS ANALÍTICAS e das informações públicas advindas de diversas fontes de pesquisa.
O trabalho de transformação das áreas informais tende a gradativa-
A análise das formas de uso e ocupação do solo deve contemplar, quando possível ou mente promover o fortalecimento dos valores de dignidade humana
aplicável, questões como:
▸ Caracterização tipológico-funcional das zonas habitacionais, industriais, de comércio e
e do tecido social, minimizando as desigualdades. A implantação
serviços da área em estudo e sua articulação com os sistemas de mobilidade e transportes; das infraestruturas corresponde a elevados investimentos públicos
▸ Localização e caracterização tipológico-funcional das áreas de centralidade ou e faz enorme diferença no processo de urbanização de favelas.
de pontos de referência, ou daquelas que exercem atração ao usufruto coletivo da
USO E
OCUPAÇÃO
população, ao contribuírem para a legibilidade da área; Nas duas ou três últimas décadas, diversas intervenções foram rea-
DO SOLO ▸ Características locacionais dos espaços abertos de uso público, verificando sua lizadas em favelas nas cidades brasileiras na tentativa de incorporar
continuidade, articulação e condições de acessibilidade em relação às linhas e áreas informais às áreas formais da cidade. As características mais
modalidades de circulação e transportes;
comuns desses planos referem-se à redução das situações de risco,
▸ Características locacionais da rede de equipamentos públicos destinados à promoção
com remoções de habitações em tais condições e reassentamento
da educação, da saúde e assistência social;
na própria comunidade ou nas suas proximidades, implantação de
▸ Uso e ocupação do solo (tendências de expansão, desocupação, deterioração,
infraestrutura de saneamento, instalação de equipamentos públicos
substituição, adensamento, mudança de função etc.).
! e melhorias nos espaços públicos de uso coletivo.
PARA SABER MAIS, VER:
Sistematização e cruzamento das camadas relativas às infraestruturas:

retângulo
▸ Mobilidade e acessibilidade; ▸ Capítulo 15
(Casos Referenciais).
▸ Sistema de abastecimento de água;

▸ Sistema de coleta e tratamento de esgoto;

▸ Drenagem de águas pluviais;

retângulo
INFRAES-
TRUTURA ▸ Energia elétrica etc.
Compreende recolher informações necessárias à descrição dos diversos componentes dos
sistemas, caracterizando, segundo as diversas modalidades e níveis hierárquicos implicados,
as deficiências e pendências, limitações e potencialidades de desempenho técnico e funcio-
nal das redes e serviços existentes. Implica ainda analisar as demandas atuais e futuras.

Camadas físico-ecológicas e de uso dos sistemas naturais (serviços ambientais):

retânguloretângulo ▸ Relevo-geomorfologia;

▸ Geologia;

FÍSICO- ▸ Hidrografia e hidrologia;


AMBIENTAL
▸ Aspectos climáticos;

▸ Cobertura vegetal;

▸ Sistemas de regulação e proteção ambiental.


A síntese dessas leituras leva ao reconhecimento dos compartimentos ambientais
da paisagem, propiciando a elaboração de diretrizes de ordenamento, respeitando o
equilíbrio entre os processos naturais e a urbanização e os usos do território.

120 121

retângulo retângulo
Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

5.6_ DESENHO URBANO E


URBANISMO TÁTICO
suas bordas ao contexto circundante e estabelecendo formas de
penetração de urbanidade nas porções interiores dos recortes
territoriais em questão. Ressalte-se a importância do efetivo diálogo
entre o novo e os elementos preexistentes da paisagem com seu
O direito à cidade deve assegurar uma vida digna a todos, garantindo valor simbólico e identitário.
os fundamentais espaços de sociabilidade. O cuidado em valorizar
as narrativas da vida comunitária, por vezes esquecidas pelo olhar Por fim, sugere-se, durante a criação de projetos que envolvam
tecnicista, torna-se um procedimento central na promoção do urba- o redesenho urbano, a elaboração de propostas que combinem
nismo social e, nesse sentido, deve-se promover o desenho urbano atividades, ampliando o repertório de programas conhecidos, via
adequado, tecnicamente desenvolvido em processos produtivos de regra, excessivamente utilitaristas e monofuncionais. Esse
de interação junto à comunidade local. olhar crítico ajuda a reposicionar a atuação não apenas nas áreas
formais e legíveis, como também nas situações mais difíceis,
Algumas alternativas ao planejamento urbano tradicional vêm eventualmente desprezadas, ou residuais, geralmente resultan-
surgindo na última década, como as ações do urbanismo tático. Ele tes da interferência entre as grandes linhas de infraestrutura
pode apontar para uma saída diante de uma crise de governança (viadutos, linhas de energia etc.) e o tecido urbano do bairro. O
nas cidades e da corriqueira morosidade da gestão pública em desenho, nesse sentido, pode ser um parceiro para ressignificar
implantar as melhorias dos espaços públicos nas favelas. Trata-se áreas consideradas, por vezes, como degradadas.
de intervenções urbanas de ação rápida, baixo custo e, por vezes,
em uma escala pontual (microescala), chamada de acupuntura O urbanismo social deve procurar estender a atuação para escalas
urbana. O urbanismo tático propõe alternativas ao processo tra- mais amplas, por meio de um plano de ação global, associando
dicional de projeto urbano e propõe a mobilização da base para um conjunto de ações locais a um olhar sistêmico. No entanto, as
o topo, no que se refere aos agentes de transformação, além de, ações locais e rápidas como as do urbanismo tático, quando mul-
por sua escala mais pontual, não demandar muitos investimentos tiplicadas, possuem um potencial de impacto no todo. Trata-se de
concentrados. Dessa maneira, ele mantém pontos de contato com compor soluções multifuncionais e em diversas esferas, resultando
o urbanismo social desde o seu aspecto estratégico, com desdo- em uma transformação de visão, enquanto aproximação com as
bramentos locais e participativos, até, eventualmente, intervenções questões territoriais.
mais sistêmicas. O urbanismo social e o urbanismo tático mobilizam
um conjunto de agentes com capacidades produtivas e criativas na O urbanismo tático, sublinhe-se, é um método de transformação
transformação socioespacial e que têm uma boa dose de viabilidade urbana estratégico para criar mudanças rápidas e maior aderência
em suas proposições. Nesse caso, ele pode ser um importante social. Como um processo de engajamento e de governança comu-
desencadeador, em etapas iniciais, de ações mais duradouras e nitária, baseia-se na construção de ambientes criativos: campos de
estruturantes, aumentando o engajamento em políticas vinculadas ação, inovação e imaginação, transformando espaços concretos em
coletivamente, com maior empoderamento social. laboratório de experiências voltadas para a melhoria do hábitat. O
urbanismo tático fomenta o ambiente coletivo: processos engajando a
As intervenções urbanas devem, assim, ser pensadas não apenas comunidade que se apoia na infraestrutura social local e que buscam
em termos das configurações espaciais das porções mais visíveis refletir a identidade dos espaços com a participação ativa dos cidadãos.
dos assentamentos e sim considerando também a articulação das O processo é iterativo. O método “Planejamento baseado em ações"
proposições, de modo a prever as transformações, incorporando surge como alternativa para prever os impactos das transformações

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

futuras, a partir de dinâmicas de cocriação3. Os processos de desenho


CARACTERÍSTICAS DO
e planejamento urbano tradicional são baseados numa sequência
URBANISMO TÁTICO
linear com pouca margem de mudança. Já no planejamento baseado
em ações, as soluções de desenho sustentam-se em uma lógica mais ▸ Inspiração para projetos estruturantes: as ▸ Convocatória: nesse modelo, é mais fácil
ágil de testar e corrigir — vale dizer, medição, testagem e redefinição mudanças concretas, e especialmente físicas, despertar a percepção sobre necessidades
—, existindo abertura para mudanças e adaptações que se revelarem embora temporárias, servem de modelo de ou possibilidades de mudança que estavam
necessárias ao longo do processo. transformação a longo prazo. São projetos pilotos passando em branco. Para os moradores da
que permitem trazer para o presente propostas região pode ser uma oportunidade para que

!
Por fim, ações de urbanismo tático têm ajudado na implementação para o futuro e, com isso, avaliar os impactos e grupos alheios ao projeto experimentem
de áreas de trânsito calmo, definidas com o objetivo de melhorar planejar melhor o que será feito e até mesmo fisicamente um espaço de maneira distinta. O
a segurança de usuários vulneráveis por meio de medidas como PARA SABER MAIS, VER: visibilizar outras mudanças. engajamento comunitário com resultados físicos
exigência de baixa velocidade no entorno de uma escola, com ▸ WRI. Guia para áreas concretos no entorno é um bom caminho para
de trânsito calmo. 2022. ▸ Equipamentos seguros: os equipamentos,
priorização dos pedestres nas vias em detrimento dos veículos. trazer setores do poder público para a conversa.
especialmente aqueles considerados “âncora”, e
o seu entorno são importantes porque geram vida ▸ Processo Bottom-up: o urbanismo tático é uma
pública e comunitária, sendo também chamarizes ferramenta valiosa para incorporar práticas de
O Mutirão da Praça dos Sonhos no Jardim Lapena, favela na Zona Leste
para frequentadores. baixo para cima, em oposição ao planejamento
em São Paulo, foi desenvolvido em um fim de semana de 2022 na forma
tradicional de cima para baixo (Top-Down).
de mutirão junto à comunidade local. Dentre várias atividades, contou com ▸ Coleta de dados: o urbanismo tático apresenta
ações de urbanismo tático e teve a participação de dezenas de crianças do um momento inovador no processo tradicional ▸ Processo pedagógico: uma cidade
CEI (Centro de Educação Infantil) que desenvolveram desenhos e maquetes. de planejamento: o de acertar os indicadores educadora é um lugar que potencializa todos
baseados numa ação real. Ao mesmo tempo, os espaços físicos e aspectos subjetivos, como
é uma oportunidade para conhecer melhor a oportunidades de aprendizagem. O urbanismo
localidade, a partir de dados quantitativos ou tático permite passar da teoria à prática e da
qualitativos, como o nível de participação e a prática ao desenho, ao mesmo tempo que traduz
aceitação do projeto. estratégias complexas em transformações
concretas e visíveis.
▸ Ampliação da participação social: o
engajamento comunitário é complexo e ▸ Capital social: o desenvolvimento do capital
precisa se apoiar não apenas em dinâmicas social entre os cidadãos e a construção da
de planejamento. As ações concretas criam capacidade organizacional entre instituições
ânimo de mudança, assim como estabelecem públicas/privadas, organizações do terceiro setor
novos pontos de partida ao longo dos e a população local são indissociáveis do modelo
processos participativos. Como o urbanismo de urbanismo tático.
tático trata de transformações físicas nos
espaços, principalmente, comunitários, é uma
Fotografias: Carlos Leite. oportunidade para atrair diferentes atores.

3  Gehl. Action Oriented Planning Methodology. 2016.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

5.7_ ESPAÇOS PÚBLICOS, DE


CONVIVÊNCIA E ÁREAS VERDES
O caso das hortas urbanas e outras ações comunitárias em di-
ferentes áreas, como a Praça Sete Jovens, na Brasilândia, ou a
Comunidade Cultural Quilombaque, em Perus, ambas em São Paulo,
constituem exemplos de iniciativas nas quais a própria população,
através de editais públicos e privados de apoio a projetos de base
A matriz pública dos espaços urbanos é composta pelos espaços
e periféricos, como a Lei de Fomento à Periferia, atua em seu
de domínio público e acessíveis a toda a população. São os lugares
território. Isso se dá em diferentes escalas, desde a individual até
de passagem, de encontro, de integração e de trocas — como ruas,
a urbana, com atendimentos psicológicos, incremento de projetos
calçadas, largos, praças, parques e jardins, entre outros — a partir
de educação formal e ambiental, recuperação de nascentes, rodas
dos quais se desdobram os demais usos e atividades de convivência.
de jogo e de samba etc. que valorizam o indivíduo, a sua cultura e
Essa vivência nos espaços livres públicos ocorre no cotidiano das
o seu território, promovendo ações sociais e ambientais.
cidades através dos seus mais diversos percursos. Mas não são
raras as vezes em que nos deparamos com a falta de conexão,
Novamente, deve-se lembrar da carência desses espaços abertos
pertencimento e articulação entre as áreas urbanas. Essas bar-
de convivência, praças e áreas verdes nas favelas brasileiras, onde
reiras, presentes em inúmeras situações de segregação, geram
comumente a única área de tal natureza é o campo de futebol, que,
inacessibilidade e percepção de insegurança à população.
a despeito de cumprir uma função esportiva, é um espaço de uso
predominantemente masculino e não arborizado. Os indicadores
Pensar e promover a diversidade nos espaços urbanos é essencial
de distribuição territorial de praças e parques nas cidades do
para a construção de lugares mais saudáveis, inclusivos e seguros.
país mostram a urgência na implantação desse tipo de área nas
O debate atual por cidades mais justas e inclusivas se depara com
periferias de nossas cidades.
o enorme desafio de propiciar espaços mais humanos, adequados
e receptivos, que integrem e acolham as diferentes características
de seus usuários, como gênero, raça, etnia, orientação sexual,
renda, idade e condições físicas diversas.

Deve-se ter um olhar atento para o protagonismo comunitário,


desde as escolhas iniciais dos projetos até a gestão desses espa-
ços. É fundamental dialogar e integrar quem vivencia o território;
valorizar e incentivar a participação da população nas decisões e
processos, em todas as etapas. Além disso, é preciso pensar polí-
ticas públicas que permitam outras formas de habitar e interagir
com o território, incentivem outras relações com o tempo, com a
memória, com o trabalho, com o alimento, com o brincar, com os
resíduos e com o diferente — e, sobretudo, possibilitem que surjam
potências locais, estimulem e exercitem uma visão sistêmica que
integre o corpo, a ecologia, a cultura e o território.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

5.8_ EQUIPAMENTOS PÚBLICOS E


SOCIAIS E EQUIPAMENTOS-ÂNCORA
Com as lições aprendidas em Medellín,
nasce a Rede Compaz em Recife 4
pela Prefeitura do Recife, com 850 m2 e um
acervo de cerca de quinze mil livros.

O Centro Comunitário da Paz – Compaz Já o Dojô chegou à marca de mais de oi-


foi concebido com foco na prevenção à tocentos praticantes. O número qualifica
Toda cidade deve ter uma rede de equipamen- de "entregas rápidas", ou seja, das primeiras
violência, na inclusão social e no fortaleci- o espaço como o maior centro público de
tos públicos equitativamente distribuída pelas de porte nos processos de urbanismo social.
mento comunitário. Baseado em experiên- treinamento de artes marciais de Pernam-
suas diversas regiões e bairros, de modo que Isso porque, além de cumprirem suas fun-
cias colombianas de urbanismo social e de buco e o coloca como o principal projeto
a população possa acessar, de modo equâni- ções essenciais, fizeram também o papel de
outras fontes de espaços de cidadania, o social ligado à prática de artes marciais no
me, as oportunidades de saúde, transporte, acelerar as transformações nos territórios,
Compaz possui quatro unidades no Recife. Brasil. Vários alunos já se tornaram atletas
esportes e lazer, cultura etc. Infelizmente, essa gerando importantes locais de encontro
Conhecidos como “Fábricas de Cidadania”. profissionais, vencendo competições nacio-
não é uma realidade no Brasil, onde as favelas da comunidade e propiciando o desejável
Os equipamentos se destacam tanto pela nais e internacionais. Os bairros diretamente
e territórios periféricos são os que menos processo de credibilidade da comunidade
estrutura quanto pelos serviços e atendi- beneficiados, além do Alto Santa Terezinha,
possuem equipamentos públicos. em relação ao programa.
mentos oferecidos, a exemplo de cursos e que estão no raio de 1 km de lá, são: Bebe-
de capacitação profissional. ribe, Água Fria, Dois Unidos, Linha do Tiro
Assim, é parte fundamental dos processos e Em Medellín, os equipamentos-âncora são
e Bomba do Hemetério.
programas de urbanismo social o adequado as grandes escolas públicas, bibliotecas e
Os Compaz fazem parte da Secretaria de
mapeamento desses equipamentos, que bibliotecas-parque, Unidade de Vida Articu-
Segurança Cidadã da Prefeitura do Recife, e, Em março de 2017, a segunda unidade foi
naturalmente possuem, cada qual com suas lada (UVA) e Casa da Justiça, dentre outros.
em 2019, o projeto foi escolhido como o me- entregue à população no bairro do Cordei-
especificidades e demandas, as áreas de Em duas de suas célebres afirmações como
lhor para a redução da desigualdade social ro: o Compaz Escritor Ariano Suassuna. O
influência e abrangência nas cidades e a o gestor público que pioneiramente criou tais
no país pelo Programa Cidades Sustentáveis equipamento oferece espaços para resolver
respectiva promoção de oferta. programas, o então prefeito Sergio Fajardo
e Oxfam Brasil. O prêmio objetiva reconhe- pendências de documentação, orientações
(2004-2008) apontava "o melhor para os
cer projetos nacionais de larga escala social judiciárias, mediar conflitos e informações
Novamente aqui trazemos a referência de mais pobres" e "o bom design educa". Assim,
que tenham impacto em vários setores. sobre assistência social. Entre os destaques
Medellín, com um de seus elementos-chave os melhores projetos, obras, equipamentos
da unidade da zona oeste recifense está o
do urbanismo social: os grandes equipamen- públicos, escolas da metrópole colombiana
A primeira unidade do projeto foi inaugurada Ateliê Compaz, cujo foco é capacitar os par-
tos públicos implantados nas diversas "comu- estão nas áreas de menor IDH e extrema
em 2016, no bairro do Alto Santa Terezi- ticipantes para a geração de renda. As duas
nas" (favelas) situadas nos morros da cidade, pobreza da cidade e se transformaram ra-
nha, zona norte da capital pernambucana. quadras de tênis e a quadra poliesportiva
em geral com programas multifuncionais, alta pidamente em referências nos territórios. A
O Compaz Governador Eduardo Campos também são diferenciais. O equipamento
qualidade de projeto e execução, conectados ideia foi alinhar ética e estética para acabar
oferece diversos atendimentos e ativida- abriga com exclusividade uma Junta Militar
com os sistemas de mobilidade — as estações com o ciclo da pobreza e exclusão social: em
des esportivas, com destaque para o Dojô, e tem mais de 22 mil pessoas cadastradas.
do famoso teleférico (Metrocable) e escadas Medellín, toda arquitetura deve ser peda-
espaço de artes marciais, e a biblioteca A segunda “Fábrica de Cidadania” da cidade
rolantes —e os espaços públicos. gógica e toda engenharia deve ser social.
Afrânio Godoy. Mais de quinze mil pessoas atende, além de Cordeiro, os moradores dos
Lá, os equipamentos-âncora configuram
estão cadastradas no equipamento público. bairros San Martin, Torrões, Prado, Bongi,
Sendo projetados sempre nos Projetos Ur- centralidades no território e simbolizam as
Em média, 250 pessoas frequentam diaria- Mustardinha e Afogados e as comunidades
banos Integrais (PUIs) e alinhados com as transformações sociais e culturais.
mente sua biblioteca, a maior construída da Roda de Fogo e Vietnã.
demais ações setoriais, a implantação de
tais equipamentos consistiu ações públicas
4  CAVALCANTI, Murilo. Conexão Recife, Medellin,
Compaz. Recife: Cepe, 2022.

128 129
Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

5.9_
Já o Compaz Governador Miguel Arraes,
TÓPICOS EM MOBILIDADE URBANA
terceira unidade da rede, foi inaugurado em
2019, na comunidade do Sítio do Berardo, na
Praça da Caxangá. Entre seus diferenciais,
está a atenção especial à cultura maker,
FATORES QUE DIFICULTAM A Entre os fatores comuns que tornam a
com uma Unidade de Tecnologia (UTEC),
MOBILIDADE E O ACESSO mobilidade urbana precária nas favelas,
da Secretaria de Educação, oferecendo
NAS FAVELAS destacam-se a ausência, a inadequação ou
cursos básicos de computação, de robótica,
a precariedade dos seguintes elementos:
animação digital e a oficina de Arduino. Essa
As comunidades urbanas desprovidas de in-
unidade atende os moradores dos bairros
fraestrutura são as que mais sofrem também ▸ Viário: uma das características mais
da Iputinga, Torre, Zumbi, Madalena, Ilha
com a exclusão do acesso às oportunidades visíveis das favelas é a ocupação desor-
do Retiro, Derby, Graças, Santana e Várzea.
de trabalho, serviços públicos, lazer e outros denada, que leva à ausência de sistema
equipamentos das cidades. Quando não são viário articulado, tal como nas áreas urbanas
A quarta “Fábrica de Cidadania”, o Compaz
distantes dos centros comerciais, de serviços consolidadas em geral;
Dom Hélder Câmara, foi inaugurada em
e de empregos, tais comunidades sofrem com
2020, na comunidade do Coque. Possui ▸ Calçadas: quando presentes, caminhos
a falta de integração com infraestruturas e
piscina, quadra poliesportiva, Dojô, Centro segregados para deslocamentos a pé
serviços de transporte existentes. Linhas de
de Referência em Assistência Social — CRAS são irregulares, estreitos e muitas vezes
ônibus não penetram em seus territórios, as
e o auditório Geneton Moraes Neto. Entre os ocupados por automóveis estacionados
ruas não se conectam de forma a otimizar
serviços que só essa unidade oferece estão: e comércio. Comumente, pedestres e
a circulação e a conexão com estações de
Sala Mãe Coruja, espaço do empreendedo- veículos são obrigados a compartilhar o
metrô ou corredores de média capacidade,
rismo, estúdios de rádio, TV e fotografia e mesmo espaço, expondo os caminhantes
por exemplo. A insegurança viária e a pre-
Casa da Justiça e Cidadania. a riscos de atropelamento, especialmente
cariedade das infraestruturas para desloca-
idosos e crianças. Apesar disso, os des-
mentos ativos predominam.
locamentos a pé são meio fundamental
para moradores circularem no território e
A dificuldade de se mover dentro das favelas,
acessarem serviços de transporte público
bem como para fora delas, é mais uma cama-
para locomoção diária com destino ao
da de vulnerabilidade que se soma a tantas
trabalho ou a serviços públicos;
outras e que afeta de modo marcante o dia
a dia de seus moradores. Uma mobilidade ▸ Rotas de bicicletas: em territórios com
precária afeta o acesso a serviços públicos topografia não acentuada, em que o uso da
e torna ainda mais penosos deslocamentos bicicleta é frequente, ciclistas conflitam
fundamentais para a vida urbana, como em no precário e limitado espaço viário com
direção ao trabalho, à escola e a comércios. carros, motos, pedestres e comércios, o
Assim, a mobilidade urbana digna e eficiente, que torna o uso de tal meio deslocamento
além de ser um direito, é um meio para a ineficiente e inseguro;
efetivação de outros — e fundamental para
uma vida digna e saudável.
130 131
Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

▸ Serviços de transporte público capilariza- fortemente a capacidade de seus moradores


PROMOVENDO MOBILIDADE E
dos: as rotas coletoras ou de bairro operadas de ter uma vida produtiva, digna e saudável.
ACESSIBILIDADE NAS FAVELAS
por ônibus não possuem penetração nessas
áreas. Os veículos, mesmo de menor porte PROMOVENDO MOBILIDADE E
É um serviço de transporte de passageiros por teleférico com o objetivo
(micro-ônibus), não conseguem transitar ACESSIBILIDADE NAS FAVELAS
de conectar assentamentos informais localizados nos morros que mar-
pelas vielas, ruas irregulares e pequenos
cam a topografia da cidade ao Metrô. É considerado o primeiro sistema
espaços entre as construções que caracteri- Melhorar a mobilidade em favelas e promo-
de transporte urbano movido a cabo na América do Sul e o primeiro no
zam as favelas e outros territórios informais; ver acesso a oportunidades urbanas a seus
mundo promovendo acesso para um bairro pobre, violento e precário. Em
moradores passa não só por intervenções
▸ Conectividade com sistemas por trilho: o funcionamento desde 2004, atualmente o sistema é composto por seis
urbanísticas que remodelem as condições do
sistema viário não articulado e as condições linhas. Um estudo acadêmico encontrou evidências de que a implantação
viário como também pela adequação dos sis-
precárias para deslocamentos ativos (a pé e do Metrocable levou à redução da criminalidade nos bairros que passaram
temas de transporte às condições existentes
de bicicleta) dificultam a conectividade com a ser conectados à cidade consolidada1.
nessas comunidades. Experiências no Brasil
estações de metrô e trem urbano, quando
e em países cidades latino-americanos com
elas estão presentes no entorno das favelas.
sistemas de gôndolas conectando ocupações
Condições mais adequadas para ciclistas e
em regiões de morro a bairros consolidados
pedestres poderiam tornar o deslocamento
e infraestruturas de transporte ganharam ▸ Manuais de desenho urbano para territórios informais: cidades
até tais infraestruturas de transporte de
grande visibilidade nas duas últimas décadas. podem elaborar manuais de sistemas viários que contemplem
massa menos penoso, mais rápido e seguro.
Especial destaque foi dado ao Metrocable de regras, padrões e diretrizes para todos os tipos de vias, inclusi-
Esses fatores reduzem enormemente o Medelín (ver Capítulo 15) e ainda às expe- ve aquelas localizadas em favelas. Entender as necessidades
acesso dos moradores aos benefícios de riências de Caracas, La Paz (Mi Teleférico), específicas dessas áreas e oferecer padrões de soluções pode
viver em cidades. Além de comprometer o Manizales, Cali (MÍO Cable), Bogotá (Trans- facilitar imensamente o trabalho de implantação de soluções que

!
acesso a serviços públicos e empregos, bair- MiCable) e Greater Mexico City (Mexicable). melhorem a caminhabilidade e a convivência entre diferentes
ros precarizados também veem seriamente O Rio de Janeiro também implementou essa modos de transporte. A capital paulista já conta com um manual
dificultada a entrega de produtos e serviços solução com o Teleférico do Alemão, que PARA SABER MAIS, VER: que especifica soluções para vielas e becos.
nessas regiões, elevando custos logísticos e foi inaugurado em 2011; mas o serviço foi ▸ PMSP, Secretaria
Municipal de Mobilidade ▸ Plano diretor de mobilidade para favelas: para além da gestão
excluindo a população da possibilidade de suspenso em 2016, quando o governo do
e Transportes. Manual do sistema viário, seria interessante ter um verdadeiro plano de
aquisição de bens e serviços. Mal existindo estado deixou de pagar os subsídios que de Desenho Urbano e
mobilidade urbana para favelas, contendo diretrizes para o viário,
espaço para automóveis, motos e pedestres, mantinham o sistema em operação. Obras Viárias de São
Paulo, que contempla mas também para implantação de soluções ciclísticas. Além
também não há condições para a implanta- diretrizes para vielas e disso, a gestação desse plano, desde que ele seja construído
ção de infraestrutura ciclística, que poderia No entanto, muitas favelas não estão lo- becos em contextos de
favelas. com a participação da comunidade, pode identificar com muito
viabilizar deslocamentos em um veículo sus- calizadas em regiões de morros e, mesmo
mais eficiência as rotas prioritárias que conectam as residências
tentável, barato, acessível e, também, seguro. assim, encontram barreiras não naturais
às escolas, creches, unidades de saúde e pontos de ônibus mais
A presença de ruas de terra em algumas que dificultam seu acesso às oportunidades
próximos. Identificadas as rotas prioritárias, devem elas receber a
dessas comunidades torna-as intransitáveis que as cidades oferecem. Algumas ações
atenção primeira do poder público com intervenções que melhorem
e ainda mais inseguras em dias de chuva. São e medidas podem ser desenvolvidas com
camadas de vulnerabilidade que se somam o objetivo de enfrentar tal situação. Entre
em um mesmo território e que comprometem elas destacamos: 1  CERDÁ, M. et al. Reducing violence by transforming neighborhoods: a natural expe-
riment in Medellín, Colombia. Am. J. Epidemiol. 175 (10): 1045–53, 2022.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

sua caminhabilidade, a segurança, a superação de obstáculos e o do centro expandido. Essa medida cria uma racionalidade econô-
aumento da sua atratividade. A chave para o sucesso de um plano mica em favor do atendimento das regiões mais pobres da cidade.
dessa natureza é assegurar o engajamento social das comunida-
▸ Políticas para oferta de bicicletas compartilhadas nas regiões
des, envolvendo a população local na formulação e execução das
mais carentes: as cidades devem buscar oferecer sistemas de
intervenções e melhorias.
compartilhamento de bicicletas, que democratizam o acesso e
▸ Planejar o transporte público com flexibilidade e prioridade viabilizam o uso desses veículos por uma gama muito maior de
de atendimento: o desenho das rotas de transporte público deve pessoas do que apenas os seus proprietários. Contudo, nas poucas
priorizar atender os pontos de conexão mais fáceis para as comu- cidades brasileiras que contam com esse serviço, não há registro
nidades onde os veículos não podem entrar. Entretanto, ao mesmo de oferta nas regiões mais carentes. Cabe ao poder público exigir
tempo, a autoridade gerenciadora do sistema de transporte coletivo das empresas operadoras um balanço equânime na oferta de
deve buscar flexibilizar o tamanho dos veículos para lograr acessar bicicletas, indo além dos bairros mais ricos ou das centralidades
o maior número possível de pontos dentro das favelas. A lógica da econômicas. Ajuda muito se o mesmo meio de pagamento do
rentabilidade deve dar lugar ao compromisso de garantir acesso a transporte público puder ser aceito para liberação das bicicletas
todas e todos que moram nessas localidades. Além disso, o desenho e, inclusive, se existirem tarifas integradas com descontos para
das rotas deve assegurar o atendimento não apenas radial, partindo conjugação das viagens.
das comunidades em direção às centralidades econômicas, como
▸ Foco na logística sustentável: assegurar que as comunidades
também contemplar a demanda de viagens para equipamentos
tenham acesso a serviços de entregas e que os comércios locais
de saúde, escolas e creches, onde mãe e pais possam deixar seus
sejam regularmente abastecidos é outra tarefa fundamental para
filhos antes de irem para o trabalho.
melhorar a inclusão social. Uma possibilidade é o incentivo público à
▸ Financiamento do transporte público: a lógica do financiamento construção de centros logísticos destinados a concentrar a entrega
do transporte público considera o rateio dos custos entre os seus de produtos comprados e que precisam ser entregues em domicílio,
usuários. Apesar de o transporte ser tão essencial quanto a saúde nas franjas das comunidades, consolidando em um único local a
e a educação, que têm os custos suportados por toda a sociedade, entrega desses produtos. Incentivar a adoção de veículos leves,
são os usuários que financiam tal serviço, salvo poucas cidades preferencialmente não motorizados, ou elétricos, a fim de permitir a
brasileiras onde existe subsídio público. É preciso reduzir o valor entrega eficiente de produtos e o abastecimento do comércio local.
das tarifas, oferecendo integração e descontos, além de políticas
Para a maior parte dos moradores de favelas, deslocar-se para o
de gratuidade aos que mais precisam, a fim de assegurar o direito
trabalho, para a escola, frequentar serviços de saúde ou se envol-
ao transporte e o acesso a todas as pessoas, independentemente
ver em atividades sociais requer caminhadas longas e inseguras,
de renda ou posição social.
demoradas esperas entre serviços mal conectados, em locais
▸ Políticas para aumentar a oferta de transporte por aplicativo: inconvenientes ou viagens caras em veículos desconfortáveis e
através da regulação do transporte por aplicativos a cidade pode inseguros. Promover a capacidade dos moradores de circularem
incentivar a oferta do serviço de maneira mais igualitária, bene- dentro e para fora de seus bairros, especialmente utilizando
ficiando os moradores das favelas e comunidades mais carentes. modos ativos, promove a garantia de direitos básicos e o acesso
Em São Paulo, por exemplo, a regulação do serviço oferece um aos benefícios urbanos para uma vida produtiva, digna e saudável.
desconto às empresas de aplicativo sobre o valor que elas devem à
cidade como contrapartida do uso quando a viagem é iniciada fora

134 135
Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

5.10_ TÓPICOS EM HABITAÇÃO SOCIAL do entorno. É o caso do Marco Regulatório do Saneamento Básico5,
da Política de Mobilidade6 e da Política Nacional de Resíduos Sóli-
dos7 . Todavia, é necessário lembrar que os elementos essenciais
de regulação da política urbana estão contidos nas legislações
municipais em função das atribuições constitucionais distribuídas
Segundo estudo da Fundação João Pinheiro, o déficit habitacio-
a cada ente federativo.
nal no Brasil em 2019 era de 5.876.699 unidades habitacionais.
Esse total está distribuído em diferentes componentes: habitação
Aqui são apresentadas algumas das principais reavaliações suge-
precária, coabitação, ônus excessivo com aluguel e adensamento
ridas, a serem consideradas no conjunto de propostas oferecidas
desmedido de domicílios. O componente de habitação precária
em habitação, direito à moradia e à cidade.
demanda 1.482.585 unidades (25,2%) e é subdividido em domi-
cílios rústicos (696.849 unidades 11,9%), domicílios improvisados
O primeiro passo é a concepção moderna de Direito à Moradia
(785.736 unidades 13,4%); coabitação demanda 1.358.374 unidades
e Direito à Cidade que vá além da infraestrutura primária e da
(23,1%), subdividida em unidades domésticas conviventes (1.261.407
unidade habitacional. Locais infraestruturados contribuem para
unidades, 21,5%) e domicílios cômodos (96.968 unidades, 1,7%);
a redução da necessidade de investimentos futuros, em especial
ônus excessivo com aluguel: 3.035.739 unidades (51,7%).
de mobilidade e equipamentos públicos, assim como têm o papel
de reduzir a ociosidade na própria infraestrutura.
Destaca-se ainda o déficit qualitativo de moradias, em que a pro-
visão de nova unidade não precisa ser a solução, que pode partir
Apesar da existência de várias políticas setoriais, inclusive com
das melhorias das habitações existentes. A distribuição territorial
bons resultados, não há mecanismos eficientes de articulação entre
entre as regiões e diferentes tamanhos de cidades, seu perfil
elas, sobretudo entre as de infraestrutura primária e as políticas
socioeconômico, bem como a dinâmica dos diversos componentes
urbanas. Essa condição se reflete nas três esferas de governo e
do déficit, indicam a necessidade de políticas diversas que possam
nas relações interfederativas, gerando superposição ou mesmo
afetar intencionalmente cada um dos problemas.
conflito de diretrizes que poderiam ser compartilhadas, mas que,
na prática, competem entre si.
O principal referencial legal na política de moradia no país é a Lei
11.124/2005, que estabelece as diretrizes gerais para uma política de
A concepção do grande conjunto habitacional, distante das
habitação de interesse social, além de criar um fundo específico para
centralidades e com limitações para a criação de sua própria
financiamento da política e mecanismos de governança. Também
centralidade, está definitivamente ultrapassada. É necessário
são relevantes as leis que criaram os programas de aquisições, o
que os programas de regularização e urbanização levem em conta
Casa Verde Amarela e o Minha Casa Minha Vida, responsáveis pela
os espaços para usos comerciais e que possam ter condições de
contratação de mais de cinco milhões de unidades de habitação
indução de negócios capazes de gerar emprego e renda endógenos,
social e mercado popular. Outro marco legal que vale destaque é
preservando os antigos e ampliando as novas oportunidades.
a nova Lei de Regularização Fundiária — Reurb (ver Capítulo 9),
ainda que alguns de seus instrumentos dependam de regulamen-
tação municipal.
5  Marco Regulatório do Saneamento Básico (2007 e 2020).

Há ainda que se mencionar as políticas setoriais que dialogam dire- 6  Política de Mobilidade (2012).

tamente com a questão da moradia por tratarem da infraestrutura 7  Política Nacional de Resíduos Sólidos (2010).

136 137
Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

É necessário acompanhar e exigir a plena utilização dos recursos população com idade superior a 60 anos, uma vez que os cálculos
disponíveis aos municípios através dos instrumentos urbanísticos atuariais inviabilizariam os financiamentos habitacionais.

!
da política fundiária (ver Capítulo 10).
A locação social é um instrumento relevante no sentido de poder
Além disso, implementar ferramentas de avaliação de custos, PARA SABER MAIS, VER: atender cada família nas suas necessidades específicas, que variam
resultados e impactos das políticas em suas diversas fases per- ▸ CHIESA, Mariana. A ao longo da vida. Adicionalmente, a adoção em escala permitiria
locação social como
mite encaminhar decisões com base em evidências empíricas. maior accountability da relação entre a demanda atendida e a ocu-
opção para reduzir o
Essa produção de dados também deve servir para estabelecer déficit habitacional. pação efetiva dos imóveis subsidiados. Esse controle atualmente
uma métrica capaz de equilibrar o atendimento ao déficit nas Nexo Jornal, 2021. é difícil, gerando desgaste burocrático e alto custo, sem que seja
áreas metropolitanas, onde os custos de produção, bem como as de fato eficiente.
externalidades negativas resultantes do adensamento periférico,
são muito diversos. Ademais, considerando diferentes realidades encontradas a partir
do déficit, entende-se como adequada a adoção de soluções
Há ainda alguns instrumentos e ferramentas possíveis para qualifi- diversificadas, que demonstraram resultados positivos quando
car a política habitacional. Primeiramente, trata-se de estabelecer aplicados de forma piloto. Alguns bons exemplos são programas
estímulos e induções à adoção pelos municípios de instrumentos de geração de emprego, renda e fomento ao empreendedorismo, a
de controle da função social da propriedade e a transferência do preservação de atividades econômicas em áreas reurbanizadas e a
direito de construir para fins de moradia. A medida tem importân- criação de incentivos ao teletrabalho. Por fim, as soluções também
cia fundamental, uma vez que coloca pressão negativa sobre o devem contemplar programas de autogestão, que empoderem as
valor da terra infraestruturada, estimulando sua comercialização comunidades e entidades de maneira mais significativa, como foi
e a produção de novas unidades habitacionais e empreendimen- o Programa Minha Casa Minha Vida — Entidades e outros arranjos
tos comerciais em áreas melhor localizadas. O instrumento está de governança compartilhada.
previsto no Estatuto da Cidade (ver Capítulo 9), que estabelece
a possibilidade de utilização da Transferência do Direito de Cons-
truir (TDC) para áreas associadas a programas habitacionais. A !
concessão de coeficientes adicionais a empreendimentos que PARA SABER MAIS, VER:

contemplem a demanda por habitação social, a possibilidade de ▸ Entrevista com José Police Neto: O desafio do déficit habitacional (Insper
pagamento de outorga pela produção de unidades de Habitação Notícias/Laboratório Arq.Futuro de Cidades, 2022).

de Interesse Social (HIS) no mesmo território, o estímulo ao uso


misto e a mescla de classes sociais em um mesmo empreendimento, URBANISMO SOCIAL E ARQUITETURA POPULAR: QUAL
entre outras medidas, podem assegurar a viabilidade econômica PARTICIPAÇÃO?
de empreendimentos.
A existência de mais de vinte milhões de moradias precárias no
Porém, apesar das contribuições apresentadas, em muitos casos Brasil confirma que a regulação urbanística exclui a população
o atendimento ao direito à moradia em áreas infraestruturadas e mais pobre, reproduzindo as desigualdades presentes no espaço
com oferta de empregos só é possível por meio de um arranjo de urbano. Entendemos que é possível contrapor um urbanismo
programa de locação e não de transferência de propriedade. Essa social ao histórico urbanismo corporativo, usual na regulação das
também é uma solução viável de atendimento para a crescente cidades brasileiras.

138 139
Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

Segundo pesquisa da Fundação João Pinheiro, o número acima 27 Conselhos de Arquitetura e Urbanismo dos Estados e do Distrito
é de domicílios no país que apresentaram ao menos um tipo de Federal (CAU/UF) para o desenvolvimento de projetos de ATHIS.
inadequação (de infraestrutura, edilícia, fundiária). Quando se
trata de déficit habitacional (domicílios que não oferecem as Em 2018, o CAU Brasil e a revista Projeto lançaram uma edição
condições mínimas de segurança), a maioria desses lares são de especial dedicada ao tema da habitação social. Ela vinha encartada
responsabilidade das mulheres. com a Cartilha ATHIS, produzida em coedição pelo CAU Brasil com
o CAU/SC. O documentário Habitação social: Uma questão de saúde
Nesse sentido, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil pública (2020), com 52 minutos de duração, mostrou como a pandemia
(CAU Brasil) e as unidades federativas vêm apoiando cada vez mais da covid-19 agravou a situação de vulnerabilidade das famílias que
a implementação de serviços gratuitos de Assistência Técnica em vivem em assentamentos precários.
Habitação de Interesse Social (ATHIS) para construção e reformas
de moradias, a serem prestados por profissionais de arquitetura Na gestão 2021-2023 do CAU Brasil, em meio ao surto do novo
e urbanismo a famílias de baixa renda. Desde 2008, o país tem coronavírus, foi lançado o Programa Mais Arquitetos, evidenciando
uma Lei de Assistência Técnica (Lei nº 11.888), que garante esse também que habitação social é uma questão de saúde pública.
direito a famílias com renda de até três salários mínimos. Contudo, Campanhas nas redes sociais buscaram a conscientização da popu-
a legislação ainda é pouco aplicada no território nacional. lação de baixa renda sobre seu direito a uma moradia digna através
da Lei de ATHIS. Vídeos e podcasts com influenciadores digitais
O CAU Brasil entende a ATHIS como um direito fundamental do impactaram uma audiência de mais de sessenta milhões de pessoas.
cidadão, assim como saúde e educação. Trata-se da qualidade No Congresso Nacional, o CAU Brasil conseguiu que senadores e
de vida da população, não apenas em sua residência, mas na deputados destinassem emendas parlamentares para projetos de
cidade como um todo. ATHIS nos municípios.

No entanto, a construção de uma política pública específica — e O entidade lançou ainda no mesmo período dois editais de ATHIS,
complementar à já anunciada retomada do Programa Minha Casa oferecendo financiamento de até R$ 2 milhões para ações de constru-
Minha Vida — é imperiosa. Além disso, a inclusão dos municípios ção e reformas em habitações de interesse social. O objetivo desses
numa perspectiva de desenvolvimento local e a conscientização editais de Assistência Técnica é mostrar a importância fundamental
da população de seu direito a uma moradia adequada em um desse tipo de intervenção nas cidades brasileiras, convencendo os
espaço urbano digno demandam ainda a existência de recursos gestores públicos a promover tais ações em escala necessária para
para se atingir uma escala própria às necessidades sociais, sempre atingir as 25 milhões de famílias que vivem em moradias precárias.
excluídas das pautas do urbanismo corporativo. Na perspectiva de promover o urbanismo social e a arquitetura po-
pular, essenciais ao Programa Mais Arquitetos, o Edital Nº 05/2022
O CAU Brasil deu o primeiro passo para promover a ATHIS em 2015, do CAU Brasil está investindo mais R$ 1,5 milhão em projetos de
com um edital que oferecia R$ 150.000,00 para financiar ações de ATHIS com foco na prevenção e mitigação de riscos e em ações que
desenvolvimento e socialização da arquitetura e do urbanismo. O visem a recuperação de áreas degradadas por desastres ambientais
primeiro projeto financiado foi a concepção e execução de 98 uni- recentes (últimos cinco anos).
dades habitacionais do Loteamento Canhema II, em Diadema (SP).
Com o sucesso da experiência, o plenário do CAU Brasil aprovou uma Os exemplos a seguir apontam o direcionamento desse instrumento —
resolução destinando 2% do total das receitas de arrecadação dos que, para atingir a escala necessária, requer o apoio do governo federal,

140 141
Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

estados e municípios, além da conscientização da população sobre Em São Carlos (SP), os projetos Reurb-S nas Ocupações “Em
os seus direitos e os recursos específicos. O projeto Reabilitação busca de um sonho” e “Em busca por moradia”, se veem às voltas
urbana e ambiental do bairro Gogó da Ema (Itabuna-BA) apontou com moradores que enfrentam diversas dificuldades de acesso à
que há mais de cinquenta anos aquela localidade sofre com as cidadania: risco de vulnerabilidade socioambiental, condições habi-
enchentes. O propósito da iniciativa é enfrentar esse problema tacionais precárias e insegurança jurídica sobre a posse das casas.
histórica a partir de uma proposta de ATHISt estruturada em seis Os pilares da ação de reurbanização consistem na recuperação
fases, que envolvem desde cursos de extensão universitária — em de áreas degradadas, aplicação de políticas públicas ambientais,
parceria com o programa de residência da Universidade Federal da capacitação da população e divulgação e conscientização sobre
Bahia — até a implementação de relatórios e publicações a serem ATHIS, entre outros.
entregues às prefeituras da região.
Exemplo de urbanismo social pode ser encontrado no projeto
Em São Paulo, o Mutirão para mitigação de risco em Franco Entre o parque e a favela, no bairro da Coréia de Mesquita (Rio de
da Rocha mostrou que os deslizamentos de terra já destruíram Janeiro). A comunidade foi muito afetada pelas fortes chuvas de
muitas moradias no bairro de São Carlos. Lá, o terreno íngreme, o abril de 2022, que causaram enchentes e deslizamentos na região.
saneamento precário e o descarte indevido de resíduos de cons- O objetivo do projeto financiado pelo CAU Brasil é conscientizar e
trução potencializam os estragos em períodos de chuva intensa. envolver a população por meio de dinâmicas baseadas na prática
O projeto prevê, então, a construção de um muro de contenção e de jogos, exercícios e técnicas teatrais baseadas no Teatro do
um dissipador pluvial na área mais afetada. Oprimido, de Augusto Boal.

Na área coberta pelo projeto Casa Eco-Pantaneira (Ladário-MS), Um caso particularmente dramático é o abarcado pelo Plano
localizada no Pantanal Mato-Grossense do Sul, as queimadas cons- comunitário de gestão de riscos na comunidade caiçara de Ponta
tantes afetam a vida da população. A ATHIS realizada justamente Negra (Paraty-RJ): Também em abril de 2022, um deslizamento
na Área de Proteção Ambiental Bahia Negra vai construir habita- atingiu várias residências na localidade e vitimou sete pessoas.
ções adequadas para a população ribeirinha, dentro das regras do Desenvolvido pelo Pólis -Instituto de Estudos, Formação e Assessoria
Plano de Manejo da Unidade de Conservação de Uso Sustentável. em Políticas Sociais, o projeto consiste na criação de um Plano de
Será também promovido um programa de capacitação conjunta, gestão de riscos. A ideia é estudar e mapear a região, identificando,
pilotado pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), assim, possíveis riscos de deslizamento de terra, como já ocorreram
Secretaria de Patrimônio da União e a ONG Ecoa. anteriormente, e realocar as famílias moradoras do território.

A iniciativa Projeto Morar Bem, em Rio Branco do Sul (PR), visa Já o principal objetivo do projeto Autourb-Reurb Anchieta (São
capacitar mulheres para realização de melhorias habitacionais, Paulo) é retirar famílias da comunidade Anchieta Grajaú de regiões
promovendo a autonomia da população no processo de readequação de risco de deslizamentos e alagamentos e assentá-las em lotes
do espaço de moradia. A ideia é fornecer conhecimento e material marcados. A proposta é desenvolvida pela Peabiru Trabalhos Co-
para que a população, principalmente donas de casa, possam munitários e Ambientais, que atua desde 2019 na ocupação, visando
identificar e reparar problemas em sua habitação e no interior da não só as melhorias habitacionais na comunidade como também o
comunidade. De modo indireto, toda a comunidade será impactada processo de regularização fundiária e urbanística, inserindo mais
pela proposta, tendo em vista a multiplicação do conhecimento por arquitetos, urbanistas e estudantes nesse campo de atuação.
meio de tecnologias sociais. Exemplos similares aos aqui mencionados estão sendo desenvolvidos

142 143
Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

pelos Conselhos de Arquitetura e Urbanismo dos Estados e do Dis-


trito Federal, onde de 2% a 10% de cada orçamento estão sendo
investidos. Todavia, reiteramos que, para atingir a escala necessária,
5.11_ TÓPICOS EM SEGURANÇA PÚBLICA

é fundamental formular uma política pública que envolva a União,


estados e municípios e tenha a participação da população, além 5.11.1_ SEGURANÇA PÚBLICA E TERRITÓRIOS PERIFÉRICOS
da destinação de recursos para um fundo por meio do qual o CAU
Brasil possa sustentar ações capazes de atingir o país inteiro. A discussão sobre o direito à segurança pública, no contexto da
elaboração de projetos que trabalham com o conceito de urbanismo

! social, é primordial. Isso porque na construção de novos paradigmas


no campo das políticas públicas, da mobilização social e da efetiva-
PARA SABER MAIS, VER:
ção de direitos devemos levar em consideração a necessidade de
▸ CAU-BR.
uma compreensão mais elaborada das representações, vivências
▸ Levantamento revela que mais de (ou apenas...) 20 cidades brasileiras têm leis
e violações que existem nos espaços nos quais as desigualdades
ATHIS;
sociais se fazem mais presentes.
▸ Plataforma colaborativa que visa fomentar o debate sobre a Assistência Técnica
de Habitação de Interesse Social (ATHIS).
Nessa perspectiva, é preciso reconhecer que a ação do aparato
do Estado, no que tange às políticas de segurança pública nos
territórios populares, é marcada, historicamente, pela diferença
de tratamento e de investimento em relação aos espaços ditos
formais. Materializar o direito à segurança pública como um
elemento integrado a outras políticas públicas e dentro de um
escopo de direito humano para o conjunto dos cidadãos e cidadãs
numa cidade está longe de ser efetivado na maioria dos estados
brasileiros. Ao contrário disso, o que prevalece é uma lógica nor-
teada pela conservação da ordem social vigente, na qual práticas
diferenciadas afirmam um modo de funcionamento do Estado que
tem pressupostos sustentados em hierarquias sociais distintas
e pela reprodução de um processo de privatização da soberania
nas favelas e periferias conduzido por grupos que se organizam
em variadas frentes de atividades ilícitas e criminosas, em geral.

Nesse quadro, o Estado, que deveria garantir a segurança pública


de toda cidade, age nos territórios considerados periféricos sem
considerar condicionantes e necessidades dos cidadãos. Essa
postura naturaliza o uso da violência como eixo axial da estratégia
policial para conter os grupos criminosos vinculados ao comércio de
drogas no varejo, modalidade de crime transformada em prioridade
absoluta de combate pelo Estado no espaço urbano brasileiro. Dessa

144 145
Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

maneira, a superação das formas de soberania diferenciadas na O EXEMPLO DA MARÉ


cidade e, em função disso, dos modos distintos de ação das forças
O bairro Maré, no Rio de Janeiro, é uma expressão concreta não só dos
de segurança é o caminho necessário para a construção de uma
limites das representações tradicionais sobre as favelas como também
cidade democrática, onde exista apenas um tipo de cidadão.
da necessidade de se construírem novas interpretações sobre complexos
territórios, que levem em conta a pluralidade, a riqueza da vida cotidiana e
Nessa lógica, constata-se — no que se refere à percepção global
de sua estrutura material. Ao longo da consolidação das dezesseis favelas
dos moradores de favelas e periferias e também de profissionais
na região da Maré, foram se formando diferentes movimentos sociais em
que nelas atuam — uma visão de que é necessário mudar radical-
torno de lutas para a efetivação dos direitos mais básicos da população
mente a forma de atuação das forças policiais nessas regiões, já
que ali chegava. As associações de moradores tiveram, e, ainda têm, papel
que é consenso o fracasso das atuais políticas/programas para
determinante na organização e conquista do conjunto de equipamentos e
lidar com a questão da segurança pública, na maioria dos estados
serviços públicos existentes até o momento. Foi nesse contexto que a Redes
do país. É evidente, também, um sentimento de impotência que
da Maré surgiu, sendo alguns de seus fundadores parte do processo histórico
domina os olhares e práticas daqueles agentes sociais, o que
de lutas empreendidas nas favelas daquela localidade.
contribui, sobremaneira, em alguns contextos, para uma inércia
e passividade diante da grave negligência que vem ocorrendo
REDES DA MARÉ
em relação à priorização de políticas públicas por parte dos
governos voltadas para as populações que mais são atingidas
Com uma longa tradição de atuação nas dezesseis favelas do complexo, a
pela desigualdade social no Brasil.
Redes da Maré tem como missão maior fomentar a criação de processos que
contribuam de forma estruturante e concreta, em curto, médio e longo prazo,
Nesse entendimento, é importante olhar para algumas experiências
para a efetivação dos direitos de sua população. Sempre numa perspectiva
da sociedade civil, que colocam foco no fundamental papel que
de reconhecimento e investimento no potencial local, produz conhecimento
as populações diretamente atingidas devem ter na necessária e
sobre os modos de vida dos moradores e elabora projetos e ações que con-
urgente mudança no campo da segurança pública.
tribuam para ampliação e consolidação das políticas públicas que devem ser
implementadas numa escala que é responsabilidade dos governos.
O trabalho desenvolvido nessa área a partir de uma organização
da sociedade civil, a Redes da Maré, no Rio de Janeiro, é um Do ponto de vista da sua organização, a Redes da Maré atua a partir de quatro
exemplo, dentre alguns que existem no país, que colocam como eixos programáticos, quais sejam: (i) Arte, Cultura, Memórias e Identidades;
foco da sua atuação o fortalecimento das populações — no caso, (ii) Direitos Urbanos Socioambientais e Saúde; (iii) Educação; e (iv) Direito à
das dezesseis favelas do Complexo da Maré, onde residem 140 mil Segurança Pública e Acesso à Justiça. De modo articulado, essas áreas de
pessoas —como prerrogativa para que se modifique o contexto trabalho formulam iniciativas, a partir das quais respondem a demandas
de violações de direitos cometidos por profissionais da segurança específicas trazidas pelos moradores da comunidade. A ideia básica é que
pública e também por integrantes de grupos civis envolvidos em seja possível construir, de maneira coerente, processos político-pedagógicos
atividades ilícitas e criminosas na região. que mobilizem os moradores e os envolvam de forma orgânica nas invenções
que precisam acontecer para que, de fato, disso resulte mais igualdade no
acesso e qualidade das políticas públicas. Tal engajamento também deve
alcançar o enfrentamento das violências que estruturam o processo desigual
que se configura no racismo, bem como da criminalização em relação aos
habitantes da região.

146 147
Guia de Urbanismo Social Capítulo 05 : Dimensão Territorial

5.11.2_ MEDELLÍN: O URBANISMO SOCIAL AJUDA A


SEGURANÇA E JUSTIÇA
REDUZIR A DESIGUALDADE SOCIAL E A COMBATER O
O Eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré NARCOTRÁFICO
busca fortalecer a concepção justamente sobre segurança pública e justiça a
partir de uma lógica de direitos humanos. Para tanto, as ações desenvolvidas Medellín já foi a cidade mais violenta do planeta — na década de
se organizam em três grandes áreas: 1990, dominada pelo narcotráfico de Pablo Escobar, apresentava
o índice de 380 assassinatos por 100 mil habitantes, situação de
▸ Produção de conhecimento sobre o contexto de violência armada na Maré:
guerra. Atualmente, esse indicador caiu para vinte. O que garan-
Atua a partir da seguinte metodologia: a) coleta de dados sobre violência e
tiu, a longo prazo, a queda dos índices de violência de Medellín
violações de direitos in loco, durante os confrontos armados e até 48 horas
foi um conjunto de políticas públicas pensadas para reduzir as
depois de seu início; b) articulação de rede de colaboradores locais que
desigualdades sociais e garantir que os moradores dos bairros
reportam e validam evidências sobre as violências ocorridas; c) coleta de
pobres tivessem acesso aos serviços públicos oferecidos nos
dados oficiais; d) levantamento em meios de comunicação de massa e redes
bairros de classe média.
sociais; e) produção e manutenção de banco de dados; e f) publicação anual
do Boletim Direito à Segurança Pública da Maré.
Por meio dos Projetos Urbanos Integrados (PUIs), Medellín pacificou
▸ Atendimento às vítimas de violações de direitos: Prestação de serviço de territórios violentos e reduziu as distâncias físicas, éticas e morais
atendimento sociojurídico gratuito aos moradores, no contexto da violência entre a cidade formal (a cidade de todos os direitos) e a cidade
armada. Acolhimento realizado por assistentes sociais, psicólogas e advogadas, informal (a cidade dos esquecidos, a cidade dos invisíveis, a cidade
buscando viabilizar e fortalecer o acesso a direitos, sobretudo à justiça. dos direitos negados). O caso mais emblemático de Medellín se deu
através do PUI da Comuna 13. Uma grande oferta de equipamentos
▸ Mobilização de moradores: Atividades de sensibilização e disseminação
públicos de altíssima qualidade — escolas públicas, bibliotecas,
de conteúdo acerca de direitos fundamentais. A partir do diálogo cotidiano
Casa da Justiça, Unidade de Vida Articulada (UVA), iluminação
nas ruas, pretende-se fortalecer estratégias de reivindicação de direitos,
pública, saneamento, mobilidade, dentre outras intervenções —
especialmente nas áreas onde são perpetradas recorrentes violações.
transformou o território no maior destino de turismo internacional
da metrópole colombiana. Algo impensável há vinte anos, quando
! a própria polícia tinha dificuldade de entrar naquela área.

PARA SABER MAIS, VER:


Medellín mostrou para o mundo que o contrário de insegurança
▸ Redes da Maré. Boletim Direito à Segurança Pública na Maré.
não é polícia, é convivência. Quanto mais gente nos espaços públi-
cos, mais seguros esses espaços serão. A metrópole colombiana,
literalmente, deu dignidade para a população que mora nas áreas
mais vulneráveis da cidade.

Para as autoridades públicas de Medellín, “a vida é o valor máximo e


não há uma só ideia ou propósito que justifique o uso da violência”.
Se em Medellín todos não são iguais perante a lei, são, de fato,
iguais perante os recursos públicos investidos na cidade. Eis o
verdadeiro princípio da equidade.

148 149
Guia de Urbanismo Social

Em Medellín, a segurança não é tratada como um problema de


esquerda, centro ou direita. É um direito do cidadão à vida, porque
a vida é sagrada.

Duas palavras são chave na gestão pública: confiança e esperança.

Ao estabelecer tais políticas públicas, Medellín abandonou um


passado que definitivamente deve ser esquecido. Ela é hoje reco-
nhecida internacionalmente por ser a cidade mais inovadora do
globo — título obtido em um concurso promovido pelo Wall Street
Journal, em parceria com o Citigroup — e a que, também em todo
o planeta, mais reduziu a taxa de homicídios.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Urbanismo e segurança pública. Org: Arq.Futuro e Escola da Cidade, Bei, 2019.

150
Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

06_ 6.1_ INTRODUÇÃO

DIMENSÃO SUSTENTABILIDADE A dimensão da sustentabilidade urbana e ambiental traz um olhar

URBANA
para a melhoria da qualidade de vida em todos os espaços da
cidade por meio de uma melhor relação entre a ocupação urbana
e a natureza, garantindo condições socioambientais satisfatórias
6.1_ Introdução à vida nos bairros e comunidades.

6.2_ Diagnóstico Ambiental Toda ocupação e uso do solo gera alterações nas dinâmicas naturais,
modificando a intensidade dos processos que compõem a ambi-
6.3_ Processos de Qualificação ência do território. O crescimento das aglomerações urbanas e os
Ambiental: ações estratégicas, elevados padrões de consumo geram graves impactos ambientais,
sistêmicas e locais especialmente nas grandes cidades. A implantação de infraestru-
tura urbana básica e social frequentemente não acompanha esse
6.4_ Resiliência urbana e justiça processo, excluindo de parcelas da população o direito à cidade e a
ambiental em territórios periférico condições ambientais adequadas à saúde e à sua reprodução social.
Esses déficits, resultado de assimetrias de poder no planejamento
6.5_ Projeto Campo-Favela: um e na distribuição dos recursos da cidade, historicamente vêm sendo
caso escalar confrontados pelas reivindicações por melhores condições de habi-
tabilidade (habitação, saneamento, mobilidade, segurança urbana),
de saúde, educação, cultura e espaços de lazer.

Nas áreas em que a situação de vulnerabilidade social é elevada,


as questões ambientais são percebidas no bojo das reivindicações
pelos direitos à moradia e infraestrutura urbana e social básica.
Assim, diferentemente das demandas daqueles que moram
nos bairros bem servidos de infraestrutura, o "ambientalismo
dos pobres" emerge geralmente dentro desse quadro de luta
contra conflitos distributivos1 de maneira pragmática, e menos
por uma compreensão de sustentabilidade ambiental conforme
impulsionada pelos organismos globais.

AUTORES Nessa perspectiva é que cabe salientar a grande variedade de


acepções que o termo sustentabilidade alcança na atualidade,
6.1_ 6.2_ 6.3_ Diagonal;
6.4_ Angélica B. Alvim; Renato Anelli e
Andresa L. Marques (FAU-Mackenzie); 1  Ver ALIER, Joan Martinez. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e lingua-
6.5_  André L. C. M. Duarte (Insper). gens de valoração. São Paulo: Contexto, 2009

153
Guia de Urbanismo Social Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

caminhando em meio às contradições entre os padrões de consumo INFOGRÁFICO 01:


e capacidade de suporte do planeta e de seus territórios, da distri- DIMENSÃO SUSTENTABILIDADE URBANA: ELEMENTOS E ASPECTOS QUE
buição desigual da poluição e das amenidades verdes nas cidades, COMPÕEM A INFRAESTRUTURA AMBIENTAL DE UM TERRITÓRIO URBANIZADO
da desigual oferta de infraestrutura urbana e social, dentre outras,
denotando que o conceito ainda está fortemente dominado por ELEMENTOS ASPECTOS
uma racionalidade mais econômica do que ambiental2.
retângulo retângulo

Sistema de espaços livres e áreas verdes, en-


A desigual adequação da infraestrutura e condições de habita- SISTEMA DE ESPAÇOS LIVRES —
INFRAESTRUTURA VERDE tendidos como uma rede de espaços abertos
bilidade nos amplos espaços periféricos e/ou degradados das
multifuncionais — ambiental e social — conectados;
grandes cidades do Sul Global faz com que a questão ambiental
seja, muitas vezes, confusamente percebida nas comunidades com
Vinculados ao uso e consumo do bem natural
elevado grau de vulnerabilidade. É nesse ponto que se destaca a
SISTEMA DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA água, requerendo um olhar para a qualidade, dis-
importância da execução de um trabalho de educação ambiental
ponibilidade e desperdício (consumo consciente);
durante todo o processo de urbanismo social, desde o planejamento
até as intervenções por melhorias nas áreas vulneráveis.
Utiliza a água como suporte à diluição e transporte
SISTEMA DE ESGOTAMENTO SANITÁRIO
dos efluentes;
Assim, a dimensão sustentabilidade urbana aqui trabalhada para
fins de um Urbanismo Social agrega os elementos que compõem
Inclui a drenagem natural (espaços permeáveis,
a infraestrutura ambiental de um território urbanizado3 , incluindo
o olhar para os aspectos apresentados no Infográfico 01.
retângulo DRENAGEM DA SUPERFÍCIE
retângulo
bairros ecológicos, bairros verdes) e a construída

(sistema de drenagem convencional e soluções

de drenagem sustentável/infraestrutura verde);


Dessa forma, este capítulo apresenta as duas principais etapas da
abordagem da dimensão sustentabilidade urbana e ambiental no
planejamento de intervenções de Urbanismo Social: o diagnóstico
retângulo
SISTEMA DE COLETA E DISPOSIÇÃO DOS
retângulo
Faz uso da superfície do solo como agente recep-

tor, incluindo os aterros sanitários, a coleta seletiva


ambiental e os processos de qualificação ambiental. RESÍDUOS SÓLIDOS E ORGÂNICOS
e soluções alternativas;

retânguloGESTÃO DE RISCOS URBANOS


retângulo
Os sistemas de controle dos riscos urbanos, que

envolvem áreas de risco e áreas contaminadas;

retângulo retângulo
Importante instrumento de difusão do cuidado

com o meio ambiente, mudança de valores, de


EDUCAÇÃO AMBIENTAL padrões de consumo e de engajamento da popu-

lação para intervenções ambientais de cuidado

com a natureza e a saúde.

2  LEFF, Enrique. Ecologia, capital e cultura: a territorialização da racionalidade am-


retângulo retângulo
biental. Petrópolis: Vozes, 2009.

3  SCHUTZER, J. G. Infraestrutura verde no contexto da infraestrutura ambiental ur-


bana e da gestão do meio ambiente. Revista Labverde n. 8, jun. 2014.

154 retângulo retângulo 155


Guia de Urbanismo Social Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

6.2_ DIAGNÓSTICO AMBIENTAL A seguir estão destacadas as principais abordagens ambientais a


serem trabalhadas no diagnóstico técnico-territorial.

DIAGNÓSTICO AMBIENTAL:
TÉCNICO-TERRITORIAL

O diagnóstico que aqui será abordado se baseia nos pressupostos


O objetivo da leitura técnica sobre as questões ambientais do
apresentados ao longo do Capítulo 5 — Dimensão Territorial. Para
território é realizar um levantamento detalhado de informações
entender e pensar um processo ambiental integrado às ações de
dos sistemas ambientais da área de intervenção, devendo-se
urbanismo social, é elaborado um diagnóstico único, adotando
considerar os seguintes temas:
as mesmas estratégias metodológicas em todas as dimensões
presentes. Em síntese, a construção do diagnóstico ambiental deve
▸ Compartimentos ambientais da paisagem: o relevo como con-
ser conduzida no âmbito da elaboração do diagnóstico geral da
dicionante dos processos naturais e urbanos
dimensão territorial, reconhecendo e articulando as questões am-
bientais nos levantamentos técnico-territorial e social-participativo. Neste tema é importante observar e caracterizar as condições
do relevo, em seus aspectos topográficos, formas de relevo e da
Portanto, esta seção está estruturada em duas frentes. Na primeira ocupação inserida, bem como as condições geotécnicas, chegando
são apresentados os temas e estudos ambientais a serem conduzi- à identificação dos compartimentos ambientais existentes (topo,
dos e integrados no diagnóstico técnico-territorial. Na segunda são vertentes e fundos de vale)4, em suas particularidades, e conside-
organizadas as principais questões ambientais a serem tratadas rando suas fragilidades e potencialidades em relação ao uso urbano.
junto à população no diagnóstico socioparticipativo.
Muito mais que uma simples caracterização topográfica, é impor-
tante reconhecer quais funções, ante as dinâmicas do clima e da
O diagnóstico ambiental, para fins de planejamento territorial
água, cada compartimento desempenha, para fins de proposição
em áreas vulneráveis, deve conter informações técnicas de dados
de ações e intervenções adequadas a cada um deles, visando
secundários e primários sobre os sistemas ambientais locais e
reduzir impactos no meio ambiente urbano e perda de recursos
regionais, obtidos a partir de visitas de reconhecimento de campo,
monetários em investimentos de baixa efetividade.
e, o mais importante, de insumos colhidos junto à população mo-
radora. Os territórios vulneráveis, periféricos ou não, apresentam
Será importante a identificação, nos fundos de vale, da presença de
em comum situações de degradação da paisagem de seus bairros.
setores de planície aluvial, com seus ambientes de várzeas alagáveis,
Essa degradação, como se sabe, combina vulnerabilidade social e
e seu estado de preservação, conservação e ocupação. Também é
ambiental, em virtude das carências de infraestrutura, em especial
relevante a demarcação dos setores íngremes das vertentes, que
de saneamento ambiental (esgoto, drenagem e resíduos) e da ausên-
geralmente caracterizam anfiteatros de nascentes abrigando en-
cia de oferta de terrenos urbanizados ou habitação adequada para
costas de alta declividade, ambientes extremamente suscetíveis à
as faixas da população de mais baixa renda. Assim, tanto em áreas
erosão, que impulsiona os riscos de deslizamentos, gerando impactos
periféricas quanto em bairros degradados centrais, a população
negativos na vida das comunidades que ali residem.
em vulnerabilidade ocupa, predominantemente, fundos de vale
suscetíveis a enchentes e alagamentos, ou encostas de morros e
anfiteatros de nascentes passíveis de ocorrência de deslizamentos. 4  SCHUTZER, J. G. Cidade e meio ambiente: a apropriação do relevo no desenho am-
biental urbano. São Paulo: Edusp, 2012.

156 157
Guia de Urbanismo Social Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

▸ Sistema hídrico e drenagem como as praças e parques de vizinhança acessíveis à comunidade.


O segundo são as condições de ambiência desses espaços públicos
Associada à investigação dos compartimentos ambientais da
de lazer, circulação e vivência (sistema viário e calçadas).
paisagem, cabe uma caracterização atenta da situação do local
em relação à bacia hidrográfica na qual o bairro se encontra
Quanto ao primeiro, os parâmetros urbanísticos recomendados
inserido. Para isso, identificar o canal receptor mais próximo que
mencionam distâncias de quinhentos metros para praças e parques
recebe o escoamento das águas pluviais e servidas do bairro, e
de vizinhança e de mil metros para parques de bairro e demais
suas condições de conservação e/ou ocupação urbana, é muito
equipamentos de esportes e lazer. Em relação às condições de
importante. Nas reuniões com a comunidade e encontros de
ambiência do bairro, cabe mensurar a quantidade de espaços
reconhecimento participativo com grupos de interesse (lideran-
arborizados (conjuntos arbóreos e arborização nas calçadas) e
ças, futuros agentes ambientais, ativistas etc.), é pedagógico
superfícies verdes (jardins arbustivos e gramados) presentes no
identificar o caminho das águas locais, pelos terrenos internos
sistema viário, praças e parques, bem como os estudos sobre
às quadras e ao longo do sistema viário.
ilhas de calor e aquecimento da superfície, que possam trazer
subsídios para a percepção do conforto ambiental existente. Com
Ao mesmo tempo, verificar as condições do canal receptor, seja
a finalidade de tangibilizar essas condições da ambiência urbana
ele perene ou intermitente, aparente à superfície ou canalizado,
em que a comunidade vive, é possível analisar a fisiologia da
é relevante para reconhecer as fragilidades que apontam para os
paisagem local quanto ao conforto térmico, por meio da relação
riscos de enchentes, nos casos de estrangulamento do canal e
entre cobertura vegetal (arborização e superfícies verdes) e as
depósito de entulho e lixo, e riscos à saúde, nos casos de conta-
dinâmicas do clima.
minação da água pelo recebimento de efluentes.

Muitas soluções de infraestrutura verde vêm sendo aplicadas


Nessa investigação é importante verificar e quantificar os espaços
atualmente por várias cidades em escala mundial, como estímulo à
que permitem a infiltração da água no solo, em especial nos com-
transformação desse cenário de desconforto térmico e engajamento
partimentos ambientais do relevo em que essa função é desejada,
das comunidades na regeneração ambiental dos espaços livres.
para subsidiar a discussão e o planejamento de ações que visem
!
Mutirões para conservação e plantio de arborização nos espaços
uma maior porosidade no tecido urbano do bairro como estratégia
livres e calçadas, implantação de hortas comunitárias, tetos e
natural de prevenção de enchentes e reabastecimento do lençol
PARA SABER MAIS, VER: paredes verdes, viveiros de mudas, entre outras, são experiências
freático. Essa abordagem traz bons subsídios para a implementação
▸ Exemplo de que podem ser mostradas como estímulo à ação.
de estratégias de infraestrutura verde como os jardins de chuva, organização social
biovaletas, grades verdes, poços e lagoas de infiltração5 . Mulheres do GAU (Zona
Leste de São Paulo) — ▸ Saneamento básico
Viveiro Escola União de
▸ Sistema de áreas verdes e dinâmicas do clima associadas Vila Nova. Dentre os grandes desafios atuais postos ao urbanismo social, a
superação do déficit e das desigualdades no acesso aos serviços
Neste tema cabe identificar dois aspectos: o primeiro é composto pela
de saneamento pode ser incluída como uma questão fundamental
quantidade e pelas condições dos espaços livres e verdes existentes,
colocada para toda a sociedade e, em particular, para os profis-
sionais e instituições atuantes no setor. A resposta sobre como
5  CORMIER, Nathanael S.; PELLEGRINO, Paulo R. M. Infraestrutura verde: uma es- é possível planejar e gerir de uma maneira mais adequada a
tratégia paisagística para a água urbana. In Revista Paisagem e Ambiente: ensaios, nº prestação desses serviços ainda não foi plenamente apresentada,
25, p. 127-142, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
São Paulo: FAU, 2008.

158 159
Guia de Urbanismo Social Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

e insiste em desafiar a capacidade de reflexão e de formulação


de políticas públicas para o setor. SANEAMENTO COMO UM DIREITO HUMANO

É necessário o convencimento de todos da importância de tratá-lo Um avanço que ocorreu na metade da década passada foi a Organização
de forma associada às demais dimensões — drenagem e resíduos das Nações Unidas (ONU) ter reconhecido o Saneamento como um di-
sólidos — em toda a sua complexidade, o que significa pensar e reito humano, separado do direito à água potável7 . Contribuiu para esse
desenhar adequadamente as soluções tecnológicas e a infraes- avanço o que fora estabelecido através dos Objetivos de Desenvolvimento
trutura, assim como considerar todas as variáveis socioculturais Sustentável (ODS), no caso do saneamento o ODS 6 — Água Potável e
e ambientais envolvidas na formulação dessas soluções, desde a Saneamento — que estabelece: Assegurar a disponibilidade e gestão
adequação às necessidades, expectativas e valores culturais locais. sustentável da água e saneamento para todos.

Os serviços de abastecimento de água e saneamento constituem,


juntamente com o manejo de resíduos sólidos e a drenagem das
águas pluviais urbanas, o saneamento básico. Esses serviços bási- aliado às maiores densidades populacionais. São locais com maior
cos levam à melhoria da qualidade de vida das pessoas, sobretudo risco de transmissão de doenças de veiculação hídrica ou transmitida
na saúde da criança , com redução da mortalidade infantil, além
6
por vetores, como mosquitos, ratos e baratas.
de melhorias na educação, na expansão do turismo, na valorização
dos imóveis, na renda do trabalhador, na despoluição dos rios e Em relação ao esgotamento sanitário, é muito comum o uso de
preservação dos recursos hídricos, repercutindo, inclusive, na sistemas de drenagem para o afastamento dos esgotos, mesmo
melhoria da autoestima dos habitantes de uma região, produzindo que sejam apenas das águas servidas, os quais trazem consigo
efeitos positivos em diversos setores da sociedade e do país tanto uma sensação de “problema resolvido”, que tende a afastar os
em termos socioambientais quanto econômicos. usuários de uma solução definitiva, quando esta lhes é oferecida,
produzindo impactos significativos sobre o meio ambiente e a
É importante destacar a conformação espacial de cada localidade, saúde de todos que ali residem. Essa condição propicia o contato
considerando que a concepção desses sistemas deverá levar em direto da população com esse líquido.
conta um ou mais formatos de atendimento. Para isso, é preciso
vencer as dificuldades locais, buscando métodos, tecnologias e Esse cenário demonstra um paradoxo incrível no processo de
inovações que se adéquem à realidade local. urbanização das cidades: serviços considerados essenciais para a
vida e responsáveis por garantir as condições mínimas de habita-
Os maiores impactos da falta de água, de saneamento, de drenagem bilidade da população, são precários, ou são os últimos ofertados,
e coleta de lixo estão presentes nos extratos da população mais ! implantados depois dos serviços de energia, pavimentação etc.
vulnerável, que ocupam os territórios que sobraram da urbanização
PARA SABER MAIS, VER:
regular, ora situada às margens de vales, canais ou rios sujeitos a Em termos técnicos, no diagnóstico ambiental os principais aspectos
▸ Sistema Condominial —
alagamentos, ora em encostas, sujeitas a erosões e deslizamentos, alternativa para favelas e que devem ser considerados quanto ao saneamento básico são
áreas de baixa renda.W apresentados no Infográfico 02.

6  Estudos da Organização das Nações Unidas (ONU) estimam que uma criança
morra no mundo a cada 2,5 minutos por causa de água não potável, saneamento e
higiene deficientes. 7  A natureza é reconhecida distintamente, embora tenha mantido os direitos juntos.
160 161
Guia de Urbanismo Social Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

INFOGRÁFICO 02: ▸ Áreas de risco e gestão de risco


DIAGNÓSTICO AMBIENTAL: ASPECTOS TÉCNICOS DO SANEAMENTO BÁSICO
A contínua ressignificação das definições de risco, realocou-o nas
ciências sociais, resgatando os aspectos social e econômico e o
TEMAS ASPECTOS
definindo como “a probabilidade de danos e perdas futuras asso-
retângulo retângulo
ciadas à ocorrência de um evento físico danoso”8, dando ênfase aos
▸ Áreas ou domicílios não atendidos pela rede regular;
prováveis impactos e perdas sobre as pessoas e comunidades, como
▸ Intermitências no sistema;
ABASTECIMENTO DE
os moradores de setores de risco de deslizamento ou inundação.
▸ Ligações clandestinas;
ÁGUA
▸ Perda de água;
A presença da população, comunidades e infraestruturas expostas
▸ Sistema de tarifação do local;
a possíveis impactos causados por perigos associados a processos
▸ Existência de cisternas, poços, entre outros. físicos, como deslizamentos e inundações, são fatores indispen-
sáveis para que o desastre aconteça. Entretanto, além desses
retângulo
retângulo ▸ Mapeamento da rede de esgotos instalada; elementos, a vulnerabilidade é a variável que exerce influência
▸ Identificar os setores não servidos pela rede; direta para determinar o grau de risco. A mudança de abordagem
ESGOTAMENTO ▸ Taxa de adesão de domicílios ao sistema junto à operadora; mostrou que os riscos resultam das fragilidades e vulnerabilidades
SANITÁRIO ▸ Organizar informações sobre os sistemas alternativos, descentralizados e da sociedade, de comunidades, pessoas, bens e infraestrutura a
ecológicos de coleta e tratamento passíveis de incorporação nas condições diferentes processos físicos e sujeitos a seus impactos. Logo, ele
urbanas e naturais do bairro: como o sistema condominial, wetlands (zona de
pode ser entendido como a probabilidade de ocorrência futura de
raízes), biodigestores, entre outros.
um acidente, um desastre ou qualquer outro evento físico que resulte
▸ Mapeamento da rede de drenagem existente;
em danos e perdas sociais, econômicas e até de vidas humanas.
retângulo
retângulo
▸ Pontos de concentração do escoamento superficial;
Assim, considera-se que para o seu enfrentamento, ou gestão, as
▸ Qualidade das águas superficiais;
ações devem integrar, necessariamente, três aspectos fundamentais:
▸ Percentual de áreas permeáveis;
(a) conhecimento sobre o tema dos riscos e suas componentes; (b)
▸ Setores de relevo plano e/ou suave ondulado nos compartimentos de topo
intervenções e ações para a redução dos riscos socioambientais;
compatíveis para o incentivo à infiltração das águas pluviais;
DRENAGEM e (c) planejamento e organização para o manejo de desastres. O
▸ Condições de conservação dos canais de drenagem aparentes;
conhecimento sobre o território é indispensável para a efetiva gestão
▸ Organizar informações sobre medidas não estruturais de drenagem
de riscos socioambientais e ponto de partida para o diagnóstico, que
sustentável ligadas às soluções de infraestrutura verde, como: biovaletas,
grade verde, jardins de chuva, poços de infiltração, lagoa pluvial, alagado deve considerar tanto fatores que contribuem para a construção do
construído, cisternas e pequenos reservatórios de detenção integrados aos perigo no meio físico quanto para aspectos da exposição e fragilidades
parques lineares, dentre outras; (vulnerabilidade física e social) e das capacidades de enfrentamento.
Para tanto é necessário identificar, mapear e avaliar os perigos e as
▸ Sistema de coleta e disposição dos resíduos sólidos e orgânicos;
vulnerabilidades. Assim sendo, deve-se estar atento para caracte-
▸ Forma de atendimento no bairro;

retângulo
retângulo
rísticas e dados relacionados ao (i) Meio físico; (ii) Demográfico, (iii)
RESÍDUOS SÓLIDOS ▸ Pontos de descarte irregular;

▸ Cooperativas atuantes na região;

▸ Existência de ecopontos, coleta seletiva, pátios de compostagem e 8  NARVÁEZ, L.; LAVELL, A,; ORTEGA, G. P. La gestión del riesgo de desastres: un
enfoque basado en procesos. San Isidro: Secretaría General de la Comunidad An-
composteiras comunitárias, entre outras. dina, 2009.

162 163
Guia de Urbanismo Social Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

Socioeconômico; (iv) Urbanístico; (v) Ambiental. Logo, as cartografias ▸ Concentração de águas superficiais;
DRENAGEM E
geotécnicas (carta de suscetibilidade a movimento de massa e inun- ▸ Lançamento de água servida em superfície;
ESGOTAMENTO
dações a carta de aptidão à urbanização) são instrumentos, quando ▸ Presença de fossas ou lançamento de esgoto.
disponíveis, indispensáveis para o ordenamento e planejamento
retângulo retângulo
territorial, respectivamente, e podem ser utilizadas no processo ▸ Sarjetas e redes de drenagem pluvial;

de diagnóstico para entender as potencialidades e limitações dos ▸ Rede de abastecimento de água;


terrenos nas áreas de intervenção. Dados do censo demográfico, INFRAESTRUTURA ▸ Rede de coleta de esgoto;
informações provenientes das secretarias de assistência social, de URBANA ▸ Coleta de resíduos sólidos regular ou caçamba;
saúde, habitação, defesa civil, entre outras, são essenciais para a ▸ Energia elétrica e sua origem;
caracterização social, econômica e demográfica das populações e ▸ Intervenções estruturais anteriores para controle de riscos.
comunidades nas áreas de intervenção.

Dessa forma, para o diagnóstico de riscos elencamos os principais retânguloVEGETAÇÃOretângulo


▸ Presença de árvores, vegetação rasteira ou área desmatada;

▸ Áreas de cultivo.
pontos a serem considerados na vistoria em campo:
retângulo retângulo

▸ Moradores idosos, portadores de ncessidades especiais, dependentes


INFOGRÁFICO 03:
químicos ou alcoólicos;
DIAGNÓSTICO DE RISCOS: PRINCIPAIS PONTOS A CONSIDERAR
▸ Evidências de fragilidade construtiva, de instabilidade estrutural ou de
NA VISTORIA EM CAMPO degradação significativa da edificação;

▸ Acúmulo de lixo significativo no entorno da moradia;


VULNERABILIDADES ▸ Evidência clara de perigo ou impacto ou dano à moradia por ocorrência
CAMADAS SUBCATEGORIAS ANALÍTICAS
pretérita, sem que haja providência observável de reparo ou mitigação por
retângulo retângulo parte do morador;
▸ Taludes: de corte, aterro ou naturais, altura e se o solo está compactado ou não; ▸ Desorganização espacial e/ou adensamento excessivo das edificações na
▸ Distância entre moradia e encosta; área vistoriada, afetando fluxos de drenagem superficial;

▸ Declividade; ▸ Lançamento desorganizado de águas servidas sobre taludes

▸ Estrutura do solo; (NOGUEIRA et al., 2018).

ENCOSTAS ▸ Presença de blocos rochosos e matacões, paredões rochosos;

▸ Se a ocupação é em cabeceira de drenagem; retângulo


▸ Se há trincas nas moradias;

▸ Árvores, muros ou postes inclinados ou muros embarrigados;


retângulo
O diagnóstico de riscos deve ser feito, obrigatoriamente, em campo.
Isso não significa que sistemas de informação geográfica e outras
ferramentas remotas não devem ser utilizados para dar suporte
▸ Degraus de abatimento, cicatrizes de escorregamentos anteriores, outras
rupturas ou feições erosivas.
ao trabalho. Também é importante considerar aspectos funcio-
nais — como o viário local, principais vias de acesso, localização
de equipamentos públicos —, aspectos de conforto ambiental —
▸ Tipo de canal e se ele é natural, sinuoso ou retificado;

retângulo
NAS MARGENS DE
CURSO D’ÁGUA
retângulo ▸ Distância da moradia à margem;

▸ Altura do talude marginal;


como o material construtivo, densidade construtiva e conformação
espacial das edificações —, e aspectos legislativos — como lei de
uso e ocupação do solo, zoneamento, plano diretor, ZEIS.
▸ Altura de cheias no curso d’água.

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retângulo retângulo
Guia de Urbanismo Social Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

AMBIENTE CONSTRUÍDO E HABITABILIDADE parcelamento, a edificação é que configura o Ambiente Construído


dos assentamentos vulneráveis;
A forma e a configuração dos assentamentos são fatores relevantes
▸ O direito de construir — a liberdade para construir, que se sobre-
para as condições ambientais. Aqui nos referimos não somente à
põe à necessidade do vizinho ter acesso a iluminação e ventilação;
relação com elementos naturais, como (cursos d’água e relevo, por
exemplo), mas também a própria configuração física dos assen- ▸ O direito de passagem — a construção de uma edificação não
tamentos, o que denominamos ambiente construído, interfere nas poderá impedir a passagem e o acesso de vizinhos aos seus res-
referidas condições ambientais. pectivos domicílios.

Observar essa dinâmica de produção dos assentamentos vulne-


Para além da relação com elementos naturais e da definição de
ráveis pode ser um subsídio para a definição de estratégias para
sistema de vias que permita a circulação e a implementação
negociação e pactuação de intervenções e projetos.
de infraestrutura, fatores como definição de espaços livres,
arborização e permeabilidade do solo, parcelamento e controle
da densidade construtiva das quadras, bem como observância a
afastamentos e recuos das construções, permitem obter favoráveis
INFOGRÁFICO 04:
condições de habitabilidade. Tais fatores tomam maior emergência
DIMENSÕES PARA O ESTUDO DAS CONDIÇÕES DE HABITABILIDADE
a partir do contexto da pandemia de covid-19, que demonstrou a
importância da busca por condições favoráveis de moradia nos
assentamentos que permitam observar variáveis de salubridade DIMENSÕES ELEMENTOS

e habitabilidade, adensamento, bem como a segurança física dos retângulo retângulo

espaços construídos e domicílios. Para além de condição de vizinhança (disponibilidade de

serviços e oportunidades no entorno) e riscos geotécnicos

Dados da maior incidência de doenças respiratórias em assentamen- (enchentes e deslizamentos etc.), relaciona-se, de forma

tos vulneráveis demonstram a correlação entre moradia e saúde. mais objetiva, com:

Nesse contexto, é importante observar que quando tratamos de INSERÇÃO E CONFIGURAÇÃO DO ▸ Forma e parcelamento do assentamento (incluindo
moradia digna, adequada e saudável devemos considerar elementos ASSENTAMENTO tamanho dos lotes);

em duas dimensões, como mostra o Infográfico 04. ▸ Densidade construtiva, recuos e afastamentos entre
edificações (de modo a permitir a disposição de janelas e
poços de iluminação/ventilação);
É importante observar que, ao contrário do que preza o senso co-
▸ Definição de espaços livres.
mum, os assentamentos vulneráveis não são territórios informais
desprovidos de regras. A dinâmica de produção desses assenta-
mentos é, por vezes, negociada e pactuada entre os moradores. Relacionada às condições de cada moradia, em síntese:

Nesse contexto, podemos elencar alguns princípios que orientam retângulo retângulo ▸ Habitabilidade e salubridade (iluminação e ventilação,
o processo de Produção do Espaço em assentamentos vulneráveis: eliminação de situações de umidade etc.);
ASPECTOS DA UNIDADE
▸ Densidade da moradia (relacionada ao número de
DOMICILIAR
▸ A destinação prioritária da terra para a moradia; pessoas por domicílio);

▸ Segurança estrutural (patologias construtivas,


▸ A edificação como a célula — em geral e diferentemente dos eliminação de riscos de acidentes e injúrias).
assentamentos planificados que têm o lote como unidade do
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retângulo retângulo
Guia de Urbanismo Social Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

DIAGNÓSTICO AMBIENTAL: SOCIAL-PARTICIPATIVO

PROCESSOS PARTICIPATIVOS DE ESCUTA


Neste trabalho reforçamos a pertinência da perspectiva comunitária
somada às análises técnicas para entender os problemas presentes
no território, conforme discutido no Capítulo 5. Aliar a leitura da Os processos participativos de escuta podem assumir diferentes formatos
realidade aos processos sociais participativos pode sensibilizar, de acordo com o contexto da ação. Nesse sentido, a coleta de informações
promover a mobilização social e compartilhar decisões sobre as pode utilizar ferramentas quantitativas ou qualitativas.
ações, que serão inclusive desenvolvidas na prevenção de riscos.
São consideradas ferramentas como oficinas, grupos focais e rodas de
O convite à participação social, que considera a centralidade dos
conversa para entender como a população reconhece as questões do
grupos sociais no diagnóstico e nas ações, gera responsabilização
bairro e as situações relacionadas aos diversos riscos, como enchentes,
e conscientização social, que promove as comunidades a prota-
deslizamentos, solapamento das construções e erosão. Tais processos
gonistas dos processos.
levam em consideração a percepção das pessoas e suas falas. Eles
ganham contornos objetivos ao serem desenhados e registrados a partir
Os princípios metodológicos desse diagnóstico são elencados a seguir:
de conversas facilitadas pela equipe de trabalho social.

▸ Identificação dos atores (stakeholders) e fortalecimento da Assim, mapeiam-se as condições gerais dos serviços de limpeza urbana
organização comunitária e coleta (seletiva) de lixo e de manutenção dos córregos, situação das
áreas verdes, dados do sistema viário e das calçadas, abastecimento de
O estímulo à participação de lideranças comunitárias, agentes de
água, coleta e tratamento de esgoto, mobilidade e acessibilidade, dentre
saúde ambiental, agentes comunitários de saúde, de saneamento,
outros. A sistematização dessa leitura pode ocorrer nos chamados mapas
auxilia no mapeamento e compartilhamento das visões sobre os
falados, mapeamentos participativos variados, totens, painéis, entre outros,
principais problemas ambientais enfrentados. Nesse sentido, caberá
apontando eventuais fragilidades, potencialidades e pontos de atenção
mapear associações de moradores, grupos sociais ambientais,
com a localização das questões indicadas.
ONGs que atuam com defesa do meio ambiente, que devem ser
articuladas e convidadas a dialogar com os estudos e promover a
difusão do trabalho.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

6.3_ PROCESSOS DE QUALIFICAÇÃO


AMBIENTAL: AÇÕES ESTRATÉGICAS,
SISTÊMICAS E LOCAIS
▸ Sustentabilidade das intervenções e do
território: ações voltadas à educação am-
biental, articulação de parcerias e promoção
Outra ação estratégica para a qualificação
da ambiência urbana da área de intervenção
é a ampliação da arborização urbana nos
de intervenções ambientais no âmbito de espaços públicos existentes, especialmente
Na dimensão Sustentabilidade Urbana, associada ao lazer, cultura, saúde e desen- ativismos verdes, economia circular, desen- nas praças, calçadas e canteiros centrais
os processos de qualificação do território volvimento local (agricultura urbana, hortas volvimento local/geração de renda, consumo de avenidas, e nos equipamentos sociais
apresentam uma natureza transversal aos urbanas, turismo de base comunitária, vivei- consciente, entre outras. públicos do entorno e demais espaços li-
sistemas de infraestrutura urbana e social. ros de produção e educativos etc.). vres que incorporem nascentes, fundos de
SISTEMA DE ÁREAS VERDES
Suas ações estratégicas, sistêmicas e locais vale e encostas. Para isso, a articulação do
▸ Sistema de saneamento ambiental: ações
integram os objetivos dos principais instru- poder público com a comunidade local é de
vinculadas à qualificação da infraestrutura Nas leituras técnica e comunitária realizadas
mentos do Urbanismo Social, que são os extrema relevância.
básica de abastecimento de água, esgoto, na fase do diagnóstico ambiental pode-se
Planos Urbanos Integrados e os Programas
drenagem e resíduos sólidos, incluindo a identificar e avaliar as potencialidades e
Sociais Integrados. Pautado pelas informa- De cunho sistêmico são as ações relativas
recuperação ambiental de corpos d´água fragilidades da área em relação à oferta de
ções trazidas no Diagnóstico Ambiental, à implementação das soluções baseadas
e incorporação de sistemas ecológicos e espaços verdes de lazer, conjuntos arbóreos,
esta etapa visa à identificação do conjunto na natureza impulsionadas pelo conceito
sustentáveis de esgotamento sanitário, arborização viária e a qualidade existente ou
de ações estruturantes, locais e pontuais de infraestrutura verde, que visam tirar
drenagem urbana e resíduos. desejada desses ativos.
(urgentes) a serem implementadas para a partido dos processos naturais, muitas
melhoria das condições ambientais no bairro, ▸ Sistema de mobilidade: ações voltadas vezes mimetizando-os. Entre as soluções
Assim, entre as ações prioritárias estão aque-
para fins de dimensionamento e priorização. à qualificação ambiental do sistema viário que podem ser desenvolvidas pelo poder
las voltadas à expansão do sistema de espa-
Essas ações buscam encontrar respostas (ruas, calçadas, vielas, ciclovias, travessias) público em parceria com a comunidade
ços livres e verdes na área de intervenção, o
aos principais problemas presentes nos ter- visando melhorar as condições de conforto local e/ou com coletivos e outras formas
que pode incluir a criação de novas praças,
ritórios de alta vulnerabilidade social identi- térmico e da paisagem, incorporando ele- de ativismos verdes estão:
parque de vizinhança ou de bairro, ou ainda
ficados nas leituras técnica e participativa. mentos de infraestrutura verde e soluções
unidades de conservação (fundos de vale com
baseadas na natureza. ▸ Propor e implementar soluções de Drena-
várzeas ou encostas íngremes florestadas). Na
A partir dos temas estudados no diagnóstico gem Urbana Sustentável, como biovaletas,
▸ Ambiente construído e habitabilidade: existência desses ativos, cabe a avaliação da
realiza-se uma primeira integração temática grades verdes e jardins de chuva, ligadas às
ações vinculadas à melhoria das condições necessidade de sua recuperação e/ou quali-
relacionando as questões ambientais às calçadas e canteiros centrais de avenidas,
entre ambiente, moradia e saúde para ficação (com a inclusão de novos elementos
seguintes frentes de ação: e lagoas pluviais nas praças e parques;
a qualificação das condições gerais do ou equipamentos). A perspectiva de conec-
assentamento. tividade ecológica e social desses espaços
▸ Sistema de áreas verdes e espaços pú- ▸ Propor e implementar soluções de Conecti-
com os do entorno é um desafio que deve ser
blicos: ações voltadas à expansão, recu- ▸ Áreas de risco e gestão de risco: ações vidade Ecológica, por meio de caminhos ver-
explorado, bem como a multifuncionalidade
peração e qualificação dos espaços livres voltadas à gestão dos riscos urbanos por des, arborização urbana e parques lineares;
que devem abrigar em face de seu conteúdo
das áreas de intervenção (praças, parques, meio da implementação de medidas estru-
urbano, visando articular a conservação da
unidades de conservação etc.), visando à turantes e não estruturantes, para controle, ▸ Em alguns casos, propor e implantar solu-
natureza e dos processos naturais com usos
integração no sistema de áreas verdes da redução e erradicação dos riscos, tendo em ções de estabilização de taludes, encostas
sociais associados ao lazer, à cultura, à saúde,
região e do município, na perspectiva da vista os processos do seu reconhecimento e margens de córregos — naturalizadas,
e quando possível ao próprio desenvolvimento
conectividade e multifuncionalidade desses e subsequente integração a projeto de associadas às ações de gestão de riscos
comunitário e econômico.
espaços, incluindo a conservação ambiental maior amplitude. urbanos;

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

▸ Propor e viabilizar soluções de Regu- necessidades de melhoria nas instalações. infiltração. Por seu turno, o sistema de dre- esgotamento de vala e escoramento. Em
lação e Amenização Climática por meio da Alinha-se a esse fato a reprodução de uma nagem das águas pluviais também não deve função da dimensão do território que se
implantação de paredes (muros) verdes, cultura ainda centrada na individualidade receber qualquer contribuição da produção quer sanear, e da disponibilidade financeira
tetos verdes e arborização dos espaços (presente não exclusivamente nestes ter- dos esgotos domésticos ou industriais. O para implantação do sistema, é possível
públicos e privados. ritórios), mas que demanda esforços para lançamento indevido da água da chuva na concebê-lo de forma a adotar um gradu-
sua desconstrução e para pôr em marcha rede coletora de esgotos, além de diluir o alismo para essa intervenção.
As ações ambientais que desenvolvem o processos participativos que possam atenu- esgoto, pode ocasionar extravasamentos e
potencial humano, social e produtivo das ar o impacto desse modo de encarar a vida até mesmo seu retorno às residências. Já as No primeiro momento, a questão mais im-
comunidades não podem ser ignoradas. Den- urbana. Assim, é fundamental considerar ligações de esgoto, realizadas clandestina- portante é afastar os esgotos do contato
tre elas destaca-se a agricultura urbana, a necessidade de mobilização social para mente nas redes de drenagem das águas com a população. Coletar, bombear, trans-
com suas variantes na implementação de reforçar o processo participativo na busca pluviais, provocam danos graves ao meio portar e tratar em um nível que atenda às
hortas comunitárias, ações de difusão de de soluções conjuntas. ambiente e afetam a saúde da população. exigências ambientais do corpo receptor.
alimentação saudável, venda de produtos, Em períodos de chuva de maior intensidade Se na partida, ou seja, na concepção, esse
operacionalização de viveiros de mudas, Diante de toda essa problemática, para que ou de alagamentos, essas águas extravasam território foi avaliado e planejado de for-
educação ambiental, entre outras. Nessa se possa intervir em saneamento básico, do sistema coletor de drenagem para as ma a se constituir em “pequenos espaços
ação, a articulação do poder público a cole- integradamente com os demais segmentos vias, gerando o contato da população e po- territoriais de coleta”, a disponibilidade de
tivos, grupos comunitários, associações etc. do urbanismo, propõe-se que 5 cinco pre- luindo o espaço citadino. Além disso, esses recurso pode atender um ou mais espaços
é de extrema relevância para impulsionar o missas sejam consideradas, a saber: espaços abertos nos dispositivos do sistema e o tratamento, pensado em etapas, pode
potencial local por meio de fomento e formas de drenagem propiciam a proliferação de ser implantado por partes. Esses “pequenos
diversas de apoio, dando funcionalidade a ▸ Inter-relação entre os quatro sistemas vetores de transmissão de doenças, além de espaços territoriais” são na realidade as
muitos espaços livres vazios e ociosos, como que compõem o saneamento básico causarem mau odor no território próximo a microbacias, definidas a partir de divisores
o exemplo das faixas de domínio das infraes- Os quatro sistemas que compõem o sanea- esses dispositivos. naturais (divisor de água, canais, rios, áreas
truturas de abastecimento de água e energia, mento básico funcionam dentro do espaço de proteção ambiental) ou divisores físicos
de equipamentos públicos, praças etc. urbano de forma muito próxima. A operação ▸ Gradualismo das intervenções (linha férrea, grandes avenidas, equipamen-
de cada um deles, quando não é realizada de Diante desse desafio, como avançar para tos como aeroporto etc.), descentralizadas,
SISTEMA DE SANEAMENTO BÁSICO forma eficiente, tende a produzir impactos a implantação de um sistema de esgota- sempre a depender da disponibilidade dos
negativos sobre os demais sistemas. Con- mento sanitário único, sendo esse sistema recursos financeiros.
A cultura generalizada de que mediante o siderando a adoção do sistema separador um dos mais caros?
distanciamento dos esgotos das residên- absoluto, em que as águas residuais pro- ▸ Soluções alternativas de atendimento
cias o problema estaria resolvido tem sido venientes do uso doméstico ou industrial O esgoto deve ser conduzido a favor da gra- Examinada a questão do abastecimento
danosa para as cidades, especialmente são conduzidas por um sistema de coleta vidade, ou seja, sempre se encaminhando de água e coleta de esgotos, podem ser
devido ao processo de contaminação dos e as de chuva por outro sistema, este sem para os pontos mais baixos da topografia identificados dois pontos circunstanciais
recursos hídricos. Esse cenário se inten- a necessidade de sofrer tratamento para local. Em áreas planas isso resulta em re- que precisam ser destacados na busca da
sifica nos segmentos da população de seu lançamento nos corpos hídricos, é des profundas, cuja implantação demanda solução do problema: o primeiro diz respeito
renda baixa ou muito baixa, que dispõem fundamental que as redes de saneamento grandes escavações para sua implantação, à necessidade de concentrar esforços na
de instalações intradomiciliares precárias sejam implantadas de forma a garantir a e, a depender do tipo de solo (rochoso redução de perdas do sistema de abasteci-
ou até mesmo inexistentes, sem possuir melhor estanqueidade possível, absorvendo ou com lençol freático elevado), o uso de mento de água, o segundo na necessidade
capacidade financeira para adequar-se às apenas uma pequena parcela de água por explosivos ou de rebaixamento do lençol, de reduzir custo, simplificar a implantação

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

e operação dos sistemas de esgotamento a adesão consciente e a fidelização dos implementadas para o enfrentamento des- ▸ O Processo Participativo e sua importân-
sanitário, adequando-o perfeitamente a usuários ao sistema e, por conseguinte, a sa questão, porém o controle operacional cia na implantação e manutenção/operação
todos os tipos de urbanização, com menos tão deseja universalização. da distribuição de água pode ser a partida do Saneamento Básico
transtorno e mais diálogo entre os envol- para esse enfrentamento. Em função da A participação dos agentes institucionais,
vidos. A conjunção adequada da solução Outra alternativa são as chamadas Wetlands conformação urbanística e topografia local, nas suas várias esferas, que têm uma rela-
desses dois pontos não só implica a distri- ou Zonas de Raízes, cujas experiências já a concepção de uma rede de distribuição da ção direta ou próxima na implantação dos
buição dos recursos financeiros entre os acumula três décadas de aperfeiçoamento água para uma localidade poderá contar com sistemas, da sociedade civil organizada e
dois sistemas de forma equilibrada, como dessa forma ecológica de tratamento de mais de um ponto de alimentação, mesmo da população usuária, é um pré-requisito
atende à necessidade urgente de buscar águas residuais em todo o mundo. Esse tendo como ponto de partida para o abaste- para que um sistema de saneamento básico
medidas eficazes que promovam a sua tipo de tratamento pode servir para esgoto, cimento um reservatório. seja implantado em qualquer território,
universalização. águas residuais industriais e agrícolas, lixi- urbano ou rural.
viação de aterro e escoamento de águas plu- Se a região for muito acidentada, deve-se
Conhecido mundialmente, o Sistema Condo- viais. Nessa solução a poluição é removida estabelecer faixas de atendimento para que Para a população em geral, o direito à in-
minial, conforme já mencionado na seção an- através de processos naturais comuns, mas se garanta pressões dinâmicas mínimas para formação sobre o serviço, as obras, suas
terior, é uma alternativa de atendimento que realizados em condições mais controladas. cada habitação e pressões estáticas máxi- condições de acesso e os transtornos cau-
alia uma solução técnica a um componente As Zonas de Raízes podem ser projetadas mas, evitando, dessa forma, pressão elevada sados durante essas obras, no caso dos
de participação da sociedade cujo foco é a como ecossistemas de múltiplos propósitos, na rede, que acaba propiciando perdas físicas três sistemas que contam com redes físicas
busca mais adequada de atendimento a cada fornecendo outros serviços ecossistêmicos provenientes de vazamentos, rupturas da (drenagem, água e saneamento), é uma
imóvel, adaptando-se a todo tipo de ocupa- tais como controle de inundações, sequestro tubulação etc. Dessa forma criam-se Setores questão de cidadania.
ção. Esses dois componentes fortemente de carbono ou hábitat da vida selvagem. de Distribuição (ou Ilhas Hidráulicas) que
integrados é que proporcionam o sucesso Podem estar vinculadas a parques lineares favorecem o controle de perdas de água Uma peculiaridade que demanda atenção
da aplicação do Modelo Condominial. e áreas de conservação nas áreas de pre- no sistema, uma vez que essa tarefa não é no sistema de esgoto é que a matéria-prima
servação permanente de córregos em áreas realizada em toda área onde se concentra do sistema é produzida no domicílio, por-
A ação integrada física e social parte de urbanas, pulverizadas no tecido urbano da o número total de conexões domiciliares. tanto, esse sistema depende do usuário. A
uma estratégia de trabalho social muito cidade, como solução de atendimento na Cada um dos setores contará apenas com população pode não sentir a necessidade
bem planejada para o empoderamento da microescala de bairros. um ponto de alimentação, controlado por do serviço, o que demanda ao interveniente
população beneficiária. um medidor de vazão e uma válvula de in- conscientizá-la a seu respeito. Ou pode não
▸ Setorização da Distribuição da Água terrupção (ou registro de parada). ter os requisitos mínimos para o serviço de
Essa tecnologia propicia uma nova forma Potável no Centro Urbano — contribuindo atendimento (instalações sanitárias míni-
de exercer a Engenharia Sanitária. A prática para o controle do sistema e a redução das Se a região for plana, pode-se definir um mas), informações para o uso correto e/ou
precisa ser integrada para: (i) atuar com as perdas de água traçado mais econômico para a linha tronco disponibilidade (fácil) para o pagamento,
equipes integradas: projeto, social, obra Uma das questões graves que afetam a principal, a qual não deverá ter distribuição sendo necessário que qualquer intervenção
e operação; (ii) conhecer e se adequar à gestão do setor de saneamento básico é a em marcha, buscando ao máximo sua otimi- considere essas dificuldades.
realidade, nos seus aspectos urbanísticos, situação dramática das perdas de água nos zação, e a partir desse traçado criar setores
socioeconômicos e ambientais; (iii) cons- sistemas de distribuição existentes nas ci- de distribuição, os quais contarão com um É importante também que a população
truir pactos e dialogar com as instituições dades. Trata-se de um desafio para o avanço ponto de distribuição alimentando a rede entenda quais são seus direitos e deveres,
públicas, ONGs, formadores de opinião, lide- do saneamento básico e a escassez hídrica. secundária de cada setor e serão controlados a partir das informações fornecidas de
ranças locais e a população; (iv) conquistar Diversas medidas podem e devem ser por um medidor e um registro. forma clara, aprofundada e verdadeira. As

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

entidades locais, no plano institucional, da viário. Essas ações estão voltadas à quali- arborização urbana, promovendo interven- As intervenções e ações para a redução
sociedade e do sistema produtivo, devem ficação paisagística e de conforto térmico, ções de plantio em parceria com moradores serão, necessariamente, definidas após o
ser envolvidas para que se possa criar uma mas também visam explorar a multifun- e alunos das escolas do entorno; processo de conhecimento e reconhecimen-
Rede de Difusão do projeto. Da mesma cionalidade desses espaços, abrigando, to territorial. O risco, nessa abordagem, é
▸ Promover estudos para a ampliação de
forma, é importante identificar e trazer para quando possível e adequado, soluções de totalmente dependente do processo de uso
calçadas e a incorporação de baias no leito
o processo aquelas entidades que podem infraestrutura verde ligadas à drenagem e ocupação do solo e sua relação com o meio
carroçável para possibilitar o plantio de
abrir seus espaços para também constituir sustentável. Dentre elas, destacam-se as físico, com as dinâmicas socioterritoriais,
árvores em ao menos um lado da rua;
uma Rede Operativa, tais como templos biovaletas, jardins de chuva e grade verde. características urbanísticas e ambientais.
religiosos, escolas, mídia, associações co- ▸ Promover a implantação de calçadas Dessa forma, é possível propor soluções
munitárias, entre outras. Das soluções baseadas na natureza para verdes nas ruas de baixa declividade, in- viáveis e que se integrem aos processos de
melhorar as condições microclimáticas dos corporando paisagismo e abrindo espaço qualificação urbano-ambiental, elevando
O papel da mulher no planejamento, imple- espaços de mobilidade, a de maior relevân- para a infiltração das águas pluviais; a segurança de populações vulneráveis e
mentação, gestão, utilização e manuten- cia é a arborização, pois é ela que interfere expostas aos perigos.
▸ Articular as discussões entre poder pú-
ção das infraestruturas de abastecimento positivamente na redução da emissividade
blico e comunidade para a implementação
de água e saneamento; tem se mostrado de calor das superfícies urbanas, trazen- Para cada situação identificada é proposta
de medidas de drenagem sustentável nos
necessário. De fato, a mulher é a grande do condições climáticas mais amenas aos uma tipologia de intervenção para reduzir
passeios públicos, como biovaletas, cantei-
protagonista desse setor; ela sempre está passeios públicos. Atua também como um a situação de risco diagnosticada. As tipo-
ros pluviais, jardins de chuva e pavimentos
à frente de suprir as necessidades básicas importante refrigerador climático ao impul- logias básicas de intervenções e ações são:
permeáveis;
de sua família, sendo a água uma neces- sionar os processos de evapotranspiração
sidade vital para a vida. A escola também que umidificam o ar. Em áreas tropicais ▸ Identificar necessidades de implantação ▸ Serviço de limpeza e recuperação de en-
deve ser um espaço de destaque para esses serviços ambientais são fundamentais de barreiras acústicas vegetadas e articular tulhos e lixos. Recuperação ou limpeza de
promover a importância de ter um serviço para promover ainda mais o uso público dos comunidade e poder público para discutir sistemas de drenagem, esgoto e acessos.
adequado de saneamento. espaços abertos. sua implementação. Inclui também limpeza de canais de dre-
nagem. São serviços manuais ou que se
Esse processo impacta sobremaneira no Há mais de três décadas que se acentu- utilizam de maquinário de pequeno porte;
ÁREAS DE RISCO/GESTÃO DE RISCO
funcionamento dos sistemas, nos quais a aram os estudos sobre os benefícios da
▸ Obras de drenagem superficial, proteção
população usuária ocupa um papel ativo arborização e da vegetação urbana para
O resultado do diagnóstico possibilita a vegetal com gramíneas e desmonte de blo-
e, portanto, precisa entender o conceito de o microclima das cidades; no entanto, em
sistematização de referenciais técnicos e cos e matacões. Incluem implantação de
coparticipação, assumindo o compromisso muitos lugares a arborização permanece
gerenciais para a implementação de inter- canaletas, escadas hidráulicas, plantação
com a despoluição ambiental e tornando-se como um contínuo desafio em virtude da
venções estruturais e ações não estruturais de cobertura vegetal adequada. Predomínio
Agentes de Transformação. prevalência de uma visão utilitarista dos
para controle, redução e erradicação dos de serviços simples, manuais ou com auxílio
espaços públicos do sistema viário, sempre
riscos. As áreas identificadas com situações de máquinas de pequeno porte;
SISTEMA DE MOBILIDADE privilegiando o automóvel. Nesse sentido,
de riscos são setorizadas, possibilitando
as principais ações que o urbanismo social ▸ Obras de urbanização agregadas a dre-
executar ações de qualificação ambiental
A relação da dimensão ambiental com os deve considerar são: nagem e esgotamento sanitário. Pequenas
de acordo com os problemas identificados
assuntos de mobilidade é de natureza com- obras de urbanização como aberturas de
em cada situação, porém sempre integrados
plementar e visa dar qualidade ambiental ▸ Articular comunidades e prefeitura local acessos, melhoria de passagens e vielas e
a projetos de maior amplitude.
aos passeios, calçadas e ao próprio sistema para a implementação de programas de becos, execução de passarelas, urbanização

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

de áreas visando à implantação de rede de habitabilidade dos domicílios, considerando SUSTENTABILIDADE DAS INTERVENÇÕES
drenagem e esgotamento sanitário; a correlação entre condições ambientais, E DO TERRITÓRIO
moradia e saúde.
▸ Estruturas de contenção de pequeno por-
A sustentabilidade das intervenções e das transformações al-
te. Implantação de estruturas como gabiões
▸ Requalificação do ambiente construído — cançadas no território demanda construir e manter um trabalho
e muros de concreto;
que implica, via de regra, a atuação do Poder abrangente de mobilização e engajamento da comunidade residente,
▸ Estruturas de contenção de médio e gran- Público para intervir na configuração do compreendida como agente protagonista do processo de produção
de porte e que envolvem obras de contenção assentamento ou ambiente construído — do espaço urbano na escala intraurbana das áreas vulneráveis.
ativas e passivas, como muros de gravidade, buscando adequar a forma de parcelamento,
cortinas atirantadas, entre outros; a densidade construtiva (garantindo vãos e Nesse sentido, a Educação Ambiental refletida pela sociedade
recuos para iluminação e ventilação) e a pre- representa um dos temas transversais mais importantes das polí-
▸ Obras de terraplanagem de médio e gran-
visão de espaços livres. Por vezes, esse tipo ticas, dos programas e dos investimentos nas áreas de habitação,
de porte com auxílio de maquinário;
de intervenção pode implicar a necessidade mobilidade e saneamento ambiental. Mais recentemente, vem sendo
▸ Remoções de edificações, que podem de remoções ou reparcelamento. Para tanto, percebida como importante instrumento nas ações de prevenção
ser definitivas ou não. Priorizar, sempre que é fundamental prever, desde o planejamento, e mitigação dos desastres ambientais.
possível, realocamentos dentro da própria os recursos para garantir o atendimento habi-
área ocupada e em local seguro. tacional para eventuais moradias removidas, As ações do trabalho social no eixo Educação Ambiental devem
ou seja, que cada morador tenha garantido ser desenvolvidas em todas as fases do processo de intervenção,
o direito à moradia, tendo acesso a um novo desde a escuta e planejamento até a execução e consolidação
AMBIENTE CONSTRUÍDO E
domicílio, sempre que possível no mesmo das transformações produzidas. Assim, as ações com vistas ao
HABITABILIDADE
assentamento ou em localidade próxima; alcance da sustentabilidade visam promover mudanças de atitude
em relação ao meio ambiente, ao patrimônio e à vida saudável,
Como mencionado anteriormente9, o Am- ▸ Melhorias habitacionais — que contem-
fortalecendo a percepção crítica da população sobre os aspectos
biente Construído — casas e demais cons- plem a qualificação das moradias, intervindo
que influenciam sua qualidade de vida, além de refletir sobre os
truções no território — é fator relevante para em problemas relacionados à: habitabilidade
fatores sociais, políticos, culturais e econômicos que determinam
as condições ambientais dos assentamentos. e salubridade —iluminação e ventilação,
sua realidade, tornando possível alcançar a referida sustentabili-
Tal fator influencia também as condições de eliminação de situações de umidade etc.;
dade ambiental e social da intervenção. O envolvimento de vários
habitabilidade, tema que toma maior emer- densidade da moradia — relacionada ao nú-
segmentos sociais, como moradores, lideranças comunitárias,
gência a partir do contexto da pandemia de mero de pessoas por domicílio, prevendo-se
professores, gestores municipais, conselheiros, entre outros,
covid-19, não desconsiderando outras enfer- ampliações, quando possível ou viável; e
é fator determinante para o sucesso das ações, promovendo a
midades que sistematicamente acometem segurança estrutural — de modo a solucio-
consolidação e a consistência dos investimentos.
populações residentes em assentamentos nar patologias construtivas — eliminação de
vulneráveis ou precários. riscos de acidentes e injúria.
O trabalho a ser desenvolvido deve ser capaz de subsidiar, sensi-
É importante também observar alternativas bilizar e orientar a população sobre a importância das questões
Assim, é importante prever alternativas
de ações sistêmicas e locais que se relacio- ambientais e patrimoniais presentes no seu bairro e na moradia,
para intervir no Ambiente Construído, bem
nam à qualificação do Ambiente Construído, através das informações teóricas e práticas disponibilizadas e
como para melhorias nas condições de
por meio de mutirões, manutenção de espa- das vivenciadas pela população, que sirvam de ferramentas para
ços públicos e plantio de hortas, entre outros. apropriação de novos conhecimentos e estimulem atitudes positivas
9  Ver o tópico 6.2_ Diagnóstico Ambiental.

178 179
Guia de Urbanismo Social Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

e comportamentos ativos em relação à conservação, manutenção Resíduos sólidos:


e recuperação de seu ambiente de vivência e dos aspectos que ▸ Coleta seletiva: sensibilização e apoio à implementação de
influenciam sua qualidade de vida. coleta seletiva e óleo de cozinha, bem como aproveitamento de
material orgânico para compostagem, e material reciclável para
A sustentabilidade das intervenções prevê uma abordagem sistêmi- arte-artesanato;
ca, portanto, a Educação Ambiental deve ser inserida não somente
▸ Catadores de materiais recicláveis: articulação/apoio a processos
no pós-obra, mas em todas as fases da intervenção (pré, durante e
de organização e capacitação de catadores de materiais recicláveis
pós-intervenção/obra). Dessa forma, a estratégia de mobilização,
e/ou de famílias que sobrevivem em lixão, quando da sua existência
que se inicia no planejamento do projeto e/ou intervenção, deve
na área de intervenção;
abranger, para além de observar as discussões mais diretamente
relacionadas às questões ambientais, aspectos relacionados à Saneamento Básico (água e esgotos): orientação sobre o uso
autoestima dos moradores, do fomento ao trabalho coletivo, e, em racional de água e do sistema de esgotamento sanitário (rede e
especial, a articulação ou associação com dinâmicas de geração equipamentos), e da tarifa social vinculada a esses serviços;
de trabalho e renda.
Segurança Alimentar e Nutricional: sensibilização da comunidade
A qualificação do Espaço Construído, bem como sua manutenção, para o consumo de alimentação saudável, redução das despesas por
deve estar associada com questões ambientais, de saúde e habi- meio do aproveitamento integral e produção e preparo de alimentos;
tabilidade e estratégias de subsistência, contemplando iniciativas
como manutenção de espaços comuns, cultivo de hortas urbanas Formação de Multiplicadores/Agentes/Influenciadores: identi-
e preparo de alimentos para comercialização, coleta e triagem de ficação e formação de agentes ambientais, e, quando oportuno,
materiais para reciclagem. A partir dessas iniciativas pode-se, por constituição e formação de comissão de conservação, manutenção
exemplo, oportunizar e potencializar o fomento à visitação dos e melhorias dos espaços verdes e públicos.
espaços e da valorização da história e ações locais por meio de
Turismo de Base Comunitária, entre outros.

Em síntese, no fomento à Educação Ambiental junto aos moradores


e demais atores (stakeholders) locais pode-se articular a realização
de atividades nos seguintes temas:

Sensibilização sobre meio ambiente: construção de conhecimentos,


atitudes e habilidades voltadas à preservação do meio ambiente e
levantamento de interesse sobre a temática.

Manejo dos espaços verdes e comuns: incentivo e desenvolvimento


de práticas ambientais relacionadas ao manejo (do solo, plantio
e manutenção) e melhorias nos espaços livres do bairro (áreas
verdes e comuns) e entorno.

180 181
Guia de Urbanismo Social Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

6.4_
RESILIÊNCIA URBANA E JUSTIÇA sobre áreas protegidas, fundamentais à garantia da sustentabilidade
AMBIENTAL EM TERRITÓRIOS da sociedade11. Para Anelli12, os esforços do planejamento urbano
PERIFÉRICOS para reverter esse modelo de urbanização dispersa seguiram o
conceito de cidade compacta, buscando o maior adensamento
das áreas estruturadas. Nesse sentido, destaca-se o Plano Diretor
O debate acerca da resiliência urbana e da justiça ambiental
Estratégico de São Paulo, no qual o adensamento foi concebido
torna-se cada vez mais relevante e urgente, sobretudo quando se
associado às linhas de transporte público de alta capacidade,
considera o contexto de precariedade das cidades brasileiras, com
constituindo uma malha que deveria reestruturar o crescimento
suas enormes desigualdades socioespaciais e exposição a riscos
urbano, revertendo a tendência à dispersão. Estudos recentes
socioambientais crescentes10.
avaliam o impacto desse novo modelo urbano na produção de ondas
de calor e na distribuição de chuvas, trazendo subsídios ainda não
Nas cidades do século XXI os desastres ambientais e as pandemias
incorporados na revisão dos instrumentos de planejamento urbano
evidenciam as precárias condições de vida de grande parte da
e em políticas públicas.
população do planeta. A crescente destruição da natureza, com o
consumo exacerbado e a poluição da atmosfera, tem impactado
As favelas inserem-se em um cenário de crise ambiental, defla-
o meio ambiente com inundações frequentes, secas severas,
grando uma série de problemas, incluindo os de caráter social, que
incêndios extensivos, deslizamentos de terra, dentre outros danos
se configuram em grandes desafios para as metrópoles contem-
prejudiciais ao hábitat humano. O 6º Relatório de Avaliação do IPCC
porâneas. Grande parte dos domicílios situados nas favelas das
(2021) indica que o agravamento desses desastres corresponde à
cidades brasileiras localizam-se em margens de rios, córregos e
efetivação das previsões de alterações nos regimes de precipitações
lagos; uma parte situa-se em áreas contaminadas (aterros, lixões
modelados ao longo da última década, assim como a elevação das
etc.) ou em unidades de conservação, devendo sua permanência
temperaturas médias. Os impactos dos eventos extremos atingem
ser objeto de discussão. O número de favelas em áreas de risco
com maior rigor as populações mais pobres, distribuídas em regiões
é alto e crescente. A publicação “População em áreas de risco no
que se pautam pela precariedade dos assentamentos onde vivem.
Brasil” do IBGE, em parceria com o Cemaden (Centro Nacional de
Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), apresenta números
Nesse cenário emergem os temas da resiliência urbana e justiça
inéditos sobre o problema, a partir dos dados do Censo de 2010,
ambiental, entendidos aqui como conceitos indissociáveis que
mapeados em 872 municípios monitorados pelo próprio Centro. A
remetem ao enfrentamento de algumas das principais proble-
população em áreas de risco em tais localidades chegava a 8.270.127
máticas da população das cidades na contemporaneidade, em
habitantes, que moravam em 2.471.349 domicílios particulares
especial aquelas que ocupam territórios periféricos e áreas de
permanentes. Cerca de 17,8% das pessoas que viviam nas áreas de
fragilidade ambiental.
risco desses municípios eram idosos ou crianças, os grupos etários
mais vulneráveis; 20,3% moravam em “aglomerados subnormais”
O modelo de urbanização disperso e extensivo das cidades brasi-
(1,7 milhão de pessoas), em 19,9% de domicílios (total de 490.849).
leiras resulta em assimetrias socioespaciais que se expressam, na
maioria das vezes, no avanço ilegal e predatório da ocupação urbana
11  ALVIM, A. T. B.; RÚBIO, V. M. (org.). Sustentabilidade em projetos para urbanização
de assentamentos precários no Brasil: contexto, dimensões e perspectivas. Barueri:
Manole, 2022.
10  Pesquisas : (i) O papel das redes de infraestrutura na redução das vulnerabilidades
das cidades brasileiras às mudanças climáticas (Renato Anelli, apoio do CNPq e Fun- 12  ANELLI, R. L. S. As cidades e o aquecimento global: desafios para o planejamento
do MackPesquisa); (ii) Planos e projetos urbanos para cidades brasileiras: desafios da urbano, as engenharias e as ciências sociais e básicas. Journal of Urban Technology
resiliência em áreas protegidas (Angélica Alvim, Bolsa Produtividade CNPq). and Sustainability, v. 3, edição 1, 2020.

182 183
Guia de Urbanismo Social Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

A questão da urbanização em favelas nas cidades brasileiras é demografia, capital humano e desigualdades); ambiente construído
recorrente, com investimentos públicos alocados ao longo de (e.g, serviços ecossistêmicos nas paisagens urbanas)14.
décadas. Entretanto, as intervenções têm sido desarticuladas e
insuficientes, não indicando avanços socioambientais qualitativos Essa reflexão é fundamental, pois o debate acerca da resiliência
de abrangência coletiva. urbana não pode estar dissociado dos problemas e desigualdades
existentes nos ambientes urbanos. Sendo assim, a construção da
Evidencia-se, também, a importância central de uma abordagem resiliência nas cidades brasileiras não deve assumir uma pers-
sistêmica sobre a cidade, uma vez que nenhum dos setores da pectiva tecnocêntrica e rígida, que reproduz profundas injustiças
realidade urbana é dissociável e ações que levam à resiliência ambientais, transferindo as consequências dos desequilíbrios dos
urbana podem contribuir para a redução da desigualdade e para ecossistemas para as comunidades e territórios mais vulneráveis,
a ampliação da justiça ambiental como tem sido apontado por diversos autores no debate acerca
da sustentabilidade.
O conceito de resiliência urbana tem ganhado enorme repercussão
em pesquisas ligadas ao urbanismo social, principalmente por sua O termo “justiça ambiental” aparece como um conceito aglutina-
inserção no documento Transformando o nosso mundo: A agenda dor e mobilizador, por integrar as dimensões ambiental, social e
2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que apresenta os 17 ética da sustentabilidade e do desenvolvimento, frequentemente
Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), com destaque dissociados nos discursos e nas práticas. Justiça ambiental, mais
para o Objetivo 11: Tornar as cidades e os assentamentos humanos que uma expressão do campo do direito, assume-se como campo
inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis. de reflexão, mobilização e bandeira de luta de diversos sujeitos e
entidades locais, muitos deles afetados por diversos riscos, cuja
Para Meerow et al. , a resiliência urbana é entendida a partir de uma
13
participação é essencial para a boa governança15.
perspectiva complexa como a capacidade dos sistemas urbanos
de manter ou retornar suas funções após situações de choques e Em tal contexto, operam em rede a governança multiescalar (que
distúrbios, ou ainda adaptar e transformar os sistemas que limitam articula o local, a região e a nação) e a multissetorial (que articula
a adaptação atual ou futura. Ao considerar a complexidade dos as questões setoriais, partes de um único sistema). Trata-se da
sistemas urbanos, os autores apontam que eles são formados implementação de uma cogestão da resiliência, dividida entre
não apenas pela dimensão técnica como também pelas redes atores locais e de âmbito global, entre público e privado, entre
socioecológicas e sociotécnicas em diferentes escalas espaciais indivíduos, empresas e governos.
e temporais.
É através do processo participativo e democrático que os gru-
A literatura aponta que a resiliência urbana possui múltiplas di- pos mais vulneráveis podem ter voz, colocar suas demandas
mensões. Há quatro centrais e inter-relacionadas que configuram a e se tornar atores ativos na busca de um equilíbrio de força na
construção de resiliência urbana: fluxos metabólicos (e.g., cadeias
de produção, abastecimento e consumo); rede de governança (e.g., 14  RESILIENCE ALLIANCE. Urban resilience research prospectus: a resilience
alliance Initiative for transitioning urban systems towards sustainable futures. USA,
estruturas institucionais e organizações); dinâmicas sociais (e.g., Sweden, Australia, Arizona State University, Stockholm University: Commonwealth
Scientific and Industrial Research Organisation — CSIRO, 2007.

15  ACSELRAD, H. Justiça ambiental: ação coletiva e estratégias argumentativas. In:


13  MEEROW, S.; NEWELL, J. P.; STULTS, M. Defining urban resilience: a review. ACSELRAD, H.; HERCULANO, S.; PÁDUA, J. A. (org.). Justiça ambiental e cidadania.
Landscape and Urban Planning, v. 147, p. 38-39, mar. 2016. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fundação Ford, 2004.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 06 : Dimensão Sustentabilidade Urbana

disputa por territórios em conflitos ambientais. Assim, torna-se


indispensável a implementação de políticas públicas urbanas e
ambientais — integradas às intervenções que promovam a resiliência
6.5_ PROJETO CAMPO-FAVELA:
UM CASO ESCALAR

urbana de comunidades vulneráveis, por meio de um processo de


governança que valorize a participação da sociedade e, ao mesmo Um dos dezessete Objetivos para o Desen- o acesso a alimentos in natura ou minima-
tempo, incorpore princípios de preservação e de recuperação volvimento Sustentável é fome zero e agri- mente processados é raro ou inexistente
ambiental, em prol da justiça ambiental. cultura sustentável. Esse objetivo visa acabar (desertos alimentares) ou áreas onde há a
com a fome, garantindo acesso a alimentos predominância da venda e distribuição de
seguros e nutritivos em quantidade suficiente produtos altamente processados e ultra-
para todos até 2030. Faz parte do mesmo processados, altamente calóricos e pouco
objetivo dobrar a produtividade e a renda de nutritivos (pântanos alimentares). Garantir o
pequenos produtores de alimentos, incluindo acesso a uma alimentação saudável, segura
os pequenos agricultores familiares. e em quantidade adequada é, ou deveria
ser, uma preocupação de muitos gestores
Alcançar esse objetivo é um grande desafio públicos do país, tendo enorme impacto no
para as grandes cidades brasileiras. Dados sistema de saúde local.
do IBGE mostram que a disponibilidade
domiciliar de alimentos in natura ou minima- Se a ponta consumidora mais vulnerável tem
mente processados vem perdendo espaço dificuldade para acessar alimentos frescos
para alimentos processados e ultraproces- de maior qualidade nutricional, a ponta
sados. Esse movimento é ainda mais forte produtora desses alimentos também tem
em territórios mais vulneráveis, locais onde grande dificuldade para produzir e escoar
a oferta de produtos saudáveis e nutritivos a sua produção. Estima-se que cerca de 70
(frutas, verduras e legumes) é significati- a 80% da alimentação de produtos in natura
vamente menor quando comparada com a do dia a dia das famílias seja proveniente
realidade em bairros mais ricos, reforçando do pequeno produtor familiar.
dessa forma uma forte desigualdade social
e alimentar. Estabelecimentos comerciais e Com a pandemia, as duas pontas frágeis
varejistas existentes nesses locais preferem dessa cadeia sofreram ainda mais. O acesso
trabalhar com produtos processados ou a alimentos frescos ficou ainda mais restrito
ultraprocessados, pois são menos pere- aos moradores de áreas mais vulneráveis
cíveis, não precisam de refrigeração, são das grandes cidades, em especial os mora-
facilmente estocados e, muitas vezes, são dores de favelas. O fechamento de escolas
também mais baratos. e creches impediu que crianças e adoles-
centes tivessem acesso a uma alimentação
Muitas dessas áreas das grandes cidades saudável. Dados da Unicef de 2021 apontam
podem ser consideradas desertos ou pân- que as famílias de baixa renda foram as
tanos alimentares, ou seja, são locais onde que mais sofreram com a queda na renda,

186 187
Guia de Urbanismo Social

com o aumento da insegurança alimentar de 1.500 pequenos produtores rurais foram


e da ingestão de alimentos não saudáveis beneficiados pelo projeto. O projeto, em uma
ou ultraprocessados. escala menor, continua, com o apoio de uma
empresa de fertilizantes e com a operação
Com o objetivo de ajudar as duas pontas de uma cooperativa de pequenos produtores
frágeis dessa cadeia, surgiu a ideia do familiares. Além disso, algumas associações
Projeto Campo Favela. No campo, havia de moradores de comunidades passaram
produtos sendo jogados fora e produtores a comprar frutas e verduras diretamente
familiares sem renda. Nas favelas, havia de agricultores familiares e a vendê-los a
famílias sem renda ou com pouca renda para preços competitivos.
comprar alimentos, e crianças sem acesso
a uma alimentação saudável. Um grupo de As pesquisas com o objetivo de redesenhar
professores e pesquisadores do Insper se as cadeias de alimentos frescos, propondo
reuniu para desenvolver e executar o projeto modelos alternativos e sustentáveis para
e, com a participação de alunos e de grande atender áreas de baixa renda, também
parte da comunidade do Insper, conseguiram continuam sendo desenvolvidas, e contam
alavancar o projeto, que teve dois grandes com pesquisadores não só do Insper, mas
objetivos: (1) ajudar as famílias do campo também do MIT (Massachusetts Institute
e das favelas nesse período de pandemia, of Technology) e da LSE (London School of
e simultaneamente (2) criar um modelo Economics), contando com financiamento
sustentável que permitisse uma ligação da British Academy.
direta entre produtores e consumidores
das favelas. Com a redução do número de
intermediários, haveria uma diminuição do
desperdício de alimentos, e os produtos
frescos poderiam chegar às famílias de
baixa renda, moradoras de favelas, a um
preço mais baixo, mas ao mesmo tempo re-
munerando de forma justa todos os agentes
envolvidos nessa complexa cadeia.

Como resultado, o projeto Campo-Favela


conseguiu arrecadar cerca de R$ 4 milhões
em doações de pessoas físicas e jurídicas.
Foram mais de um milhão de quilos de ali-
mentos frescos distribuídos gratuitamente
para mais de 130.000 famílias carentes das
favelas de diversas cidades do país. Mais

188
Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

07_ 7.1_ A DIMENSÃO SOCIOECONÔMICA E O


URBANISMO SOCIAL

DIMENSÃO SOCIOECONÔMICA E Quando nos referimos aos aspectos socioeconômicos e culturais


das favelas, estamos, de modo inevitável, falando das condições de

CULTURAL vida das pessoas e das comunidades que habitam esses territórios.
Tal qualidade de vida passa pela presença e disponibilidade de
serviços públicos atendendo à população local (tais como serviços
7.1_ A dimensão socioeconômica e o
de saúde, esporte, lazer, cultura, assistência social, direitos humanos,
urbanismo social
abastecimento, segurança alimentar e desenvolvimento econômico),
assim como pelo conhecimento em profundidade do território e de
7.2_ Cultura local
sua população. Conforme já mencionado no Capítulo 2, na pers-
pectiva do urbanismo social, os principais indicadores que guiam
7.3_ Empreendedorismo nos
as intervenção nos territórios devem ser os indicadores sociais e
territórios
não apenas os indicadores urbanos e de infraestrutura.

7.4_ A coprodução urbana pelas


Para o urbanismo social, as intervenções devem ser pensadas e
lentes de iniciativas comunitárias
planejadas para resolver também questões sociais, e não somente
do espaço urbano, em processos colaborativos. Obviamente há uma
7.5_ A potência das comunidades
relação entre qualidade do espaço urbano e qualidade de vida, mas a
fortalecidas a partir de tecnologia
construção e a reformulação desse espaço precisam acompanhar
social e cívica
as características e demandas da população local — lembrando que
o urbanismo social pretende deixar mudanças sociais duradouras
e que empoderem as comunidades, criando um ciclo positivo de
desenvolvimento local. Entregas previamente formatadas sem
construção conjunta com a comunidade podem levar a desperdícios
de recursos valiosos por não corresponderem às necessidades reais
daquele território e de sua população, além de potencialmente não
estimularem um sentimento de apropriação e pertencimento da
AUTORES comunidade em relação aos produtos ou serviços que estão sendo
entregues.
07.1_ Núcleo de Urbanismo Social;
07.2_ Núcleos de Mulheres e Territórios e Por isso, ressalta-se a importância de processos de diagnóstico e
de Urbanismo Social;
planejamento que sejam participativos e equitativos, refletindo
07.3_ Marcus A. Y. Salusse, Juliana M.
a rica e potente diversidade social do território de forma inter-
Mitkiewicz e Luiz F. C. S. Durão (Insper);
seccional, abarcando todas e todos, mulheres, crianças, idosos,
07.4_ Marcos L. Rosa (FAU-USP);
população LGBTQIA+, migrantes e negro(a)s. É importante incentivar
07.5_ Ygor Santos Melo e Camila Jordan
e buscar de maneira ativa a participação de públicos historicamente
(TETO Brasil).
191
Guia de Urbanismo Social Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

sub-representados em processos decisórios na zona sul da cidade) — que possui forte preconceitos as culturas locais e periféricas. a estigmatização socioespacial. Isso passa
e em espaços de representação política. A presença de comunidades indígenas, baixíssi Conectar esses territórios é o primeiro passo por compreender esses territórios como
participação permite que as decisões refli- ma densidade populacional e grandes áreas para uma transformação mais profunda na espaços urbanos que sofreram com uma
tam de forma mais democrática e inclusiva de proteção ambiental —, precisa ou deve cidade e na sociedade. De forma clara, na insuficiência histórica de investimentos do
as características de cada território e sua receber exatamente as mesmas políticas perspectiva do urbanismo social não se Estado. Também são territórios nos quais
comunidade — suas demandas e potências. públicas que Paraisópolis (também localizada faz uma intervenção para manter a favela se costuma dizer que há pouca presença do
na região sul), a segunda maior favela da no “gueto” e sim para conectá-la à cidade. Estado quando, na verdade, há uma presença
A construção de políticas públicas e suas cidade e com altíssima densidade demo- precária por parte dele — inclusive, recor-
ações para e nas comunidades das favelas gráfica? Conhecer as especificidades dos O modo como caracterizamos as favelas rentemente essa presença se dá de forma
devem conciliar as necessidades e deman- territórios é dar visibilidade aos seus prin- ou territórios de vulnerabilidade social violenta e repressiva. Assim, para construir
das dos territórios com as características cipais problemas e também reconhecer as influencia ou demonstra os preconceitos uma caracterização de maneira mais huma-
particulares de cada local e o reconheci- potencialidades ali presentes. As soluções em relação a esses territórios e seus mora- nizada com suas peculiaridades resultantes
mento dos seus potenciais; ações diversas nem sempre vêm de fora. Muitas vezes elas dores ou os reconhece na sua rica e potente de processos socioeconômicos complexos,
nos âmbitos sociais, culturais, educativos, precisam ser reconhecidas e fomentadas vida comunitária social e cultural. precisamos levar em consideração e ressig-
econômico etc. que são desenvolvidas a localmente. Porém, isso só será possível nificar certos aspectos presentes ali, como:
partir da população local. com um conhecimento profundo e a pro- Se olharmos apenas essas características
dução de dados qualitativos e quantitativos sem levar em conta a complexidade e di- ▸ Relações de trabalho marcadas por níveis
Saber, por exemplo, o número de crianças sobre os territórios e suas populações, para versidade na formação e constituição das elevados de subemprego e informalidade;
e de migrantes, os índices de gravidez pre- que decisões sejam tomadas de maneira favelas, acaba-se gerando pressupostos
▸ Apropriação social do território, especial-
coce e de violência pode mudar o rumo e a informada e deliberada1. centrados em parâmetros negativos, que se
mente para fins de moradia;
escolha das políticas e programas a serem baseiam em noções idealizadas de cidades
priorizados localmente. Apesar de esses O que o urbanismo social também procura “normais” versus territórios permeados por ▸ Construções predominantemente carac-
espaços urbanos, de um modo geral, enfren- alcançar é a redução de distâncias geo- diversas ausências e carências, estimulan- terizadas pela autoconstrução e realizadas
tarem desafios socioeconômicos similares, gráficas, éticas e morais entre as cidades do-se, assim, a perpetuação de estigmas de acordo com os espaços disponíveis no
dado o contexto de exclusão, pobreza e “formal” e “informal”. Busca-se romper com e preconceitos por não seguirem padrões território;
vulnerabilidade social, é importante ressal- estigmas contra as comunidades das fave- hegemônicos de certos modelos urbanís-
▸ Indicadores socioeconômicos e ambien-
tar que cada território possui um contexto las, proporcionando espaços para que elas ticos (muito reproduzidos pelo mercado
tais abaixo da média do verificado na cidade
e uma realidade específica que devem ser possam continuar criando e expressando e pelo Estado). Esses territórios rompem
como um todo;
conhecidos e considerados. suas culturais locais e também garantindo com o imaginário de “cidade ideal” e nos
acesso a espaços e oportunidades da cidade confrontam com a realidade da desigual- ▸ Territórios permeados por alto grau de
Em um país de proporções continentais como como um todo. Em última instância, ao unir dade social, da crescente pobreza urbana vulnerabilidade ambiental;
o Brasil, isso fica mais evidente quando olha- as cidades formal e informal, o urbanismo e da segregação socioespacial presente
▸ Elevada densidade habitacional e taxa
mos para municípios de diferentes regiões: social almeja que a cidade como um todo em nossas urbes.
de densidade demográfica acima da média;
uma comunidade no Rio de Janeiro é igual também possa acessar livremente e sem
ou enfrenta os mesmos problemas de uma O Observatório das Favelas, por exemplo, ▸ Forte presença de relações sociais e de vi-
comunidade no Pará? E mesmo dentro de propõe uma outra maneira para caracterizar zinhança, com uma sociabilidade que valoriza
1  Marsillac e as comunidades indígenas: Extremo
um município do tamanho de São Paulo, Sul de São Paulo: terra indígena, SESC-SP, 2022. E
as favelas que congrega aspectos urbanos, os espaços comuns como lugar de encontro;
por exemplo, o distrito de Marsillac (situado também: Sobre as diversas ações da comunidade de sociais e políticos e que procura romper com
Paraisópolis. ▸ Alta concentração de negro(a)s e pardo(a)s;
192 193
Guia de Urbanismo Social Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

▸ Índices de violência, sobretudo a letal, acima e caracterizar essas comunidades com suas culturais locais presentes em cada território
ALGUMAS INICIATIVAS DAS
da média do observado na cidade “formal”. distintas condições. E deve-se buscar reco- e valorizar os espaços públicos enquanto
E NAS FAVELAS
nhecer e valorizar as ações lá existentes, morada do coletivo dessas comunidades.
Ao destacar aspectos sociais, econômicos,
quase sempre desenvolvidas sem apoio ou
políticos e culturais que caracterizam esses CUFA — Central Única das Favelas: é uma
financiamento públicos. Outro ponto importante é a perspectiva de
territórios, abrimos espaço para quebrar organização brasileira reconhecida nacional e
que todo projeto deve estimular a forma-
concepções negativas e preconceituosas de internacionalmente nos âmbitos político, social,
▸ Componente social ção de capacidade instalada no território,
espaços periféricos e de suas populações. esportivo e cultural que existe há vinte anos;
fortalecendo associações e comunidades
Entender como está a educação, a primeira
locais. Podemos considerar que a susten- G10 Favelas — é formado por um grupo de
A consideração dos interesses dos benefici- infância, a saúde e a segurança ajuda a
tabilidade do projeto a médio e longo prazo líderes e empreendedores de impacto social
ários ou afetados (por qualquer intervenção construir insumos para a construção de
também depende dessa formação para gerar das favelas;
urbana) é necessária para garantir que um equipamentos que acolham essas neces-
capacidade instalada no território (que per-
processo de decisão seja justo e democrá- sidades. Trata-se de conhecer os aspectos Observatório das Favelas: Organização da So-
durará após a implementação e entrega final
tico e não gere injustiças e/ou reproduza sociais e culturais para que os componentes ciedade Civil de Interesse Público sediada no
dos projetos). Organizações sociais de base,
um processo de dominação por padrões físicos possam abrigar essas relações que Conjunto de Favelas da Maré, dedicada à pro-
associações e lideranças fortalecidas geram
hegemônicos. Uma comunidade informada já existem no território e não desenvolver o dução de conhecimento e metodologias visando
e mantêm a capacidade instalada nos territó-
e empoderada também sustenta a manu- projeto primeiro de maneira desconectada. incidir em políticas públicas sobre as favelas e
rios de forma a dar continuidade a processos
tenção e continuidade do projeto. Para que São as dinâmicas próprias locais que darão periferias e promover o direito à cidade.
de cidadania participativa, engajamento no
isso se concretize, podemos articular ações valor aos projetos sendo desenvolvidos.
desenho e planejamento das intervenções Para saber mais sobre os dados e as pesquisas,
em termos de quatro componentes cruciais:
e, inclusive, atuando como controle social. ver as referências seguintes:
▸ Componente econômico
Essa capacidade instalada também auxilia
▸ Componente comunicacional ▸ Instituto Locomotiva
Investigar e buscar entender quais são as na construção de uma narrativa cidadã com-
Implementar uma linguagem comum com fortalezas da economia local e como forta- partilhada sobre e nos territórios. ▸ Fundação Tide Setubal — Iniciativas
espaços de troca entre técnicos, gestores lecê-las. Como vinculá-las com a economia
▸ Dicionário de Favelas Marielle Franco
e a comunidade, para que “aprendam a falar da cidade como um todo? Essas economias Além disso, a articulação desses componen-
a mesma língua”. Construir essa linguagem internas ao território geram e mantêm a eco- tes nos projetos de urbanismo social exige ▸ ANF – Agência de Notícias das Favelas
comum proporciona a criação de estratégias nomia local viva e são fontes de valor para uma mudança de lógica institucional com
▸ Portal Favelas
de comunicação mais eficazes. produzir relações econômicas importantes integração entre as diferentes secretarias
e positivas com a cidade como um todo. Em — para saber mais, ver o Capítulo 8. ▸ Digital Favela
▸ Componente cultural inúmeras favelas do país existem ações de
empreendedorismo local.
Lembrar que nem sempre os projetos são
replicáveis de maneira literal nos territórios.
Portanto, o urbanismo social estimula pro-
Realizar leituras dos territórios a partir dos
jetos que respeitam e integram em seu
valores sociais e culturais da comunidade
desenho as preexistências do território e
é fundamental. Importante também é com-
a cultura local. Assim, é importante levar
preender como os territórios constroem
em consideração e integrar aos projetos de
laços, assim como seus conflitos internos,
urbanização as lógicas urbanas, sociais e

194 195
Guia de Urbanismo Social Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

7.2_
arquitetura física e a arquitetura social. Trata-se, então, de criar e
CULTURA LOCAL
fortalecer espaços nos quais a cultura local periférica ou da favela
já presente nos territórios possa se manifestar e crescer. Além
de fortalecer a produção cultural local, é importante estimular e
proporcionar acesso dos moradores dessas comunidades a outros
A cidade como lugar de encontro deve propiciar a interação entre
centros culturais da cidade (facilitando a mobilidade urbana e tor-
pessoas diferentes, dentro de uma vasta diversidade, presente em
nando o custo dos eventos culturais mais acessíveis, por exemplo).
cada indivíduo, e sobretudo na coletividade, pois justamente são
Por fim, promover a ida a esses espaços culturais nas periferias e
as pessoas que constituem a cidade, e não o contrário. O encontro
favelas por moradores de outras regiões da cidade é uma forma
é necessário pelas mais diversas razões, tais como para trabalhar,
de estimular a integração do tecido social urbano como um todo,
vender o que se produz, consumir o que foi produzido, para o lazer,
abrindo oportunidade para romper com preconceitos.
para debater e refletir politicamente, para construir e desconstruir,
entre muitas outras possibilidades. Contudo, sabemos que existe
Assim, a cultura local também precisa de estímulos para crescer e
uma desigualdade explícita em relação à distribuição de equipamen-
romper com concepções negativas com as quais podem ser asso-
tos e atividades culturais e sua acessibilidade dentro do território
ciadas por preconceitos e superar a negação da cultura específica
da cidade. A política cultural, historicamente, na sua efetivação,
produzida nesses territórios. Além da criação de equipamentos
é muitas vezes tratada como objeto de consumo, limitando não
públicos culturais mais próximos das favelas, é importante fortalecer
apenas o consumo e acesso como também o reconhecimento dos
mais variados produtos e ações culturais. ! as entidades e grupos culturais locais via políticas públicas mais
acessíveis. Instrumentos formais de estímulo à cultura (como uma
PARA SABER MAIS, VER:
Lei Rouanet) não dão conta de alcançar grupos menos formalizados.
Investir e desenvolver territórios com baixo acesso a equipamentos ▸ Instituto de Estudos
Avançados – USP. Uma opção é repensar o desenho de eventos culturais para trans-
culturais passa por valorizar e reconhecer o potencial cultural pe- Periferias como formá-los em geradores de inclusão, equidade e oportunidades,
riférico, assim como os atores e as organizações locais. É essencial potência.
e para que sejam fonte e evidência das novas propostas culturais.
reconhecer as múltiplas organizações e projetos comunitários que
trabalham com cultura. São territórios que, por diversas razões,
estão apartados dos principais centros culturais das cidades e
ARTISTAS DA MARÉ – MARÉGRAFIA
possuem uma carência de equipamentos públicos (ou privados)
para atividades dessa natureza. No entanto, são espaços que têm
A pesquisa “Marégrafia”, desenvolvida pela Redes da Maré, foi realizada
desenvolvido suas próprias linguagens e produções culturais — na
no conjunto de favelas da Maré, no Rio de Janeiro. Seu objetivo foi romper
música, rap, funk, passinho, rodas de samba; nas artes visuais, o
a lógica eurocêntrica, branca e rica sobre o que é cultura e arte, reivin-
grafite, para citar só duas áreas — que historicamente são pouco
dicando o reconhecimento da importância da arte e da cultura na favela.
reconhecidas pelo Estado e por quem não está inserido naquele
A pesquisa aponta como os artistas vivem e produzem seus trabalhos.
contexto sociocultural.
É preciso reunir esforços para que a sociedade entenda e reconheça a
realidade e as potencialidades dos artistas brasileiros.
O urbanismo social entende a construção simbólica do valor da
cultura como um eixo essencial para a transformação da socie- !
dade e do território. A cultura é uma das fortalezas que permitem PARA SABER MAIS, VER:

aproximar pessoas e deve avançar de modo simultâneo com a ▸ Instituto de Estudos Avançados — USP. Periferias como potência.

196 197
Guia de Urbanismo Social Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

7.3_
não apenas de recursos financeiros e conhecimento, aspectos que
EMPREENDEDORISMO NOS
tradicionalmente são relacionados ao desenvolvimento de atividades
TERRITÓRIOS
socioeconômicas, mas também das redes de relacionamento dos
indivíduos e de seus aspectos psicológicos, como a confiança para
desenvolver tarefas e atividades desafiadoras, pontos inerentes ao
Nesta seção serão apresentadas as dimensões socioeconômica
processo empreendedor. Esses recursos são chamados de “capital”
e cultural do urbanismo social, que se manifestam por meio da
e são de quatro tipos: financeiro, humano, social e psicológico.
atividade empreendedora tradicional e do empreendedorismo social
e cultural nos territórios urbanos e de sua relação com as políticas
O capital financeiro se refere à quantidade de recursos como
públicas e recursos locais. Oferece-se uma análise de iniciativas
dinheiro, poupança e acesso a crédito dos indivíduos dos territórios
em empreendedorismo tradicional, social e cultural que levam
urbanos e está relacionado, em diversas pesquisas, ao bem-estar
em consideração as características específicas dos territórios,
e a maiores níveis de satisfação e felicidade dos empreendedo-
referências para pensar ações de urbanismo social.
res. Por sua vez, a escassez de recursos está associada a altos
níveis de estresse desses indivíduos, uma vez que as atividades
Historicamente, as cidades são palco de disputas no uso do território,
socioeconômicas desenvolvidas contribuem diretamente para a
e, assim como em outras economias emergentes, as desigualdades
subsistência de suas famílias. Como se trata de um recurso central
sociais e níveis de pobreza no Brasil tornam as disputas no uso
para a dimensão socioeconômica, é essencial que se desenvolvam
dos territórios2 ainda mais presentes. Isso porque, em sociedades
políticas e projetos de acesso a recursos financeiros que sirvam
caracterizadas por elevados níveis de desigualdade, as instituições
de apoio à criação e desenvolvimento de negócios.
e infraestrutura existentes podem não ser suficientes para prover
à população o suporte adequado ao desenvolvimento de atividades
Por sua vez, o capital humano refere-se ao conhecimento formal e
econômicas, culturais e sociais. Esses vazios institucionais podem
informal adquirido ao longo da vida e se traduz por meio de habili-
limitar a participação de estratos da população em mercados
dades para desenvolver atividades que possam gerar valor, seja ele
formais e sua intenção de empreender e ter sucesso/impacto
econômico, social ou cultural. Iniciativas de urbanismo social devem
dos negócios desenvolvidos nesses territórios. Em tal contexto,
considerar maneiras de gerar acesso a conhecimentos que gerem
as ausências demandam esforços adicionais da população para
valor para o entorno, além de incorporar o próprio conhecimento
garantir o exercício de seus direitos e afetam o desenvolvimento
das comunidades locais.
socioeconômico dos territórios.

Também é importante considerar o capital social dos empreende-


É importante analisar a dimensão socioeconômica e cultural do
dores, ou seja, as redes de relacionamento que esses indivíduos
urbanismo social sob a perspectiva dos indivíduos e sua relação
podem acessar e mobilizar através de laços pessoais fortes e
com os elementos social, cultural e comunitário presentes nos
fracos — homogêneos e heterogêneos. Elas permitem aos indivíduos
territórios de maior vulnerabilidade social. Sob a perspectiva
acessar informações e recursos de outras pessoas e redes, que
individual, o processo empreendedor se inicia a partir de um
são relevantes para o sucesso das iniciativas empreendedoras,
determinado conjunto de recursos que são mobilizados e que
especialmente em ambientes carentes de sistemas de apoio.
determinam as possibilidades, objetivos e oportunidades. Trata-se

Por fim, iniciativas de empreendedorismo precisam considerar o


2  Ver mais em BARKI, E. et al., U. Em busca do empreendedorismo social inclusivo. capital psicológico dos indivíduos, seu estado de confiança para
Stanford Social Innovation Review (SSIR), 2022.

198 199
Guia de Urbanismo Social Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

assumir tarefas desafiadoras, otimismo com relação ao sucesso


atual e futuro da organização, perseverança, redirecionamentos
quando necessário e resiliência3. O capital psicológico influencia
EXPERIÊNCIAS E INICIATIVAS DE
positivamente o bem-estar e a satisfação com relação às suas ini-
EMPREENDEDORISMO EM FAVELAS
ciativas e impacta todo o processo empreendedor, da identificação
de oportunidades à promoção de inovações.
FAVELAR — Desenvolve projetos de engenharia, arquitetura e urbanismo
social, executando reformas e integrando soluções sustentáveis, em
É a partir desses recursos, no sentido amplo, que importantes ações
habitações de favelas e comunidades periféricas;
emergem nas diversas comunidades. Essas conexões com suas redes
de relacionamento permitem aos indivíduos preencher e superar Moradigna — Negócio social que reforma casas em situação de insa-
vazios institucionais que limitam a atividade empreendedora e que lubridade, unindo a opção de “ter uma casa bonita mas também um
geram valor financeiro, cultural e social para suas comunidades. ambiente saudável e longe de doenças que o mofo, a umidade e outros
fatores podem causar”;
Da interação entre esses dois elementos, recursos individuais e
Be.Sun — Realiza a logística reversa de materiais de construção novos,
ambiente institucional, é que o urbanismo social deve ser pensado,
seminovos e usados qualificados para reúso. Destina-os à venda com preço
especificamente em modos de promover as iniciativas individuais por
acessível a todos. Parte do lucro é destinada, por meio de doações, às
meio do desenvolvimento das infraestrutura e ambiente favorável
instituições filantrópicas apoiadas ou organizações parceiras de incentivo
às atividades culturais, sociais e de negócios.
ao desenvolvimento sustentável local;

Coletando — Primeira green fintech do mundo a disponibilizar pontos


móveis, promove uma economia circular ecológica, trocando lixo por
dinheiro em comunidades vulneráveis.
FEIRAS DE EMPREENDEDORISMO NEGRO E
DAS FAVELAS

Feira Preta — “Considerado hoje o maior festival afro da América Latina,


a Feira Preta nasceu em 2002 como uma feira para produtos de empreen-
dedores negros”, com foco em empreendedorismo, tecnologia, literatura,
música, artes digitais e o que há de mais urgente e futurista nas reflexões
da existência preta;

ExpoFavela — “A Expo Favela é uma feira de negócios cujos expositores


são empreendedores e startups da favela. O objetivo é dar visibilidade
para essas iniciativas e, assim, promover um palco para esee encontro
com investidores que possam acelerar estes empreendimentos”.

3  Para saber mais, veja SARASVATHY, S. D. What makes entrepreneurs entrepre-


neurial?, SSRN, 2021.
200 201
Guia de Urbanismo Social Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

7.4_
Nessas experiências, a ideia de coprodução inclui questões relevantes
A COPRODUÇÃO URBANA
sobre como reconhecer um problema, desvelar potencial, inspirar
PELAS LENTES DE INICIATIVAS
soluções e desenvolver respostas programáticas. Envolve também
COMUNITÁRIAS
questões de agência e sustentabilidade em relação à forma de
implementação, gerenciamento e manutenção de serviços, espaços
Recentemente, processos auto-organizados que atualizam as maneiras e infraestruturas urbanas.
de uso de espaços subutilizados nas cidades, especialmente nas
periferias, têm ganhado visibilidade, denunciando a desigualdade,
a exclusão, o impacto ambiental e a precariedade urbana. Trata-se
de práticas relacionadas à geração de emprego e renda, à melhoria
da qualidade do espaço, a formas de expressão de grupos margina- THRIVE, CIDADE DO CABO, ÁFRICA DO SUL
lizados por meio da arte, cultura e educação. Essas práticas seguem
demandas e agendas ligadas às comunidades e movimentos locali-
Criada em 2009, a Thrive — que em inglês significa crescer, prosperar — é uma organização mul-
zados. Manifestam desejos de sujeitos concretos, expressando uma
tifacetada que se dedica a iniciativas relacionadas à reciclagem e ao gerenciamento de resíduos.
diversidade de modos de lidar com o espaço cotidiano que são distintas
Operando a partir de uma instalação de resíduos urbanos na fronteira entre um assentamento
daquelas dominantes. São diversas formas de produção sociocultural
informal (Imizamo Yethu) e condomínios de alto padrão (Hout Bay), sua localização escancara a
na cidade que demandam o reconhecimento e a afirmação de sujeitos
desigualdade existente na paisagem pós-apartheid na Cidade do Cabo e evidencia um forte desejo
e territórios no contexto de disputa sobre o projeto e as ideias que
comum de mudança. É gerida pela cooperativa comunitária de reciclagem Hout Bay Recycling
definem o urbano.
(HBR), contemplada pela licitação governamental para reciclagem na área. Trabalhando com
materiais descartados, onze membros recuperam itens reutilizáveis, além de classificar e vender
Essa miríade de iniciativas projeta um imaginário urbano e amplia o
materiais recicláveis.
debate sobre a coprodução dos espaços das cidades. Sua ação qua-
lifica o espaço a partir de ações diretas, apontando para maneiras de De maneira adicional a esse escopo básico de trabalho com reciclagem, a ação do grupo criou
democratizar processos de decisão e produção da cidade, em resposta frentes de inovação: o TrashBack é um novo empreendimento social que consiste em um programa
a diversas formas de exclusão. Apesar das relações limitadas, mas, em de reciclagem baseado em incentivos, no qual cerca de 500 membros da comunidade adjacente são
outros casos, também por causa de parcerias saudáveis com governos recompensados por trazer materiais recicláveis para a HBR. As recompensas incluem vales para uma
municipais, há inúmeros exemplos exitosos da participação ativa da rede de lojas e serviços da comunidade, fortalecendo a economia local. Sua ação também aumenta
sociedade civil na construção e qualificação da cidade. a conscientização sobre o desperdício por meio de atividades escolares, apresentações e contatos
com a mídia local. Aparas descartadas como resíduos de jardinagem florescem em jardineiras feitas
Politicamente, são experiências fundamentais para revelar demandas de velhas telhas e em jardins cercados por pedras e pneus pintados, irrigados por um sistema de
reais e tornar legíveis problemas relacionados às políticas públicas: um mangueiras reutilizadas. Essa prática de jardinagem se espalhou pelos espaços subutilizados nos
pré-requisito para se mover adiante. Socialmente, são atos localizados terrenos vizinhos, com impacto na qualidade do espaço urbano em que ocorre. As atividades no
na escala humana, buscando providenciar serviços e qualidades local se fortalecem mutuamente ao demonstrar a possibilidade de verdejar uma paisagem árida,
necessários para a vida cotidiana. Espacialmente, sua ação revela as gerar renda e fortalecer a economia local junto à iniciativa de cashback capilarizada na comunidade.
limitações de um modelo abstrato e prescritivo de desenho e plane-
jamento urbano que impôs de modo homogêneo espaços genéricos
à cidade como um todo. Os espaços que ocupam revelam novos
campos de ação em que são experimentadas práticas especializadas.

202 203
Guia de Urbanismo Social Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

CONSELHO COMUNITÁRIO DE MIRAVALLE, As formas de coprodução que caracterizam essas práticas locais
CIDADE DO MÉXICO podem servir para avançar na agenda da justiça social e sustenta-
bilidade, na medida em que oferecem alternativas às estruturas
que reproduzem desigualdade, contribuindo para a construção
Dentro dos limites da Cidade do México e no topo de uma colina com
de outros imaginários desdobrados do fazer-saber local. Esse
vista para a paisagem urbana metropolitana, Miravalle é um bairro de
entendimento expande a definição de serviços urbanos básicos
Iztapalapa construído no final dos anos 1980 em antigas terras agrícolas.
oferecidos pelo governo, para incluir o papel de cidadãos organi-
Por décadas, o assentamento foi caracterizado pela falta de infraestru-
zados no mapeamento e reivindicação de outras demandas, nos
tura urbana e insegurança. Desde 2006, diferentes organizações locais
processos de decisão e manutenção dos espaços coletivos. Nesse
se reuniram em um conselho comunitário com o objetivo de melhorar a
sentido, essas práticas podem informar modos de engajamento
qualidade urbana do bairro. Ações iniciais conquistaram junto ao governo
mutuamente relevantes à arquitetura e planejamento urbano, e
serviços de infraestrutura básica como água, esgoto, arruamento e ilumi-

!
à ação de movimentos e organizações para encontrar formas de
nação pública. Na sequência, o projeto se consolidou buscando criar uma
ação localizadas, com base nas experiências do lugar.
rede de espaços recreativos e culturais seguros para crianças e jovens,
PARA SABER MAIS, VER:
articulados a um projeto focado na sustentabilidade no manejo da água
▸ Marcos Rosa.
e dos recursos naturais locais. Urbanismo feito à mão,
2013.
Como resultado, espaços abandonados foram transformados em espaços
públicos, dispostos em uma área aberta com uma grande variedade de
instalações e programas. Eles incluem uma biblioteca, um centro de treina-
mento digital, uma sala para oficinas, um refeitório comunitário que atende
trezentas pessoas, um centro de saúde, uma distribuidora subsidiada de
leite e duas arenas abertas usadas para diferentes atividades culturais e
recreativas. Adjacente a uma reserva natural, a comunidade utiliza áreas
fronteiriças para atividades produtivas e educacionais, desenvolvendo o
manejo sustentável por meio do cultivo de alimentos e da instalação de
um centro de reciclagem que processa toneladas de resíduos plásticos,
além de empregar trinta jovens da comunidade. Essa rede de espaços
configura um limite claro e permeável entre o espaço construído e a reserva
ecológica, viabilizando uma relação mutuamente benéfica.

A rede de cooperação criada entre as partes interessadas locais, academia,


governo e organizações civis vem fomentando um processo de trans-
formação local que figura como um modelo de reativação sociocultural
para outras comunidades urbanas marginalizadas na Cidade do México.

204 205
Guia de Urbanismo Social Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

7.5_
A POTÊNCIA DAS COMUNIDADES comum com outros assentamentos populares. O contexto de vulne-
FORTALECIDAS A PARTIR DE rabilidade aglutina diferentes dinâmicas, as quais influenciam mais
TECNOLOGIA SOCIAL E CÍVICA ou menos no dia a dia das lideranças comunitárias e organizações
que trabalham em conjunto com os territórios. Nada disso teria
sido possível sem os desafios inerentes a processos comunitários
Dentre as principais contribuições da TETO Brasil à atuação em
como momentos de baixa participação de moradores, de conflitos
assentamentos vulneráveis, como no caso da Favorita, em Curitiba,
com a equipe de voluntariado da TETO Brasil, de dificuldades com
está seu modelo de intervenção baseado na Mesa de Trabalho,
o poder público e a iniciativa privada, dentre outros. Entretanto, a
tecnologia social que busca estimular as capacidades comunitá-
robustez da tecnologia social da Mesa de Trabalho permitiu que
rias de identidade, organização, participação e trabalho em rede.
mesmo diante os desafios o esforço conjunto impactasse de forma
Ao longo dos mais de 25 anos de experiência da TETO Brasil na
concreta as comunidades e, estimulando o desenvolvimento de
América Latina trabalhando lado a lado com as comunidades, per-
lideranças e projetos — que fazem a diferença dentro e fora das
cebemos como crucial que as primeiras ações e projetos com os
fronteiras comunitárias.
territórios sejam ágeis, baratos, simples e com impacto concreto
e imediato, pois assim são fortalecidos laços e interesses que se
revelam fundamentais na execução de iniciativas futuras de maior
complexidade. A construção da confiança se dá majoritariamente
pelo contato próximo e contínuo, a divisão das responsabilidades
e a entrega do que foi acordado de maneira coletiva. Os projetos
desenvolvidos entre a TETO Brasil e as comunidades sempre têm
como objetivo final o fortalecimento das capacidades comunitárias:
identidade, organização, participação e trabalho em rede.

Dentro dos aprendizados da TETO Brasil com as Mesas de Trabalho


está a constante disposição para resolução de crises e suporte
às comunidades em momentos de dificuldade, tendo em vista
a frequência dos ataques e outras dinâmicas, pois a partir do
fortalecimento da capacidade de resistência e luta dos territórios
está justamente uma das chaves importantes da tecnologia social
Mesa de Trabalho.

Entende-se que esse fortalecimento de capacidades possibilitará,


em seu devido tempo, que os próprios moradores das comunida-
des ganhem autonomia para aplicar instrumentos de gestão na
execução de projetos comunitários, além de ampliar suas noções
de cidadania e capacidade de reivindicação política, em face da
violação de seus direitos. A experiência da comunidade Favorita,
na capital paranaense, compartilha diferentes características em

206 207
Guia de Urbanismo Social Capítulo 07 : Dimensão Socioeconômica e Cultural

MESA DE TRABALHO: para a comunidade. O questionário possui mais de profissionais parceiros, consistindo em dinâmicas, cooperação e capacidade de tomada de decisão
A EXPERIÊNCIA DA 190 questões, e pode ser aplicado a todos ou em exposições, palestras e diálogos coletivos sobre a de maneira coletiva, tiveram evidente crescimento,
COMUNIDADE FAVORITA uma amostra representativa de moradores das situação fundiária da comunidade, o zoneamento, e isso refletiu na legitimidade que as lideranças e
(CURITIBA, PR) comunidades7. Após a aplicação, os dados de 2018 órgãos públicos de apoio ao tema (onde pedir associação de moradores ganharam nos últimos
foram sistematizados e devolvidos à comunidade ajuda) e alternativas de organização comunitária. dois anos. Segundo dados da TETO Brasil, em 2018
conforme exemplo, juntamente com o mapeamento Hoje, a Mesa de Trabalho da Favorita continua apenas um terço (33%) dos moradores declarava
A comunidade Favorita está há dezesseis anos
do território .
8
atuante no processo de reintegração de posse que havia pessoas representando a comunidade
localizada no município de Araucária, na região
e desenvolveu ações emergenciais para atender e 37,2% declarava que existia uma associação de
metropolitana de Curitiba. De acordo com dados da Os relatórios quantitativos são fundamentais
as famílias que vivem na comunidade durante a moradores, enquanto em 2022 70,41% declaram
TETO Brasil4 — que trabalha há mais de cinco anos para compreender aspectos gerais do território
pandemia de covid-19, entre outros projetos locais. que havia pessoas representando a comunidade
com o território — a comunidade possui cerca de e facilitar, na sequência, processos qualitativos
e 91,72% que existia uma associação de morado-
715 domicílios e aproximadamente 2.145 pessoas que utilizam os dados em debates e deliberações A tecnologia social e cívica Mesa de Trabalho teve
res. Por fim, a categoria “trabalho em rede” foi
moradoras no total5. coletivas na Mesa de Trabalho. A TETO aprendeu impactos relevantes nesse processo de fortaleci-
amplamente fortalecida, tendo a comunidade
que só é possível compreender com profundidade mento das capacidades da comunidade como pro-
Com o interesse comunitário validado durante uma autogerido parcerias em diferentes frentes (com
determinado dado a partir de espaços ativos de tro- tagonista. Segundo dados do Mapa de Direitos de
assembleia de abertura e alinhado com os objetivos o Poder Público, iniciativa privada, terceiro setor,
ca entre as pessoas envolvidas. E é justamente em 2022, 73,96% dos moradores não planejam sair da
institucionais, em março de 2018 foi estabelecida pessoas físicas, universidades etc.), as quais tive-
espaços como esse que o processo de diagnóstico comunidade, 63,02% declaram que a comunidade
a Mesa de Trabalho (MdT) na comunidade Favori- ram resultados concretos refletidos em projetos
qualitativo da TETO Brasil, conhecido como Olhar melhorou em relação aos dois últimos anos e 78,7%
ta — composta por moradore(a)s da comunidade de infraestrutura, moradia, ações filantrópicas,
Participativo, é aplicado e serve para identificar acreditam que irá melhorar nos próximos dois anos.
e voluntário(a)s para estruturar em conjunto desenvolvimento local e resposta à pandemia.
oportunidades de projetos comunitários e ações Aspectos relacionados às categorias “organiza-
projetos e ações voltados ao fortalecimento das
que dialoguem com a realidade local representada ção” e “participação”, tais como objetivo comum,
capacidades comunitárias. Em seguida à criação
pelos dados e cartografias. Assim, seguindo essas
da Mesa de Trabalho, a fase de diagnósticos foi o
metodologias e analisando os dados levantados em
primeiro passo para que as partes envolvidas, so-
associação com uma leitura da conjuntura realizada
bretudo a comunidade, conheçam seus potenciais
pela TETO Brasil e a comunidade, o primeiro projeto
e desafios, a fim de construir soluções coletivas
deliberado na Mesa de Trabalho foi uma Oficina
capazes de responder com o vigor necessário à
de Regularização Fundiária e Reintegração de
ampla e escancarada violação de direitos sofrida
Posse9 — articulada com apoio de organizações e
pelo território. A ação Escutando Comunidades
(ECO)6 reuniu informações quantitativas sobre e
7  Na ECO de 2018 foi mapeado e considerado um
universo amostral de 398 casas, excluídos os imó-
veis desocupados constatados nos três dias de co-
leta amostral (em número de 25). Dentro do universo
4  A TETO Brasil atua há quinze anos no país, mobili- amostral foram aplicadas 280 enquetes, das quais 261
zando voluntários e voluntárias para atuar lado a lado completas e 19 recusadas (o equivalente a 70,35% da
de moradores e moradoras em comunidades precárias comunidade). Devido à limitação de tempo estabeleci-
de diferentes estados. da para a execução do evento, 143 casas do universo
não foram visitadas.
5  Estimativas do Relatório Escutando Comunidades
(ECO). TETO Brasil, setembro de 2022. A margem de 8  Veja aqui o relatório completo.
erro é de 3,6% para mais ou para menos.
9  Oficinas que a TETO Brasil aplica regularmen-
6  TETO Brasil. Documento Interno — Relatório Final te nas comunidades onde atua, conhecidas também
Escutando Comunidades (ECO). Favorita, Araucária, como Oficinas de Empoderamento Legal ou Oficina de
Paraná, 2018. Direitos.

208 209
Capítulo 08 : Tópicos em Políticas Públicas

08_ 8.1_ URBANISMO SOCIAL COMO


TÓPICO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

TÓPICOS EM POLÍTICAS Embora seja componente central da vida social, o conceito de políticas

PÚBLICAS públicas é pouco consolidado no entendimento coletivo. Partindo da


definição consagrada de Jobert e Muller (1987)1, as políticas públicas
são uma expressão do “Estado em ação”. Avançando nesse enten-
8.1_ Urbanismo social como um
dimento, chega-se à ideia de que a inação também é uma escolha,
tópico de políticas públicas
explícita ou implícita. Em outras palavras, toda e qualquer ação,
ou decisão sobre não agir, que verse sobre regramentos coletivos,
8.2_ Políticas públicas integradas
passa pela tutela do Estado.
em territórios vulneráveis

Nessa linha, é possível dizer que planejar a cidade é, inexoravelmente,


8.3_ O social do urbanismo social de
um tema de políticas públicas. Seja com mais ou menos presença
Medellín
direta do Estado, é impossível pensar o planejamento urbano de
maneira dissociada da organização formal da vida social coletiva. Ao
fim e ao cabo, o urbanismo serve, justamente, para promover o melhor
enquadramento e distribuição do uso do espaço, público e privado.

De modo amplo, podemos dizer que o conceito moderno de planeja-


mento urbano é “parente” histórico do conceito de políticas públicas.
Ambos se consolidaram ao longo do século XIX, na medida em que
a noção de que existem males coletivos que atingem a sociedade
de forma geral ganhou espaço no entendimento dos tomadores de
decisão. Trata-se de conceitos contemporâneos, que partem de um
pressuposto comum, determinante para entender o desenvolvimento
da vida coletiva: a ideia de interdependência social, ou, em outras
palavras, aceitar e lidar com a necessidade — inevitável — de coexistir
socialmente.

A gênese2 do Estado de bem-estar social está ancorada na percepção


dos efeitos negativos — e abrangentes — gerados pela desigual-
dade social. Políticas sanitárias e de atenção à pobreza ganharam
AUTORES

8.1_ Lucas Bravo Rosin (EACH/USP); 1  MULLER, Pierre e JOBERT, Bruno. L’État en action. Politiques publiques e corpora-
tismes, Paris, Presses Universitaires de France, 1987.
8.2_ Ricardo Henriques (Instituto Unibanco);
2  SWAAN, Abram de. The sociogenesis of the Welfare State: by way of introduction.
8.3_ Jorge Melguizo (Medellín). Amsterdams Sociologisch Tijdschrift, v. 13, n. 4, p. 579-596, 1987

211
Guia de Urbanismo Social Capítulo 08 : Tópicos em Políticas Públicas

destaque na Inglaterra vitoriana, com o avanço da industrialização do conhecimento que é — ou deveria ser — “social” por definição.
e da transição do campo para a cidade. A falta de regras gerava um E, mesmo com pretensões sociais, muitas vezes as soluções são
grande acúmulo de desigualdades e desumanidades, expressas elaboradas de modo distante do conjunto amplo da sociedade.
em epidemias e problemas de segurança pública que atingiam a Entende-se que as soluções para os problemas urbanos passam,
sociedade como um todo. De maneira semelhante, a gênese do que necessariamente, pelo uso de bens físicos que, per se, reuniriam
hoje se entende como planejamento urbano ganhou notoriedade com condições para solucionar as questões sociais mais prementes. Nessa
as reformas promovidas por Haussmann, administrador da cidade de linha, os problemas que ainda não foram solucionados dependeriam,
Paris em meados do século XIX. O planejamento seria motivado pelo portanto, de novas tecnologias materiais.
aumento significativo do adensamento urbano e, consequentemente,
o surgimento de problemas compartilhados por diferentes classes Cumpre ressaltar que essas decisões não são tomadas por falta de
sociais, como o mau cheiro das ruas, as epidemias, o caos no tráfego alternativas. Em sua obra clássica, Morte e vida das grandes cidades,
de carroças e carruagens. publicada em 19614, Jane Jacobs (1916-2006) já chamava a atenção
para a importância da perspectiva social no planejamento urbano. O
Se essa noção de interdependência é tão potente a ponto de mudar balé das calçadas, as cidades vivas e os usos socialmente intensos
compreensões dominantes e impulsionar ações que abrangem do solo consideram, para além de intervenções físicas, uma noção
indivíduos com diferentes capacidades contributivas, por que, da centralidade de questões socioculturais no planejamento urbano
ainda hoje, discutimos a necessidade de adicionar o sufixo social virtuoso. Sem essas ponderações, não se planejam "cidades para
a esses conceitos? pessoas”5, mas, sim, “cidades rebeldes”6.

Um dos questionamentos fundantes do campo de análise de políticas Vale questionar, outra vez: qual é o objetivo contemporâneo do
públicas se concentrava em entender “quem ganha o quê, como e planejamento urbano? Diversos avanços normativos nacionais, desta-
quando”3. Embora o cuidado abrangente com a organização social cadamente o Estatuto da Cidade (2001), apresentam entendimentos
pareça um ato motivado pela noção de fraternidade, trata-se — que destacam a dimensão social do urbanismo7.
para além da “romantização” do Estado de bem-estar social — da
garantia de condições civilizatórias essenciais para o funcionamento O urbanismo social apresenta soluções que aparentam certa “sim-
e desenvolvimento das democracias capitalistas liberais. Assim, plicidade”, a qual, todavia, pressupõe um entendimento sofisticado.
o planejamento urbano, tal como diversas agendas de políticas Trata-se de entender as questões urbanas de forma multifacetada,
públicas, é resultado de uma intensa disputa pela distribuição de
recursos diversos, que vão do manejo das finanças ao controle dos 4  JACOBS, Jane. Morte e vida das grandes cidades. 3. ed. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2011.
entendimentos sobre a priorização de problemas e soluções.
5  GEHL, Jan. Cidades para pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2014.

6  HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São


Atualmente, considerando as principais resoluções internacionais Paulo: Martins Fontes —W Selo Martins, 2014.
sobre progresso social, pode-se dizer que o objetivo finalístico do 7  Resultado da luta dos movimentos pela reforma urbana durante as discussões
planejamento urbano, em essência, consiste no aprimoramento da constituintes dos anos 1980, o estatuto institucionaliza definições importantes,
das quais destaco duas: 1) A função social da cidade e sua relação com o conceito
convivência coletiva nas cidades. Como foi dito, apesar disso se de “direito à cidade”; 2) O papel central na formulação e implementação das po-
líticas urbanas.
realiza o esforço de adicionar o complemento “social” a um campo
Para uma discussão mais detalhada, ver: CALDEIRA, Teresa; HOLSTON, James. Es-
tado e espaço urbano no Brasil: do planejamento modernista às intervenções demo-
3  LASSWELL, Harold. Politics: who gets what, when, how. Whitefish, Montreal: Li- cráticas. A participação em São Paulo. São Paulo: Editora Unesp, 2004. p. 215-255.
terary Licensing, 2012.

212 213
Guia de Urbanismo Social Capítulo 08 : Tópicos em Políticas Públicas

abordando-as com soluções interseccionadas. O programa “Mais de políticas sociais — e que parece ser crucial para responder ao
Vida nos Morros” em Recife (ver Capítulo 15), por exemplo, se questionamento levantado. Em seguida, Jorge Melguizo amarra as
vale, sobretudo, de uma estratégia aparentemente estética que experiências nacionais aqui apresentadas em linhas gerais, com
influenciaria em diversos problemas, de questões relacionadas à a visão sofisticada de Henriques, apresentando sua experiência
segurança pública como também de apropriação e aproveitamento prática de formulador e implementador de uma política territorial
do território. É a tinta, per se, que melhora o ambiente, ou a noção pautada nos preceitos do urbanismo social.
de que a autoestima do território também é importante para a
melhoria urbana e o envolvimento comunitário?

Embora seja incipiente no Brasil, o urbanismo social pode apresen-


tar um amplo conjunto de alternativas factíveis e adequadas para
problemas complexos e historicamente persistentes. A questão
central que se coloca reside, justamente, na baixa presença desse
entendimento na disputa pela agenda de políticas urbanas. Talvez,
de novo, a questão passe pela inclusão, cada vez mais organizada
e qualificada, da sociedade civil nos processos de produção de
soluções urbanas locais. Tanto para o Estatuto da Cidade como
para o urbanismo social, o papel da participação social e do envol-
vimento comunitário é um pressuposto organizativo da formulação,
implementação e avaliação de soluções urbanas.

O urbanismo social, à luz de casos internacionais, apresenta um


conjunto amplo de soluções que, do ponto de vista operacional, são
mais simples que as soluções focadas exclusivamente na infraestru-
tura. Trata-se de alternativas de baixo custo relativo que poderiam
ser aplicadas de maneira sistemática, estruturada e abrangente,
com apoio consistente do Estado, seja na implementação direta
ou na regulação de sua aplicação por meio do terceiro setor ou até
mesmo da iniciativa privada.

Afinal, o que falta para o urbanismo social ganhar espaço relevante


na agenda de implementação de políticas urbanas no Brasil?
Ainda que as análises sobre os problemas sociais, incluindo a
urbanização excludente, já tenham avançado, muitas vezes pro-
blemas complexos são tratados, continuamente, com soluções
isoladas, fragmentadas e sobrepostas em termos de políticas
públicas. Adiante, a contribuição de Ricardo Henriques lançará
luz sobre esse desafio transversal que atinge diferentes agendas

214 215
Guia de Urbanismo Social Capítulo 08 : Tópicos em Políticas Públicas

8.2_ POLÍTICAS PÚBLICAS


INTEGRADAS EM TERRITÓRIOS
VULNERÁVEIS
dificultando o estabelecimento de uma
lógica comum tanto na conceituação como
na implementação da política.
de informação que reduzem a amplitude da
cobertura e a qualidade da focalização na
implementação de cada programa, dado
que um conjunto de indivíduos pode vir a
O Brasil produziu ao longo de sua história dessa integração depende do mapeamento Indo além, a fragmentação pode ser entendi- receber mais de um, enquanto outros indi-
um desenvolvimento estruturalmente exclu- inicial e contínuo dos atores presentes no da no contexto mais amplo de uma racionali- víduos pertencentes ao mesmo público-alvo
dente. A condução das políticas econômica território, incluindo os coletivos e as organi- dade perversa das políticas públicas. Nesse podem, inclusive, não acessar qualquer dos
e social tem sustentado, tradicionalmente, zações da sociedade civil. De igual relevância contexto, o fragmento pode ser considerado programas disponíveis.
um crescimento alinhado a programas com- é a escuta atenta dos beneficiários, tanto a unidade ótima do assistencialismo, uma
pensatórios como o principal caminho para de suas dimensões específicas de vulne- vez que a política brasileira é um ambiente No que se refere ao isolacionismo setorial,
combater a pobreza. A despeito dos avanços rabilidade como de suas expectativas; e, fértil e estimulante para a execução de terceiro desafio estrutural, sabemos que
na redução da extrema pobreza de 18%, em também, dos agentes da ponta, responsáveis agendas fragmentadas. Aqui se consolida a tendência das diferentes pastas temá-
1992, para 6% da população brasileira até pela execução da política. Por fim, a política a alegoria do político (ou gestor) tradicional, ticas é especializar-se em determinado
2015, a condição de vulnerabilidade dos pública deve ser territorializada, garantindo que constrói sua estrutura de poder com fenômeno social, aumentando, portanto, a
territórios brasileiros tem persistido, dado maior aderência ao contexto e às situações base na dominação de clientela ou da tutela probabilidade de realizar um bom trabalho.
o caráter multidimensional da pobreza. Para locais de elevada heterogeneidade. do público-alvo de programas específicos. Por outro lado, a setorialização excessiva
enfrentá-la é necessário produzir políticas Assim, o espaço público torna-se um am- pode se fazer surda às demandas e aos
públicas multissetoriais e multiníveis, que Contudo, o plano de qualificar a coordena- biente de práticas norteadas pela assimetria desafios intersetoriais, refletindo uma
identifiquem situações individuais e familia- ção de políticas públicas para o atingimento de informações, maximizando, portanto, opção limitada e limitante das políticas
res complexas e que produzam uma agenda, de resultados concretos e transformadores as possibilidades de exploração, controle públicas. Ao estreitar o entendimento da
integrada entre diferentes áreas, capaz de dependerá do quão bem-sucedidos for- e submissão de parte da população que complexidade das situações de pobreza
ser modulada às variadas configurações de mos no enfrentamento de seus gargalos necessita acessar os programas sociais. e vulnerabilidade, é frequente que o olhar
vulnerabilidade presentes nos territórios. estruturais. Dentre os principais desafios setorial exacerbado suponha causalida-
no contexto de execução da política social, A sobreposição entre programas e políticas, des e efeitos reducionistas que, na prática,
Em geral, sabemos que a efetividade da podemos destacar a fragmentação, a sobre- segundo desafio inerentemente estrutural, não refletem a realidade, mas expressam
política social se define pela melhoria da qua- posição e o isolacionismo setorial. deriva da precária coordenação entre as a miopia situacional de uma lente que se
lidade de vida da população em condições de esferas de governo. Essa dificuldade de atém às referências e aos repertórios do
maior vulnerabilidade e, portanto, depende O primeiro desafio estrutural, chamado coordenação reduz a potencialidade de setor social em questão. Mais do que isso,
de diagnósticos rigorosos e contextualizados aqui de fragmentação da política social, impacto dos programas sociais similares, terminam por incentivar desnecessárias
para que se chegue a um desenho mais se expressa em distintas esferas de gestão na medida em que os governos não com- segmentações intrassetoriais, produzindo
assertivo no seu enfrentamento — vale dizer, de programas e ações governamentais. partilham diagnósticos e aprendizados para ações e programas isolados no interior de
diagnósticos baseados em evidências e em As evidências empíricas e as percepções melhorias na concepção e no desenho dos cada área social.
dados quantitativos e qualitativos. Nesse acerca da fragmentação são recorrente- programas, gerando maior ineficiência na
sentido, um bom desenho de implementa- mente associadas a ineficiências no de- alocação de recursos públicos — dissonância Há pelo menos três mecanismos pelos quais
ção da política pública deve levar em conta senho ou na implementação das interven- no compartilhamento tanto entre diferentes o isolacionismo setorial se nutre: a disputa
elementos como a integração horizontal e ções sociais. Observamos com frequência níveis de gestão, como entre distintas áreas pela distribuição do orçamento público, o
vertical, representada pela intersetorialidade a dispersão de programas em vários ór- no interior de cada nível administrativo. fetiche pelo registro de uma ação, programa
e pela colaboração federativa. A viabilização gãos da mesma esfera governamental, Além disso, são produzidos diversos ruídos ou política pelos gestores e, por último, a

216 217
Guia de Urbanismo Social Capítulo 08 : Tópicos em Políticas Públicas

hipótese arbitrária de sequencialidade se- relação aos meios como aos fins. Nesse interpretação e a ação a partir desse mapa A seleção de beneficiários em um progra-
torial do ponto de vista do bem-estar social. sentido, as combinações entre níveis de con- de vulnerabilidades estará estritamente con- ma de combate à pobreza que contemple
Isso significa que, por exemplo, o especialista flito e entre níveis de ambiguidade geram dicionado a duas dimensões: o olhar técnico apenas transferências de renda necessita
na área de saúde suponha que os desafios contextos de implementação diferenciados e denso do burocrata de nível de rua e o diá- identificar o grau de pobreza de cada família.
sanitários devam preceder os demais. O que podem ser deletérios no endereçamento logo com escuta qualificada junto a sujeitos Porém, a implementação de uma política
mesmo ocorre em relação aos especialis- dos desafios de fragmentação, sobreposição concretos residentes nos territórios. mais ampla para superação da pobreza
tas das áreas de educação, de segurança e isolacionismo setorial. requer informações individualizadas muito
alimentar, de transporte e assim por diante. Cabe ressaltar, entretanto, que as demandas mais elaboradas e um relacionamento com
Desse modo, o isolacionismo setorial tende a Assim, tão importante quanto ter uma buro- reveladas não serão uma justaposição das a família mais profundo, já que cada família
reduzir a qualidade das intervenções setoriais cracia de nível de rua mobilizada e conven- manifestadas. Em outras palavras, a inter- tem necessidades específicas. Embora uma
e a enfraquecer a coordenação e integração cida sobre a importância do programa ou pretação desse mapa não deverá ser um transferência de renda seja capaz de aliviar
das políticas públicas. política pública, e que seja capaz de identi- empilhamento da demanda, tampouco uma a pobreza de qualquer família, só um aten-
ficar a população vulnerável potencialmente cartilha com análises de indicadores sociais. dimento personalizado é capaz de retirá-la
Adicionalmente, há um grau de realismo beneficiária, é dispor também de um corpo Os agentes públicos da burocracia de nível dessa situação e criar condições reais de
sobre os desafios de implementação sob de agentes implementadores que compre- de rua deverão conciliar a interpretação mobilidade social. Assim, se desejamos que
contexto orientado, capaz de contemplar endam a demanda social reprimida em cada real da demanda à estrutura da oferta, de um programa de combate à pobreza seja, de
parâmetros e tensões entre os entes e território. Não basta realizar uma leitura acordo com um cardápio das diferentes fato, eficaz, é preciso que o grupo benefici-
agentes com responsabilidade pública de apenas objetiva, informacional, do ponto de vulnerabilidades materializadas no território. ário receba assistência continuada e indivi-
decisão. Contexto que deve ser levado em vista técnico-científico; é preciso também dualizada de agentes de desenvolvimento
consideração, adicionando, portanto, mais executar uma escuta atenta e consequente Dito isso, a melhoria da vida das pessoas, de familiar e comunitário que, em parceria
uma camada nesse cenário já desafiador. que dê contornos factuais à demanda. suas famílias e de sua comunidade depende, com eles, formulem e implementem planos
Segundo Matland8, todo contexto de política por um lado, da qualidade tanto do dese- específicos e comunitários de superação da
pública é marcado por graus diferentes de A escuta deve voltar-se não só aos indivíduos nho como dos sistemas de implementação, pobreza e de desenvolvimento local.
conflito e de ambiguidade; a interdepen- e suas famílias como também à comunidade monitoramento e avaliação, e, por outro, da
dência entre esses dois elementos leva a e suas diversas organizações de represen- capacidade de construir, em cada território O desafio estratégico para uma política
ambientes mais ou menos propícios para tação, transformando aquele espaço em um específico, uma agenda customizada que social integrada e integradora é combinar,
implementações bem-sucedidas. O conflito território humanizado. A estruturação do permita referenciar e contrarreferenciar a de maneira estruturada e operacional: (i) a
pode ser caracterizado em relação aos fins processo de escuta deve estabelecer um situação de vulnerabilidade. É fundamental capacidade de diagnósticos robustos das
(atores não concordam com os objetivos da diálogo contínuo que permita a calibragem destacar que tais vulnerabilidades partem condições de vulnerabilidade; (ii) a qualidade
política) e em relação aos meios (discor- do desenho das intervenções e, inclusive, não apenas da situação econômica das e a plasticidade no desenho da política
dância em relação às formas de atingir os sua discussão e revisão periódica. Diálogo, famílias: inclui ainda a falta de acesso aos social; (iii) a flexibilidade na implementação
objetivos). Já a ambiguidade, por sua vez, aliás, com marcadores temporais acordados serviços públicos, de exposição à violência, adequada aos territórios; (iv) o engajamento
diz respeito ao espaço dado pela política e ritualizados. Aqui, a empiria informa a qua- uso de drogas, exclusão social, discrimi- de todos os setores relevantes; (v) a interse-
para interpretação e adaptação tanto com lidade da adequação entre as demandas dos nação em suas várias formas, entre outros torialidade junto à colaboração federativa;
indivíduos e da comunidade e as ofertas de fatores. Portanto, o desenho da política (vi) o encaminhamento para trajetórias de
serviços, permitindo a revisão e a correção pública deve contar com múltiplas visões inclusão produtiva dos mais vulneráveis; (vii)
8  MATLAND, R. E. Synthesizing the implementation li-
terature: the ambiguity-conflict model of policy imple-
de rotas das ações com agilidade e sentido de vulnerabilidade social. a equidade como referência organizadora
mentation. Journal of Public Administration Research de pertinência. Isso significa que viabilizar a da estratégia; (viii) o monitoramento e a
and Theory, Lawrence, v. 5, n. 2, p. 145-174, abr. 1995.

218 219
Guia de Urbanismo Social Capítulo 08 : Tópicos em Políticas Públicas

avaliação como estuário da qualidade; e (ix) a efetividade como


compromisso da gestão. 8.3_ O SOCIAL DO URBANISMO SOCIAL
DE MEDELLÍN

Trata-se, em síntese, de redefinir a estratégia de desenvolvimento


social, promovendo espaços, processos e instrumentos participativos Quando se fala em “urbanismo social”, há abordagem e que o que de fato queríamos
e com densidade técnica e analítica que viabilizem uma abordagem uma tendência a focar o que a primeira pala- dizer soa parecido com isso, no entanto é
que enfrente de forma efetiva nossos complexos desafios. Dito de vra, “urbanismo”, representa, que é assumida diferente: o que estamos fazendo é, como
outro modo: rigor e compromisso com a qualidade da oferta dos como substantivo, como a essência dos dois disse anteriormente, um projeto profundo
serviços públicos em linha com a atenção e a dedicação ao entendi- termos. Em vez disso, a palavra “social” é de transformação educacional e cultural
mento das complexas realidades de vulnerabilidade dos indivíduos e geralmente assumida como adjetivo, como com conteúdo e resultados urbanos.
das famílias. Uma arquitetura da política social orientada para criar complemento, acréscimo, maneira de qua-
condições efetivas de mobilidade social de pessoas em situação lificar o tipo de urbanismo. Isso significa que, no planejamento urbano
de vulnerabilidade e, portanto, para atender e cuidar de sujeitos social, predomina o substantivo “social”: as
concretos em territórios concretos. Aqui cabe lembrar uma frase do Em relação a Medellín, quando usamos a ex- obras físicas, urbanas, devem estar sujeitas
dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980): “Subdesenvolvimento não pressão “urbanismo social”, assumimos, re- ao projeto social e não o contrário. É preciso
se improvisa; subdesenvolvimento é uma obra de séculos”. Ocorre almente, as duas palavras como essenciais, pensar em nós mesmos como sociedade e
que desenvolvimento também não se improvisa; todavia, de forma dois substantivos — como denominadores é preciso pensar em todas as dimensões da
alguma pode ser uma obra de séculos. Desenvolvimento é obra do do que é e deve ser a ação urbana e a ação sociedade: educacional, cultural, ambiental,
agora, marcado pelo sentido de urgência, pelo compromisso com social. Aqui, iremos focar a vertente social esportiva, recreativa, sanitária, econômica,
a equidade e pela necessidade de políticas públicas integradas do urbanismo social, para ajudar a compre- de gênero, populacional etc., e construir um
em territórios vulneráveis. ender a dimensão dos nossos projetos na projeto a partir dessas dimensões. E aí sim,
cidade e o alcance ambicionado para eles. definir quais obras físicas, quais projetos ur-
banos são necessários para viabilizar aquela
O que temos tentado fazer em Medellín, nos sociedade que queremos e podemos ser.
últimos 30 anos, é alcançar uma profunda
transformação social, educacional e cultural, Conversas entre todos os setores: a primei-
com conteúdos e resultados urbanos. Nosso ra das chaves do urbanismo social
projeto é construir uma sociedade, não ape-
nas construir uma cidade. A transformação Quando me perguntam em outro lugar sobre
de nossas cidades deve ser fundamental- o que fizemos em Medellín nos últimos
mente a transformação de nossas socieda- anos para conseguir reduzir nossa taxa de
des. Mudar uma cidade não é apenas (mas mortalidade por homicídio em 96,3% entre
também) uma transformação urbana, física. 1991 e 2021, uma conquista que surpreende
o planeta inteiro e que, principalmente,
Durante anos dissemos que precisávamos se torna uma referência para as cidades
realizar projetos físicos, urbanos, com conte- na América Latina, onde se vivem situa-
údo e resultados sociais. Mas há alguns anos ções muito semelhantes, respondo que
venho falando que estávamos errados nessa para entender o que foi feito em Medellín

220 221
Guia de Urbanismo Social Capítulo 08 : Tópicos em Políticas Públicas

é preciso voltar à década de 1990 do sé- intervenção integral nos bairros, que nos combinar diferentes saberes, diferentes Integrais. Gosto de dizer que os PUIs (Proje-
culo XX: esses anos foram os das alianças permitiu conhecer e nos reconhecer em lógicas, diferentes pontos de vista. tos Urbanos Integrais) podem ser descritas
iniciais de todos os setores da sociedade, nossos graves problemas de desigualdade, como orgias institucionais, públicas, priva-
independentemente da ideologia e filiação exclusão, pobreza, falta de oportunidades, Assumimos a participação social como das e comunitárias: os objetivos não são
política. Foram anos em que assumimos falta de coesão social, violência de todos os essência e não apenas como ferramenta. setoriais e sim territoriais e populacionais.
o desafio coletivo de construir soluções tipos, geração de gangues armadas com- Assumimos e buscamos que a participação Na verdade, acho que hoje devemos mudar
coletivas para enfrentar nossos próprios postas por crianças e jovens. seja verdadeira, não acomodada a discursos os modelos de gestão pública para passar do
fracassos como sociedade e como cidade. e práticas oficiais. É preciso somar ou mes- setorial para o territorial e populacional, com
Ou seja, enfrentamos coletivamente nossas Para mim, estes são os principais "comos" mo contrapor democracias participativas e base em três grandes objetivos: equidade,
falhas coletivas. do processo de Medellín: deliberativas à democracia representativa, oportunidades e convivência. Atualmente,
e é fundamental promover múltiplos espa- a construção da equidade territorial e po-
Os Diálogos de Futuro Alternativo de Me- Geralmente, quando nos referimos ao ur- ços de controle social do cidadão, como as pulacional deve ser o principal objetivo da
dellín, realizados ao longo de cinco anos banismo social, falamos do quê? De polos Vigilâncias Cidadãs. nossa sociedade.
(de 1991 a 1995) — nos quais participaram urbanos, parques de bibliotecas, Unidades
pessoas de toda a cidade, de todos os tipos de Vida Articulada (UVA), unidades espor- Escutamos — sim, é preciso ouvir muito Partimos do princípio de que as obras urba-
de organizações e ideologias, e nos quais tivas, sistemas de mobilidade e outros pro- para poder conhecer, reconhecer, valorizar nas devem estar subordinadas ao projeto
convocamos pessoas e entidades-chave jetos urbanos semelhantes. Acho que para e promover o que já se faz nos bairros de social: os governos têm suas maiores prio-
de outras metrópoles e outros países para analisar o urbanismo social devemos nos Medellín. E isso se faz sem o Estado, apesar ridades e investimentos em obras físicas,
aprender a partir de experiências especí- concentrar mais no “como” e não no “quê”. do Estado ou mesmo contra o Estado: esse e realmente o que Medellín tem feito é dar
ficas —, tornaram-se espaços de conhe- Esses “comos” são os que nos permitem reconhecimento é fundamental porque nos- prioridade máxima aos projetos sociais.
cimento e reconhecimento do próximo, mostrar avanços reais na tarefa de tornar sas próprias comunidades têm buscado a Nossas cidades precisam de novas agendas
dos muitos outros que somos. As lógicas o setor público (serviços básicos, saúde, saída diante dessa reiterada ausência do sociais, para aprofundar suas transforma-
privadas conversavam, e se confrontavam, educação, cultura, recreação, esportes, Estado, e isso é algo que os governantes da ções e para que essas agendas determinem
com as lógicas comunitárias. As lógicas co- mobilidade, espaço público) sinônimo de época muitas vezes não veem por causa de que tipo de obras urbanas são necessárias.
munitárias dialogaram e confrontaram com qualidade e dignidade. E um dos fatos mais sua arrogância ou, simplesmente, por causa Acho que a Habitat 3 errou ao definir uma
as lógicas públicas, oficiais. Os bairros mais marcantes em Medellín é a continuidade dos daquela "síndrome de Adão" que parece Nova Agenda Urbana Mundial, promovida
pobres, mais densamente povoados e mais principais programas públicos, apesar das dominar a todos. pela ONU Habitat, porque a urgência é ter
violentos, tornaram-se foco de atenção e mudanças de governo e de partido político uma Nova Agenda Social Mundial.
experimentação, e Medellín se transformou no comando da gestão, embora também haja Entendemos que o Estado se faz no bair-
em um laboratório urbano, social, educacio- uma fragilidade nessas mudanças. ro e que cada rua deve ser evidência da Aprendemos com muitas cidades, suas
nal e cultural. presença do Estado. conquistas e seus fracassos, e transfor-
Procuramos respostas diferentes para os mamos Medellín em um laboratório social,
A década de 1990 foi de formação de uma problemas usuais e mudamos as perguntas Realizamos intervenções verdadeiramente educacional, cultural e urbano, com muitas
capacidade social e institucional, pública que enfrentam esses mesmos problemas. abrangentes nos bairros, como o PRIMED, o tentativas que deram certo ou não, mas com
e privada, comunitária e universitária que Programa de Melhoria Integral de Bairros, as quais aprendemos a continuar inovando
nos permitiu começar a encontrar soluções Geramos alianças público-privado-comu- que foi o iniciador, nos anos 1990, do que na tarefa de mudar a gestão pública e no
estruturais para problemas estruturais, que nitárias, múltiplas alianças para múltiplos mais tarde na primeira década deste sé- enorme desafio de nos construirmos como
nos permitiu começar a medir o alcance da processos, entendendo a necessidade de culo chamamos de PUI, Projetos Urbanos uma nova sociedade.

222 223
Guia de Urbanismo Social

Para o urbanismo social precisamos de muitos diálogos, e temos


de encontrar novas formas de diálogo, que nos levem a saber que
sociedade somos hoje e a pensar, coletivamente, como enfrentamos
não apenas desafios temporários e também, fundamentalmente,
aqueles que continuam sendo nossos grandes desafios estruturais:
desigualdade, pobreza, violência cotidiana, classismo, indiferença, falta
de valorização da própria vida e dificuldade de conviver com os outros.

224
Capítulo 09 : Tópicos em Regulação Urbana

09_ 9.1_ O PAPEL DO DIREITO


URBANÍSTICO

TÓPICOS EM REGULAÇÃO Falar sobre as relações entre o urbanismo social e o direito urba-
nístico é discursar sobre fins e os meios. De fato, se a finalidade

URBANA do urbanismo social é proporcionar uma cidade mais justa, equi-


librada, inclusiva e democrática, caberá ao direito urbanístico ser
o meio para alcançar esses objetivos. O direito, assim, cumpre um
9.1_ O papel do direito urbanístico
papel instrumental, de concretizador dos objetivos e diretrizes do
planejamento das cidades, que direciona o desenvolvimento do
9.2_ O direito urbanístico na
espaço urbano.
Constituição

O direito urbanístico é construído e aplicado mediante processos


9.3_ A legislação federal
público-participativos, e o conteúdo de seus comandos normativos
sofre direta influência da realidade que se pretende transformar.
9.4_ Direito à cidade
Ele, por sua vez, não deve ser confundido com urbanismo.

9.5_ O direito à cidade como


O urbanismo é uma técnica que, combinando diversos saberes,
princípio orientador do ordenamento
define o que se deseja nas cidades. Seus modais lógicos de decisão
territorial
são “desejado/não desejado”, “bom/ruim”, “adequado/inadequado”.
O urbanismo, tratado como gênero, e incluindo-se nessa noção o
urbanismo social, nos diz o que a cidade deve perseguir para o
maior benefício de seus habitantes.

Já o direito urbanístico é um ramo do Direito. Trata-se de comandos


normativos que estabelecem preceitos jurídicos obrigatórios; seus
modais lógicos são o “lícito/ilícito”, “proibido/permitido”, “autorizado/
negado”. Em síntese, não é o direito urbanístico que definirá qual
o modelo de cidade ideal, mas é nele que serão encontrados os
instrumentos jurídicos para que se alcancem os objetivos do urba-
nismo. Por outro lado, também é no direito urbanístico que os órgãos
de controle e a sociedade civil encontrarão normas e comandos
de regulação que poderão ser exigidos do poder público e dos
particulares, promovendo-se, dessa forma, o controle da atividade
AUTORES urbanística, tanto no campo administrativo quanto no judicial.

9.1_ 9.2_ 9.3_ Núcleo de Cidade e Re-


gulação;
9.4_ 9.5_ Henrique Frota (Instituto Pólis).
227
Guia de Urbanismo Social Capítulo 09 : Tópicos em Regulação Urbana

9.2_ O DIREITO URBANÍSTICO NA


CONSTITUIÇÃO
Quanto a esse aspecto, o texto constitucional apontou de forma
decisiva para a necessidade de promoção da justiça fundiária,
instituindo o Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios
(o conhecido “PEUC”) e a usucapião especial urbana. Os comandos
A estruturação do direito urbanístico em nosso país ocorre a partir do PEUC3 exigem, de modo progressivo, que os proprietários
das disposições fundamentais da Constituição Federal , que tratam 1
promovam o adequado aproveitamento de seus imóveis, coibindo,
das competências do município para regular o uso e a ocupação do assim, os vazios urbanos em áreas dotadas de infraestrutura. Já
solo urbano. As condições a serem observadas na implantação da a usucapião4 incide sobre imóveis de até 250 metros quadrados,
política de desenvolvimento urbano, por sua vez, estão expostas no sendo apto em cinco anos de posse ininterrupta e sem oposição
Estatuto da Cidade (Lei Federal n. 10.257/2001), a mais importante do bem, transferindo de forma originária a sua propriedade à
do direito urbanístico). família residente. Para o seu cumprimento alguns princípios
devem ser observados: que os beneficiários não tenham outra
A partir desses dois marcos normativos, a tarefa de efetivar a propriedade, a proibição de mais de uma usucapião por pessoa,
função social da propriedade e garantir o bem-estar dos habitantes a não incidência sobre terrenos públicos (admitindo-se, no en-
das cidades sob princípios jurídicos, diretrizes de política urbana e tanto, a concessão de uso, que não transfere a propriedade) e a
institutos próprios é realizada pelos planos diretores municipais e possibilidade de atribuição do título ao homem, à mulher ou a
pela legislação deles decorrentes. Fica estabelecido, desse modo, ambos, independentemente do estado civil.
o que é reconhecido como a “ordem urbanística”, que conforma
a propriedade imobiliária urbana, equilibrando os direitos dos Verifica-se, assim, que o direito urbanístico terá um papel funda-
proprietários e o bem-estar coletivo. mental na estruturação do desenvolvimento nacional, uma vez que
caberá a ele parametrizar o crescimento das cidades de acordo
O direito urbanístico detém alguns elementos fundamentais à sua com condições que distribuam os ônus e benefícios pertinentes a
compreensão: a propriedade e sua função social, a noção de política tal processo de modo equitativo a todos os cidadãos.
urbana e suas competências normativas, o conceito de plano diretor
e seu conteúdo e, finalmente, a noção da livre-iniciativa e o papel O segundo elemento fundamental a ser abordado neste ensaio é
do Estado no desenvolvimento urbano. a noção de “política urbana”. Considerando que ela diz respeito ao
conjunto de estratégias necessárias à constituição, preservação e
Inicialmente, é preciso destacar que a propriedade e a função social melhoria da ordem urbanística em prol do bem-estar das comuni-
têm íntima relação no texto constitucional, que em cláusula pétrea 2
dades, constata-se que a estratégia estabelecida na Carta Magna
garante tanto o direito de propriedade (artigo 5º, inc. XXII) como a é que a política de desenvolvimento urbano será baseada em lei,
determinação de que a propriedade atenderá a sua função social tendo por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
(inc. XXIII). A Constituição estabelece ainda que a função social sociais da cidade.
da propriedade terá como índice de aferição o atendimento aos
preceitos do plano diretor, regulando de maneira detalhada as regras O plano diretor, como se vê, é elemento central nessa estratégia
de aproveitamento compulsório da propriedade imobiliária urbana. constitucional, consubstanciado em uma lei que conclui um processo

1  Tais disposições se encontram especialmente nos art. 30, incs. I e VIII, e nos arts.
182 e 183. 3  Previsto no § 4º do art. 182.

2  Ou seja, incluída entre aquelas que jamais poderão ser suprimidas. 4  Prevista no art. 183.

228 229
Guia de Urbanismo Social Capítulo 09 : Tópicos em Regulação Urbana

de planejamento urbanístico, isto é, uma normatização que torna


obrigatório observar o diagnóstico e prognóstico do desenvolvimento
urbano capturado em amplo processo participativo. Verifica-se que a
9.3_ A LEGISLAÇÃO FEDERAL

ideia que perpassa o texto constitucional é estabelecer um padrão


A regulação constitucional da função social espraia-se por toda
mínimo de exigência de normatização para as cidades brasileiras.
a legislação referente ao campo do direito urbanístico. Aqui des-
tacamos algumas das principais normativas.
O plano diretor trará as disposições fundamentais da “propriedade
urbanística”, isto é, as condições básicas de parcelamento, uso e
O ESTATUTO DA CIDADE
ocupação do solo (como se poderá dividir, construir e utilizar a
propriedade). Além disso, ele veiculará a instrumentação jurídica
É a principal norma federal sobre a política urbana. Entre as diretrizes
necessária ao atingimento dos objetivos e diretrizes da política que
que convergem para um conceito de urbanismo social, encontram-se
ilustrará a atuação dos setores público e privado no desenvolvi-
nela algumas garantias como: o direito à terra urbana, à moradia, ao
mento urbano. A lei, em síntese, não somente dirá o que se deseja
saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos
para a cidade como também estabelecerá os meios colocados à
serviços públicos, ao trabalho e lazer para as presentes e futuras
disposição da sociedade para tanto.
gerações. Garante-se ainda a oferta de equipamentos, transporte
e serviços públicos adequados às necessidades da população e às
No tocante a essa última observação, cumpre tecer algumas consi-
características locais, e a regularização fundiária e urbanização das
derações sobre os papéis desses dois atores na política de desen-
áreas ocupadas pela população de baixa renda, mediante normas
volvimento urbano, ressaltando, em consonância com os artigos 173
especiais, consideradas a situação socioeconômica da população
e 174, a relevância da atividade dos empreendedores privados para
e as normas ambientais.
o desenvolvimento urbano. De fato, além da própria atividade de
construção da paisagem urbana com base nas leis de zoneamento ou
Além de regulamentar a usucapião constitucional, o Estatuto abriu a
de obras de infraestrutura e equipamentos públicos contratadas pela
possibilidade de sua aplicação coletiva, hipótese em que se formará um
administração pública, as parcerias entre o poder público e o setor
condomínio entre os possuidores até que se complete a urbanização do
privado são essenciais para implementação dos planos e projetos
assentamento. No caso de terrenos privados insuscetíveis de usucapião,
urbanos — tal como ocorre nas operações urbanas consorciadas,
o Estatuto permite que o município os adquira mediante o exercício
concessões urbanísticas e obras de infraestrutura urbana.
de direito de preempção (preferência) ou doação acompanhada de
transferência do direito de construir para outro terreno.

Também se admite o emprego do consórcio imobiliário, um acordo no


qual o município promove a regularização e devolve ao proprietário
unidades de valor equivalente ao do imóvel original. O Código Civil
(Lei n.10.406/2002) admite, ainda, a desapropriação em favor dos
possuidores, pela qual o juiz faculta a eles adquirirem o terreno
diretamente, mas mediante pagamento de indenização ao proprietário.

Como formas de financiar a regularização, o Estatuto prevê a consti-


tuição de um fundo com as receitas derivadas da venda do potencial
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Guia de Urbanismo Social Capítulo 09 : Tópicos em Regulação Urbana

construtivo adicional (que é uma contrapartida exigível dos proprie- ocupantes. Entre suas diretrizes, destacam-se a prestação de
tários em caso de verticalização) e a operação urbana consorciada, serviços públicos, a melhoria das condições urbanísticas e ambien-
em que são promovidas transformações urbanísticas estruturais em tais, o acesso à terra urbanizada, a permanência dos ocupantes,
áreas específicas da cidade, fazendo uso da captura da valorização a integração social, a geração de emprego e renda, a resolução
imobiliária gerada pelos próprios investimentos. extrajudicial de conflitos, a garantia do direito à moradia digna, a
função social da propriedade, a eficiência na ocupação do solo, o
Nos municípios com áreas de risco sujeitas a deslizamentos ou desestímulo à formação de novos assentamentos informais, a pre-
inundações, o Estatuto exige que o plano diretor mapeie tais ferência da mulher na concessão de direitos reais e a participação
áreas, preveja intervenções preventivas, institua diretrizes para a dos interessados em todas as etapas do processo.
regularização fundiária e demarque zonas especiais de interesse
social (Zeis), que deverão ser ocupadas preferencialmente por A lei, que prevê uma série de instrumentos e procedimentos para que
habitação popular. sejam realizados processos de titulação de ocupantes de assentamen-
tos informais localizados em áreas públicas e privadas, reconhece que
A REGULARIZAÇÃO EM ÁREAS PÚBLICAS a “cidade real” deve ser incorporada e reconhecida como a “cidade
formal”, gerando dignidade às pessoas que nela habitam.
Como visto, a Constituição não admite a usucapião de bens públicos.
Nesse caso, a regularização poderá ser feita mediante alienação, A Reurb depende da aprovação pelo município de um projeto de regu-
doação ou concessão de direito real de uso aos ocupantes. Apenas larização fundiária, que deverá conter: levantamento planialtimétrico
os terrenos classificados como dominicais, ou seja, que não estejam e cadastral georreferenciado; soluções para as desconformidades
afetados a uma finalidade pública, podem ser regularizados. Os ambientais e urbanísticas, com reassentamento dos ocupantes,
de uso especial (destinados a um equipamento público) e os de quando necessário; cronograma para implantação da infraestrutura
uso comum do povo (que podem ser livremente usufruídos por essencial e execução de compensações urbanísticas e ambientais;
qualquer pessoa) precisam ser antes desafetados, a fim de que e definição dos responsáveis pela execução do cronograma.
se convertam em dominicais.
Essas determinações deverão ser traduzidas em um projeto urbanísti-
Essa é uma situação bastante comum, pois muitos assentamentos co que indicará o sistema viário, as unidades existentes e projetadas,
ocupam áreas transferidas ao município por loteadores, a fim de os espaços livres, as áreas destinadas a edifícios e equipamentos
que sejam aproveitadas como espaços livres de uso público ou equi- urbanos, as medidas para correção de desconformidades, mobilidade,
pamentos comunitários. A Lei Orgânica de cada município definirá acessibilidade e relocação de edificações e as obras de infraestrutura
a necessidade ou não de legislação municipal para a desafetação. essencial (constituída pelos sistemas de abastecimento de água
potável, esgotamento sanitário, energia elétrica e drenagem, além
A LEI DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA de outros equipamentos exigidos pelo município).

Não seria possível cogitar a edição da Lei Federal n. 13.465/2017 — a ! Aprovada a Reurb, caberá ao município emitir uma Certidão de
Lei da Reurb — sem esses fundamentos constitucionais. A regula- PARA SABER MAIS, VER: Regularização Fundiária (CRF), com o nome dos ocupantes e das
rização fundiária urbana abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ▸ Reurb — Lei Federal n. respectivas unidades, que deverá ser levado a registro juntamente
sociais e ambientais destinadas a incorporar os assentamentos 13.465/2017. com o projeto de regularização fundiária.
informais ao ordenamento territorial urbano e a titular seus

232 233
Guia de Urbanismo Social Capítulo 09 : Tópicos em Regulação Urbana

AS ÁREAS DE RISCO E DE PROTEÇÃO


PERMANENTE 9.4_ DIREITO À CIDADE

O Brasil tem um papel histórico nesse processo não apenas por


É comum que assentamentos informais se formem ocupando desenvolver inúmeras políticas graças às demandas da socie-
terrenos sensíveis ambientalmente e em áreas de risco. Isso ocorre dade civil organizada como também por ser o primeiro país do
porque a legislação proíbe o mercado formal de urbanizá-las. mundo a expressamente reconhecer o direito à cidade em uma
lei, o Estatuto da Cidade. Segundo ele, a política urbana deve
A Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei n.6.766/1979) não o obrigatoriamente implementar a garantia do direito a cidades
admite em terrenos alagadiços e/ou sujeitos a inundações, aterrados sustentáveis e à gestão democrática, induzindo os municípios
com material nocivo à saúde pública, em condições geológicas que a adotarem uma cultura orientada à participação popular e à
desaconselhem a edificação ou que não o ofereçam condições redução das desigualdades socioterritoriais.
sanitárias devido à poluição.

Para tanto, os municípios devem mapear tais áreas e elaborar um O direito à cidade tem sido utilizado em todo o mundo para contestar
Plano de Contingência de Proteção e Defesa Civil, um plano de o modelo de urbanização excludente e, com isso, reivindicar melhores
implantação de obras e serviços para redução de riscos e uma condições de vida e propor que as urbes sejam mais justas, democráticas,
carta geotécnica de aptidão à urbanização, além de criar meca- inclusivas e ambientalmente responsáveis.
nismos de controle e fiscalização para evitar sua ocupação. Nas
Na América Latina e, em especial, no Brasil, a ideia e as práticas ligadas
áreas já ocupadas, o que se prevê é a adoção de providências para
a esse direito fazem parte da agenda de reivindicações dos movimentos
redução do risco e, quando necessário, a remoção de edificações,
urbanos há várias décadas, dialogando com o que se denominou de “re-
com reassentamento dos ocupantes em local seguro. A remoção
forma urbana”. Embora seu conceito tenha surgido da obra do intelectual
depende de vistoria e elaboração de laudo técnico que aponte os
francês Henri Lefebvre (1901-1991) no final da década de 1960, foi a partir
riscos à integridade física.
das ruas e das lutas sociais que o direito à cidade ganhou vida enquanto
fator de mobilização e transformações.
A regularização fundiária é admitida mediante aprovação do projeto,
acompanhado de estudo que demonstre a melhoria das condições
ambientais em relação à situação anterior e contenha medidas de
recuperação de áreas degradadas, prevenção de riscos geotécnicos Nesta seção, vamos explorar as dimensões do direito à cidade e
e inundações, uso adequado dos recursos hídricos, proteção de quais compromissos devem ser adotados em relação ao planeja-
unidades de conservação, saneamento básico e garantia de acesso mento e gestão das urbes.
público às praias e corpos d’água.
CONCEITO E DIMENSÕES DO DIREITO À CIDADE

Embora, como foi dito, o Brasil tenha reconhecido o direito à cida-


de na legislação, tal conceito vem sendo atualizado de maneira
constante a partir de cada contexto histórico e geográfico. Nesse
sentido, é possível encontrar diferentes conceituações acadêmicas,
em documentos oficiais ou nas narrativas dos movimentos sociais.

234 235
Guia de Urbanismo Social Capítulo 09 : Tópicos em Regulação Urbana

Neste texto, serão considerados dois conceitos importantes cons- Diz respeito ao acesso universal e equitativo à
DIMENSÃO
truídos por governos locais e redes internacionais da sociedade terra bem localizada, aos serviços e equipamen-
MATERIAL
civil. O primeiro deles está presente na Carta Mundial pelo Direito tos urbanos, à moradia e aos espaços públicos;

à Cidade, elaborada durante os Fóruns Sociais Mundiais no início


dos anos 2000. De acordo com esse documento:
Diz respeito à participação social e cidadania
ativa, assegurando o direito de participar das
O Direito a Cidade é definido como o usufruto equitativo das
DIMENSÃO decisões públicas e realizar controle social
cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia POLÍTICA independente da condição de residente per-
e justiça social; é um direito que confere legitimidade à ação manente, ampliando a ideia de cidadania para
e organização, baseado em seus usos e costumes, com o incluir grupos sociais excluídos;
objetivo de alcançar o pleno exercício do direito a um padrão
de vida adequado. O Direito à Cidade é interdependente a
Diz respeito à transversalização do enfrenta-
todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos,
mento das desigualdades raciais, de gênero,
concebidos integralmente e inclui os direitos civis, políticos,
DIMENSÃO de origem, de acessibilidade, de orientação
econômicos, sociais, culturais e ambientais. Inclui também SIMBÓLICA sexual e quaisquer outras em toda a política
o direito à liberdade de reunião e organização, o respeito urbana para a construção de cidades livres de
às minorias e à pluralidade ética, racial, sexual e cultural; o discriminação.
respeito aos imigrantes e a garantia da preservação e herança
histórica e cultural.

Tais dimensões, por sua vez, não são estanques nem isoladas, mas se
Na sequência, muitas das organizações e redes internacionais que
relacionam entre si e devem ser consideradas de maneira integrada
participaram da elaboração da Carta Mundial pelo Direito à Cidade
na formulação das políticas públicas e no ordenamento territorial.
fundaram, em 2014, a Plataforma Global pelo Direito à Cidade,
passando a estabelecer um entendimento comum de que ele é

o direito de todas(os) as(os) habitantes, presentes e futuras(os),


permanentes e temporárias(os), de habitar, usar, ocupar,
produzir, governar e desfrutar cidades, vilas e assentamentos
humanos justos, inclusivos, seguros e sustentáveis, definidos
como bens comuns essenciais para uma vida plena e decente.

Em ambos os conceitos, o marco do direito à cidade põe ênfase em


melhorar a participação política, a cidadania livre de discriminação,
a promoção das funções sociais da terra e da propriedade e a
produção social do hábitat na perspectiva dos direitos humanos.
Diante da complexidade desse direito, podemos considerar que
ele articula de modo dinâmico três dimensões fundamentais da
vida urbana.

236 237
Guia de Urbanismo Social

9.5_ O DIREITO À CIDADE COMO


PRINCÍPIO ORIENTADOR DO
ORDENAMENTO TERRITORIAL

Com base na lente do direito à cidade, podemos propor uma lei-


tura dos territórios que necessariamente deve enfrentar as três
dimensões aqui descritas e, com isso, orientar as políticas e planos
públicos que regulam o solo.

Há valores fundamentais que o direito à cidade traz para as agendas


mais técnicas, científicas ou de desenvolvimento. Em primeiro lugar,
conferir centralidade às pessoas e às comunidades e alinhar-se aos
padrões dos direitos humanos e da proteção do meio ambiente. Em
segundo, um marco criado por meio de uma abordagem partici-
pativa nos níveis de elaboração, implementação e monitoramento.
Em terceiro, um âmbito territorial no qual as políticas de gestão
territorial estejam orientadas a resolver as injustiças e a prevenir
futuros excessos relacionados a violações de direitos humanos e à
destruição do meio ambiente. Em quarto e último lugar, o marco do
direito à cidade reconhece e leva em consideração como diversos
grupos experimentam a urbe de diferentes maneiras — é o caso
das mulheres, discutido no Capítulo 13 deste Guia.

Isso significa que nossa política urbana, e consequentemente


seus marcos normativos, devem ser formulados e implementados
seguindo as diretrizes estabelecidas, isto é, a participação social
(dimensão política), contendo medidas transversais de redução
de todas as formas de desigualdade (dimensão simbólica) e pro-
movendo a justiça territorial e o usufruto equitativo dos serviços
e benefícios das cidades por todas as pessoas, com efetivação
da função social da terra e da propriedade (dimensão material).

238
Capítulo 10 : Tópicos em Formas de Financiamento

10_ 10.1_ INSTRUMENTOS DE


RECUPERAÇÃO DA
VALORIZAÇÃO DO SOLO

TÓPICOS EM FORMAS DE Para além dos modelos tradicionais de financiamento urbano, vale

FINANCIAMENTO considerar a utilização dos chamados instrumentos base solo ou


instrumentos de recuperação da valorização do solo (em inglês,
land value capture). Trata-se de um conjunto de ferramentas que
10.1_ Instrumentos de recuperação
podem mobilizar a valorização dos terrenos urbanos em linha
da valorização do solo
com as diretrizes de política urbana, viabilizando investimentos
sem implicar aumento de impostos ou ônus a gerações futuras.
10.2_ Modelos e possibilidades
Essa forma de financiamento ainda é tida como alternativa ou
via financiamento de agências
complementar, apesar de incluir instrumentos consolidados e ter
multilaterais
grande potencial de mobilização de recursos.

10.3_ Modelos e possibilidades


O princípio por trás da ideia é simples e inclui uma forte justificativa
estatais
ética: a valorização urbana é gerada por ações públicas e coletivas,
e sua apropriação privada é, portanto, indevida e injusta; assim,
faz sentido recuperar a valorização, revertendo-a em benefício
público. Sem a recuperação, a valorização do solo será apropriada
por proprietários privados, contribuindo para a concentração de
renda e reprodução de desigualdades. A recuperação da valori-
zação permite mobilizar recursos que ampliam a capacidade de
investimento do poder público, e que podem, inclusive, ser usados
em uma perspectiva de políticas redistributivas.

! São duas as principais fontes de valor dos terrenos urbanos: obras


PARA SABER MAIS, VER: públicas (infraestrutura) e regulação urbanística. Como regra, áreas
▸ ver Capítulo 15 e a com boa infraestrutura valem mais que áreas sem as mesmas
publicação Favela-
condições. Já no que se refere à regulação, a regra é: quanto mais
Bairro: 10 anos depois;
permissiva a legislação incidente sobre determinado bairro ou
▸ BID (2020).
zona (com maior diversidade de usos e limites construtivos mais
amplos), maior valor se adiciona aos terrenos ali localizados. Essas
AUTORES regras aparentemente banais condicionam o gradiente de preços
das localizações urbanas e o modo como o valor, gerado por ações
10.1_ Camila Maleronka (Insper);
públicas, se distribui no território.
10.2_ Anacláudia Rossbach (Lincoln
Institute of Land Policy);
10.3_ Diagonal.
241
Guia de Urbanismo Social Capítulo 10 : Tópicos em Formas de Financiamento

Em tese, as definições públicas sobre oferta de infraestrutura No Brasil, os instrumentos base solo podem ser classificados como
e definições de regulação urbanística são interdependentes: tributários e não tributários. Contudo, no capítulo “Instrumentos da
promove-se o uso mais intensivo do solo onde há infraestrutura Política Urbana” do Estatuto da Cidade — Lei n.10.257, de 10 de julho
suficiente para dar suporte a tal intensidade e restringe-se a ocu- de 2001, discutido no Capítulo 09, constam instrumentos das duas
pação onde falta infraestrutura. Uma política urbana racional tende categorias, sem fazer tal distinção. O ideal é que sejam utilizados
a concentrar valor em determinadas localizações (por exemplo, em conjunto, conformando um sistema, porém sua implementação
promovendo o adensamento ao longo do sistema de transporte)
em detrimento de outras (digamos, limitando a ocupação de áreas
! depende de condicionantes locais, tanto de ordem técnica, quanto
política. O Estatuto deixa ainda em aberto a proposição de novos
ambientalmente frágeis). PARA SABER MAIS, VER: instrumentos pelos municípios, reconhecendo o protagonismo dos
▸ Coleção Cadernos governos locais na política urbana.
Técnicos de
Correntemente, a dinâmica de geração (e destruição) de valor nas
Regulamentação
cidades é tomada como aleatória ou incontornável, uma fatalidade. e Implementação O primeiro deles é o IPTU — Imposto Predial e Territorial Urbano.
Já quando se adota a perspectiva da gestão da valorização do solo, de Instrumentos do A parcela “territorial” do IPTU recupera incrementos gerais no
Estatuto da Cidade,
essa mesma dinâmica é reconhecida como resultado de definições publicada pelo
valor dos terrenos urbanos, desde que sua base de cobrança — a
de planejamento urbano e os instrumentos base solo entram em Ministério das Cidades. chamada planta genérica de valores — esteja atualizada e reflita
cena. Sua aplicação considera uma visão integral de desenvol- valores de mercado. A despeito da alta carga tributária no país, o
vimento urbano e não se encerra na arrecadação de recursos, IPTU tem um desempenho muito aquém das suas possibilidades.
mas se retroalimenta pelo investimento. Tão importante quanto
recuperar a valorização oriunda de ações públicas é direcionar os
! No Brasil, a receita agregada de todos os municípios representa
0,45% do PIB, enquanto nos EUA, 3%. Para além do financiamento, o
recursos obtidos para investimentos que considerem as diferenças PARA SABER MAIS, VER: IPTU também tem características extrafiscais que contribuem para
intraurbanas, com a perspectiva de redistribuição. ▸ Para um diagnóstico a gestão urbana, como o estímulo ao uso dos imóveis e a redução
do IPTU no Brasil, ver
da retenção especulativa.
Diagnóstico IPTU no
CICLO DE GESTÃO DA Brasil. FGV Projetos
VALORIZAÇÃO DO SOLO (sem data). Outro instrumento tributário é a contribuição de melhoria, que
possibilita repor custos de obras públicas que valorizem imóveis
AÇÕES PÚBLICAS adjacentes. É um instrumento antigo, previsto desde a Constituição
[OBRAS E REGULAÇÃO]
de 1934, e vinculado diretamente à diretriz do Estatuto da Cidade
que estabelece a “recuperação dos investimentos do Poder Público
de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos” (Lei
n.10.257/2001, art. 2º, inciso XI). A valorização gerada por obras
INVESTIMENTO VALORIZAÇÃO DE públicas, em geral, supera em muito seu custo. Há vários exemplos
[REDISTRIBUIÇÃO] TERRENOS URBANOS registrados na literatura especializada, entre os quais um estudo

! sobre uma obra de drenagem em Porto Alegre que gerou uma valo-
rização estimada em sete vezes o seu custo. O limite de recuperação
PARA SABER MAIS, VER: da contribuição de melhoria é o menor valor entre incremento de
▸ Sobre esse e outros valor e o custo da obra, ou seja, em geral, mesmo repondo o gasto,
INSTRUMENTOS BASE casos, ver Estudo do
SOLO os proprietários se apropriam de parte relevante da valorização,
Banco Mundial (2020).
[RECUPERAÇÃO DE VALOR] com um alinhamento de interesses entre os envolvidos.

242 243
Guia de Urbanismo Social Capítulo 10 : Tópicos em Formas de Financiamento

Os instrumentos não tributários são aqueles que geram contra- tem um grande potencial de redistribuição. Trata-se de uma alter-
partidas para o poder público quando no licenciamento de novos nativa coerente com os preceitos do urbanismo social, com uma
empreendimentos. Qualquer tipo de obrigação urbanística — por perspectiva de ganhar cada vez mais espaço na política urbana.
exemplo, a exigência de destinar um percentual de áreas públicas
em novos loteamentos — é um instrumento base solo de recuperação
da valorização, na medida em que reverte parte do valor gerado
pela autorização de um novo empreendimento em benefício público.

Além desses instrumentos gerais, de ampla utilização, há os espe-


cíficos, que mobilizam a valorização da terra por meio da gestão
dos direitos de construir ou do potencial construtivo. Nesse grupo,
com aplicações diversificadas, estão os bônus de densidade, ins-
trumentos que premiam determinadas condutas — como a inclusão
de tipologia de habitação de interesse social em parte do novo
empreendimento — oferecendo edificabilidade adicional. Com a
mesma natureza, o Estatuto da Cidade definiu três instrumentos:
a outorga onerosa do direito de construir (instrumento básico que
organiza a aplicação de todos os outros), a transferência do direito
de construir e a operação urbana consorciada. O princípio é que o
direito de propriedade inclui um direito básico de construção, igual
para todos os imóveis urbanos. O potencial adicional é definido
por critérios urbanísticos e constitui patrimônio público, passível
de outorga onerosa, ou seja, concessão mediante contrapartida.

Com uma trajetória de implementação que soma mais de três


décadas, a cidade de São Paulo é referência na utilização desses
instrumentos, tendo recuperado volumes expressivos de recursos.
Algumas das principais obras de reurbanização de favelas na
cidade foram financiadas por meio de contrapartidas por potencial
construtivo, em operações urbanas e fora delas. Em 2021, a receita
de outorga onerosa na capital paulista correspondeu a 23% de
todos os investimentos realizados.
!
PARA SABER MAIS, VER:

Investimentos em urbanismo social podem ser financiados de ▸ MALERONKA, Camila.


Operações urbanas: o
múltiplas maneiras. A inclusão dos instrumentos base solo no rol
que podemos aprender
de possibilidades amplia o leque de forma consistente e robusta: o com a experiência de
orçamento corrente não é impactado, há transparência fiscal (ori- São Paulo? (2017).

gem-destino dos recursos), não gera peso morto e, principalmente,

244 245
Guia de Urbanismo Social Capítulo 10 : Tópicos em Formas de Financiamento

10.2_ MODELOS E POSSIBILIDADES VIA


FINANCIAMENTO DE AGÊNCIAS
MULTILATERAIS
!
PARA SABER MAIS, VER:
municípios incluídos no escopo do projeto executado pelo governo
federal. O Habitar Brasil incluía: (i) ações de desenvolvimento
institucional, como mudanças no planejamento local, desenvol-
▸ Sobre o programa vimento de instrumentos de regularização fundiária, adequação
HBB Brasil BID, ver
de normas e regras urbanísticas com flexibilidade compatível à
No Brasil e no restante da América Latina os Bancos de Desenvol- Habitar Brasil BID/IDB,
Ministério das Cidades realidade local e capacitação de equipes técnicas; (ii) elaboração
vimento e as agências internacionais desempenharam um papel
(sem data). e execução de projetos de urbanização que incluíam regularização
fundamental para a inserção de programas de urbanização de
▸ Sobre os programas fundiária, infraestrutura urbana, equipamentos sociais, de cultura
favelas na agenda de municípios e governos regionais e nacio- de urbanização
e lazer, além de um componente de desenvolvimento comunitário
nais. Embora urbanização de favelas não seja sinônimo estrito de favelas e seu
financiamento, ver: BID. com aspectos de capacitação de lideranças, educação ambiental,
de urbanismo social, certamente a impulsão de projetos para a Urbanização de Favelas: e geração de trabalho e renda.
melhoria de assentamentos precários foi e é fundamental para lições aprendidas no
Brasil (2012).
lastrear intervenções de mais longo prazo e de natureza sistêmica.
A relevância desse programa está relacionada não somente com
Isso porque reorientou o planejamento urbano e as estratégias
o impacto nas cidades beneficiadas pelo mesmo como também
de desenvolvimento local, na medida em que tais projetos: (i) por
ao avanço institucional ocorrido simultaneamente à aprovação da
um lado requerem alterações regulatórias e legais; e, (ii) de outro,
legislação e marco urbano no Brasil, o Estatuto da Cidade, em 2001.
paulatinamente introduzem uma nova cultura sobre o espaço
Além de trazer instrumentos para que os municípios pudessem re-
urbano, onde o território precário e informal ganha cada vez
conhecer na prática a função social da terra e da cidade, o Estatuto
mais centralidade e funciona como espaço concreto de políticas
serviu de fundamento legal para uma escalada de investimentos
públicas com enfoque em inclusão e na promoção da equidade.
públicos direcionados a projetos de urbanização de favelas por meio
do “Programa de Aceleração do Crescimento — PAC Favelas”. A
Embora hoje existam diversas organizações internacionais que
liberação de recursos da União em larga escala para financiar ações
atuam na esfera da assistência técnica e da prática da advocacy,
em assentamentos localizados em áreas onde a propriedade não
historicamente algumas se destacaram em promover essa agenda
está claramente definida ocorreu graças à Instrução Normativa n. 1
que hoje chamamos de urbanismo social — seja com projetos icôni-
da Secretaria do Tesouro Nacional1, que disciplina a celebração de
cos, seja através de ações combinadas de apoio ao desenvolvimento
convênios para projetos financiados com recursos do Orçamento
institucional, capacitação, pesquisa e incidência política. Como
Geral da União. Tal regulamentação permite a utilização de recursos
iniciativas emblemáticas emergentes nos anos 1990 e princípios
públicos em “Zonas Especiais de Interesse Social — Zeis”, como
de 2000 podemos citar, na esfera local, o projeto Favela-Bairro,
alternativa à comprovação da propriedade2 .
no Rio de Janeiro, financiado pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), e o Programa Mananciais em São Paulo,
Esse precedente é fundamental para desobstruir o fluxo de financia-
custeado pelo Banco Mundial (ver Capítulo 15). Como projetos,
mento público para obras de urbanização de favelas e, no contexto
ambos influenciaram intervenções similares não só no Brasil como
deste Guia, viabilizar estratégias de longo prazo de urbanismo
também em outras nações, e ficaram bastante conhecidos.
social, já que o financiamento por bancos de desenvolvimento

Por outro lado, menos conhecido, mas com um impacto significativo,


o Programa Habitar Brasil BID de 1999 foi responsável pela inserção 1  Instrução Normativa n. 1, de 15 de janeiro de 1997 — Celebração de Convênios
(Texto Consolidado), Capítulo II, artigo 2º, parágrafo IX – f.
do tema da urbanização de favelas na política nacional e nos 119
2  ROSSBACH e MAGALHÃES. Estatuto da Cidade: A Velha e a Nova Agenda Urba-
na. P- 94. 2016.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 10 : Tópicos em Formas de Financiamento

internacional passam obrigatoriamente pelo tesouro público, além por meio de ensino a distância, incluindo duas edições do curso
de exigir contrapartidas locais. No caso do Habitar Brasil BID, por “Ações Integradas de Urbanização de Assentamentos Precários”.
exemplo, o montante de contrapartida era de 40% do investimento
de um total de US$ 298,9 milhões3. Mais recentemente, as operações financiadas pelos bancos de
desenvolvimento internacional incorporaram uma forte abordagem
É muito importante ressaltar ainda o papel histórico do Banco de sustentabilidade climática e ambiental, dela fazendo parte
Mundial e da Cities Alliance , organizações que estavam integradas
4
tanto aspectos de mitigação de riscos e promoção de resiliência
do ponto de vista institucional e contribuíram para muitos avanços como de preservação de entornos naturais de bairros periféricos
na agenda de urbanização de assentamentos precários nas escalas e precários. Assim, temas como espaços verdes e mobilidade
local e nacional. Ações de assistência técnica e capacitação foram sustentável ganharam evidência. Um exemplo importante é o
implementadas em vários municípios e em apoio à Política Nacional projeto implementado pela companhia de água e saneamento do
de Habitação do Ministério das Cidades. Um exemplo emblemático estado de São Paulo, a Sabesp, Improving Water Service Access
foi a construção de um sistema de informações georreferenciado And Security in the Metropolitan Region of São Paulo Project,
das favelas do município de São Paulo, atrelado a indicadores de um projeto de US$ 250 milhões para o período de 2018-2025,
vulnerabilidade física e social, o Habisp. Ele não consistia apenas de abrangência metropolitana, que teve como foco os bairros
em um inventário; funcionou também como instrumento técnico- localizados no entorno da represa Billings, uma área estratégica
-político para hierarquizar as intervenções, e com isso viabilizar de preservação ambiental e para o abastecimento de água da
o planejamento de longo prazo. Posteriormente, esse sistema foi região. Por não se enquadrar aos limites administrativos de um só
incorporado a um outro maior, de georreferenciamento do município, município, foi necessária uma grande articulação para o desenho
o mapa digital da cidade, o Geosampa, além de ter sido replicado do território de abrangência, assim como ações coordenadas no
no município de São Bernardo do Campo, com o apoio, igualmente,
da Cities Alliance, com a denominação de Sihisb.
! processo de implementação, ainda em curso.

PARA SABER MAIS, VER: Sem um histórico tão robusto de operações de crédito com enfoque
Em termos de apoio à política nacional, conjuntamente a Cities ▸ Sobre o Habisp, em urbanização de assentamentos precários, a CAF, Banco de
ver link.
Alliance e o Banco Mundial apoiaram diversas frentes para promover Desenvolvimento da América Latina, atuou fortemente no processo
o avanço institucional da agenda de urbanização de favelas. Des- ▸ Sobre o Sihisb, de realização da Conferência Hábitat III e na elaboração da Nova
ver link.
tacam-se: (i) apoio ao Plano Nacional de Habitação — Planhab, com Agenda Urbana, coordenando um grupo de trabalho dedicado ao
o desenho de um modelo de subsídios e financiamento que incluía tema Direito à Cidade, relacionado com o fortalecimento da dimen-
aspectos preventivos de produção de novas habitações e curativos de são urbana, e uma abordagem de inclusão social em sua estratégia
expansão de infraestrutura e melhorias habitacionais em territórios corporativa. Projetos icônicos financiados pela CAF em Guayaquil,
precários; (ii) viagens de estudo e intercâmbio de conhecimento, no Equador, e em Buenos Aires, na Argentina, foram desenhados
incluindo apoio institucional ao componente de assentamentos com o objetivo de promover o acesso a serviços, habitação e
humanos do acordo de cooperação internacional conhecido com infraestrutura em territórios precários. No Brasil, entre 2009 e
IBSA (Índia, Brasil e África do Sul); (iii) capacitação de atores locais 2019, o CAF aprovou 35 operações de crédito para 26 municípios,
de cerca de USD 2,3 bilhões de dólares, com um portfólio robusto
3  Habitar Brasil BID, 2007.
de projetos orientados à reabilitação, integração e melhoria de
4  A Cities Alliance é fruto de uma coalisão internacional em prol da pobreza urba-
infraestrutura urbana em territórios vulneráveis.
na, sob o lema “Cities without slums” (“Cidades sem favelas”), que, no início, estava
vinculada institucionalmente ao Banco Mundial.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 10 : Tópicos em Formas de Financiamento

Embora a assistência técnica vinculada às operações promovidas relacionadas à melhoria da qualidade de vida em territórios urbanos
pelos bancos internacionais de desenvolvimento possa ser não vulneráveis por meio de assistência técnica e financiamento de
onerosa, em alguns casos, empréstimos com enfoque em desen- projetos. Nesse sentido podem, sim, constituir um pilar estratégico
volvimento institucional são concedidos para os governos nacional para o financiamento de longo prazo de ações de urbanismo social,
ou subnacionais. Trata-se de empréstimos mais enxutos e de curto tanto em seu componente físico (infraestrutura, habitação, mobi-
prazo, que normalmente financiam consultorias para a elaboração lidade, espaços e equipamentos públicos), como social (apoio ao
de diagnósticos, políticas, planos e programas que podem (ou não) desenvolvimento comunitário, inserção socioeconômica, segurança).
resultar em operações mais robustas e de longo prazo que financiam
a execução de projetos; ou mesmo estar associados a empréstimos Vale evidenciar, no entanto, a relevância do orçamento público para
mais flexíveis para fortalecer o tesouro público, contudo atrelados financiamento de infraestrutura nos assentamentos precários no Brasil.
a compromissos setoriais (gestão, fiscal, infraestrutura urbana ou O já mencionado Programa de Aceleração do Crescimento — PAC
social). No Banco Mundial, essa modalidade se chama “Empréstimo representou um fluxo bastante significativo de investimentos naqueles
de Política de Desenvolvimento” (Development Policy Loan, DPL territórios, o equivalente a US$ 10 bilhões de dólares. Superando em
em inglês). Por exemplo, em 2010 o governo do estado do Rio de muito o aporte internacional, tais recursos foram fundamentais para
Janeiro recebeu dois empréstimos do Banco Mundial atrelados a ampliar o impacto da ação histórica dos bancos internacionais de
compromissos de melhorar a gestão metropolitana nos aspectos desenvolvimento no país.
de risco e desastre, desenvolvimento urbano, inclusão social e
redução de vulnerabilidades.

Naturalmente, em se tratando de empréstimos, além das contra-


partidas obrigatórias, os recursos são onerosos e precisam ser
reembolsados aos bancos, e, embora a taxa de juros seja inferior
às praticadas pelo mercado, a variação cambial é um elemento
importante a ser considerado. De todo modo, para firmar um
empréstimo internacional um governo subnacional necessita de
aprovação federal (executivo e legislativo) condicionada à capaci-
dade fiscal. Adicionalmente, um processo de desenho e construção
conjunta precede as negociações finais de um empréstimo, e as
equipes sediadas nas representações em Brasília coordenam,
com apoio internacional, visitas e missões para avaliações iniciais
e estudos de viabilidade com o objetivo de certificar-se de que
os objetivos do apoio solicitado estão em linha (i) com as suas
estratégias setoriais e de país; (ii) com o marco legal e político do
Brasil; e (iii) atendem às exigências de salvaguardas ambientais e
sociais definidas pela instituição e a legislação local.

O histórico e os exemplos mencionados refletem uma clara disposi-


ção dos bancos internacionais de desenvolvimento em apoiar ações

250 251
Guia de Urbanismo Social Capítulo 10 : Tópicos em Formas de Financiamento

10.3_ MODELOS E POSSIBILIDADES


ESTATAIS
convênios ou contratos, a partir dos editais de chamamento público.
Trata-se de um instrumento com grande potencial para amplificar
o financiamento de transformações comunitárias e identitárias
nas cidades. Por fim, destaca-se a possibilidade de obtenção de
recursos por meio das transferências voluntárias9, a exemplo de
O investimento público e estatal sistemático é fundamental para a
emendas parlamentares e concessões públicas e constitucionais.
construção, manutenção e gestão dos equipamentos e intervenções
urbanísticas comunitárias. Diante da escassez e competição pelo
fundo público, e da necessidade de direcionar investimentos para
áreas socialmente vulneráveis, é central que haja a compreensão a !
respeito dos modelos públicos de financiamento, além de outros, PARA SABER MAIS, VER:
de origens diversificadas. ▸ LEITE, Carlos et al. Social Urbanism in Latin America: cases and instruments of
planning, land policy and financing the city transformation with social inclusion, 2020.

Somados aos instrumentos de recuperação da valorização do solo


e via agências multilaterais, anteriormente discutidos, apresentam-
-se outras possibilidades de financiamento urbano. Uma dessas
possibilidades é a adoção de sistemas de políticas públicas, planos
ou programas específicos, federais ou estaduais, que exerçam
o repasse de recursos para investimentos vinculados, ou fundo
a fundo. É o caso de investimentos setoriais em infraestrutura e
desenvolvimento urbano, tais como o Plano Local de Habitação de
Interesse Social (PLHIS)5, Plano Municipal de Saneamento Básico
(PMSB)6, Plano Municipal de Limpeza Urbana (PMDU)7, Plano
Municipal de Resíduos Sólidos (PMRS)8.

Outra possibilidade seria o financiamento proveniente de fundos


e fundações estatais, como o Fundo Socioambiental Caixa e a
Fundação Banco do Brasil, que apoiam projetos com caráter so-
cioambiental, voltados ao desenvolvimento sustentável, à inclusão
socioprodutiva e à reaplicação de tecnologias sociais. Nesses
casos são realizados investimentos não reembolsáveis em parceria
com instituições sem fins lucrativos por meio da celebração de

5  Exigido pela Lei nº 11.124, de 16 de junho de 2005, para municípios com mais de
50 mil habitantes.

6  Instrumento exigido pela Lei Federal nº 11.445, de 2007.

7  Visa atender a Lei Federal n° 11.445/07, conhecida como Lei do Saneamento,


novo marco regulatório do setor 9  São definidas pelo art. 25 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) como a entre-
ga de recursos financeiros a outro ente da federação, a título de cooperação, auxílio
8  Estabelecido pela Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei n° ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou
12.305/2010) e regulamentada pelo Decreto n° 7.404/10. os destinados ao Sistema Único de Saúde.
252 253
Capítulo 11 : Tópicos em Cidade e Crianças

11_ 11.1_ A PRIORIDADE ABSOLUTA DO


DIREITO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE À CIDADE

TÓPICOS EM CIDADE E Toda criança tem direito a crescer em um ambiente em que se

CRIANÇAS sinta segura, tenha acesso a serviços básicos, água e ar limpos,


possa brincar, aprender e crescer onde a sua voz seja ouvida e
importe. Esse é o mote da iniciativa Cidades Amigáveis à Criança,
11.1_ A prioridade absoluta do direito
projeto do Unicef que apoia governos municipais a realizarem os
da criança e do adolescente à cidade
direitos de crianças e adolescentes.

11.2_ O Programa Urban95


A partir da Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU de
1989, a iniciativa considera que uma cidade amigável é aquela em
11.3_ O papel da escola pública em
que crianças e adolescentes são saudáveis e cuidados, protegidos
territórios de vulnerabilidade social
de exploração e violência e têm acesso a serviços sociais de
qualidade e a uma educação inclusiva e participativa, expressam
11.4_ Mapeando a quebrada: as ruas
suas opiniões e influenciam decisões, participam da vida familiar,
são para brincar
cultural e social, vivem em ambientes seguros e limpos, com acesso
a espaços verdes, encontram amigos, contam com espaços para
brincar e com oportunidades, independentemente de origem étnica,
religião, renda, gênero ou condição física.

A ideia de cidades amigas da criança, na perspectiva do direito


à cidade, exige mobilização em várias dimensões do urbano,
como o planejamento, o funcionamento, as políticas públicas, a
acessibilidade, o acesso à natureza e a participação.

Do ponto de vista do planejamento urbano, é preciso que a criança


seja considerada com prioridade no processo e nas decisões,
inclusive no desenho dos espaços. A perspectiva de crianças
pequenas deve estar incluída no planejamento, não só para que
AUTORES seus direitos sejam garantidos como também porque a cidade
11.1_ Pedro Hartung e Guilherme Pecoral amiga da criança é, igualmente, amiga de todos, mais segura e
(Instituto Alana); acessível1. Nesse campo, há o desafio de reimaginar e replanejar
11.2_ Núcleo de Urbanismo Social; as cidades, muitas vezes marcadas por conflitos e desigualdades
11.3_ Núcleo de Mulheres e Territórios; em sua história e forma.
11.4_ Aluízio Marino, Leticia Avelino,
Sabrina O. Santos (Observatório de Olho
na Quebrada de Heliópolis). 1  Conforme explicitado no item “O Programa Urban95” deste Capítulo.

255
Guia de Urbanismo Social Capítulo 11 : Tópicos em Cidade e Crianças

Além disso, é preciso que crianças e adolescentes sejam conside- brasileira e, assim, devem ser consideradas democraticamente em
rados no cotidiano da cidade, o que compreende o deslocamento todas as decisões e ações que as impactem, de maneira direta ou
da casa para escola, aos espaços de lazer etc., tanto em termos indireta, inclusive no âmbito do espaço urbano.
espaciais, de distância e acessibilidade, quanto de segurança.
Nesse sentido, aparelhos e políticas públicas devem ser conectados A garantia disso está prevista no artigo 227 da Constituição Federal.
territorialmente, combinando, por exemplo, os serviços de saúde Possibilitar a toda criança e a todo adolescente o: direito à vida, à
ao conselho tutelar. segurança, à saúde, alimentação, educação, esporte, lazer e cultura
é fundamental para que o direito à cidade se realize e contribua
Cidades amigas da criança também devem ser compatíveis com para a existência de um lugar melhor para que a população infantil
a diversidade da população, sem barreiras sociais, estruturais e a jovem, além de todas as demais faixas, vivam plenamente.
ou geográficas, especialmente em relação a crianças pequenas
ou àquelas que têm necessidades específicas, relacionadas à O direito à cidade, como expressão de diversos outros direitos, é igual-
mobilidade, por exemplo. mente contemplado pelo artigo 227 da Constituição Federal, que diz:

São fundamentais, ainda, a existência, o acesso e a qualidade da É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
experiência de crianças e adolescentes em espaços verdes, para criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade,
que possam conviver e brincar entre si e na natureza. A iniciativa o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer,
dos parques naturalizados promove o aproveitamento das carac- à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
terísticas dos terrenos e a utilização de elementos naturais, como liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
troncos, árvores e plantas para a ampliação de espaços verdes colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
amigáveis às infâncias nas cidades. exploração, violência, crueldade e opressão.

No mais, é indispensável a participação de crianças e adolescentes Fruto de uma ampla mobilização social, inclusive de muitas crianças
nas discussões e decisões públicas. É preciso fortalecer os Conse- e adolescentes, esse artigo é paradigmático, funcionando como
lhos Municipais e as ações de escuta sensível para que tal partici- diretriz para todas as famílias, a sociedade, as comunidades — in-
pação seja efetiva e considerada em suas diferentes linguagens. clusive as urbanas — e o próprio Estado ao consagrar a prioridade
absoluta como perspectiva inafastável nas decisões e ações
públicas e privadas.
A expressão ‘’direito à cidade’’ (ver Capítulo 09) produz reflexões
sobre o espaço urbano no Brasil e no resto do mundo, seus sentidos, Sua importância decorre do fato de que crianças e adolescentes
desafios e perspectivas, e, nesse contexto, crianças e adolescentes são sujeitos em estágio peculiar de desenvolvimento, de forma que
são pessoas com necessidades, desejos e direitos próprios. Seu as situações pelas quais passam têm potencial de produzir efeitos
direito à cidade corresponde ao de viver, acessar e ocupar os espa- para toda a vida. O pico do desenvolvimento neuronal humano
ços sem ter sua existência e particularidades de desenvolvimento e é na primeira infância, segundo fundamentos da neurociência,
expressões como indivíduos e grupo social ignoradas. Ao contrário, que explicitaram ainda mais a sensibilidade das experiências e
elas devem ser consideradas por todos no planejamento e uso expressões de tal período. A adolescência, por sua vez, é outra fase
da cidade, com igualdade de condições e respeito às diferenças. da maior importância, sobretudo em razão do desenvolvimento do
Crianças e adolescentes correspondem a um terço da população córtex pré-frontal. Adversidades nas duas etapas podem impactar

256 257
Guia de Urbanismo Social Capítulo 11 : Tópicos em Cidade e Crianças

o aprendizado, o comportamento e a saúde dos indivíduos, inclusive Para a vida nas cidades, são inúmeras as situações em que esse
por meio do estresse tóxico advindo da vivência de adversidades dispositivo deve ser aplicado.
ambientais (como a falta de alimentos, de saneamento, de situações
de violência urbana etc.) ou relacionais (negligência parental e A primazia de receber proteção e socorro coloca as crianças e
violência doméstica, entre outras). Além disso, tais fatores acirram adolescentes à frente em situações de violência, desastres, opera-
desigualdades, em suas múltiplas dimensões, podendo consolidá-las ções policiais, insegurança alimentar, despejos e remoções, entre
para o decorrer da vida. outras. Isso significa que qualquer intervenção que impacte direta
ou indiretamente crianças no espaço urbano deve ser guiada pelo
Assim, o dever constitucional da prioridade absoluta é necessário seu melhor interesse e direitos previstos em primeiro lugar, para
para proteger de modo especial as crianças e os adolescentes sua devida proteção.
em um período peculiar e sensível do desenvolvimento humano e
promover sua cidadania e potencialidades, inclusive nas cidades, A precedência de atendimento em serviços ilumina a prioridade da
onde as condições de moradia, circulação etc. são decisivas para a criança para além de ambientes como escolas e creches — inclui ainda
qualidade de vida, além de um crescimento e um amadurecimento todo serviço de relevância pública, como estabelecimentos de saúde,
sadios e integrais. cultura e lazer, distribuídos e organizados no espaço urbano. Assim,
cabe à administração garantir o devido acesso a esses serviços com
O QUE ISSO SIGNIFICA NA PRÁTICA prioridade, sem obstáculos ou desigualdades territoriais.
PARA AS CRIANÇAS E ADOLESCENTES
QUE VIVEM EM CIDADES? A preferência na formulação e na execução de políticas públicas,
por sua vez, é um aspecto essencial, inclusive para a realização da
O artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), proteção e do atendimento, porque impõe o dever de considerar as
instrumento que data de 1990, detalha quais são os principais infâncias e adolescências nos projetos públicos e urbanísticos em
aspectos aos quais se vincula a prioridade absoluta para as faixas elaboração ou execução. Nesse sentido, é dever da administração
que ele abarca: garantir que na formulação e execução de políticas urbanas, como
o plano diretor de uma cidade, as crianças sejam consideradas e
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: contempladas em suas necessidades em primeiro lugar.

▸ Primazia de receber proteção e socorro em quaisquer Por fim, a destinação privilegiada de recursos é medida obrigatória
circunstâncias; que beneficia não apenas essa população como toda a sociedade.
Investir na infância é uma decisão estratégica para toda a popu-
▸ Precedência de atendimento nos serviços públicos ou de
lação. Estudos apontam que o investimento nas áreas da infância
relevância pública;
e adolescência é aquele que mais traz retornos sociais e econô-
▸ Preferência na formulação e na execução das políticas micos — especialmente os realizados em áreas de vulnerabilidade
sociais públicas; social —, gerando benefícios em setores como educação, saúde,
previdência, segurança no próprio orçamento público.
▸ Destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas
relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
São diversas e múltiplas as infâncias e adolescências que habitam
as cidades brasileiras. Idade, deficiência física e/ou intelectual,

258 259
Guia de Urbanismo Social Capítulo 11 : Tópicos em Cidade e Crianças

classe, território, gênero e raça são alguns dos fatores que condi- principais funções a escuta da população infantil do município,
cionam a vida urbana entre crianças e adolescentes e seu acesso visando à construção de políticas públicas sob sua própria ótica.
a direitos. Assim, é necessário que as desigualdades na cidade
sejam levadas em consideração na definição das populações No ano seguinte, a cidade aprovou o seu plano diretor, que, de
prioritárias a serem protegidas, conforme a legislação brasileira maneira pioneira, dedica um capítulo exclusivo às políticas para a
e internacional, que determina que, quanto mais vulnerável um criança no município. Também em 2019 a Prefeitura recebeu um
grupo de crianças ou adolescentes for, mais proteção devem pedido do Comitê para a construção de um parque público gratuito
receber, em um modelo interseccional de proteção2. para crianças de todas as idades. O pedido foi atendido, dando
início às obras do Parque Mundo das Crianças.
É, portanto, compromisso constitucional a construção de uma
sociedade igualitária e não discriminatória. Nesse sentido dispõem Na pandemia da covid-19, o Mundo das Crianças passou a funcionar
a Lei n.13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e a Lei também como uma sala de aula a céu aberto da rede municipal de
n.13.257/2016 (Marco Legal da Primeira Infância), sobre faixas ensino, proporcionando uma experiência inovadora aos alunos. O
populacionais que devem ser priorizadas também na política urbana. Parque é ainda a extensão da área de preservação da represa que
Além disso, é necessário que a atenção pública se debruce com abastece Jundiaí e busca concretizar os direitos da criança, com
prioridade sobre outras infâncias e adolescências particularmente base em pesquisas e experiências internacionais sobre as relações
vulneráveis nas cidades, como as populações em situação de rua, do ambiente urbano e o planejamento de políticas públicas.
em acolhimento institucional, no sistema socioeducativo, imigrantes,
periféricas, negras e indígenas.

UM CASO BRASILEIRO:
O MUNICÍPIO DE JUNDIAÍ

A cidade de Jundiaí, no Estado de São Paulo, conta com uma história


recente exemplar de política urbana voltada a crianças.

Em 2017, foi criada naquele município a Política Municipal da Criança


na Cidade, que tinha como objetivo orientar o planejamento urbano,
os projetos e as ações das diferentes áreas para o desenvolvimento
saudável e seguro da população infantil.

Em 2018, foi formado um grupo de trabalho composto por repre-


sentantes de diferentes áreas que, desde então, trabalha para
a construção da intersetorialidade nas políticas públicas para
a criança na cidade. Assim, por meio de um decreto municipal,
foi criado o Comitê das Crianças de Jundiaí, que tem entre suas

2  HARTUNG, Pedro. Levando os direitos das crianças a sério. Tese (Doutorado) —


Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

260 261
Guia de Urbanismo Social Capítulo 11 : Tópicos em Cidade e Crianças

11.2_ O PROGRAMA URBAN95


PROGRAMA MAIS VIDA NOS MORROS,
RECIFE

No contexto do urbanismo social, a discussão em torno da qualifica- Diversas cidades do país fazem parte do Programa Urban95, da Fundação
ção do espaço urbano, sobretudo nos territórios de vulnerabilidade Bernard van Leer, implementando projetos de impacto em territórios
social, não pode deixar de priorizar a perspectiva da população de vulnerabilidade social. Recife é uma importante referência, com
mais afetada inserida nessas localidades, ou seja, as crianças, os investimentos voltados à primeira infância e projetos para a redução
jovens e seus cuidadores, e também os idosos. das desigualdades e da criminalidade em bairros vulneráveis, em casos
modelares também para o urbanismo social (ver Capítulo 15), a exemplo
A pauta da criação de cidades voltadas para o desenvolvimento positivo do Mais Vida nos Morros e dos Centros Comunitários da Paz (Compaz).
das crianças e suas famílias vem, felizmente, tomando espaço nas
A ampliação do Mais Vida nos Morros integra um conjunto de políticas
discussões relacionadas à gestão dos municípios, no planejamento
públicas, programas e projetos lançados pela prefeitura da capital per-
urbano e na formulação de políticas públicas. Uma das principais
nambucana e sustentada pelo Marco Legal da Primeira Infância, lançado
iniciativas na promoção da transformação do cenário urbano com
em 2018, e pelo mais recente Plano Municipal da Primeira Infância do
foco nas crianças é o Programa Urban95, da Fundação Bernard van
município, sancionado em 2020. Segundo dados do Programa Mais Vida
Leer, o qual se fundamenta no princípio de que uma cidade acessível
nos Morros, acima de 60% das crianças entre 0 e 14 anos vivem em casas
e segura para as crianças, bebês, jovens e seus cuidadores é uma
com renda inferior a meio salário mínimo no estado do Pernambuco, no qual
cidade que tende a se desenvolver econômica e socialmente.
a cidade de Recife retrata uma das regiões mais pobres do Brasil. Portanto,
garantir a mitigação das desigualdades sociais é uma necessidade vital
A questão-chave para o Urban95 é justamente projetar a cidade
para o desenvolvimento das crianças em todos os seus aspectos — proteção
pensando na perspectiva de uma criança de 3 anos, ou seja, a uma
social, bem-estar, qualidade de vida, assistência social, saúde e educação.
altura de visão de aproximadamente 95 centímetros. A iniciativa
promove o apoio aos gestores públicos, planejadores urbanos Os projetos de urbanismo social nas comunidades recifenses voltaram-se
e urbanistas no planejamento das cidades para que priorizem o para o envolvimento e o protagonismo das crianças, a partir da qualifi-
desenvolvimento infantil através de estratégias inovadoras que cação do espaço público que estimula o brincar, o lazer, e as atividades
melhorem o modo de vida das famílias e de crianças na primeira educativas junto de seus cuidadores. A criação de praças, espaços lúdicos,
infância. Tais estratégias partem de ações como, por exemplo, o parquinhos etc., acompanhados de toda uma estrutura de ações locais e
favorecimento de atividades educadoras nos espaços públicos, engajamento social, vem transformando diversas comunidades na capital. O
como praças e parques; o estímulo à criação de uma rede de ca- trabalho junto às comunidades, gestores públicos e sociedade civil aponta
minhabilidade na escala do bairro, e toda a conectividade urbana ! resultados positivos em relação aos indicadores sociais nesses territórios,
entre os equipamentos públicos e áreas de lazer; e, ainda, numa como a sensação de segurança e a possibilidade de brincar fora de casa.
PARA SABER MAIS, VER:
escala menor, o uso de mobiliário urbano desenvolvido para a Segundo os dados da comunidade do Burity, incluída no Programa Mais
▸ PONZI, T. e LEITE, C.
acessibilidade das crianças e de seus cuidadores. Vida nos Morros, o número de crianças que usam o espaço público como
Urbanismo social com as
área de lazer aumentou em 64,3 pontos percentuais, passando de 11,4%
cores do Recife. Revista
Piauí, 2021. para 75,7%, após as intervenções, realizadas em 2019.

262 263
Guia de Urbanismo Social Capítulo 11 : Tópicos em Cidade e Crianças

GUIAS DE BAIRROS
11.3_ O PAPEL DA ESCOLA
PÚBLICA EM TERRITÓRIOS DE
VULNERABILIDADE SOCIAL
AMIGÁVEIS À PRIMEIRA
INFÂNCIA (BAPIS) A escola pública brasileira é uma conquista social que precisa
ser defendida constantemente. Desde a década de 1930, com os
Outra iniciativa importante para a promoção do urbanismo social a partir
Pioneiros da Escola Nova — cujos expoentes foram Anísio Teixeira
da dimensão das crianças são os recentes Guias de Bairros Amigáveis à
(1900-1971) e Fernando de Azevedo (1894-1974) —, o Brasil busca
Primeira Infância (BAPIs) da Fundação Bernard van Leer em parceria com
formular políticas para uma educação pública, laica e gratuita.
o Instituto de Arquitetos do Brasil, IAB, 2021.
Durante esse período, de quase um século, a sociedade brasileira
Trata-se de uma série de quatro publicações que foram desenvolvidas viveu conquistas importantes, como, por exemplo, a universalização
pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) como parte de um projeto da educação básica, o piso nacional docente, o plano nacional de
em parceria com a Fundação Bernard van Leer e a cidade de Aracaju. educação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, o Estatuto da
As recomendações elaboradas pelo IAB foram inspiradas em uma série Criança e do Adolescente. Ainda que insuficientes, são conquistas
de guias semelhantes desenvolvidos na Índia e adaptados ao contexto que demandam eterna vigilância por parte da sociedade civil para
brasileiro. Os quatro guias são estes: que se mantenham e se expandam.

Guia 1 — Estruturação de políticas públicas;


A educação é um campo de disputas ideológicas que, de tempos
Guia 2 — Manual de políticas públicas; em tempos, enfrenta retrocessos no que diz respeito ao acesso,
ao financiamento e à qualidade do ensino no país. O entendimento
Guia 3 — Diretrizes para desenho urbano;
da educação como direito fundamental ainda não é uma realidade
Guia 4 — Indicadores para monitoramento. para grande parte da população, principalmente aquela que vive
em territórios de grande vulnerabilidade social.

É inegável, entretanto, que as escolas são as instituições de


maior capilaridade nas grandes cidades brasileiras. Junto com
o Sistema Único de Saúde (SUS), muitas vezes são os únicos
equipamentos públicos que atendem as classes populares — e,
por esse motivo, têm uma importância estratégica na garantia
de direitos à população como um todo.

A pandemia da covid-19 mostrou a importância da instituição


escolar no atendimento integral das populações empobrecidas:
as escolas fechadas em períodos de necessário distanciamento
social impossibilitaram, por exemplo, a segurança alimentar de
milhões de estudantes que se nutrem exclusivamente da merenda
que lá recebem.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 11 : Tópicos em Cidade e Crianças

As pessoas que residem nas periferias das grandes cidades re-


conhecem na escola pública a referência para o acesso a outros
direitos, muito além da educação. Ainda que corrompida pela
11.4_ MAPEANDO A QUEBRADA: AS
RUAS SÃO PARA BRINCAR

precariedade, é a escola que, muitas vezes, articula acessos à


rede de proteção social, de saúde e de alimentação. Ela ocupa, Parques e praças são espaços públicos fundamentais para o con-
ainda que em meio a violências de diversas naturezas, um lugar vívio em sociedade. É nesses lugares que as pessoas conversam,
de respeito no imaginário social. se conectam e estabelecem o sentido de comunidade. Já nas pe-
riferias, onde há carência de espaços dessa natureza, são as ruas
Do mesmo modo, a escola é uma instituição que potencialmente e calçadas que funcionam como áreas de socialização. Em frente
elabora e propaga princípios e valores em conjunto com a comunida- às casas e aos estabelecimentos comerciais acaba por existir uma
de onde está inserida. Segundo a Base Nacional Comum Curricular, grande interação comunitária, com os moradores participando
o projeto pedagógico de todas as escolas brasileiras deve, mais de manifestações e celebrações diversas — de blocos festivos a
do que promover o ensino de conteúdos das disciplinas clássicas, procissões religiosas. Para as crianças, em especial, a importância
contextualizá-lo em relação às demandas sociais do seu território. desses locais em seus bairros é tanta que, a depender do território,
Isso significa que as comunidades têm autonomia para conceber e é impossível distinguir onde começa o ambiente privado de seus
realizar o projeto político pedagógico de suas escolas, ao passo que quartos e onde terminam os espaços comuns aos pequenos, nos
se constitui como grupo organizado em pleno gozo da democracia. quais eles se encontram com seus amigos para brincar.

É evidente que o Brasil ainda tem um longo caminho na busca No entanto, quando passamos a pensar nas vulnerabilidades de
pela justiça social, pela equidade de direitos, pela melhoria da crianças e adolescentes dentro de suas comunidades, é possível
qualidade de vida de sua população. A educação pública popular observar que os problemas relacionados ao tráfego de carros,
se apresenta, mais do que nunca, como uma profícua estratégia à segurança pública e às desigualdades sociais — os quais se
política para o desenvolvimento das comunidades que vivem em desdobram em questões de gênero, raça, classe e orientação se-
vulnerabilidade — e, mais ainda, para o desenvolvimento da nação. xual — acabaram condicionando, ao longo dos anos, a forma como
eles interagem com esses espaços, tidos hoje como ameaçadores,
inseguros e criadores de maus hábitos. Nesse sentido, a tendência
é percebê-los como vítimas e, portanto, seres que precisam ser
constantemente vigiados e protegidos, seja pelo Estado, seja por
seus familiares e professores. Mas o que fazer quando esses atores
também não conseguem garantir ambientes seguros para todos
os pequenos e os jovens?

A vulnerabilidade das crianças e adolescentes transcende seu


tamanho, força ou idade, ligando-se também às práticas sociais. Ou
seja, muitas vezes eles apanham dos pais, são constrangidos por
professores e/ou desrespeitados pelos vizinhos. Além disso, muitos
lugares que foram criados no intuito de protegê-los acabaram se
tornando referência de escândalos de violação de seus direitos.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 11 : Tópicos em Cidade e Crianças

Então, se é assim que acontece, como reduzir a vulnerabilidade dos meio de desenhos e do diálogo com eles, buscou-se identificar
pequenos e dos jovens, uma vez que aqueles que deveriam protegê-los em quais locais sentem bem-estar físico e mental, e onde eles
são os que mais ameaçam? Existe, de fato, um lugar que seja seguro têm sentimentos de insegurança e desconforto.
para eles, independentemente de suas origens e características?
As oficinas para elaboração dos mapas tiveram a duração de dois
Uma consulta aos dados do Disque 100, canal de denúncias de encontros de uma hora cada, mediados pelos pesquisadores do
violações de direitos humanos, demonstra que as violências contra Observatório com o auxílio de mais dois jovens de cada território,
crianças e adolescentes ocorrem em distintos lugares, sendo inclu- ex-frequentadores dos CCAs. Eles disponibilizaram materiais
sive a casa e o ambiente familiar o principal local de insegurança (como folhas sulfite, lápis de cor, réguas, apontadores e canetas),
(considerando as denúncias do ano de 2021, 86,7% delas correspon- acompanharam a realização dos desenhos e transitaram entre os
dem a violações que ocorrem no interior da residência da vítima). grupos dos participantes, dialogando, incentivando e tirando as
Observamos também uma tendência preocupante de aumento no dúvidas existentes. Como os encontros foram mediados por jovens
número de denúncias durante a pandemia da covid-19 no país. Na que também residem na região, o clima das oficinas se revelou
cidade de São Paulo, por exemplo, o total de denúncias no Disque bastante agradável e amigável, com alguns poucos relatos de
100 foi 55,18% maior em 2021 do que na comparação com 2019. indisciplina. Apostar nesse diálogo foi um potencial explorado por
essa pesquisa, já que proporcionou um espaço confortável para os
Para compreender a fundo essas violências, é fundamental ir além pequenos e os adolescentes se expressarem, sem o típico medo
dos números. Nesse intuito, o Observatório de Olho na Quebrada3, do erro e da repressão.
em parceria com o projeto Violência Aqui Não Entra, Não (VANEN),
ambos da UNAS (União de Núcleos, Associações dos Moradores de Ao longo da atividade, muitas controvérsias apareceram. É neces-
Heliópolis e Região), realizou uma pesquisa de caráter qualitativo
4
sário ter parques arrumados, limpos e iluminados para as crianças
com pelo menos 256 crianças e adolescentes que residem no e os adolescentes se divertirem saudavelmente, ou, na verdade, a
território conhecido como “Fundão do Ipiranga” . Com idades entre
5
presença de um adulto que “olha” por elas e os mantém em espaços
6 anos e 14 anos, todos são matriculados em quatro Centros para fechados é uma melhor decisão? Podemos confiar na vigilância
Crianças e Adolescentes (CCAs), localizados nos bairros Boqueirão, policial nos espaços públicos, de modo a torná-los uma extensão
Jardim Maristela, Jardim São Savério e Água Funda. das casas e dos espaços comunitários? Os pequenos e os jovens
estão mais seguros confinados em casa sozinhos, nas escolas ou
Através de mapas afetivos, o objetivo da pesquisa foi compreender brincando com os colegas na rua?
o olhar e a narrativa das próprias crianças e dos adolescentes
sobre seu território e as vulnerabilidades que os atravessam. Por Com um olhar aguçado, tal mapeamento, de caráter exploratório,
descritivo e analítico, permite aos educadores e pesquisadores
3  O Observatório de Olho na Quebrada é um projeto da UNAS, protagonizado por identificar vulnerabilidades individuais, relacionais, comunitárias
22 jovens pesquisadores e pesquisadoras, todos/as moradores/as da favela de He-
e sociais que envolvem os matriculados, de maneira a promover
liópolis. As pesquisas que desenvolvemos evidenciam as potencialidades e vulne-
rabilidades existentes no território, e a partir dos resultados obtidos disputamos a prevenção primária da violência, além de esquematizar a rede
melhores políticas públicas para a nossa quebrada. Saiba mais sobre o Observatório
no Linktree e no Instagram do projeto.
de recursos e equipamentos locais e/ou regionais que recebem
4  O relatório final com os resultados da pesquisa será lançado no primeiro semes-
indivíduos em situação de violências.
tre de 2023.

5  Conjunto de bairros que inclui: Jardim Clímax, Parque Bristol, Jardim São Savério,
Jardim Maristela, Boqueirão e Heliópolis.

268 269
Guia de Urbanismo Social Capítulo 11 : Tópicos em Cidade e Crianças

A análise dos mapas afetivos foi uma tarefa árdua. Afinal, ela Por fim, a interpretação dos mapas afetivos revela que os peque-
implicou em registrar a forma como as crianças e os adolescentes nos e o jovens têm crescido em apartamentos e casas exíguas,
se colocavam num determinado lugar, e até mais do que isso, como com liberdade reduzida e praticamente sem acesso aos espaços
interagiam entre si, com o meio e com os objetos neles disponíveis. públicos. Eles se tornaram vítimas de cidades pouco preparadas
Desse modo, podemos dizer que o produto da investigação nos para recebê-los e de uma superproteção adulta, justificada pela
ofereceu dicas de como aqueles sujeitos utilizam seus bairros, percepção da redução da segurança nas ruas e aumento no nú-
como circulam e/ou como se relacionam com eles. mero de acidentes. Nesse sentido, nós acreditamos que construir
bairros, e, por consequência, cidades mais seguras para crianças
De maneira geral, com a aplicação dos mapas afetivos, percebemos e adolescentes é também construir uma cidade segura para todos.
que não existe um lugar 100% seguro para pequenos e jovens. Assim,
mais do que pensar na constituição de um tipo de “espaço seguro”, é
fundamental pensarmos em como garantir segurança e bem-estar
para esse público no bairro e na cidade. E fazer isso de tal forma que
todos os locais tenham práticas que garantam a segurança física
e psicológica das crianças e dos adolescentes. A partir dos mapas
afetivos e dos relatos dos participantes das oficinas, elencamos pelo
menos cinco pontos importantes para essa transformação: (i) ruas
para os pequenos e os jovens; (ii) mais praças e parques acolhedores;
(iii) fim das violências nas escolas; (iv) transporte público seguro para
as meninas; (v) moradias seguras para todos.

Nós reforçamos a necessidade de que as ruas — e, de modo mais


amplo, o planejamento das cidades — sejam pensados para, a
partir e pelas crianças e pelos adolescentes. Em vez de tirá-los das
ruas, narrativa muito presente em projetos e políticas de cunho
assistencialista, é imprescindível transformar tais espaços em
ambientes propícios e seguros para interações sociais divertidas,
para o nascimento de novas amizades, para a descoberta de
semelhanças e diferenças e para o acolhimento de interesses
individuais e coletivos.

A presença da polícia nas ruas e avenidas configurou-se como um


elemento extremamente contraditório em nossas pesquisas: para
alguns, ela é sinônimo de combate ao crime, à marginalidade e à bru-
talidade características das periferias urbanas. Para outros —garotos
negros, sobretudo —, o histórico de abandono e violência racial das
forças policiais, responsável por lhes dar uma “identidade bandida”,
tornam esse ambiente ainda mais ameaçador, qualquer seja o horário.

270 271
Capítulo 12 : Tópicos em Saúde Urbana

12_ 12.1_ SAÚDE URBANA

As cidades surgem em função da necessidade de sobrevivência


TÓPICOS EM SAÚDE URBANA da espécie humana. Em regiões onde o modo de vida de nossos
antepassados caçadores/coletores não era possível, tornou-se impe-
riosa a obtenção de alimentos por meio de técnicas agropecuárias.
O aumento da produção de nutrientes permitiu o crescimento e a
12.1_ Saúde urbana fixação da população humana em cidades. Ao mesmo tempo que
a convivência próxima de um número maior de pessoas permitiu
12.2_ A saúde mental em territórios o desenvolvimento de artes e a inovação, o saneamento precário
periféricos: A gramática social do e a proliferação de patógenos trouxeram consigo o adoecimento.
sofrimento psíquico Talvez seja válido dizer que Logos e Páthos caminham de braços
dados pelas ruas das urbes mundo afora.

As cidades são uma enorme invenção humana e vieram para ficar. Ao


longo da história, as cidades superaram crises monumentais, como
pestes, guerras e mudanças climáticas. No entanto, a urbanização
acelerada das últimas décadas acarretou novos desafios. Nas me-
trópoles das nações do chamado Sul Global — onde ocorreu uma
“explosão de urbanização” em poucas décadas —, diferentemente
dos países do Norte — onde as cidades levaram séculos a evoluir
gradativamente —, a distribuição desigual das infraestruturas
urbanas, dos equipamentos e serviços públicos, das áreas verdes
e de lazer, o excesso de trânsito, poluição e ilhas de calor, a falta de
moradia digna para milhões de pessoas e, em especial, a existência
de favelas com condições precárias de vida, áreas propensas a
inundações e deslizamentos, representam evidentes ameaças à
saúde humana.

Este capítulo aborda a saúde dos habitantes das cidades e sua


complexidade. Visa apresentar como o urbanismo desempenha papel
extremamente significativo para a melhoria da saúde e bem-estar
das pessoas que escolheram as urbes como local de viver.

AUTORES

12.1_ Núcleo de Saúde Urbana;


12.2_ Fernanda Almeida (Territórios Clí-
nicos da Fundação Tide Setubal).
273
Guia de Urbanismo Social Capítulo 12 : Tópicos em Saúde Urbana

12.1.1_ CIDADES E DOENÇAS para os grandes centros urbanos mais uma Tomemos o exemplo de São Paulo, onde as Estudos epidemiológicos conduzidos em di-
INFECCIOSAS vez se manifesta na pandemia de covid-19 pessoas que viviam em áreas mais pobres ferentes nações têm apontado que os trans-
em pleno século XXI. tiveram um risco significativamente maior tornos mentais tendem a ser mais frequentes
O desenvolvimento das urbes criou as con- de morrer por causa da doença provocada no ambiente urbano, notadamente nas me-
dições para o desenvolvimento das doenças Convivemos nos dias de hoje com febre ama- pelo Sars-Cov-2. Morreram porque são po- gacidades. O ritmo intenso de trabalho e os
infecciosas. Muitas das doenças infecciosas rela, dengue, zika, chikungunya, leishma- bres; não tiveram tempo para controlar suas longos tempos de deslocamento dificultam a
surgidas nas cidades foram consequência niose, leptospirose e outros padecimentos condições crônicas de saúde nem fazer o manutenção e o fortalecimento das relações
da falta de saneamento combinada com afins, indicando que há porções de nossas isolamento social pela necessidade de prover afetivas e sociais, favorecendo o estado de
a passagem para a espécie humana de metrópoles que ainda exibem perfil sanitário o seu sustento. Morreram por más condições solidão coletiva, tão frequente nos tempos
patógenos que estavam em equilíbrio com medieval, combinando más condições de mo- de transporte e moradia. Morreram tentando atuais. As cidades também podem interferir
os animais que foram domesticados para radia e criadouros de insetos em lixo sólido. ganhar dinheiro para sobreviver. Tal quadro em alguns mecanismos básicos necessários
produção de alimentos. A tuberculose, a é uma demonstração clara da importância para a manutenção da nossa integridade
peste bubônica, a gripe, o cólera, a varíola e Se as pandemias virais dos séculos XX e XXI de uma abordagem sistêmica da saúde e psíquica, como a deterioração da qualidade
a covid-19 são exemplos do que foi definido retratam o papel do adensamento populacio- do planejamento urbano como política de do sono promovida pelo excesso de trabalho
como epizootias (doenças humanas de alto nal e da mobilidade global como fatores de saúde urbana. e pelas poluições sonora e luminosa.
impacto originárias de animais). propagação de agentes infecciosos, a tuber-
culose é uma manifestação clara dos efeitos O diálogo entre planejamento urbano, com Dormir bem, tanto em quantidade como em
O adensamento populacional e o transporte da desigualdade urbana como promotores de enfoque do urbanismo social, e os setores qualidade, é extremamente importante para a
dos agentes infecciosos a longas distâncias, adoecimento. Por sua baixa contagiosidade, a da saúde é, portanto, uma necessidade im- saúde mental. Durante o sono, são secretados
seja pelo comércio ou mesmo pelas guerras, transmissão do bacilo da tuberculose ocorre periosa, para o controle das febres urbanas. hormônios que protegem as nossas funções
fez com que as urbes criassem o cenário preferencialmente entre pessoas que mante- cognitivas e comportamentais, como, por
ideal para o surgimento das pandemias. A nham contato prolongado entre si. Portanto, 12.1.2_ CIDADES E DOENÇAS exemplo, a melatonina. A secreção desses
peste negra (peste bubônica, transmitida a transmissão do bacilo é favorecida pela PSIQUIÁTRICAS hormônios ocorre em sua maior intensidade
pela Yercinia pestis), que assolou o continente precariedade das habitações dos segmentos nas fases mais profundas do sono. Isso signi-
europeu a partir do século XIV, seria um mais vulneráveis da população. As doenças psiquiátricas como a esquizo- fica que não basta dormir bastante; há que se
exemplo da disseminação de um patógeno frenia e a depressão são causadoras de dormir bem e profundamente. O excesso de
originário no Oriente e disseminado ao longo O que foi exposto indica que o controle das sofrimento, incapacidade e também de trabalho e as horas perdidas em um trânsito
da rota da seda. O estouro da população das doenças infecciosas ultrapassa os limites significativas perdas econômicas para o mais lento subtraem horas de sono.
cidades europeias a partir do século XVII exclusivos da atuação da saúde, pois de- indivíduo e para a sociedade. Além dos
contribuiu para o surgimento da varíola, e pende das condições de moradia, trans- aspectos genéticos, os ambientes físico O ritmo das fases claro/escuro também é
o aumento do trânsito de mercadorias pelo porte e organização laboral. Como exemplo e social contribuem para a eclosão das afetado pelo cotidiano urbano. A secreção
crescimento do comércio promovido pelo recente, podemos, mais uma vez, apontar doenças mentais. Há uma modulação epi- de melatonina, que induz o sono e protege a
Império Britânico no século XIX levou o cólera o comportamento da covid-19 nas grandes genética dos nossos genes. Fatores como saúde mental, inicia-se cerca de uma a duas
a todos os continentes. As grandes migrações cidades brasileiras, onde, para o mesmo o contato mais prolongado com os pais e horas após o escurecimento. Atualmente,
causadas pela Primeira Guerra resultaram agente infeccioso, as maiores incidência um ambiente familiar mais harmonioso na o viver urbano é cada vez mais luminoso,
nas pandemias de H1N1 em 1918. A centra- e letalidade foram observadas nas áreas primeira infância são reconhecidamente seja pela iluminação interna ou pela luz que
lidade da combinação entre adensamento menos privilegiadas. capazes de reduzir o risco de transtornos emana das telas dos computadores, tele-
populacional e atração de mobilidade global mentais nas fases posteriores da vida. visores e celulares. As lâmpadas também

274 275
Guia de Urbanismo Social Capítulo 12 : Tópicos em Saúde Urbana

mudaram o comprimento de onda luminosa, 12.1.3_ CIDADE, POLUIÇÃO E CLIMA conjunto de fatores faz com que o controle
por exemplo, as dicroicas, que emitem mais da poluição extrapole os limites da questão
na faixa do azul, que estimula com maior efi- A consistência das evidências científicas ambiental e da saúde, adentrando aspectos
ciência a retina. As alterações do ciclo claro/ relacionando poluição a efeitos adversos da cidadania e da dignidade humana.
escuro também ocorrem nas megacidades sobre a saúde humana fez com que a OMS
porque elas passaram a funcionar durante estabelecesse padrões globais de qualidade É importante frisar que as mesmas fontes
as 24 horas do dia. Não apenas os serviços do ar progressivamente mais restritivos em de emissão de poluentes tóxicos emitem,
essenciais como praticamente todas as de- 2015 e 2021. Nesses estudos, foi estimado simultaneamente, gases de efeito estufa
mais atividades urbanas não adormecem que a poluição do ar responde, em escala e afetam a morfologia urbana e o uso do
nas grandes cidades. Academias, super- global, por cerca de sete milhões de mortes solo. Tais aspectos indicam que as fontes
mercados, transporte, lazer, comunicação, prematuras ao ano. Infecções respiratórias, emissoras de poluição influem sobre o com-
lojas, restaurantes e postos de serviço são doenças cardiovasculares, câncer do pulmão portamento do clima global e também do
exemplos de atividades ininterruptas das ci- e desfechos gestacionais adversos têm hoje microclima urbano.
dades que nunca dormem. Os trabalhadores associação comprovada com a exposição aos
que exercem as suas funções em turnos que poluentes do ar. Dados de monitoramento Estudos realizados no Brasil sugerem que as
se alternam para prover a continuidade dos global da poluição indicavam claramente que mudanças de clima recentes influenciam a
serviços urbanos também apresentam maior as maiores concentrações de poluentes at- taxa de pluviosidade, promovem inundações
risco para o desenvolvimento de transtornos mosféricos eram observadas nos países com e deslizamentos, aumentam a incidência e a
mentais, cuja causa básica reside na mudan- maior vulnerabilidade econômica da América distribuição geográfica das doenças infec-
ça do ciclo de luz dos seus dias, que resulta Latina, África, Ásia e Oriente Médio. Dentro ciosas e influenciam a morbidade e a letali-
em maior fragilidade dos mecanismos de de cada região do planeta e em cada cidade dade de doenças crônicas não transmissíveis
controle da saúde mental. avaliada, as populações mais vulneráveis são em cidades de todas as regiões brasileiras.
as mais expostas e têm a saúde mais afetada. Nesse contexto, políticas urbanas que con-
A maior parte dos estudos sobre transtornos Além desse efeito, estudos de valoração templem alterações da permeabilidade do
mentais no ambiente urbano indica que o ambiental indicam claramente que o custo solo, a cobertura vegetal e a drenagem são
risco para o seu desenvolvimento é maior da poluição em saúde é de uma ordem de parte central das estratégias de redução de
nas regiões mais carentes. É nesses territó- magnitude que prejudica o desenvolvimento emissões e aumento da resiliência climática
rios que fatores como a violência, o excesso econômico das nações mais pobres, criando das urbes brasileiras.
de horas trabalhadas, o tempo perdido em um círculo vicioso de pobreza e doença.
deslocamentos e a insegurança no emprego
são mais frequentes. Isso significa que a
taxa de doenças mentais é também um bom
A poluição do ar não é passível da adoção de
medidas de proteção individual, dependendo
!
indicador para aferir a desigualdade entre os exclusivamente de políticas urbanas. No PARA SABER MAIS, VER:

habitantes urbanos. caso brasileiro, verificou-se que a dose e ▸ SALDIVA, Paulo. Vida urbana e saúde: os desafios dos
habitantes das metrópoles. São Paulo: Contexto, 2018.
os efeitos da poluição são dependentes da
melhoria das condições de mobilidade, do ▸ LEITE, Carlos, TAVARES, Hermano, SALDIVA, Paulo.
Cidade Sã, Mente Sã? Revista Piauí, 2022.
tempo de deslocamento entre a residência e
o trabalho e das condições de moradia. Esse

276 277
Guia de Urbanismo Social Capítulo 12 : Tópicos em Saúde Urbana

12.2_
A SAÚDE MENTAL EM alarmante aponta que o índice de suicídio entre adolescentes negros
TERRITÓRIOS PERIFÉRICOS: cresceu, sendo na atualidade 45% maior do que entre os brancos.
A GRAMÁTICA SOCIAL DO
SOFRIMENTO PSÍQUICO O Portal Geledés reúne um conjunto significativo de dados que
revelam: as mulheres negras e periféricas são, historicamente,
Quem mora nas periferias das grandes cidades do Brasil sabe que não as mais afetadas em decorrência das transformações sociais e
é simples chegar ao trabalho — uma violência cotidiana, naturalizada macroeconômicas. Nos últimos tempos, o impacto das contradições
e silenciada. O corpo da trabalhadora e do trabalhador periféricos é das relações sociais da sociedade capitalistas na vida das mulheres
submetido a toda sorte de hostilidade, algo que, somado à privação negras tem sido fonte de constantes denúncias: desemprego e
de sono, além de outras formas degradantes, produz um tipo de subemprego, mortalidade materna, violência obstétrica, feminicídio
sofrimento que é coletivo, mas transformado — intencionalmente e objetificação dos seus corpos, entre outros fatores que incidem
— em patologia quando diagnosticado isoladamente. É o caso hoje diretamente nas subjetividades de tal grupo. Assim, a intersecção
da síndrome de burnout. Um conjunto de sintomas psicossociais, raça, classe e gênero convoca a urgente e necessária revisão e
relacionados diretamente às extenuantes exigências provocadas construção de políticas públicas que atuem no sentido da indis-
pela precarização das condições de trabalho, é tornado patologia pensável reparação histórico-social.
ao ser inserido na Classificação Internacional de Doenças — CID10.
Como se pode notar, ao tomar o adoecimento psíquico sem con-
O corpo periférico sabe que sacolejar nos transportes públicos siderar as múltiplas determinações sociais, corre-se o risco de
produz desgaste físico e mental. Quem utiliza a rede metroviária na reduzir o sofrimento a uma dimensão meramente subjetiva e
capital paulista, por exemplo, já deve ter escutado no alto-falante patológica. A discussão das relações entre o social e o patológico
a voz do maquinista anunciar que o trem está parado porque “há é fundamental, pois expõe as múltiplas e complexas disputas no
passageiros na via”. As tentativas de suicídio do metrô foram redu- interior do campo da psiquiatria tradicional, e que vêm de longa
zidas após a instalação das portas de segurança nas plataformas; data. Resta dizer que, desde o trabalho pioneiro da psiquiatra Nise
entretanto, a mobilidade urbana continua sendo um dos fatores da Silveira (1905-1999), o que vemos é a disputa hegemônica e
importantes nas estatísticas diárias de crises de ansiedade ou de conceitual que envolve aspectos políticos e ideológicos em torno
outros modos de sofrimento. Fosse somente isso — que já é de- da mercantilização da loucura, do estigma e da patologização do
masiado —, mas há ainda todos os demais determinantes sociais sofrimento, assim como do controle social dos corpos.
que impactam direta e indiretamente na vida objetiva e subjetiva
dos sujeitos periféricos. Importa perceber que nem todo sofrimento é doença e nem toda
doença psíquica produz sofrimento. E mais: os diagnósticos são
Nessa direção, é fundamental o acúmulo teórico-prático que vem instrumentos técnicos importantes, ao mesmo tempo em que
sendo produzido pelos coletivos, pesquisadoras(es) e militantes podem se tornar ferramentas poderosas de controle social de
do movimento negro nas suas variadas vertentes: trata-se do determinados comportamentos. O importante é saber que a vida
reconhecimento do racismo estrutural e de suas consequências, não cabe nessas parametrizações técnicas. Ela é muito maior.
como determinação social, na produção do processo saúde-doença. Um diagnóstico não pode definir uma pessoa. Os sujeitos são
Tomemos como exemplo a taxa de mortes violentas no Brasil. De mais complexos, dinâmicos e diversos que as caracterizações
acordo com o estudo do Fórum de Segurança Pública e do Unicef, moralizantes impregnadas nos códigos que classificam os tipos
80% delas são de jovens negros entre 15 e 19 anos. Outro dado de transtornos, síndromes e doenças. Os sofrimentos das pessoas

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 12 : Tópicos em Saúde Urbana

são legítimos, contudo parece que tem sido mais “fácil” produzir impositiva ao silenciamento do sofrimento é a expressão maior da
“doenças” (diagnósticos) para explicar as mazelas da sociedade indiferença em face da catástrofe.
do que transformar suas relações profundamente adoecedoras.
As consequências desse impacto nos corpos, nas subjetividades e
12.2.1_ SAÚDE MENTAL E PANDEMIA nas sociabilidades dos sujeitos lotam os serviços públicos de saúde
mental e os consultórios privados dos psicólogos e psicanalistas nos
Seguramente, 2020 já entrou para a história. Passados — no momento quatro cantos do território nacional. Além de toda determinação
em que se finaliza este Guia — a quase três anos de pandemia, a social do sofrimento, a morte generalizada e a negação do trabalho
estimativa é que globalmente tenham morrido, aproximadamente, de luto necessário para atravessá-la é um dos imensos desafios
quinze milhões de pessoas. Ao final do citado período, o Brasil ocupava que ficam como consequência da pandemia. Lembremos que o luto
o terceiro lugar em número de óbitos, com 681.763 vidas perdidas. não se restringe à morte da pessoa amada: perderam-se posições
Se o primeiro ano foi marcado por medo, incerteza, insegurança e sociais, empregos, relacionamentos amorosos, projetos coletivos.
indeterminação, agora já podemos falar em consequências e legados Assim, além do lamentável e expressivo número de mortes, temos
desta que foi, sem dúvida, a maior crise sanitária da história recente vivenciado muitas perdas, renúncias e abdicações.
— isso, enquanto ela ainda nos impõe preocupação e contabiliza
altas taxas diárias de transmissão e mortes. Mas afinal, o que significa ter saúde mental?

No primeiro ano, o confinamento forçado e compulsório alterou De maneira simples, podemos dizer que ter saúde mental é conse-
profundamente a nossa relação com o tempo, o espaço, o cotidiano, guir lidar com as múltiplas demandas — internas e externas — que
as coisas e suas prioridades. Por outro lado, o período imediatamente mobilizam afetos, emoções e sentimentos. Em outras palavras, ter
posterior foi marcado pelo esforço insano de impor um “retorno à saúde mental envolve muito mais que a ausência de doenças men-
normalidade”. Por aqui, a pressão advinda do mercado e do setor tais, pois requer um conjunto de fatores materiais (externalidades)
produtivo, com expressivo apoio do governo federal, impactou a e imateriais (subjetividades) que o sujeito constrói ao longo de sua
economia, da mesma maneira que as subjetividades — fato que só história, nas suas relações pessoais e na interação com a sociedade.
faz crescer os indicadores de impacto negativo na saúde mental. Assim, ainda que o sujeito sofra e/ou adoeça singularmente, a saúde
mental tem sempre uma dimensão coletiva e, portanto, política.
Desde o início, os especialistas já apontavam que a pandemia no
Brasil seria marcada por aquilo que o país tem de melhor e pior em Agora você pode estar se perguntando: é possível ter saúde mental
termos epidemiológicos. A capilaridade do SUS foi um fator positivo e em um momento histórico tão adverso e diante de uma sociedade
determinante no controle de novos casos, todavia, ao mesmo tempo, tão hostil? A resposta é afirmativa, pois ter saúde mental envolve
a estruturante desigualdade social e étnico-racial aprofundou as entristecer-se diante das perdas e das dificuldades, tanto quanto
fissuras entre as múltiplas camadas que compõem o tecido social. alegrar-se diante das conquistas. O falatório simplista sobre a saúde
mental difunde uma positividade tóxica e alheia às condições reais
A naturalização da destrutividade parece ter sido a marca coletiva que fazem com que as pessoas sofram. Por outro lado, seus oradores
e subjetiva impressa por parte de setores da sociedade civil e do são aqueles que, em muitos casos, silenciam as vozes dissonantes
governo — fator que, juntamente com outros aqui descritos, tem que reivindicam a universalidade e a qualidade dos serviços públicos
gerado sofrimento e angústia. Se o luto infinito é a expressão de saúde mental, por ora tão precarizados e sucateados.
mais mordaz do sofrimento psíquico na pandemia, a normalização

280 281
Guia de Urbanismo Social

SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL

Na cidade de São Paulo, as portas de entrada para o atendimento na


área de saúde mental são os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) e
as Unidades Básicas de Saúde (UBS) da Secretaria Municipal da Saúde
de São Paulo. Para conhecer a Rede de Atenção Psicossocial, acesse o
site da Prefeitura de São Paulo.

OUTROS SERVIÇOS DISPONÍVEIS

O projeto Territórios Clínicos, da Fundação Tide Setubal, visa desenvolver e


fomentar propostas que promovam a circulação e a ampliação de práticas
no campo da saúde mental nos diversos territórios periféricos. Foi realizado
um levantamento de organizações que oferecem atendimento clínico
psicanalítico e/ou psicológico abertos à comunidade, para além da rede
SUS. Para mais informações, consulte: Territórios Clínicos — Mapeamento.

282
Capítulo 13 : Tópicos em Mulheres e Territórios

13_ 13.1_ DIVERSIDADE, EQUIDADE E


INCLUSÃO: O PAPEL DO ATIVISMO
FEMININO PARA A MUDANÇA SOCIAL

TÓPICOS EM MULHERES O presente capítulo é protagonizado pelo Núcleo Mulheres e Terri-

E TERRITÓRIOS tórios do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper — um grupo


composto por mulheres pretas e brancas, oriundas de diferentes
contextos sociais e distintas frentes de lutas. Seu propósito é atuar
13.1_ Diversidade, equidade e
como uma rede de pesquisa-ação, sempre baseada em dados e
inclusão: O papel do ativismo
evidências, mas também no conhecimento territorial, visando à
feminino para a mudança social
construção de metodologias participativas e projetos de intervenção
urbana com um olhar coletivo feminino.
13.2_ Redes de solidariedade e
geração de capital social
Essa parceria de mulheres tem em comum o fato de elas enfren-
tarem as adversidades que encontram em seu cotidiano de forma
13.3_ A articulação feminina para a
articulada, priorizando a produção de conhecimento e a visibilidade
garantia da propriedade da moradia
das suas demandas com o intuito de influenciar políticas públicas. A
em nome da mulher
aposta sustentada é que essas experiências também são produção
de conhecimento, além de um modo de resistência, apontando para
13.4_ Modelo de organização para
uma nova realidade em que mulheres tenham conscientização de
autogestão habitacional — O caso
seu protagonismo e potência.
do Mutirão Florestan Fernandes

Por meio da produção escrita e da construção de narrativas, há a


13.5_ Movimentos de mulheres em
possibilidade de transmissão das experiências vividas no território,
Heliópolis: luta pela iluminação
assim como, da realidade local. Para Conceição Evaristo (2017)1,
pública e organização de mães
“escreviver” significa contar histórias particulares e que, de alguma
crecheiras
forma, se reflete na vida de outras mulheres, identificando semelhan-
ças, mesmo estando em distintas posições raciais e/ou em outros
13.6_ Programa Fazendeiras —
termos sociais. Reconhecer a voz das mulheres periféricas é uma
capacitação feminina no setor da
quebra de paradigmas na sociedade em que vivemos; é descolonizar
construção civil
o pensamento e o conhecimento, trazendo novos modelos metodoló-
gicos, que fogem ao padrão estabelecido. Grada Kilomba (2020)2 faz
alusão à máscara da escrava Anastácia em relação ao silenciamento
no acesso ao saber acadêmico e ao próprio direito à fala.

AUTORES 1  EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.

2  KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de


Núcleo de Mulheres e Territórios. Janeiro: Cobogó, 2019.

285
Guia de Urbanismo Social Capítulo 13 : Tópicos em Mulheres e Territórios

Quem pode falar? Quem pode construir conhecimento e saberes?


A violência contra a mulher é um fenômeno normalizado, estrutural e
Essas mesmas mulheres articulam e criam, entre si e na comu- cultural, uma vez que deriva da desigualdade, não só econômica como
nidade, uma rede de proteção a partir de laços de solidariedade, também política e social1, e se utiliza dessa condição para mantê-las
incluindo vizinhos, familiares e amigos e instituições locais, com em situação de inferioridade2. Pesquisas mostram que, quanto maior a
a finalidade de alcançarem êxito em seus objetivos pessoais, na desigualdade entre homens e mulheres em uma sociedade, maior é a
luta pelo acesso aos serviços públicos e no desenvolvimento com violência de gênero. O Brasil apresenta uma das maiores taxas do pla-
menos desigualdade. São essas mulheres que realizam a gestão neta em termos de desigualdade entre homens e mulheres — e um dos
da própria vida, criando estratégias para superação das variadas maiores índices de violência de gênero. De acordo com o último relatório
condições de vulnerabilidade. do Fórum Econômico Mundial de 2022, ao ritmo atual, serão necessários
132 anos para que a verdadeira igualdade de gênero aconteça em nossa
As contribuições a seguir são fruto das experiências individuais e sociedade. O relatório também apresenta recomendações, orientando
coletivas de tais mulheres, uma vivência por vezes marcada com a revisão de leis e a criação de políticas afirmativas, a fim de que haja
feridas: algumas presas, silenciadas e ignoradas dentro de um avanço no processo de igualdade de gênero. Ainda que a passos lentos,
sistema historicamente patriarcal, racista e violento. Trata-se de vêm ocorrendo avanços nas políticas de gênero no Brasil; todavia, como
mulheres resilientes, em um cenário quase improvável de batalhas nenhuma conquista está garantida, a permanência e a durabilidade delas
vencidas na guerra contra a desigualdade social, despendendo ainda está em jogo, havendo um longo caminho para que seja possível
esforços que devem ser divulgados e reconhecidos. medir o impacto das políticas direcionadas às mulheres.

Apresenta-se aqui a essencial importância do ativismo e da ação


da liderança feminina para a concretização das mudanças em ter-
ritórios vulneráveis. Elas não ocorrem de forma automática; antes
disso, demandam coragem e uma construção social colaborativa
em torno dos problemas e soluções e, igualmente, das tecnolo-
gias sociais utilizadas. Todo processo deve ser ainda legitimado
sob a perspectiva da organização comunitária, proporcionando
caminhos para a inclusão de quem mais precisa.

Tradicionalmente, as mulheres também têm desempenhado um papel


protagonista, preponderante e determinante na luta por melhorias
diversas da qualidade de vida das populações e dos territórios
negligenciados. Partindo desse reconhecimento, consideramos
fundamental trazer neste Guia algumas experiências referencias a
respeito da organização de mulheres, especialmente aquelas que 1  EXPÓSITO, Francisca; RUIZ, Sergio. Tratamiento para maltratadores: una propues-
vêm realizando tal trabalho em seus territórios de origem. ta de intervención desde la perspectiva de género. In: FARIÑA, Francisca; ARCE
Ramón, BUELA-CASAL Gualberto (ed.). Violencia de género: tratado psicológico y
legal. Madrid: Biblioteca Nueva, 2015. p. 222.

2  ESCOBAR CIRUJANO, Ana et al. In: PEREZ VIEJO, Jesús M.; HERNÁNDEZ, Ana
Montalvo (coord.). Violencia de género, prevención, detección y atención. Madrid:
Grupo 5, 2011. p. 41.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 13 : Tópicos em Mulheres e Territórios

13.2_ REDES DE SOLIDARIEDADE E


GERAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL
Com o ritmo das atividades comunitárias em
plena ascensão, muitas organizações tive-
ram que suspender suas ações em virtude
Um balanço do período revelou que o impacto
social nas ações elaboradas e com partici-
pação de quem está na linha de frente dos
da pandemia de covid-19. A nova realidade territórios desassistidos é maior. Porém, ainda
As mulheres geralmente acumulam múl- Colombo, em São Paulo. Ela deixara o Rio de restrições à mobilidade e à aglomeração há um árduo trabalho de conscientização,
tiplas tarefas, e suas necessidades são Grande do Norte motivada pela busca de de pessoas atingiu fortemente o país. Para confiança e fomento a projetos e políticas
esquecidas. Elas exercem o papel de cui- melhores condições para sua família. Nunca além de gerar uma mudança drástica de ro- que apoiam e se utilizam dessas redes.
dado diariamente, desde o trabalho com havia morado numa favela. No entanto, Maria tina, significou um drama sem precedentes.
seus filhos, irmãos, sobrinhos, netos etc., relatou estar impressionada com a rede de A refeição, garantida no âmbito escolar, já
ao mesmo tempo em que são responsáveis apoio que conseguiu tão logo chegou ao não estava disponível, o trabalho e a renda
pelas tarefas domésticas. Além desses tra- Jardim Colombo: em menos de oito meses das famílias ficaram comprometidos, assim
balhos não remunerados, nas periferias e conseguira mobiliar sua casa inteira a partir como a vida de seus dependentes. Por fim,
favelas a maioria das mulheres ainda atua da mobilização de moradores e familiares. os já desempregados, mais do que nunca,
pelo sustento do lar. Seus salários são in- Assim, entendeu o verdadeiro significado de enfrentaram dificuldades para encontrar
feriores e as possibilidades de alçar novos “coletivo” em um dos momentos mais difíceis uma oportunidade de trabalho.
voos profissionais são menores, visto que de sua vida. Atualmente, Maria Josiane pro-
há uma carga de afazeres que recai sobre cura apoiar outras mulheres em situações Com o objetivo de minimizar as consequên-
as mulheres muito superior à de um homem. similares. Diz que, no futuro, ao lado de suas cias causadas pela pandemia, numa tenta-
amigas, pretende criar um aplicativo para tiva de ação efetiva, movimentos, institutos
Nesse contexto, o que se observa são cons- facilitar a contratação de mulheres no mer- e associações comunitárias iniciaram cam-
truções de redes de solidariedade nos ter- cado da limpeza, oferecendo um salário justo. panhas de arrecadação de doações ao lado
ritórios desassistidos por uma questão de de universidades e entidades públicas e
necessidade de sobrevivência. Essas redes De acordo com Marconatto e Pedrozzo , 3
privadas — uma situação em que a sociedade
adquirem diversas configurações; surgem capital social é a benevolência engendrada civil se mobilizou a fim de acolher as famílias
na colaboração individual entre um vizinho pela interação mútua das três forças sociais e os territórios atingidos pela fome.
e outro, ajudando de maneira específica em (indivíduos, redes e instituições) e que pode
uma demanda pontual, ou, muitas vezes, ser utilizada por elas para facilitar a ação. A partir dessas iniciativas de rede de soli-
por meio da constituição de coletivos, mo- Suas fontes residem nas relações sociais dariedade foi possível promover suporte
vimentos e organizações sociais para um e institucionais dos atores individuais ou para distintas comunidades vulneráveis
trabalho mais amplo e contínuo. No segundo coletivos, sociais ou institucionais, localiza- Brasil afora por meio de um mapeamento
caso, a atuação pode se dar em diferentes dos nos diversos níveis de um determinado coletivo de atuação emergente. O grau de
eixos, facilitando, inclusive, o diálogo entre campo. Seus efeitos ocorrem sobre os fluxos organização comunitária atingido propiciou
sociedade civil e poder público. de informações e o potencial de solidarie- oportunidades de inclusão em programas
dade e influência desses mesmos atores. governamentais de fundamental importância
Para exemplificar essa condição, apresen- para que fossem minimizados os impactos
ta-se aqui o caso de Maria Josiane, mãe solo gerados pela pandemia — e cujos resultados
3  MARCONATTO, Diego; PEDROZO, Eugenio. Capi-
de duas meninas, que em setembro de 2022, tal social: visão integrada. Revista Brasileira de Gestão
foram além de ações assistenciais.
vivia, havia dez meses, na favela do Jardim e Desenvolvimento Regional, Taubaté, v. 9, n. 2, p.154-
181, 2013.

288 289
Guia de Urbanismo Social Capítulo 13 : Tópicos em Mulheres e Territórios

13.3_ A ARTICULAÇÃO FEMININA PARA


A GARANTIA DA PROPRIEDADE DA
MORADIA EM NOME DA MULHER
independentemente de estado civil ou renda4. A lei definiu ainda que
as ações desenvolvidas nos territórios com finalidade de capacitação
profissional e atividades assistenciais devem priorizar as mulheres.

Em nível federal, também houve uma vitória feminina com a pro-


Analisando a trajetória das políticas habitacionais, pode-se
mulgação da Lei Nacional de Habitação de Interesse Social5, que
concluir que elas, ao ignorarem a dimensão de gênero, acaba-
recomenda que o registro de titularidade dos imóveis produzidos
vam por priorizar os homens em seus contratos, concedendo
com financiamento ou concedidos pelo poder público seja feito
a eles a titularidade da moradia, especialmente em programas
em nome da mulher. Além disso, o Programa Minha Casa Minha
que exigiam a comprovação de renda. A expressão “cabeça do
Vida (PMCMV) garantiu prioridade de atendimento às famílias com
casal” ou “chefe de família” só era atribuída à mulher em caso de
mulheres responsáveis pela unidade familiar, sendo os contratos
famílias monoparentais, nas quais a figura masculina não existia.
efetivados preferencialmente em nome da mulher. O PMCMV
O pressuposto era o de que, se houvesse um homem na família,
garantiu ainda que, em caso de separação, dissolução de união
ele seria o responsável. As mulheres, por sua vez, por estarem
estável ou divórcio, o título de propriedade do imóvel seja registrado
submetidas à condição de “dependentes”, ou sequer figurarem
ou transferido à mulher, independentemente do regime de bens
como parte dos contratos, ficavam em condição delicada em que
adotado pelo casal. Essa normativa inaugurou uma nova perspectiva
as moradias podiam ser vendidas sem anuência delas, agravando
para a política habitacional, alterando, inclusive, a previsão contida
sua condição de desamparo.
no Código Civil, tornando-se um marco em direção às políticas
públicas mais equânimes.
Entretanto, quando olhamos para a composição familiar nas
favelas e periferias do país, vemos uma realidade bem diferente
Tais conquistas pesaram não apenas em uma mudança de mentali-
desse cenário. Pesquisa realizada pela organização da sociedade
dade acerca da propriedade da moradia mas também influenciaram
civil Redes da Maré, no Rio de Janeiro — que em 2015 entrevistou
na redação do novo Código Civil, reconhecendo o protagonismo
2000 mil famílias residentes em alguma das dezesseis favelas
das mulheres em relação à unidade habitacional. A alteração legal
do complexo —, identificou que 39% delas tinham uma mulher
garantiu mais segurança à permanência da mulher na moradia
como a responsável principal pelo sustento do núcleo familiar.
nos casos de dissolução matrimonial, bem como preservou a ela
Não por acaso, há mais de quinze anos a União dos Movimentos de
a autonomia decisória sobre o destino da habitação.
Moradia — UMM constituiu uma Secretaria de Mulheres voltada a
tratar a pauta de gênero no dia a dia e a combater a desigualdade
Apesar de tudo isso, é claro que somente a previsão legal não
no mesmo âmbito que caracteriza muitas políticas públicas. Dessa
garante a alteração da realidade, da prática. Por isso, a Secretaria
forma, a presença das mulheres em espaços institucionais levou
de Mulheres segue sua atuação na difusão dessas pautas e na
ao fortalecimento da pauta e à alteração desse quadro a partir
capacitação da população feminina dos territórios onde a UMM
de propostas concretas.
está presente, bem como mantém os governos e as instituições
responsáveis pela política habitacional sob incessante pressão.
No município de São Paulo, lideranças femininas dos movimentos
incidiram na aprovação do projeto que prioriza o atendimento da
mulher como beneficiária dos programas de habitação de inte-
resse social, determinando que os contratos sejam em seu nome, 4  Lei nº 13.770/2004, regulamentada pelo Decreto nº 45.987/2005.

5  Lei nº 11.124/2005.

290 291
Guia de Urbanismo Social Capítulo 13 : Tópicos em Mulheres e Territórios

13.4_ MODELO DE ORGANIZAÇÃO PARA


AUTOGESTÃO HABITACIONAL — O
CASO DO MUTIRÃO FLORESTAN
A expressiva participação de mulheres nas associações e coope-
rativas, tanto em sua base como, mais recentemente, na direção e
responsabilidades de gestão, também é uma importante marca nesse
FERNANDES e em diversos outros processos autogestionários dos movimentos.

Os mutirões José Maria Amaral e Florestan Fernandes estão


localizados na Cidade Tiradentes, extremo leste da cidade de
São Paulo. Eles vêm sendo executados por 396 famílias com
renda inferior a dois salários mínimos, em sua maioria lideradas
por mulheres filiadas à União dos Movimentos de Moradia e ao
Movimento Sem Terra Leste 1.

Os conjuntos são financiados pelo programa federal Minha Casa


Minha Vida Entidades (PMCMV-E) e apoiados pela prefeitura e pelo
governo do estado de São Paulo. Trata-se de um empreendimento
construído por autogestão da comunidade, que se organiza com
o apoio dos movimentos, uma assessoria técnica e uma equipe de
trabalho social, gerindo todo processo de produção de moradia
sem a figura de uma empresa construtora.

O processo de controle comunitário está em todas as etapas:


na definição do terreno, do projeto, da equipe técnica, forma de
construção, compra de materiais, contratação de mão de obra,
organização do mutirão, prestação de contas, trabalho técnico
social e organização da vida comunitária. O objetivo disso é o
fortalecimento coletivo das famílias. Além dos temas relacionados
diretamente à obra, também é discutida com os envolvidos a luta
pelo direito à moradia e à cidade.

Cada família deve participar do trabalho mutirante, com um “expe-


diente” mensal de aproximadamente dezesseis horas. Os mutirantes
recebem formação prévia para a execução das tarefas relacionadas
às obras, que, via de regra, não requerem especialização profissional
e são de baixo risco de acidentes.

Ao integrar as famílias de forma solidária e ativa, o mutirão contribui


para o fortalecimento dos laços de companheirismo e da solidarieda-
de, além de proporcionar a formação de novos talentos e lideranças.

292 293
Guia de Urbanismo Social Capítulo 13 : Tópicos em Mulheres e Territórios

13.5_ MOVIMENTOS DE MULHERES


EM HELIÓPOLIS: LUTA PELA
ILUMINAÇÃO PÚBLICA E
Cite-se, a título de exemplo, a implementação da iluminação pública
na favela de Heliópolis, motivada pelo relato de mulheres que se
sentiam inseguras ao retornar para casa à noite. Majoritariamente,
ORGANIZAÇÃO DE MÃES os becos e vielas eram escuros e, portanto, amedrontadores e
CRECHEIRAS inseguros. Dessa identificação de problema, surgiu a iniciativa de
promover um “lanternaço” — manifestação realizada por centenas
Historicamente, as mulheres que residem em favelas são as maiores de mulheres em marcha pelas ruas escuras com lanternas nas
vítimas da ausência de políticas públicas. Talvez por isso sejam elas mãos. Mobilizados a imprensa e o poder público, o resultado foi
as protagonistas dos esforços pela implementação de serviços este: Heliópolis foi a primeira comunidade de São Paulo a receber
fundamentais para a garantia de direitos. Como exemplo é pertinente lâmpadas de LED em toda a sua área.
mencionar a experiência de Heliópolis, a maior favela da cidade
de São Paulo, onde a fundação e a materialização das lutas dos A experiência ilustra a história de luta das mulheres das favelas:
movimentos populares passaram pela atuação forte das mulheres olham para suas dificuldades em busca de soluções, organizam-se,
em busca de condições de subsistência para as suas famílias. pressionam, ganham espaços e conquistam políticas que acabam
por beneficiar a todos, incluindo os que não vivem no território em si.
A batalha pela habitação digna, infraestrutura urbana, serviços de A luta das mulheres da UNAS é por uma cidade mais justa, inclusiva,
educação, saúde e assistência social sempre foi realizada pelas educadora e feminina, ansiando pelo dia em que ela seja apenas
mulheres do território em questão, partindo de suas necessidades pela melhoria das condições de vida — e não pela garantia dela.
mais básicas: morar, trabalhar, alimentar e educar seus filhos. O
surgimento da União de Núcleos, Associações dos Moradores de
Heliópolis e Região — UNAS na década de 1980, é consequência
da luta de muitas mulheres que se organizaram para pressionar
sucessivos governos em relação à construção de creches e de
centros da criança e do adolescente na localidade.

Assim, o acesso às políticas públicas tem se materializado como


uma vitória comunitária das mulheres, em uma prova de que a
articulação comunitária é capaz de romper barreiras que sempre
predominaram nos espaços de poder, gerando resultados concretos.
Nessa perspectiva, o Movimento das Mulheres de Heliópolis vem
executando uma agenda de encontros mensais de acolhimento
às moradoras em situação de alta vulnerabilidade social, além
de contribuir para a formação cidadã de novas lideranças. Tais
encontros são espaços de planejamento de ações e atos de pres-
são popular para evidenciar violências sofridas e pressionar para
a sua resolução por parte das autoridades competentes, com um
diferencial: a partir de soluções propostas pelas próprias mulheres.

294 295
Guia de Urbanismo Social Capítulo 13 : Tópicos em Mulheres e Territórios

13.6_ PROGRAMA FAZENDEIRAS —


CAPACITAÇÃO FEMININA NO
SETOR DA CONSTRUÇÃO CIVIL
INFOGRÁFICO 01:
METODOLOGIA DESENVOLVIDA AO LONGO DA CAPACITAÇÃO

No final de 2020, em meio às restrições necessárias impostas


Abertura de vagas
pelas ações de combate à covid-19, o Instituto Fazendinhando
para mulheres de 18
expandiu suas iniciativas de suporte à comunidade nas demandas
a 60 anos
assistenciais. Ressaltam-se aqui as ações de estímulo às condições
Definição e
de empregabilidade dos moradores.
levantamento
técnico das moradias
Com base em pesquisas realizadas durante a quarentena e a
partir da convivência diária com os moradores, ficou evidente para
o Fazendinhando a urgência de iniciativas específicas voltadas Aulas teóricas +
ao público feminino. O objetivo central era diminuir as mazelas Material didático
identificadas, ofertando uma oportunidade de recolocação no Aulas práticas
mercado de trabalho e empoderando a população feminina nas + Reforma
ações internas da comunidade. A partir daí foram criados os cursos das moradias
de qualificação para as mulheres no setor da construção civil, (acompanhadas)
Criação de grupo
denominado afetivamente de “Fazendeiras”.
de Whatsapp
para estimular o
Numa governança compartilhada de responsabilidades, integrantes
fortalecimento do
do “Fazendinhando” e da União de Moradores, em conjunto com
grupo Parcerias com
profissionais convidados para palestras e trabalhos específicos de
empresas do setor
canteiro, conduziram as atividades previstas nos cursos com grande
para inserção no
êxito. Destaca-se como resultado relevante, como observado na
mercado de trabalho
figura a seguir, o fato de as atividades práticas de canteiro terem
sido desenvolvidas em ambientes reais da comunidade, permitindo Formatura — Entrega
a recuperação e reformas de cômodos e de áreas precárias a partir de certificados
das competências profissionais desenvolvidas com as alunas
durante o curso.
Empreendedorismo
+ Assessoria MEI
O ingresso de mulheres no ramo da construção civil vem sendo incen-
tivado por oportunidades de salários melhores, muitas vezes superior
ao que se costuma pagar para atividades como a de doméstica. A falta
de mão de obra qualificada no mercado é outro fator relevante, sem
Valores transversais são trabalhados nas aulas teóricas e prendidos na prática:
falar no diferencial que as trabalhadoras aplicam nessa profissão —
COLABORATIVIDADE, SUSTENTABILIDADE E EMPREENDEDORISMO.
são mais detalhistas e cuidadosas ao manusear os equipamentos e
concluem suas tarefas com maior precisão e qualidade de detalhes. Fonte: Instituto Fazendinhando (2021); adaptação: Insper.

296 297
Capítulo 14 : Tópicos em Monitoramento e Avaliação

14_ 14.1_ ROCESSOS DE MONITORAMENTO


E AVALIAÇÃO

TÓPICOS EM MONITORAMENTO O processo de monitoramento e avaliação é um instrumento que

E AVALIAÇÃO
permite acompanhar a interação entre o planejamento e a execu-
ção de um programa ou projeto, possibilitando corrigir desvios na
implementação para que os resultados almejados sejam efetiva-
14.1_ Processos de monitoramento e mente alcançados. Ou seja, são processos de acompanhamento
avaliação dos programas implementados para que se possa avaliar seus
resultados. Esses processos nos ajudam a trabalhar de forma estru-
14.2_ Urbanismo social e turada informações que darão suporte a diagnósticos, formulação
estratégias de monitoramento e e implementação para a avaliação de projetos e políticas públicas.
avaliação
Para as políticas públicas, que buscam solucionar ou prevenir
problemas de interesse coletivo, o processo de monitoramento e
avaliação é um recurso que orienta governos em suas tomadas de
decisão ao fornecer evidências sobre o desempenho de programas
e projetos implementados. Caso seja identificado um resultado
abaixo do esperado, é possível realizar correções e ajustes con-
forme o necessário.

O monitoramento acompanha sistematicamente as ações desen-


volvidas pelo programa por meio de indicadores, medindo sua
evolução e registrando regularmente as observações de modo a
produzir dados consolidados e estratégicos para a gestão do projeto.
Por exemplo, programas voltados para a melhoria do bem-estar
ou qualidade de vida de comunidades vulneráveis podem coletar e
acompanhar a evolução de indicadores de renda, educação, saúde
e mobilidade urbana, entre outros. Esses dados, além de apontarem
para a melhoria (ou não) das condições de vida naquele território,
podem servir de parâmetro para construção de metas e ajustes nas
atividades conduzidas e/ou implementadas (caso os indicadores não
AUTORES estejam apontando resultados esperados na velocidade desejada).
De certa maneira, ele apresenta o que está sendo entregue em
14.1_ Ana L. M. Salla relação ao que foi planejado — o que mostra comparativamente
(Núcleo de Urbanismo Social); o progresso em um período de tempo determinado. Assim, o mo-
14.2_ Pedro Marin e Andrelissa Ruiz nitoramento pode apontar para a existência de problemas, como
(Fundação Tide Setúbal).
299
Guia de Urbanismo Social Capítulo 14 : Tópicos em Monitoramento e Avaliação

indicadores respondendo abaixo do nível esperado. No entanto, O processo de desenho do monitoramento e da avaliação de im-
ele não trará informações para entender por que o problema está pacto passam por diversos estágios, como veremos a seguir. Para
ocorrendo e como ele pode ser resolvido. ! as etapas descritas, usamos como referência o Guia de Avaliação
PARA SABER MAIS, VER: de Impacto Socioambiental do Insper Metricis.
Já a avaliação tem diferentes concepções (como as relacionadas a ▸ Existem diversos
materiais para conhecer
processos, desempenho e impacto) e metodologias que procuram 14.1.1_ DESENHO DO MONITORAMENTO
o processo e etapas
responder a perguntas específicas e orientar a tomada de decisão da construção da
dos gestores. De maneira geral, a avaliação procura melhorar a Teoria da Mudança. DEFINIÇÃO DO PROBLEMA E OBJETIVOS
O próprio Guia de
qualidade de processos de implementação ou auferir resultados Avaliação de Impacto
dela, podendo ser conduzida por métodos quantitativos ou qua- Socioambiental do Essa primeira etapa é uma das mais importantes para todo o
Insper Metricis traz
litativos. Aqui focaremos o conceito de avaliação de impacto. A processo de monitoramento e avaliação. A definição precisa e
uma explicação mais
avaliação de impacto procura entender se o projeto é o responsável detalhada; por isso o objetiva do problema que se pretende (ou com o qual já se trabalha)
pelas mudanças nas métricas dos indicadores observados. Um dos recomendamos como é essencial, pois esse entendimento é que irá guiar tanto as ações
consulta para quem
maiores desafios da avaliação está em exatamente conseguir isolar quiser se aprofundar
do projeto quanto o monitoramento e a avaliação.
o impacto do projeto de outros fatores que também estão agindo no tema.

sobre a comunidade. Ou seja, muita coisa pode estar acontecendo Ter uma interpretação equivocada significa colocar esforços e
no território que não é resultado direto do programa ou projeto, recursos no problema errado, prejudicando potencialmente toda
levando a uma conclusão parcial de que ele seria o único respon- a implementação do projeto. É comum que isso ocorra quando as
sável pelos resultados encontrados. De forma geral, a avaliação ações iniciais foram baseadas em impressões ou diagnósticos
de impacto busca responder à pergunta: “O que teria acontecido superficiais (sem a devida discussão e aprofundamento) ou o
com as comunidades ou os beneficiários caso eles não tivessem problema está relacionado a um campo que não é de expertise
sido expostos ao projeto?” (Insper Metricis). dos envolvidos no projeto.

Quanto aos objetivos, é sempre importante perguntar: o que o projeto


quer alcançar para melhorar a vida das pessoas? Além de trazer
O QUE É MONITORAMENTO?
precisão e transparência com relação aos propósitos em si, essa
Monitoramento diz respeito à coleta de indicadores junto à população-alvo
discussão também auxilia na definição do que está fora do campo
ou beneficiários de determinado programa ou projeto ao longo do tempo.
de ação, ou seja, quais desses objetivos estão diretamente sendo
influenciados pelo programa — lembrando que tempo e recursos
são finitos. Podem existir propósitos mais amplos, mas que estão
fora do campo de ação do projeto ou que não dependem apenas das
ações realizadas por ele. Assim, é importante discutir o problema de
modo crítico e objetivo, considerando os pressupostos colocados,
O QUE É AVALIAÇÃO DE IMPACTO?
as fontes de evidência e no que isso implicaria. Também é relevante
Consiste em medir efetivamente se o projeto é o responsável pelas
avaliar qual a raiz do problema para se assegurar de que se está
melhorias apontadas pelos indicadores que estão sendo acompanhados
focando em sua raiz e não em uma consequência (o método da
ao longo do tempo.
“árvore de problema“ é uma boa ferramenta para esse exercício).

300 301
Guia de Urbanismo Social Capítulo 14 : Tópicos em Monitoramento e Avaliação

ÁRVORE DE PROBLEMAS projetos similares. Nessa etapa, podem ser levantados estudos
acadêmicos, publicações de organizações não governamentais
É uma ferramenta que procura organizar as principais causas dos proble- e/ou internacionais e até mesmo realizarem-se conversas com os
mas que estão sendo estudados. A causa, ou raiz do problema, pode ser gestores ou gestoras de outros projetos similares. O importante
entendida como uma dentre várias condições que, associadas, tornam é compreender os erros, acertos e aprendizados que a prática
provável a ocorrência da questão que se gostaria de solucionar. proporcionou e que possam contribuir para diminuir erros ou
dificuldades na implementação do projeto em questão.

TEORIA DA MUDANÇA
DEFINIÇÃO DA POPULAÇÃO-ALVO

É uma das etapas mais desafiadoras, pois faz o encadeamento e


Dado o acesso limitado a recursos (seja financeiro, de tempo
mostra como as ações realizadas no âmbito de um projeto estão
ou de pessoal), a escolha da população-alvo ou beneficiários
conectadas e gerando o resultado esperado. A Teoria da Mudança é
dos projetos é uma etapa fundamental. Ela pode ser entendida
"uma forma clara e lógica de articular a conexão entre as atividades
como focalização — "Oportunidade de centrar esforços em quem
realizadas e os resultados socioambientais pretendidos". Suas
realmente precisa ou de dar ênfase a segmentos nos quais a
etapas são compostas pela definição e construção de "insumos
intervenção pode ser mais efetiva" (Insper Metricis).
e atividades, que geram produtos ofertados à população-alvo
(outputs), os quais, por sua vez, conduzem a resultados (outcomes)
ligados tanto às atividades principais do projeto quanto a transfor-
VARIÁVEIS A SEREM CONSIDERADAS NO mações mais amplas para a sociedade" (Insper Metricis).
PROCESSO DE FOCALIZAÇÃO DO PROJETO
ESCOLHA DE MÉTRICAS
O Guia de Avaliação de Impacto Socioambiental do Insper Metricis sugere
algumas variáveis que podem ser levadas em consideração durante A etapa final do processo de monitoramento é a escolha das
esse exercício de focalização do projeto: (i) delimitação geográfica; (ii) métricas ou indicadores que irão medir os resultados esperados
características demográficas (idade, gênero, raça etc.); (iii) características definidos na etapa anterior da Teoria da Mudança. Aqui cabe
socioeconômicas (renda, escolaridade, ocupação e outras); (iv) pessoas destacar que para objetivo de monitoramento do projeto podem
com deficiências físicas e cognitivas e demais vulnerabilidades relevantes; ser selecionados indicadores das ações sendo realizadas (também
(v) suscetibilidade a fatores ambientais (clima, potenciais desastres etc.); chamados indicadores de processo) e dos produtos finais. Todavia,
(vi) contextos com condições iniciais limitantes (populações em condições para uma avaliação de impacto são necessários indicadores de
adversas de moradia). resultado, ou seja, indicadores capazes de mostrar que os objetivos
do projeto foram alcançados (mesmo que parcialmente) ou não.

BENCHMARKING Importante! Cabe ainda destacar que um bom sistema de moni-


toramento e avaliação passa pela seleção de indicadores rele-
Refere-se à busca por experiências anteriores que trazem lições vantes e coerentes com as ações que estão sendo conduzidas
(positivas ou negativas) relevantes para o projeto. Assim, ele se (indicadores sobre o que nos interessa medir e que irão refletir as
beneficia de um processo de aprendizagem contínuo iniciado por ações implementadas, caso contrário não será possível perceber

302 303
Guia de Urbanismo Social Capítulo 14 : Tópicos em Monitoramento e Avaliação

o efeito do projeto). Idealmente, esses indicadores serão de baixo 14.1.2_ DESENHO DA AVALIAÇÃO
custo (incluindo os de coleta) —, lembrando que dados abertos
ou disponíveis de maneira pública são uma boa alternativa para O processo de desenho da avaliação é mais complexo e exige co-
reduzir custos. nhecimentos e técnicas avançadas. É um campo que tem crescido
no Brasil nos últimos anos, mas que envolve custos mais altos,
tempo e profissionais especializados.

MÉTODO DE VERIFICAÇÃO DA ADICIONALIDADE

É preciso considerar como será conduzida a verificação da adiciona-


O QUE SÃO INDICADORES?
lidade, isto é, entender “o que provavelmente teria acontecido com
a população-alvo, caso o projeto não tivesse sido executado” (Insper
Indicadores são medidas que ajudam a entender a realidade e agem como
Metricis). De forma geral, esse processo consiste na seleção de
termômetros que mostram variações (ou estabilidade) de aspectos sociais,
dois grupos: tratados e controle. Os tratados são aqueles que foram
econômicos, ambientais etc. Taxa de mortalidade infantil, taxa de analfa-
beneficiados diretamente pelo projeto e o controle são aqueles que
betismo e número de beneficiários de programas sociais são exemplos de
não receberam ou participaram das ações do projeto. Ambos os
indicadores que nos ajudam a dimensionar de maneira objetiva a realidade.
grupos possuem características similares para que seja possível

! compreender “adequadamente o que poderia ter acontecido aos


tratados sem o projeto”. São diversas as técnicas possíveis para
PARA SABER MAIS, VER:
isso, que seguem critérios específicos para sua aplicação.
▸ Políticas Públicas, Nexo Jornal, 2022. 7 Pontos sobre
indicadores e políticas públicas.
PLANO AMOSTRAL

Diz respeito à escolha sobre quantos indivíduos ou beneficiários


ou mesmo quantos grupos farão parte da avaliação do projeto.
Há técnicas específicas para definição do tamanho amostral de
acordo com o método da avaliação elaborado e com o número de
beneficiários do projeto. Além desses critérios, os custos envolvidos
na coleta de dados também influenciam no tamanho da amostra
que está sendo observada.

CRONOGRAMA DE MEDIÇÃO

Orienta o período de coleta de dados que alimentarão a avaliação


e indica, por exemplo, se haverá medições antes e depois do início
das ações que estão sendo implementadas. Em geral, as avaliações
precisam de um horizonte de tempo mais longo após o início das
intervenções para que possam capturar o efeito das ações — por

304 305
Guia de Urbanismo Social Capítulo 14 : Tópicos em Monitoramento e Avaliação

exemplo, a depender um projeto pode haver efeitos mais ou menos !


imediatos na melhora da qualidade de saúde da população a partir
PARA SABER MAIS, VER:
da implantação de um sistema de infraestrutura de água e esgoto
▸ O Guia de Avaliação de Impacto Socioambiental do Insper Metricis enfatiza o
em uma área antes desassistida. método de avaliação de impacto fundamentada no "princípio da adicionalidade,
que consiste na avaliação do resultado do grupo que recebeu o investimento
comparando com o resultado de um grupo similar que não recebeu o tratamento. O
Portanto, os processos de monitoramento e de avaliação são
método permite controlar outros fatores que afetam o resultado do grupo, obtendo
complementares e servem como insumo para reflexões sobre avaliações mais robustas".
prioridades, obstáculos e estratégias de implementação. ▸ ¿Medellín, cómo vamos? é uma aliança interinstitucional privada cujo objetivo
é acompanhar e analisar a qualidade de vida na cidade e região metropolitana
de Medellín — trabalhando para a "promoção de governos mais eficazes e
transparentes, cidadãos informados, responsáveis e participativos e em alianças
em torno da qualidade de vida na cidade".

▸ O Nexo Políticas Públicas fez uma reportagem a respeito de Equidade e Avaliação


de Políticas Públicas com a fundadora e diretora da Equitable Evaluation Initiative
(Iniciativa de Avaliação Equitativa) sobre a importância de considerar a equidade no
momento de fazer avaliações de políticas públicas.

▸ O Danish Institute for Human Rights disponibiliza online material sobre Diretrizes
e Instrumentos para Avaliação de Impacto em Direitos Humanos (em inglês). As
diretrizes foram originalmente desenvolvidas para negócios de grande escala,
COMO AVALIAR SE A INTERVENÇÃO entretanto várias seções são relevantes para outros contextos e podem receber
ATINGIU OS RESULTADOS ESPERADOS? adaptações para atender projetos menores ou diferentes tipos de atividades,
ou, ainda, serem utilizadas na integração de direitos humanos em avaliações de
impacto socioambiental.
Há diversas iniciativas que procuram auxiliar o processo de monitorar e
avaliar intervenções urbanas em territórios de vulnerabilidade social. Aqui
sugerimos alguns materiais e alguns aspectos a serem considerados:

▸ Grau de permanência dos moradores em suas casas e bairros após as


melhorias no território;

▸ Grau de melhoria da qualidade de vida (olhando para indicadores de


educação, saúde, violência, mobilidade urbana etc.);

▸ Grau de utilização dos espaços de lazer e convivência da comunidade;

▸ Dimensão qualitativa: percepção dos moradores a respeito das


intervenções e mudanças no território em que vivem.

306 307
Guia de Urbanismo Social

14.2_ URBANISMO SOCIAL


E ESTRATÉGIAS DE
MONITORAMENTO E AVALIAÇÃO

Os projetos de urbanismo social são instrumentos de planejamento


de políticas públicas que preveem atividades e intervenções
que, por sua vez, devem impactar positivamente a qualidade de
vida nos territórios. Monitorar as entregas previstas em projeto e
avaliar o seu impacto nos territórios é fundamental para garantir
a efetividade das intervenções.

Embora as atividades a serem desenvolvidas possam variar con-


sideravelmente de um bairro para o outro, os resultados de longo
prazo que se obterão nas comunidades são semelhantes. Padronizar
o monitoramento do impacto pode funcionar como uma estratégia
interessante para que o projeto de urbanismo social adquira escala
e para que o impacto de diferentes estratégias de intervenção
possa ser comparável entre diferentes territórios.

O estudo A lupa na cidade: Painel de indicadores de desenvolvi-


mento sustentável de áreas urbanas vulneráveis, desenvolvido pela
Fundação Tide Setubal (2020) com apoio do Insper Metricis, é uma
extensa compilação da literatura disponível sobre o desenvolvi-
mento de regiões em situação de vulnerabilidade. Esse trabalho
consolidou 37 resultados esperados nas diversas áreas de política
pública, que podem ser acompanhados por meio de um painel de 57
indicadores, descritos em detalhes no mesmo estudo. O material,
do modo como está no original ou adaptado, pode servir como
um alicerce robusto para a construção de uma metodologia de
monitoramento e avaliação compartilhada e participativa orientada
para o longo prazo.

Os principais indicadores do urbanismo social são os indicadores


sociais e não os indicadores urbanos. É suficiente apenas construir
espaços públicos ou é necessária a utilização desses espaços,
com a população ocupando-os com atividades ligadas à cultura
local, por exemplo?

308
15_
CASOS REFERENCIAIS

15.1_ Introdução 15.9_ Programa Mananciais, São Paulo

AUTORES 15.2_ Urbanismo Social de Medellín: 15.10_ Ilha de Deus, Recife


15.1_ a 15.7_ e 15.13_ Gabriela Massuda e Projeto Urbano Integral (PUI)
Núcleo de Urbanismo Social; Nororiental 15.11_ Braços Abertos, Boa Vista
15.8_ Gabriela Massuda;
15.8.1_ José Brakars (ex-gestor sênior 15.3_ Utopias de Iztapalapa, Cidade 15.12_ Barrio 20, Buenos Aires
do BID); do México
15.8.2_ Sergio Magalhães (UFRJ);
15.13_ Barrio 31, Buenos Aires
15.9_ Elisabete França (Secretaria de
Habitação, Prefeitura de São Paulo); 15.4_ Compaz – Centro Comunitário
15.10_ e 15.11_ Diagonal; da Paz, Recife
REFERÊNCIAS INTERNACIONAIS:
15.12_ Martín Motta e Mariana Poskus
(CAF - Banco de Desenvolvimento da 15.5_ Territórios e Usinas da Paz,
América Latina); 15.14_ Urbanização como prática de
Estado do Pará
15.14_ Hubert Klumpner e Klearjos E. projeto social na América Latina
Papanicolaou (Urban Think Thank_next,
Zurique); 15.6_ Mais Vida nos Morros, Recife
15.15_Planejamento orientado
15.15_ Roland Krebs e Markus Tomaselli
para o diálogo e a inclusão social:
(Urban Design Lab, Universidade Técnica 15.7_ Programa Urbanismo Social,
de Viena);
o Urban Design Lab na América
São Paulo
15.16_ Gareth Doherty (Harvard Universi- Latina e no Caribe
ty Graduate School of Design);
URBANIZAÇÃO DE FAVELAS:
BOX Parque Novo Santo Amaro — V. Lize- 15.16_ “Booxhibition”: imaginando
te M. Rubano e Vigliecca & Associados; o futuro
BOX Jardim Pantanal — Simone Gatti 15.8_ Programa Favela-Bairro, Rio
(WRI Brasil/ FICA). de Janeiro
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

15.1_ INTRODUÇÃO
15.2_ URBANISMO SOCIAL DE MEDELLÍN:
O PUI (PROJETO URBANO INTEGRAL) NORORIENTAL

Nos Capítulos 1 e 2, apresentaram-se a explicação e a justificativa do


PUI
uso do termo urbanismo social, sua conceituação e aproximações e MEDELLÍN
NORORIENTAL

complementaridades com os programas de urbanização de favelas. ÁREA (KM2) 381 1,58


Urbanismo social não é uma experiência que surge de modo isola-
POPULAÇÃO
2.376.337 170.000
do na Colômbia. É o resultado de aprendizados, da construção de (HAB)

conhecimentos e de práticas coletivas que tornaram possíveis a Tabela: relação entre a área e a população de Medellín e a área de intervenção do PUI.
transformação e a qualificação das favelas na América Latina, cujas Fonte: dados de Medellín: EAFIT, 2017 – Medellín Cómo Vamos; PUI Nororiental:
EDU, 2006.
populações há décadas vêm sofrendo com a violência de conflitos, a
pobreza, as desigualdades, as carências de infraestrutura urbana de
todo tipo e de habitação digna. E que, reconhecidamente pelos seus
autores de Medellín, é influenciado pelo caso pioneiro e premiado de
urbanização de favelas, o programa Favela-Bairro, desenvolvido no
Rio de Janeiro na década de 1990. Ou seja, deixa-se claro que ambos
os conceitos — urbanismo social e urbanização de favelas — não
são aqui vistos como excludentes ou objeto de disputa e, sim, como
abordagens complementares e derivados de desenvolvimento em
contextos diversos.

Ainda, lembrando que as definições foram explicadas no Capítulo 2,


neste capítulo apresentamos alguns casos referenciais que já têm
sido publicizados em maior ou menor grau. As experiências práticas,
concretas, trazem sempre as ricas oportunidades de aprendizados,
seja pelos acertos e sucessos do caso, seja pelas suas limitações, as
forças e fraquezas.

A intenção do Guia, recorde-se, é apresentar um cardápio de referências


— conceituais, temáticas, metodológicas e de casos concretos — de
modo útil e prático à comunidade geral, não especialista. Os casos aqui
apresentados, mesmo tendo sido objeto de ampla pesquisa do Núcleo
de Urbanismo Social — pesquisa bibliográfica criteriosa, entrevistas
estruturadas com diversos atores (“stakeholders”) e visitas a campo — e
trazendo contribuições de diferentes colaboradores, aportando seus
importantes relatos derivados de anos de atividade nos diferentes casos
Mapa: demarcação do território de Medellín e da área de intervenção do PUI (laranja).
concretos —, não constituem um trabalho acadêmico stricto sensu. Fonte: Google Earth, edição própria.

312 313
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

CONTEXTO de Mejoramiento de Barrios Subnormales). Financiado pelo banco


alemão KFW, o programa objetivava a melhoria da qualidade de
A cidade de Medellín, capital do departamento de Antioquia, na vida dos habitantes de quinze bairros localizados nas encostas
Colômbia, é dividida em dezesseis comunas e em 249 bairros. Hoje em três zonas diferentes da cidade, concentrando esforços nos
retratada como uma referência no âmbito do urbanismo social, a seguintes pontos para estabelecer mecanismos adequados de
cidade passou por um processo de profundas transformações planejamento e gestão:
políticas, econômicas e sociais na segunda metade do século XX,
apresentando, entre os anos de 1938 e 1964, crescimentos médios ▸ promoção e participação comunitária na resolução de pro-
anuais superiores a 6% , grande parte devido às migrações da
1
blemas do bairro;
população rural para os centros urbanos.
▸ melhoria da infraestrutura básica do bairro, serviços públicos,
equipamentos comunitários e espaço público;
A acelerada taxa de urbanização superou a capacidade de gestão,
provisão habitacional e planejamento urbano do Estado, comprome- ▸ melhoria e realocação de residências localizadas em áreas
tendo a ocupação do território com conglomerados informais, altos irrecuperáveis;
índices de desigualdade e exclusão socioeconômica e territorial.
▸ legalização da posse da terra urbana;
Somando-se a esse cenário, Medellín era, na década de 1980,
marcada por um contexto político instável, caracterizado pela ▸ mitigação do risco geológico4.
violência urbana liderada pelo narcotráfico e por grupos armados. A
crise social da metrópole chegou ao seu ápice na década de 1990,
As ações conjuntas entre a administração pública, as equipes
com um aumento de homicídios que tornou Medellín a cidade mais
técnicas e os moradores construíram uma base de confiança para
violenta do mundo2.
que a experiência fosse exitosa, fortalecendo as lideranças locais,
a gestão e o andamento dos projetos. Além disso, houve a capaci-
Foi a partir desse período que a gestão do Estado concentrou
tação de uma equipe técnica na comunidade. Esses processos e
esforços para retomar o território do controle das milícias, criando
aprendizados com o programa PRIMED foram fundamentais para
o Conselho Presidencial de Medellín e Região Metropolitana para
o desenvolvimento das estratégias do urbanismo social iniciadas
a promoção de ações de combate à violência com a recuperação
na década de 2000.
dos espaços urbanos e de cidadania. A administração pública, junto
com instituições acadêmicas e organizações não governamentais,
ARRANJOS REGULATÓRIOS E INSTRUMENTOS DE
se organizou para estudar e implementar programas para melhorar
IMPLEMENTAÇÃO
a condição de vida dos habitantes dos territórios vulneráveis3.
Uma das ações mais significativas em Medellín, que antecede o
Com uma nova Constituição, promulgada na década de 1990, na
conceito de urbanismo social, foi o PRIMED (Programa Integral
Colômbia, a administração pública tornou-se descentralizada, pos-
sibilitando maior autonomia dos territórios. Essa reforma política
1  EDU – URBAM EAFIT (2012). Equipo Proyecto Urbano Integral - PUI - Zona Nororien-
tal y Equipo Proyecto de Consolidación Habitacional de la Quebrada Juan Bobo 2004- permitiu que os governos fossem incentivados a criar Planos de
2007, Medellín. Desenvolvimento de Ação Local e eleitos popularmente, de acordo
2  Idem. com a gestão pública do período. O primeiro Plano foi elaborado
3  ECHEVERRI, A.; ORSINI, F. Informalidad y urbanismo social en Medellín. In HER-
MELÍ, M.; ECHEVERRI, A; GIRALDO, J. (comp.). Medellín: medio ambiente, urbanismo y
sociedad. Medelliń: Fondo Editorial Universidad EAFIT, 2010. 4  EDU-URBAM EAFIT, apud Montoya et al., 1996.

314 315
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

em 1995, focado nas questões de segurança, convivência e justiça


social, dado o contexto de crise e guerra contra o narcotráfico.

Olhando para o histórico do urbanismo social, o Plano de 2004-2007


representou um importante momento para a sua consolidação.
Ele foi marcado pela participação conjunta de diversos atores,
unindo preocupações ligadas aos conceitos teóricos e espaciais do
território da cidade de Medellín, com o trabalho da administração
pública junto às principais universidades locais, que forneceram
diagnósticos, dados estatísticos, estudos e o uso de ferramentas
científicas que permitiram o melhor direcionamento dos investi-
mentos municipais e público-privados5.

Foi exatamente no período da gestão de 2004-2007 que surgiu o


termo “urbanismo social”, que se apresentou como um conceito
unificador das ações de planejamento e intervenções urbanas
O Metrocable (teleférico, robusto elemento de inclusão via mobilidade urbana, sempre integrado aos espaços
focadas em áreas de maior vulnerabilidade e marginalizadas, como públicos e demais elementos do PUI.
já comentado no Capítulo 2. Para o caso de Medellín, estabelece- Foto: Carlos Leite.

ram-se três eixos principais de atuação :6

▸ Primeiro: planejamento e ações com projetos específicos para


cada território e executados em simultaneidade, garantindo a
construção da confiança entre Estado e comunidades;

▸ Segundo: gestão social e comunicação pública, garantindo a


sustentabilidade das ações implementadas e o diálogo constante
durante todo o processo de elaboração e execução dos projetos;

▸ Terceiro: gestão física e social de melhor qualidade, com equipes


técnicas capacitadas e equipamentos com arquitetura também de
qualidade, capazes de recuperar e transformar zonas marginalizadas
de maneira duradoura.

A promoção de acessibilidade aos territórios periféricos — aqui o famoso Comuna 13, que foi um dos lugares
mais violentos do planeta na década de 1990 — é um elemento essencial da retomada dos espaços públicos com
5  EAFIT, 2012, op. cit., p. 34-5. grande vitalidade.
6  Op. cit. Foto: Murilo Cavalcante.

316 317
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

Os equipamentos públicos âncora são peças de transformação, qualificação e pacificação nos territórios periféricos,
de alta qualidade arquitetônica, presentes nos PUIs. Aqui, a premiada Biblioteca España, em Santo Domingo Savio.
Foto: santiagovm, está licenciado sob CC BY-NC-ND 2.0.

As Unidades de Vida Articulada (UVAs), equipamentos públicos multifuncionais nos territórios periféricos, muitas ve-
zes reaproveitando espaços ociosos como reservatórios de água.
Foto: Aline Cardoso.

A Biblioteca Parque Tomás Carrasquilla, nas Comunas 6 e 7, com o território do PIU Nororiental ao fundo
Foto: Omar Uran, está licenciado sob CC BY 2.0.

318 319
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

PROJETO PILOTO: O PUI NORORIENTAL O primeiro PUI realizado em Medellín foi desenvolvido na comuna
Nororiental, por ser identificada como a zona da cidade com os mais
A Empresa de Desenvolvimento Urbano de Medellín (EDU) desen- baixos índices de qualidade de vida e de desenvolvimento urbano
volveu o PUI Nororiental e aponta os seguintes dados: (IDH), além de apresentar a maior taxa de homicídios registrada
no ano de 2004. Outro fator importante para a seleção da zona,
▸ Período da intervenção: 2004-2011; apontado pelos estudos da EDU e atores envolvidos no planejamento,
foi o projeto do Metrocable1, infraestrutura que permitiria maior
▸ Investimento: 144 milhões de pesos (2004-2008);
integração territorial e conectaria a “cidade informal” ao sistema
▸ Bairros beneficiados: catorze; de transporte público, como o metrô. O PUI Nororiental se apoiou
e se estruturou a partir dessas infraestruturas de mobilidade
▸ 125.000 m2 de obras: dezoito parques públicos e equipamentos
urbana, pois, para além da questão da acessibilidade, os bairros
como Parque Biblioteca España; Colegio Santo Domingo, Unidad
e territórios seriam impactados também pelas obras e projetos
Deportiva Granizal e Centro de Desarrollo Empresarial Zonal
públicos de equipamentos comunitários, parques, ruas, calçadas
(CEDEZO);
e passarelas no entorno das estações do teleférico2.
▸ Contratação de mão de obra local: 2.300 pessoas da comunidade;
A metodologia de projeto para o PUI Nororiental foi utilizada para
▸ Construção do Projeto Piloto de Consolidação Habitacional
os demais PUIs desenvolvidos na cidade de Medellín, respeitando
Juan Bobo;
a diversidade de condições de cada território em transformação,
▸ Atuação de atores-chave: suas problemáticas sociais e ambientais. Essa metodologia segue
quatro etapas principais3:
→ EDU — Empresa de Desenvolvimento Urbano de Medellín;

→ EAFIT — Escola de Administração, Finanças e Instituto Tecnológico; ▸ Etapa de planejamento: análises físicas, espaciais e sociais, com
identificação das principais problemáticas do território.
→ URBAM — Centro de Estudos Urbanos e Ambientais;
→ Diagnóstico físico: morfologia urbana (topografia, hidrografia,
→ AFD — Agência Francesa de Desenvolvimento;
uso e parcelamento do solo, traçado viário etc.);
→ Setor Privado, Fundos de Crédito Familiar e ONGs como Área
→ Diagnóstico social: composição da população e sua caracterização
Metropolitana, Sena, Viviendas de Antioquia — VIVA, Fondo Nacional
(nível de escolaridade, saúde pública, segurança pública etc.);
de Vivienda, Instituto Colombiano de Bienestar Familiar – ICBF.
→ Diagnóstico de inserção política e institucional: análises de
programas e políticas estatais e municipais, ações preexistentes em
Desenvolvido pela EDU, o PUI teve início no governo de 2004-2007,
benefício da população local, secretarias envolvidas e suas atividades.
gestão pioneira do prefeito Sergio Fajardo, e continuou na admi-
nistração seguinte. Ele consiste em um instrumento de intervenção
urbana que abrange as dimensões físicas, sociais e institucionais
de um território e suas especificidades, por meio da criação de 1  O Metrocable de Medellín é um sistema de transporte público desenvolvido para
programas e projetos com a população local, com geração de áreas com características topográficas mais acentuadas, utilizando-se da tecnolo-
gia de teleféricos.
empregos e fortalecimento de sua economia.
2  Echeverri e Orsini, 2010, op. cit.

3  EDU, 2012, op.cit.

320 321
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

▸ Etapa de formulação: estratégias e desenhos sobre as inter- ▸ Etapa de Sustentabilidade e Apropriação:


venções a partir de construção e elaboração coletivas entre poder
A criação de uma metodologia e o desenvolvimento de estratégias
público, técnicos e comunidades locais.
para a participação comunitária, por meio da comunicação entre
→ Fase de Desenho/Projeto: para o PUI Nororiental foi elaborado os grupos de trabalho no processo de desenvolvimento do projeto,
um Plan Maestro (Plano de Bairro) no qual foram definidas três áreas junto à preocupação da gestão pública no encaminhamento dos
de intervenção (Andalucia, Popular e Santo Domingo), baseadas nas planos a médio e longo prazo, permitiu uma articulação funda-
estações do Metrocable como centralidades estratégicas4. mental entre os componentes sociais, físicos e institucionais para
a elaboração e construção do PUI. Segundo a EDU, as experiências
→ Fase de Execução: programação dos processos de priorização,
com essa metodologia, a exemplo dos “talleres de imaginarios”
implementação e construção.
(oficinas de imaginários), tornou-se a melhor forma de garantir
projetos de sucesso, pois é a própria comunidade, consequen-
▸ Etapa de gestão: a articulação promovida pela EDU entre todos temente, que define, projeta, constrói, inaugura, cuida e usufrui
os atores envolvidos constitui peça-chave e fundamental para o dos programas elaborados.
desenvolvimento dos PUIs e seu avanço como política pública.
Deve-se à apropriação e à sustentabilidade das transformações
→ Fase de coordenação interinstitucional e intersetorial: o modelo de
dos territórios impactados o reconhecimento do seu potencial
gestão construído a partir de uma secretaria privada, no caso a EDU,
pelos cidadãos e comunidades que nele habitam. Por meio do
estabelecida dentro da governança municipal, garantiu o alinhamento
fornecimento de informação e da instrução aos líderes das co-
do projeto político e sua organização, por meio do monitoramento,
munidades durante todo o processo é possível criar um senso de
acompanhamento e direcionamento dos investimentos e recursos
responsabilidade e garantir a continuidade das iniciativas.
disponibilizados;

→ Operação: foi desenvolvido e implementado um sistema organiza- No caso de Medellín, criou-se o modelo do Pacto Cidadão (El
cional pela EDU para garantir a coordenação do planejamento e sua Pacto Ciudadano), uma estratégia pedagógica que estabelece
execução, sendo ele constituído por grupos atuantes em diversas um acordo entre as comunidades e a prefeitura com o intuito de
frentes, tais como: construir conhecimento sobre apropriação do espaço público e do
uso social que de fato transformam de maneira integral a cidade e
GRUPO DE ASSESSORIA GRUPO DE GERENCIAMENTO DE GRUPO DE OPERAÇÃO seus territórios, nos mais diversos âmbitos sociais, educacionais,
INSTITUCIONAL PROJETO
econômicos, de segurança e de qualidade urbana.
Formado por especialistas Gestão dos recursos, qualidade e Grupo interdisciplinar que apoia
em gestão de projetos, com tempo de execução, e supervisão o desenvolvimento do projeto e
coordenação do grupo operacional. das obras. demais atividades.
APRENDIZADOS

GRUPO DE APOIO GRUPO DE ASSESSORIA DIRETORIA DE EXECUÇÃO


MUNICIPAL Os esforços empreendidos nos PUIs em Medellín destacam a
Supervisão do desempenho da Canal de comunicação entre Gestão de recursos humanos, importância de ações de urbanismo social em territórios delimi-
operação e a manutenção das a coordenação do projeto e a técnicos e financeiros, para
infraestruturas físicas. administração municipal auxiliando no garantia do cumprimento dos tados, permitindo o desenvolvimento contínuo dos projetos ao
monitoramento do projeto. objetivos do plano.
longo do tempo, nos quais a comunidade local sinta sua trans-
formação através da confluência entre programas habitacionais,
de infraestrutura urbana e de qualificação de espaços públicos.
4  Empresa de Desarrollo Urbano – EDU. Formulación Proyecto Urbano Integral – PUI
Nororiental. Medellín: EDU, 2006
322 323
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

Isso também é visto como uma estratégia de racionalização dos ▸ Fornecimento de uma arquitetura de alta qualidade, com a
recursos públicos5. valorização do ambiente construído e seu entorno;

▸ Garantia da viabilidade administrativa e econômica das inter-


Aliar apoio e vontade política e promover processos de participação
venções após sua conclusão;
social revelou-se essencial no desenvolvimento de projetos como os
vistos em Medellín, no caso dos PUIs, garantindo sua continuidade ao ▸ Participação ativa das comunidades beneficiadas em todo o
longo das trocas de gestão e gerando maior impacto nos territórios processo: concepção, construção e manutenção;
de ação. Vale destacar também a importância do fortalecimento de
▸ Articulação entre os meios físico, social e institucional — ou seja,
políticas públicas que garantam a preservação do capital social e a
o desenvolvimento integral do território;
permanência das populações nos espaços qualificados pelas novas
estruturas de educação, saúde, cultura, lazer e transporte, permitindo ▸ Priorização de intervenções em zonas delimitadas e de menor
que a cidade informal consiga se integrar ao restante do território. escala, para não haver desarticulação e diluição dos impactos
dos projetos;
Os principais aprendizados do PUI Nororiental e os resultados ob-
▸ Realização de intervenções diversificadas, tanto em complexidade
servados por meio da transformação urbana e social em Medellín,
quanto em uso, desde grandes infraestruturas (como o Metrocable)
segundo a EDU, a EAFIT e demais atores envolvidos, devem-se a
até obras de pequeno porte em ruas e praças.
uma combinação de fatores:

▸ Consolidação de uma administração municipal eficiente aliada a !


atores políticos com grande capacidade e entendimento técnico; PARA SABER MAIS, VER:

▸ Capítulo 02.
▸ Contexto econômico favorável e presença de investimentos e
▸ PUI Nororiental.
recursos internos (governo local e nacional) e externos (fundos
▸ Webinários do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper: Série 3 | Urbanismo
internacionais, capital estrangeiro etc.);
social: conexão Medellín, Recife e São Paulo.

▸ Apoio e incentivo à pesquisa e contribuições acadêmicas, dando ▸ Webinários do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper: Medellín | Projeto
visibilidade ao território e fornecendo análises e estudos profundos Urbano Integral – PUI Barrio Moravia.

e detalhados dos problemas identificados em cada localidade;

▸ Competência e vontade das equipes técnicas envolvidas;

▸ Enfrentamento das desigualdades sociais por meio de projetos


diversificados e programas na construção de habitação, espaços
públicos, equipamentos e transporte;

▸ Fomento à economia local e geração de empregos;

▸ Organização fiscal e gestão adequada dos recursos e transparência


em sua destinação;

5  ECHEVERRI, A.; ORSINI, F., 2010, op. cit.

324 325
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

15.3_ UTOPIAS DE IZTAPALAPA,


CIDADE DO MÉXICO
CONTEXTO

A Cidade do México, capital do México, é uma das 32 entidades


federais do país, composta por dezesseis demarcações territoriais,
CIDADE DO com autonomia política e administrativa, marcando uma governança
IZTAPALAPA
MÉXICO
descentralizada por meio da Prefeitura de Iztapalapa. O município
ÁREA (KM2) 1.495 116
de Iztapalapa é a quarta maior demarcação da Cidade do México,
POPULAÇÃO
(HAB)
9.209.944 1.835.486 abrangendo uma área de 116 km2, e também a mais populosa, com
1,8 milhão de habitantes1.
Tabela: relação entre a área e a população da Cidade do México e a área de inter-
venção do Iztapalapa.
Fonte: dados INEGI, Censo de población y vivienda 2020. Historicamente, o município recebeu equipamentos que degradavam
sua paisagem urbana e social, como lixões e presídios, colocando
o território à margem das políticas sociais e urbanas por um longo
período2. Portanto, Iztapalapa tem sido foco de atenção das entidades
governamentais locais e em nível federal no México por apresentar
alta vulnerabilidade social, persistindo problemas como índices
elevados de pobreza e violência, de acesso à educação, saúde, equi-
pamentos públicos, transporte e, principalmente, às infraestruturas
básicas de saneamento — apenas um quarto dos bairros da localidade
tem fornecimento de água 24 horas por dia.

Segundo relatório da ONU, entre 2015 e 2020, a violência familiar


na cidade registrou um aumento de 47,5%, enquanto crimes como
abuso sexual (141%) e estupro (94%) mais que dobraram3. O ambiente
de insegurança também é influenciado pela presença de grupos
criminosos ligados ao narcotráfico e a armas, o que dificulta e ameaça
a governança local e a gestão da segurança dos territórios afetados.

Em março de 2021, o Departamento de Drogas e Crime (UNODC) da


Organização das Nações Unidas (ONU) realizou em Iztapalapa — e
em mais quatro cidades ao redor do mundo — uma avaliação de
governança e segurança urbana. Essa avaliação funciona como

1  UNODC. Evaluación de la Gobernanza de la Seguridad Urbana. Centro de Exce-


lencia para Información Estadística de Gobierno, Seguridad Pública, Victimización y
Justicia de la Oficina de las Naciones Unidas contra la Droga y el Delito. (2021)

2  Webinário: Utopias em Iztapalapa, México e Programa Braços Abertos, Boa


Mapa: demarcação do território da Cidade do México e da área de intervenção do Iz-
tapalapa (laranja). Vista, Roraima. Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper, 2022
Fonte: Google Earth, edição própria. 3  UNODC (2021). Op. cit.
326 327
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

uma ferramenta para o desenho de políticas públicas de prevenção, Esses projetos, que vão desde a criação de programas de cidada-
baseada em análises e evidências para melhorar a qualidade de vida nia à construção de equipamentos públicos e infraestrutura de
nos territórios que fazem parte da iniciativa. Em sua abordagem são transporte (como a linha de teleférico urbano), desempenharam
considerados oito princípios fundamentais de boa governança4: papéis essenciais para o envolvimento dos habitantes nas ações
de combate à violência e às desigualdades sociais.
▸ Promover a participação social;
As políticas públicas em Iztapalapa foram construídas com apoio
▸ Garantir o Estado de Direito;
e diálogo junto às comunidades, por meio de assembleias parti-
▸ Contar com mecanismos de transparência de governança; cipativas na ação chamada “Diálogos por el Bienestar y la Paz en
Iztapalapa”, com reuniões periódicas para o levantamento territorial
▸ Agir de forma responsável e reativa;
das áreas mais inseguras, tendo como resultado o desenvolvimento
▸ Manter a tomada de decisões orientada pelo consenso; de uma Agenda de Desenvolvimento Local. Através do planejamento
e priorização de ações junto à prefeitura, desenvolveu-se uma
▸ Atuar de maneira equitativa e inclusiva;
estratégia para transformação integral do território de Iztapalapa,
▸ Atuar de modo eficiente; seguindo seis pontos principais de planejamento e gestão6:

▸ Garantir a prestação de contas.


▸ Assembleias e ligações comunitárias por rua e quarteirão;

▸ Assembleias semanais de autodiagnóstico comunitário e trei-


Segundo o relatório da ONU5, o objetivo final da Evaluación de la
namento de ligação;
Gobernanza de la Seguridad Urbana (EGSU) é reverter os fatores
de risco e estabelecer uma governança legítima, reduzir a desigual- ▸ Elaboração da Agenda de Desenvolvimento Local;
dade e promover a inclusão e resiliência individual e comunitária,
▸ Desenho de ações e projetos, bem como planos de trabalho de
estratégias aliadas aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável
ligação;
(ODS) estabelecidos pela entidade.
▸ Integração e divulgação da Agenda de Desenvolvimento Local;
Dentro desse contexto, com a atenção voltada aos projetos de
▸ Execução de ações, obras e projetos.
redução de vulnerabilidade social, política e econômica, a Prefeitura
de Iztapalapa, por meio da Direção-Geral de Governo e Proteção ao
Cidadão, executa programas e ações em tal direção, com enfoque PROJETO UTOPIAS
na prevenção ao crime. Foram elaborados dez tipos de projetos na
cidade, apoiados tanto pela Prefeitura de Iztapalapa quanto pelo O Projeto Utopias – Unidades de Transformación y Organización
governo da Cidade do México e pelo governo federal, dando ênfase para la Inclusión y Armonía Social (Unidades de Transformação e
à população mais vulnerável, crianças e mulheres em programas Organização para Inclusão e Harmonia Social) faz parte de um dos
diversos de reabilitação urbana e cidadã. programas desenvolvidos pela Prefeitura de Iztapalapa chamado
“Iztapalapa se pone guapa” (Iztapalapa fica bonita), com enfoque
no melhoramento do entorno urbano por meio do resgate do

4  UNODC (2021). Op. cit.

5  UNODC (2021). Op. cit. 6  UNODC (2021). Op. cit.


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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

espaço e dos equipamentos públicos, com processos de acupuntura


sociourbana para gerar lugares de encontro, bem- estar social e
convivência comunitária7.

As Utopias são, portanto, um espaço para o desenvolvimento comu-


nitário que oferece, de forma gratuita e pública, uma infraestrutura
física com atividades educacionais, culturais, artísticas e de lazer para
a população local. É com esses espaços que se espera alcançar uma
transformação do território e de seu entorno, com impactos positivos
por meio da recuperação do espaço público, da reconstrução do tecido
social, da coesão e envolvimento da comunidade8.

A iniciativa teve início em 2018 e foram projetados quinze espaços


de Utopias em Iztapalapa, sete dos quais haviam sido inaugurados
até março de 2021, e outros seis estão atualmente em construção,
O território de vulnerabilidade social em Iztapalapa e a inserção das Utopias.
localizados no território seguindo este mapa disponibilizado pela Foto: Raúl Basulto Luviano.
prefeitura local. Os espaços projetados englobam diversas atividades
e infraestruturas como piscinas, instalações esportivas, ginásios, au-
ditórios, salas de música e dança, além de espaços para atendimento
médico, psicológico e também de apoio jurídico (como atendimento
aos casos e vítimas de violência doméstica).

O território de vulnerabilidade social de Iztapalapa, na Cidade do México, e a inserção das Utopias; assim como em Me-
dellín, equipamentos públicos são âncora de programa multifuncional e elementos de referência e vitalidade urbana.
O território de vulnerabilidade social em Iztapalapa e a inserção das Utopias.
Fotos: Laura Janka.
Foto: Raúl Basulto Luviano.

7  (UNODC) 2021.

8  (UNODC) 2021.
330 331
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

PROCESSO DE TRABALHO E GESTÃO DAS UTOPIAS etc.), e contam também com a parceria de universidades para a
realização de atividades e oficinas2.
O processo de trabalho para a criação das Utopias considerou
estas etapas principais1:
!
▸ Fase de formulação: colaboração interna entre diversos setores PARA SABER MAIS, VER:

da prefeitura na planificação preliminar; ▸ Projeto UTOPIAS —Unidades de Transformación y Organización para la


Inclusión y Armonía Social.
▸ Diagnóstico socioterritorial: análise das características tipoló- ▸ Webinários do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper — Utopias em
gicas e morfológicas do espaço público para a elaboração dos Iztapalapa, México, e Programa Braços Abertos, Boa Vista, Roraima. Laboratório
Arq.Futuro de Cidades do Insper, 2022.
projetos de recuperação integral dos territórios, com a atuação
da comunidade por meio de oficinas participativas e diagnósticos
com a população local;

▸ Planificação, criação e desenho: definição de um programa


arquitetônico específico elaborado a partir da base de dados e
análises territoriais coletados na etapa de diagnóstico;

▸ Metamorfose do lugar e difusão pelo território: execução das obras


de maneira simultânea à difusão do novo equipamento pelo território
e pela comunidade, de acordo com cada contexto específico.

Segundo os dados compartilhados pela Prefeitura de Iztapalapa,


foram construídos ao todo 516.000 m2 de espaço público para o
esporte, cultura, bem-estar e convivência social. Toda a parte de
operação e coordenação de atividades é realizada pelo Gabinete
Utópico, dentro da prefeitura, em colaboração com as “equipes
utópicas”, constituídas pelos representantes locais de cada território
e a coordenação-geral de cada unidade.

Os processos participativos são essenciais para a manutenção das


Utopias e garantem que a gestão pública mantenha relação direta
com as necessidades da população.

Considerando todas as atividades gratuitas, as Utopias asseguram,


para além dos recursos municipais, a captação de recursos por meio
de ações de publicidade e locação de lojas comerciais (cafeterias

1  Webinário: Utopias em Iztapalapa, México e Programa Braços Abertos, Boa Vista,


Roraima. Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper, 2022. 2  Idem.

332 333
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

15.4_ COMPAZ
CENTRO COMUNITÁRIO DA PAZ,
RECIFE
CONTEXTO

Segundo documento elaborado pelo governo de Pernambuco1, o


estado vem enfrentando um cenário de violência grave, intensifi-
cado a partir de 2000. A cidade de Recife apresentou, entre 2000
e 2006, a maior taxa de homicídios entre todas as capitais do país.
BAIRRO ALTO BAIRRO BAIRRO BAIRRO ILHA
RECIFE
STA. TEREZINHA CORDEIRO CAXANGÁ JOANA BEZERRA

ÁREA (KM2) 218.843 0,306 3,41 2,44 0,87 Como pauta principal para a gestão do governo em 2007, a temá-
POPULAÇÃO tica da segurança urbana e redução da violência consolidou-se a
1.661.017 7.703 41.164 9.634 12.629
(HAB)
partir da formulação do programa Pacto pela Vida2, com políticas
Tabela: relação entre a área e a população de Recife e área de intervenção dos bairros. públicas voltadas para a mitigação da criminalidade e da violência
Fonte: Recife: IBGE (2021) / Bairros: Prefeitura de Recife (2020).
urbana. Seguindo o projeto do governo, em 2013 a prefeitura da
capital pernambucana também lançou o programa Pacto pela
Vida de Recife, inserido no Plano Municipal de Segurança Urbana
e Prevenção da Violência3.

Centro Comunitário da Paz — Compaz

O Compaz foi criado pela Secretaria de Segurança Pública da Cidade


do Recife como parte de uma política pública de prevenção à violência
e à criminalidade por meio da inclusão social e do fortalecimento
comunitário local. Inspirados fortemente na referência de Medellín,
mais especificamente nos equipamentos “bibliotecas-parque”, os Cen-
tros Comunitários da Paz (Compaz) são conhecidos como “Fábricas
de Cidadania” e oferecem à população dos bairros do entorno uma
estrutura completa e de alta qualidade, com atividades esportivas,
piscinas, espaços de lazer e bibliotecas, além de serviços públicos
de atendimento à comunidade (Procon, mediação de conflitos e
Centro de Referência de Assistência Social — CRAS, entre outros)4.

1  Secretaria de Planejamento e Gestão. Coleção de boas práticas de gestão, volu-


me V, “Pacto pela vida”. Recife: Secretaria de Planejamento e Gestão: 2014

2  Prefeitura do Recife. Pacto Pela Vida Recife – Plano municipal de segurança


urbana e prevenção da violência. (s.d.)

3  Prefeitura do Recife. Ofício 259 / 2018-GP. Projeto de Lei Complementar, que


promove a revisão do Plano Diretor do Recife. Recife: Prefeitura do Recife, 2018.

Mapa: demarcação do território de Recife e da área de intervenção dos bairros (laranja). 4  Prefeitura do Recife. Recife 500 anos lança estratégias para pensar a cidade a
Fonte: Google Earth, edição própria. longo prazo. Recife: Prefeitura do Recife, 2019.
334 335
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

Estabeleceu-se, a partir desses equipamentos, uma rede municipal ▸ Grupo Fiat;


de bibliotecas chamada Rede de Bibliotecas pela Paz, um modelo
▸ Grupo Parvi;
de ação pautado pelo urbanismo social e sustentado pelo princípio
de transformação social por meio da educação e da cultura, da ▸ Fundação Bernard van Leer.
democratização dos espaços públicos e do acesso à informação
A criação de áreas de convivência e qualificação do espaço público,
e ao conhecimento.
com a possibilidade de a população local exercer plenamente
sua cidadania, mostrou seus impactos e o apoio popular de modo
De acordo com o Programa Cidades Sustentáveis, o projeto pro-
bastante positivo. O acesso permanente e facilitado ao Compaz,
moveu a participação da população local a partir da distribuição de
com horários de funcionamento estendidos – nos dias úteis, das
1.500 questionários e doze reuniões sequenciais para entender as
7 às 22h, e nos finais de semana, das 8 às 12h – , garantiu grande
necessidades prioritárias do bairro em que o Compaz seria inserido,
participação da comunidade e seu uso de maneira intensa (mais de
discutindo com a comunidade as principais atividades que seriam
2 mil atendimentos por dia em 2018 no Compaz Eduardo Campos
implementadas dentro do complexo.
e mais de 13 mil pessoas cadastradas para seu usufruto).

Hoje existem quatro unidades do Compaz em Recife. A primeira,


chamada Eduardo Campos5, foi inaugurada em 2016, no bairro do
Alto Santa Terezinha, zona norte da cidade. A segunda foi o Compaz
Ariano Suassuna, que abriu as portas em 2017, no bairro Cordeiro;
as outras duas unidades foram inauguradas em 2019/20, o Compaz
Miguel Arraes e o Dom Hélder Câmara, nos bairros de Caxangá e
Ilha Joana Bezerra, respectivamente.

Esses grandes equipamentos públicos mostraram seu impacto na


prevenção da violência e da criminalidade, para além das ações de
policiamento. Foram diversos atores envolvidos no desenvolvimento
do projeto:

▸ Prefeitura de Recife;

▸ Secretaria de Governo;

▸ Secretaria Municipal de Segurança Pública;

▸ Secretaria de Assistência Social;


Os Compaz em Recife se tornaram rapidamente a maior referência no Brasil ao urbanismo social de Medellín
no que se refere à implantação nos territórios de vulnerabilidade social dos referenciais equipamentos públicos
▸ Polícia Militar; âncora, com programas diversificados e potencializando a vitalidade urbana das comunidades locais.
Foto: Murilo Cavalcanti.

5  FONTE, M. Localização de um centro comunitário (Compaz) na cidade do Recife:


uma aplicação do método FITradeoff. 2018. Dissertação (mestrado) - Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2018.
336 337
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

RESULTADOS

Segundo dados da Secretaria de Defesa Social de Pernambuco


(SDS/PE)6, verificou-se que, no raio de um quilômetro do Compaz
Ariano Suassuna, o índice de Crimes Violentos Letais Intencionais
(CVLI) caiu 35% no comparativo de 2018 para 2017.

Já no Compaz Eduardo Campos, o índice de redução de CVLI caiu


27,3% no comparativo entre 2017 e 2016. O bairro do Alto Santa
Terezinha, sede do primeiro Compaz, não registrou nenhum ho-
micídio em 2018.

Para os demais equipamentos, ainda muito recentes, não há dados


disponíveis para avaliação de seus impactos, principalmente devido
ao período da covid-19, quando as unidades tiveram que interromper
seu funcionamento.

Festival de circo no Compaz.


!
PARA SABER MAIS, VER:
Foto: Murilo Cavalcanti.
▸ Centro Comunitário da Paz – Compaz.

▸ CAVALCANTI, Murilo. Conexão Recife Medellín Compaz –Laboratório de boas


práticas urbanas. Recife: CEPE, 2022.

▸ Webinários do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper – Série 3 | Urbanismo


social: conexão Medellín, Recife e São Paulo.

Compaz Ariano Suassuna.


Foto: Murilo Cavalcanti. 6  Prefeitura do Recife. Centro Comunitário da Paz — Compaz.
338 339
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

15.5_ TERRITÓRIOS E USINAS DA PAZ,


ESTADO DO PARÁ
CONTEXTO

No ano de 2019, o governo do Pará instituiu a política de inclusão


social e redução da violência por meio do programa Territórios pela
Paz (TerPaz), com a intenção de criar um conjunto de políticas públi-

PADRE CANAÃ
cas e projetos com enfoque nos problemas relacionados à violência
AMINTAS CABANA- ANTÔNIA PARAUA- JURUNAS/ TERRA
PINHEIRO GEM CORRÊA
BRUNO
PEBAS
DOS
CONDOR FIRME
GUAMÁ urbana e aos territórios com altos índices de vulnerabilidade social.
SECHI CARAJÁS

ANO DE
2021 2022 2022 2021 2022 2022 2021 2022 2023
INAUGURAÇÃO
Como forma de promover a articulação entre os atores governa-
Tabela: relação entre a área e a população de Belém e a área de intervenção dos mentais e não governamentais dentro das políticas de promoção
Territórios e Usinas da Paz.
da paz nos territórios, foi criada, no ano de 2020, a Secretaria
Fonte: Belém: IBGE, 2021 / Bairros: Censo IBGE, 2010.
Estratégica de Articulação da Cidadania (Seac)1, compondo junto
à Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Segup) as ins-
tâncias institucionais que operam o programa sob uma perspectiva
de gestão integrada e articulada.

A atuação nos Territórios pela Paz foi pautada pelo Plano de Ação
Integrada, baseado em duas etapas de ação. A primeira, intitulada
choque operacional, constitui um conjunto de operações e planos
táticos pelas polícias civil e militar, partindo de um momento de
ação mais incisiva e se diluindo até uma fase de estabilização
e policiamento preventivo. A ideia é fortalecer a relação entre
polícia e comunidade, com a mitigação de confrontos por meio
da estratégia de comunicação permanente em face das ações
externas no interior da comunidade afetada. A segunda etapa é
chamada atuação Integral. Dela participam todas as secretarias,
fundações e órgãos do estado que integram o eixo de políticas de
inclusão social, com execução coordenada pela Seac. Segundo
a apresentação do programa2, os projetos organizam-se em sete
eixos temáticos principais para a promoção do desenvolvimento
territorial, da cidadania participativa e da mediação de conflitos:

▸ Capacitação técnica e profissional, educação básica, arte e cultura;

1  A Seac foi criada pela Lei nº 9.045, em 29 de abril de 2020, como órgão da Admi-
nistração Direta do Poder Executivo.
Mapa: recorte da região metropolitana de Belém e a inserção das Usinas da Paz (laranja).
Fonte: Google Earth, edição própria. 2  Secretaria Estratégica de Articulação da Cidadania. Apresentação do Programa
TerPaz.
340 341
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

▸ Emprego e renda, microcrédito e empreendedorismo, economia ▸ UsiPaz Parauapebas;


solidária;
▸ Canaã dos Carajás;
▸ Habitação, regularização fundiária e urbanização;
▸ UsiPaz Jurunas/Condor;
▸ Saúde, esporte/lazer, assistência social;
▸ UsiPaz Terra Firme;
▸ Tecnologia e inclusão digital;
▸ UsiPaz Guamá.
▸ Meio ambiente e sustentabilidade;
O projeto arquitetônico das Usinas é padronizado e segue uma
▸ Mediação de conflitos e prevenção à violência. programação diversificada no atendimento à comunidade local,
desde serviços públicos de saúde, educação, profissionalização e
empreendedorismo, entre outros, a espaços destinados ao lazer e
Usinas da Paz
às práticas esportivas, como piscinas e quadras.

Dentre as ações programadas para os TerPaz, o projeto das Usinas


da Paz integra-se ao projeto e funciona como equipamento público
âncora para a transformação dos territórios. A seleção desses
territórios é feita a partir de sua classificação dentro de quatro
critérios principais:

▸ Elevados indicadores de criminalidade e violência;

▸ Polos geradores de criminalidade;

▸ Predisposição local para execução do projeto;

▸ Organização social comunitária mínima.

Encabeçada pelo governo do estado e coordenada pela Seac, a


construção das Usinas da Paz conta com investimentos da ini-
ciativa privada (empresas Vale e Hydro), responsáveis pelo custo
da construção e equipagem das unidades. Foram inauguradas
nove unidades:

▸ UsiPaz Amintas Pinheiro, no bairro Icuí-Guajará, em Ananindeua;

▸ UsiPaz Cabanagem, em Belém;

▸ UsiPaz Antônia Corrêa, no bairro Nova União, em Marituba;

▸ UsiPaz Padre Bruno Sechi, instalada no bairro Bengui; Usina da Paz do Icuí.
Foto: Marcos Aurélio Lopes.

342 343
Guia de Urbanismo Social

RESULTADOS

De acordo com dados publicados pelo governo do Pará, os Terri-


tórios pela Paz, três anos após sua criação, apresentam reduções
significativas nos índices de criminalidade na região metropolitana
de Belém. No bairro da Cabanagem, por exemplo, em que foi imple-
mentada uma das unidades das Usinas da Paz, em conjunto com
as demais etapas do Plano de Ação Integrada, houve um registro
de queda de 31% em ocorrências de roubo, num comparativo entre
os anos de 2021 e 20221.

Outro dado disponibilizado pela Secretaria Adjunta de Inteligência


e Análise Criminal (Siac) refere-se à queda nos Crimes Violentos
Letais Intencionais, com reduções consideráveis nos casos anali-
sados entre os períodos de janeiro a junho dos anos 2021 e 20222:

▸ Bairro Bengui: redução de 100% (registro de zero caso em relação


a um caso em 2021);

▸ Cabanagem: redução de 88% (um caso em 2021 para oito casos


em 2022);

▸ Icuí-Guajará: redução de 78% (dois casos em 2022, em compa-


ração aos nove casos em 2021).

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Usinas da Paz.

▸ Webinários do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper – Fortaleza: Rede


Cuca e Belém: Usinas da Cidadania | 08/07.

1  Dados computados pela Secretaria Adjunta de Inteligência e Análise Criminal


(Siac), vinculada à Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social (Se-
gup). Secretaria Estratégica de Articulação da Cidadania (sd). Bairros contempla-
dos pelo TerPaz registram queda na ocorrência de roubos.

2  Governo do Pará. Programa TerPaz.


344
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

15.6_ MAIS VIDA NOS MORROS,


RECIFE
CONTEXTO

Segundo dados do programa Mais Vida nos Morros, aproximada-


mente um terço da população de Recife — isto é, acima de 500 mil
ANO 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022
pessoas — vive em áreas de risco, tanto em relação à condição de
deslizamento quanto aos problemas relacionados ao descarte do lixo.
COMUNIDADES 2 2 4 37 6 4 1

FAMÍLIAS 300 600 1.250 3.450 5.730 958 200


Nesse contexto, a capital pernambucana se coloca como pioneira
Tabela: comunidades e famílias impactadas pelo programa Mais Vida nos Morros em ações de política pública com experiências pautadas pelo
entre os anos de 2016 e 2022.
urbanismo social. Desde os projetos do Compaz inaugurados em
Ao todo foram 56 comunidades e 12.488 famílias, beneficiando diretamente cerca de
55 mil pessoas. 2016, a cidade vem desenvolvendo uma metodologia de atuação
Fonte: Programa Mais Vida nos Morros. nos territórios com alta incidência de vulnerabilidade social.

Lançado em 2015 pela Prefeitura de Recife, o Programa Mais Vida


nos Morros começou como uma ação de prevenção aos desastres
de origem natural agravados pela ação humana, entre os quais
se poderiam incluir os deslizamentos de terra, em áreas de risco,
junto à defesa civil municipal. A capital possui 67% do seu território
ocupado por morros, e em função disso foram necessárias obras
de infraestrutura de contenção e estabilização das encostas. Mas,
para além das questões de infraestrutura básica de preservação e
qualificação dos territórios afetados, o programa consolidou uma
parceria forte entre a comunidade local, a prefeitura, o terceiro
setor e a iniciativa privada1.

Em 2018, o Mais Vida nos Morros foi “acelerado” na Universidade de


Harvard, em parceria com a Fundação Bernard van Leer, por meio do
Programa Urban 95, e começou a redirecionar toda a sua metodologia
para as crianças, em especial as da primeira infância (0 a 6 anos), na
cidade e em seus espaços públicos. A ideia era a de que intervenções
lúdicas, na altura dos 95 centímetros, tamanho médio de uma criança
de até 3 anos, pudessem estimular o desenvolvimento infantil, a partir
justamente do brincar. Era como se a rua fosse uma extensão da
própria casa ou até mesmo da escola, despertando a criatividade, a
curiosidade, a autoconfiança, a capacidade de aprender ou de imaginar.

Mapa: demarcação do território de Recife e da área de intervenção do Programa Mais


Vida nos Morros (laranja). 1  PONZI, Túlio; LEITE, Carlos. Urbanismo Social com as cores do Recife. Revista
Fonte: Google Earth, edição própria. Piauí, 2021.

346 347
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

Para atender a população e nortear as ações do Estado em face


dos problemas enfrentados pelas comunidades, criou-se a Secre-
taria Executiva de Inovação Urbana, um subsetor da Secretaria
de Infraestrutura e Serviços Urbanos da Prefeitura de Recife. A
atuação dessa nova secretaria prioriza o atendimento e a escuta
direta da população.

Dados da prefeitura mostraram que, até o final de 2020, o programa


havia atendido 53 comunidades, alcançando diretamente 54 mil
habitantes — com o objetivo de chegar a todas as 545 comunidades
em territórios de vulnerabilidade social da cidade2.

“Se você pudesse vivenciar uma cidade a partir de 95 cm — a altura de uma criança
de 3 anos —, o que mudaria?” Esse lema do Programa Urban 95 da Fundação Ber-
nard van Leer, parceira da prefeitura no programa Mais Vida nos Morros, ganhou
escala e se tornou uma referência em termos de intervenções com entregas rápi-
das nos territórios de vulnerabilidade social — neste caso, os mais de 50 morros de
Recife —, com foco na geração de espaços públicos e na promoção da vida infantil
na cidade.
Fotos: Edson Holanda.

2  Prefeitura de Recife (2020). Mais Vida nos Morros.

348 349
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

METODOLOGIA ▸ Empoderar todos os moradores (adultos, idosos e crianças) a


partir da escuta ativa e da participação nas tomadas de decisão;
Diante dos desafios recorrentes relacionados à falta de continuidade
▸ Engajar os moradores na transformação da sua comunidade,
das políticas públicas e demais questões relacionadas à gestão
exercendo a cidadania ativa;
municipal, o Mais Vida nos Morros e sua metodologia de urbanismo
social se norteiam a partir de três princípios básicos de atuação: ▸ Promover a sustentabilidade e a resiliência da comunidade a
partir do protagonismo do morador;
▸ Baixo custo;
▸ Promover uma mudança de comportamento dos moradores em
▸ Rápida implementação; favor da transformação e da sua preservação posterior;

▸ Alto impacto. ▸ Reinventar a relação do morador com a sua comunidade, des-


pertando um sentimento de orgulho, autoestima e pertencimento.

Dentre os diversos problemas enfrentados, como os de habitação


e de infraestrutura básica urbana, o programa decidiu destacar a RESULTADOS
questão dos espaços públicos de convivência e lazer — ruas, vielas
e escadarias —, dando maior atenção à criação de áreas urbanas As ações realizadas na capital pernambucana mostram que o
de melhor qualidade para o desenvolvimento das crianças das engajamento junto à população e sua participação nas transfor-
comunidades socialmente vulneráveis de Recife. mações da paisagem urbana são o principal pilar que sustenta o
Mais Vida nos Morros. Todas as atividades criadas — pintura das
Assim, foi disponibilizada pela prefeitura uma cartilha contendo casas, criação de hortas urbanas, construção de praças a partir de
o “passo a passo” para implementação do Mais Vida nos Morros, resíduos recicláveis, limpeza das ruas etc. — foram resultado de
definindo soluções e intervenções pautadas por dez objetivos ações conjuntas entre os diversos atores envolvidos: prefeitura,
principais, adequados a cada comunidade: ONGs (Fundação Bernard van Leer), iniciativa privada (Tintas Coral),
equipe técnica, gestores e, principalmente, a própria comunidade.
▸ Transformar microvazios urbanos (espaços degradados, vulne- !
ráveis ou com acúmulo de lixo) em áreas de lazer e de convivência PARA SABER MAIS, VER: Após a implementação de uma série de projetos, o estudo realizado
ou espaços para as crianças; ▸ Programa Mais Vida pelo programa apontou para a geração de impactos positivos nas
nos Morros.
diferentes áreas de ação: a criação de novos vínculos entre a equipe
▸ Implantar políticas para a diminuição da quantidade de lixo que
▸ PONZI, Túlio; LEITE, técnica e a comunidade (por meio das oficinas, mutirões etc.); uma
vai para os aterros municipais; Carlos. Urbanismo
Social com as cores do
mudança na percepção da população local em relação à qualidade
▸ Redesenhar e repensar toda a infraestrutura urbana da comuni- Recife, Revista Piauí, dos equipamentos e serviços públicos e, em especial, o aumento
2021.
dade (escadarias, calçadas, becos e vielas) sob a perspectiva das extremamente significativo do uso dos espaços públicos.
crianças, especialmente as situadas na primeira infância; ▸ Webinários do
Laboratório Arq.Futuro
de Cidades do Insper:
▸ Integrar políticas públicas já existentes para a área beneficiada;
Recife — Mais Vidas
nos Morros e São Paulo:
▸ Integrar os diferentes órgãos e secretarias do município, além de
Jardim Pantanal | 01/07.
parceiros da iniciativa privada, em prol dos territórios beneficiados
pelo programa;
350 351
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

15.7_ PROGRAMA URBANISMO SOCIAL,


SÃO PAULO
CONTEXTO

O Pacto pelas Cidades Justas surgiu em 2020 de uma ação conjunta


DISTRITOS entre diferentes entidades da sociedade civil — Fundação Tide
JARAGUÁ VILA MARIA SÃO MIGUEL Setubal, Instituto de Arquitetos do Brasil (IABsp), Instituto BEĨ e
(PINHEIRINHO (PQ. NOVO PAULISTA (JARDIM
CIDADE DE SÃO
PAULO D’ÁGUA) MUNDO) LAPENA) diversas outras — para modelar estratégias de urbanismo social
inspiradas nos princípios de Medellín e também pela experiência
ÁREA (KM2) 1.521 27,6 11,8 7,5
do Compaz, em parceria com a Prefeitura de São Paulo e esta,
POPULAÇÃO
(HAB)
12.396.372 281.824 107.395 93.187 que acolheu a iniciativa para promover o programa de Urbanismo
Tabela: relação entre a área e a população de São Paulo e a área de intervenção do
Social da Cidade.
Programa Urbanismo Social.
Fonte: IBGE, 2010.
Trata-se, assim, de uma articulação entre a sociedade, a
iniciativa privada e o poder público para criar e implementar
projetos de desenvolvimento e intervenções urbanísticas em
territórios vulneráveis.

O Pacto pelas Cidades Justas é, em essência, um modelo


de governança em que a larga experiência das entidades do
terceiro setor que já atuam em comunidades socialmente
vulneráveis será integrada à atuação das secretarias
do município. A articulação com a prefeitura garante a
centralização das ações, a integração multisetorial das
políticas públicas, a convergência das políticas nos territórios
selecionados e a continuidade do programa ao longo das
próximas gestões.

O Pacto pelas Cidades Justas prevê a pesquisa,


desenvolvimento e implantação coordenados de um extenso
leque de iniciativas, envolvendo saúde, educação, cultura,
habitação, transporte, criação e qualificação de espaços
públicos, sempre sob um modelo de gestão integrado e
articulado com lideranças comunitárias dos territórios em que
os programas serão implantados.

O programa se voltou inicialmente para três áreas periféricas da


Mapa: a inserção dos três territórios iniciais do Programa Urbanismo Social (laranja) cidade de São Paulo — nos entornos dos CEUs (Centros de Edu-
na cidade de São Paulo.
cação Unificados) Pinheirinho d’Água e Parque Novo Mundo e no
Fonte: Google Earth, edição própria.

352 353
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

território do Jardim Lapena — e tem a meta de expansão gradativa ▸ Priorizar investimentos em áreas em situação de alta vulne-
para outros territórios similares. rabilidade: em um contexto de escassez de recursos disponíveis
e crescentes desigualdades socioeconômicas, a definição de
São áreas que se enquadram em um contexto de alta vulnerabilidade prioridades para a intervenção pública em territórios de alta vul-
social e, portanto, foram o foco da elaboração e desenvolvimento nerabilidade social é imperativa para a mitigação ou redução das
tanto de diagnósticos participativos com as comunidades locais assimetrias no acesso aos serviços urbanos;
como de projetos de integração de políticas setoriais, visando à
▸ Articular territorialmente as ações públicas e da sociedade civil: é
redução das desigualdades sociais urbanas. Ou seja, configura-se
crescente a demanda pela articulação de diferentes políticas públicas
um programa de Urbanismo Social — Intervenções Integradas
setoriais no território, de modo a evitar a fragmentação das ações
em Territórios Vulneráveis, tendo como objetivo estratégico a
públicas e potencializar os recursos e os resultados como forma
“implantação de modelo compartilhado de gestão entre a PMSP e
de gerar transformações estruturais nas áreas mais vulneráveis;
Sociedade Civil visando à melhoria da eficiência e à complementação
das políticas públicas em territórios de alta vulnerabilidade social, ▸ Participação comunitária em todas as etapas do processo:
a partir dos conceitos do Urbanismo Social”1. centralidade do território como elemento de identidade cultural
aglutinadora, possibilitando a interdisciplinaridade na formula-
O Pacto pelas Cidades Justas, em seu conjunto inédito atualmente ção, implementação e avaliação de intervenções relacionadas às
com quase trinta instituições do terceiro setor que de alguma diferentes dimensões da vida urbana.
maneira impactam o território em suas diferentes frentes de
▸ Implementar modelo de governança integrada e compartilhada
atuação, elaborou um Termo de Doação para a Prefeitura, com
na escala local: prevendo a participação da comunidade residente
toda a metodologia de trabalho, e também utiliza como diretrizes
e da sociedade civil organizada em todas as etapas do projeto, a
e referências os marcos legais atuais da cidade, como o Plano Di-
possibilidade de desenvolver formas de autogestão ou cogestão
retor Estratégico (PDE), a plataforma de monitoramento do PDE, os
de equipamentos e de construir pontes com diversos setores se
Planos de Ação das Subprefeituras, os Planos de Bairro e as Áreas
torna mais concreta. Também, deve-se proporcionar permanência
de Estruturação Local (AEL); os instrumentos de planejamento e
mais longa nos territórios, garantindo a continuidade dos projetos,
gestão orçamentária, o Programa de Metas, o PPA (Plano Plurianual),
mesmo com a alternância do governo, e mais flexibilidade diante
a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e a LOA (Lei Orçamentária
das dinâmicas dos bairros, pela agilidade de readequação das
Anual). Além disso, apoiam-se nas ações e nos investimentos em
ações conforme a necessidade.
políticas sociais e, principalmente, em equipamentos públicos de
grande impacto como os CEUs. ▸ Avaliar e monitorar impactos das políticas públicas: o impacto das
intervenções no território deve ser, sempre que possível, mensurado
Os princípios metodológicos do trabalho se baseiam em cinco por meio de indicadores. Essa mensuração busca confirmar se as
diretrizes principais, conforme segue2: relações causais entre atividades, resultados e impacto adotadas
no desenho das intervenções se confirmam na realidade. Caso as
intervenções realizadas no território não se traduzam, na prática,
em melhoria na qualidade de vida nos territórios, o planejamento
1  Idem. estabelecido inicialmente deverá ser revisto.
2  Conforme o Diagnóstico participativo para elaboração de Projetos de Integração
de Políticas Setoriais Visando ao DesenvolvimWento local — Produto 5: Relatório fi-
nal, Pacto pelas Cidades Justas, 2020.

354 355
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

A organização conjunta entre comunidade local, sociedade civil e Enquanto no primeiro caso as melhorias são feitas no entorno
poder público foi a chave para a construção de uma metodologia de um Centro de Educação Unificado (CEU), nos Territórios
bastante inovadora para o planejamento de intervenções urbanas para Educadores um conjunto de escolas são o ponto de partida
territórios em situação de vulnerabilidade, por meio de planos de ação das melhorias, com foco na primeira infância, intervindo nos
local. O Pacto pelas Cidades Justas apresentou como resultado desses percursos percorridos pelas crianças, contribuindo para o seu
diagnósticos e planejamento um relatório detalhado e completo para desenvolvimento cognitivo e motor.
servir de ferramenta e orientação à prefeitura na implementação de
políticas públicas de transformação nos três territórios citados com Nos Territórios Educadores e CEUs as intervenções têm o
metodologias replicáveis em outros contextos similares. objetivo de transformar a experiência de pais, cuidadores,
crianças, adolescentes e de toda a comunidade que vive e circula
Atualmente o programa está incluído de modo formal no âmbito pela área de intervenção. Para isso, são implementadas medidas
da prefeitura como uma como: reorganização do sistema viário para oferecer melhores
condições de trânsito e segurança aos pedestres, implantação
ação intersecretarial sob a coordenação técnica da SMUL de ciclovias e ciclofaixas, reforma e ampliação de calçadas,
(Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento) e melhorias de iluminação pública, arborização e instalação de
institucional da Secretaria de Governo (SGM), sendo que mobiliários urbanos, como bancos e playgrounds.
as secretarias da Educação (SME), Infraestrutura Urbana e
Obras (SIURB), Habitação (SEHAB), Saúde (SMS), Direitos
Humanos e Cidadania (SMDHC), Mobilidade e Trânsito METODOLOGIA
(SMT) e Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo
(SMDET) também fazem parte da iniciativa. Implantar dez Dentro de um contexto em que as políticas públicas sofrem com a
projetos de Urbanismo Social é a Meta 42 do Programa de descontinuidade nas trocas de gestão, a elaboração da metodologia
Metas 2021-2024. de projetos de urbanismo social para as áreas selecionadas em
São Paulo apoiou-se numa visão de integração e territorialização
Ou seja, há atualmente a expectativa de promoção de mais sete das políticas setoriais. Segundo o Pacto, elas devem somar-se a
territórios, além dos três iniciais. propostas de gestão participativa e compartilhada, garantindo
também mecanismos de financiamento para que os projetos se
Outra inovação criada pela prefeitura recentemente foi a incorpo- sustentem e se desenvolvam ao longo dos anos, permitindo que a
ração no programa de urbanismo social de duas outras ações, já população local tenha suporte e confiança no poder público e nos
existentes, os Territórios Educadores e Territórios CEU: atores envolvidos na elaboração das propostas.

Ambas as intervenções buscam qualificar o entorno de O diagrama a seguir mostra a metodologia adotada.
equipamentos públicos e educacionais, promover a segurança
viária nas rotas percorridas a pé, incentivar a micromobilidade e
promover o uso e a apropriação de espaços públicos. A diferença
entre eles é o núcleo propagador das intervenções urbanísticas.

356 357
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

DIAGRAMA: METODOLOGIA
As etapas do trabalho se dividem em três fases:

Fase 1_ Diagnóstico e levantamento


DIAGNÓSTICO TÉCNICO E BANCO DE DADOS DE
PARTICIPATIVO ATIVIDADES
▸ Diagnóstico técnico e participativo: identificação prévia de de-
mandas a partir da coleta de dados e indicadores socioterritoriais
3 grupos de ação local 9 temas
36 atividades participativas 33 ações estratégicas de caráter mais técnico, para subsidiar e complementar o diagnós-
47 indicadores de análise 128 atividades
tico participativo junto aos moradores e demais atores envolvidos
(prefeitura, profissionais e técnicos e entidades da sociedade civil),
estabelecendo as agendas prioritárias.
CARDÁPIO DE AÇÕES
(MACROTEMAS) ▸ Banco de dados de atividades: em complementação à etapa de
diagnóstico, foi realizado um levantamento das políticas públicas
setoriais — planejadas e/ou implementadas — ou de cada território
analisado para identificação das ações e programas, em anda-
PLANO URBANO PROGRAMAS SOCIAIS mento ou futuros, elaborados pelas secretarias do setor público
GOVERNANÇA
INTEGRADO INTEGRADOS com o objetivo de redução da vulnerabilidade socioespacial e das
INTEGRADA
2021-30 2021-30 desigualdades sobre os serviços e infraestruturas públicas. Os
principais eixos temáticos levantados foram:

→ Mobilidade e infraestrutura;

→ Vulnerabilidades sociais;

→ Acesso a serviços públicos;


PRIORIZAÇÃO
(A SER DESENVOLVIDO → Qualidade ambiental e habitação;
A PARTIR DE 2021)
→ Gestão territorial e governança local.

▸ Cardápio de ações: com o resultado posterior aos diagnósticos


técnico- participativos, somados à base de dados das atividades
identificadas, constituiu-se um conjunto de intervenções estra-
PLANO DE tégicas e atividade, alinhadas aos objetivos pré-selecionados de
OBSERVATÓRIO AVALIAÇÃO DE
AÇÃO LOCAL IMPACTO cada território. A partir da formulação desse cardápio, foi possível
2021-2024
37 indicadores estabelecer as diretrizes integradas de cada localidade.
de resultado

Fonte: Pacto pelas Cidades Justas. Produto 5 - Relatório Final, 2020. op.cit., adaptação: Núcleo de Urbanismo Social.

358 359
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

Fase 2_ Planejamento (2) custo; e (3) oportunidade (se está dentro de um contexto de
implementação facilitada pelas condições gerais que influenciam
▸ Plano Urbano Integrado (PUI): após a definição do referido no andamento do projeto/programa).
cardápio, a etapa seguinte constituiu a territorialização das ações
▸ Observatório local e avaliação de impacto: instrumento inovador
de cada área estudada — com a configuração de mapas para cada
para o modelo de governança que organiza entidades da socieda-
objetivo proposto —, que em conjunto formaram o PUI. Para além
de civil junto à população local numa colaboração para avaliar e
das ações localizadas pelos mapas, é realizado um detalhamento
monitorar a implementação do urbanismo social nos territórios. As
das atividades propostas para cada território, somado ao plane-
parcerias com as organizações sem fins lucrativos são elementos-
jamento estratégico sobre as demandas locais e suas prioridades.
-chave para a construção dessas estratégias de monitoramento,
▸ Programas Sociais Integrados: complementares às ações estra- com a coleta de dados periódicos e num período de longo prazo,
tégicas planejadas pelo PUI, as políticas públicas devem considerar pautados por parâmetros e indicadores de impacto1.
a diversidade das problemáticas enfrentadas pelas comunidades.
Dessa maneira, além dos projetos de estruturação urbana e quali-
ficação ambiental dos territórios, existe a preocupação de que as
ações estratégicas dos programas sociais promovam a qualificação
da vida das pessoas que habitam esses territórios, com ações que
vão desde a complementação de renda à segurança alimentar,
inclusão digital para capacitação profissional e empreendedorismo
e toda uma ativação do território por meio de atividades culturais
e de educação.

▸ Governança integrada: a boa governança sustenta-se em três


eixos principais. São eles: (1) planejamento compartilhado; (2) im-
plementação coerente e coordenada; e (3) accountability (prestação
de contas/transparência). A estrutura de governança deve incluir o
poder público, as entidades da sociedade civil e a população residente
nos processos de tomada de decisões e definição das propostas.

O PUI 2021-30 do Jardim Lapena e a promoção do urbanismo social criando uma


rede de articulações, rotas de caminhabilidade e conexões de espaços públicos e
Fase 3_ Implementação e avaliação/monitoramento equipamentos sociais, incluindo o Galpão ZL (Fundação Tide Setúbal) como referên-
cia. Fonte: Pacto pelas Cidades Justas. Produto 5 - Relatório Final, 2020.

▸ Planos de Ação: sua elaboração é realizada a partir da priori-


zação das ações propostas nos Planos Urbanos Integrados e nos
Programas Sociais Integrados, para colocar em prática as diretrizes
propostas em um período de tempo de médio prazo. Essas prio-
rizações devem partir das avaliações e consultas com a equipe
técnica, secretarias envolvidas e diretamente nos territórios diante 1  O Pacto pelas Cidades Justas utiliza como referência o estudo A lupa na cidade:
de três aspectos principais: (1) urgência e gravidade do problema; painel de indicadores de desenvolvimento sustentável de áreas urbanas vulnerá-
veis, desenvolvido pelo Insper Metricis (Núcleo para Medição de Impacto Socioam-
biental), sob o financiamento da Fundação Tide Setubal e do Itaú Social, 2020.
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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

A seguir pode-se visualizar os PUIs, cenário 2021-30, e as respectivas


ações estratégicas associadas a cada objetivo2

DIAGRAMA: PLANO URBANO INTEGRADO 2021-30

OBJETIVOS AÇÕES ESTRATÉGICAS

1. URBANIZAÇÃO DE ▸ regularização fundiária ▸ melhorias habitacionais


FAVELAS E RECUPERAÇÃO
▸ urbanização complexa ▸ provisão habitacional e moradia
AMBIENTAL
▸ urbanização pontual/gradual provisória

▸ zeladoria e controle urbanos

▸ ruas completas ▸ rede cicloviária


2. QUALIFICAÇÃO DA MOBI-
O PUI 2021-30 do Jardim Lapena e a promoção do urbanismo social criando uma
LIDADE E DE INFRAESTRU- ▸ ruas compartilhadas ▸ rede de drenagem
rede de articulações, rotas de caminhabilidade e conexões de espaços públicos e
TURA BÁSICA equipamentos sociais, incluindo o Galpão ZL (Fundação Tide Setúbal) como referên-
▸ ruas de brincar ▸ redes de saneamento básico
cia. Fonte: Stuchi & Leite Projetos.

3. INTEGRAÇÃO DO SIS- ▸ implantação e manutenção de ▸ ampliação das áreas verdes livres APLICAÇÃO
TEMA DE ÁREAS LIVRES E parques ▸ gestão de resíduos sólidos e
ESPAÇOS PÚBLICOS
▸ qualificação das áreas verdes e educação ambiental Toda a metodologia desenvolvida por meio do estudo elaborado
livres existentes pelo Pacto pelas Cidades Justas constitui uma ferramenta bastante
detalhada para a implementação de intervenções norteadas pelos
4. ESTRUTURAÇÃO DE objetivos do urbanismo social. Para os três territórios estudados
▸ qualificação dos equipamentos ▸ articulação do sistema de
REDE DE EQUIPAMENTOS E
existentes mobilidade foram desenvolvidos Planos Urbanos Integrados através de todo o
CENTRALIDADES LOCAIS
▸ fomento das vocações regionais ▸ articulação com sistema de áreas
processo descrito anteriormente, apoiados pelos Planos Municipais
articuladas às centralidades locais livres e projetos específicos de cada região, como o Perímetro de Ação
Integrada do Jardim Japão, Renova SP e Território CEU, no caso
do Novo Mundo; o projeto do Parque Pinheirinho d’Água e Terri-
5. DESTINAÇÃO DE ÁREAS ▸ identificação de áreas ociosas ▸ implementação do plano de áreas tório CEU, no caso do Pinheirinho; e o Plano de Bairro, projeto de
VAZIAS E OCIOSAS ociosas, em articulação ao plano
▸ elaboração de plano de gestão e caminhabilidade e projeto da praça do mutirão, no Jardim Lapena.
destinação das áreas ociosas urbano integrado

Recentemente, a Prefeitura de São Paulo escolheu o território do


Jardim Lapena, na zona leste da cidade, como o projeto piloto de
Fonte: Pacto pelas Cidades Justas. Produto 5 - Relatório Final, 2020. Op.cit. Adaptação: Núcleo de Urbanismo
Social.
Urbanismo Social. Em conjunto com a sociedade, foi construído um
Plano Urbano e Programa Social Integrado com 58 ações propostas
para o território nas áreas de infraestrutura urbana, educação,
saúde, cultura, desenvolvimento econômico, mobilidade e habitação.
2  Pacto pelas Cidades Justas. Produto 5 - Relatório Final, 2020. Op. cit.

362 363
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

PLANO DE BAIRRO DO mobilidade e espaços públicos, educação, saúde articulação de decisões com os órgãos que fazem
JARDIM PANTANAL: UMA e apoio às mulheres, que passaram a trabalhar a gestão das áreas da várzea do rio Tietê; a neces-
CONSTRUÇÃO COLETIVA EM com as principais demandas do território. Esses sidade de garantir uma área de amortecimento,
PROCESSO grupos, compostos pela comunidade e pelas desocupada e com vegetação de várzea, para
equipes das instituições parceiras, mapearam os respeitar o transbordamento natural do rio; a
O Plano de Bairro é um instrumento de planeja- respostas e formas de organizar as potencia- lugares de afeto, problemas e desafios a serem prevenção de tipologias residenciais compatíveis
mento urbano que busca identificar as necessi- lidades e desafios da vida cotidiana dos mora- enfrentados, sonhos e desejos, e passaram a com áreas sujeitas a alagamentos; e a realização
dades de um determinado território e planejar dores. Mais que um plano, que muitas vezes é debater tecnicamente as propostas e possibi- de projeto de drenagem, com intervenções no
as melhorias necessárias com a participação da “colocado na gaveta” e dispensado pelas futuras lidades de transformação do Jardim Pantanal. sistema viário e espaços públicos para mitigar
comunidade. O Plano de Bairro integra o Sistema administrações municipais, este foi pautado os efeitos dos alagamentos sobre a população.
Para cada ação necessária foram identificados
de Planejamento do Município de São Paulo, e na construção de um planejamento orgânico,
os caminhos de abordagem no campo da política Os desafios relacionados à mobilidade local e
foi instituído pelo Plano Diretor Municipal em que busca transformações no seu percurso e
pública e da organização social da comunidade, ao uso dos espaços públicos, que se articulam
2014, através da Lei 16.050, que determinou não apenas no seu produto. Um processo que
bem como os prazos de implantação, para que de forma direta com a questão ambiental, tam-
sua elaboração com a participação dos morado- busca a emancipação dos atores envolvidos,
até a conclusão da segunda etapa do Plano as bém tiveram protagonismo nos debates e na
res locais e com a participação dos Conselhos colocando-os como agentes responsáveis pela
demandas do Jardim Pantanal estejam detalha- construção de diretrizes com a comunidade. O
Participativos Municipais, visando a reserva de transformação do seu território.
das e pactuadas com a sociedade e com o poder Jardim Helena, onde está localizado o Jardim
recursos municipais e a sua introdução no Plano
O Jardim Pantanal está localizado no extremo público, e possam então ser implementadas. Pantanal, é o distrito com maior número de via-
de Metas do município.
leste da cidade de São Paulo, na várzea do Rio gens por bicicletas do município de São Paulo,
Enfrentar o impacto das águas sobre o território
A primeira fase do Plano de Bairro do Jardim Pan- Tietê, no distrito do Jardim Helena, Subprefei- segundo a pesquisa Origem e Destino (Pesquisa
do Jardim Pantanal e sobre sua população é
tanal, São Paulo, foi elaborada entre os anos de tura de São Miguel Paulista. Cerca de onze mil OD, desenvolvido pelo Metrô). A infraestrutura
um dos maiores desafios do Plano de Bairro, e
2020 e 2022, a partir de uma parceria do Instituto pessoas viviam no Jardim Pantanal em 2010, local, no entanto, é insuficiente para que esses
estamos ainda caminhando para encontrar as
de Arquitetos do Brasil — departamento de São segundo o Censo do IBGE, mas estima-se que ciclistas, e também os pedestres, se locomovam
melhores soluções e as possibilidades de viabili-
Paulo (IABsp) e do projeto Urbanizar, do Instituto esse número tenha aumentado bastante com com segurança e conforto, seja pela falta de
zá-las. Realizamos o monitoramento das chuvas
Alana. Mais que um processo de planejamento, o avanço da ocupação informal. O território é pavimentação e drenagem, seja pela desarticu-
com os moradores, ouvimos famílias e trabalha-
sua elaboração foi um exercício constante de emblemático por ter enfrentado inundações lação com o plano cicloviário municipal e com as
dores para compreender os desafios existentes,
escuta e aprendizado, ao buscar a aplicação constantes desde 2009, e há grandes desafios principais redes de transporte coletivo.
conversamos com muitos grupos de pesquisa e
dos princípios do Urbanismo Social em suas ambientais e urbanos a serem superados. Mas
técnicos especializados, nos informamos com O grupo de trabalho de mobilidade, debruça-
múltiplas vertentes: a construção um modelo de o cenário está em transformação, com a imple-
engenheiros experientes da Escola Politécnica do sobre estes desafios, desenhou caminhos e
governança compartilhada com a comunidade mentação das instalações de infraestrutura
da Universidade de São Paulo e do programa construiu propostas conjuntas, que passam pela
local, a busca por soluções sustentáveis ampara- de água e esgoto pela Sabesp (Companhia de
Soluções para Cidades da ABCP (Associação Bra- extensão do sistema cicloviário e suas conexões,
das na Agenda 2030, a organização urbanística Saneamento Básico do Estado de São Paulo) e
sileira de Cimento Portland), que nos ajudaram a melhorias das ciclovias existentes, ampliação dos
e social do território ancorada na reversão das o processo de regularização fundiária das áreas
elaborar as primeiras diretrizes preliminares de bicicletários e instalação de paraciclos, implan-
desigualdades e na oferta de oportunidades aos informais de parte do território, que acontecem
drenagem e mitigação dos efeitos das chuvas. tação de uma ciclorrota turística e ambiental e
moradores e trabalhadores locais. de forma paralela à articulação comunitária para
Dentre elas está a necessidade de integração também ações de mobilidade relacionadas com a
a elaboração do Plano de Bairro.
Esse “pensar junto” como metodologia base entre o planejamento das obras de saneamento, necessidade de geração de trabalho e renda para
da construção do Plano de Bairro do Jardim Para a elaboração do Plano, foram formados uma drenagem e reurbanização e regularização fun- a comunidade, como a implantação do Programa
Pantanal tem sido uma busca permanente por série de grupos de trabalho, como meio ambiente, diária para evitar a sobreposição de soluções; a Delivery Justo como política pública e a inclusão

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

do Projeto Bike Literária junto às bibliotecas das


escolas do Jardim Helena. Projetos pontuais
também foram detalhados, como a criação de
que busca transformações no percurso. Esse
planejamento busca, sobretudo, identificar a
articulação necessária entre os diversos setores
15.8_ URBANIZAÇÃO DE FAVELAS:
PROGRAMA FAVELA-BAIRRO,
RIO DE JANEIRO
uma rota segura, pontos de parada e acesso de da sociedade para que ações sejam viabilizadas.
passageiros para os automóveis de aplicativos, O Plano de Bairro, quando consolidado, será
que hoje não acessam o território com receio ferramenta de trabalho e de luta para todos PROGRAMA PROGRAMA
RIO DE JANEIRO FAVELA-BAIRRO FAVELA-BAIRRO
das enchentes ou da insegurança, e a criação aqueles que o construíram. Acreditamos que o (FASE I (FASE I

de estacionamentos comunitários para que os papel não é eterno, mas as ideias são, e a vontade
NÚMERO DE
763 70 88
moradores possam estacionar com segurança de um povo também. FAVELAS

sem adentrar as ruas sujeitas a alagamentos.


Convidamos você a pensar junto conosco cada Tabela: relação entre o número de favelas no Rio de Janeiro e os impactados do
programa Favela-Bairro.
Essas são algumas das necessidades dos terri- uma das ações que estão sendo propostas para
tórios que foram trabalhadas com a comunidade o Plano de Bairro do Jardim Pantanal!
para serem transformadas em propostas e po-
lítica públicas. Mensurar as ações, as respon-
sabilidades, os recursos e seus prazos, desde Para conhecer o Plano de Bairro do Jardim Pan-
o início, é fundamental para a consolidação tanal – Fase 1 na íntegra, acesse o link.
de um planejamento orgânico e não estático,

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Pacto pelas Cidades Justas. Diagnóstico participativo para elaboração de projetos


de integração de políticas setoriais visando ao desenvolvimento local — Produto 5:
Relatório final. Pacto pelas Cidades Justas: São Paulo, 2020.

▸ PMSP/Gestão Urbana. Urbanismo Social.

Ver ainda outros dois programas mais


recentes que sofrem alguma influência
do urbanismo social:

▸ Rede CUCA, Fortaleza;

▸ Vida Nova nas Grotas, Alagoas.


Mapa: Rio de Janeiro e a área de intervenção do Programa Favela-Bairro (laranja).
Fonte: Google Earth, edição própria.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

CONTEXTO E HISTÓRICO DO PROGRAMA DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA

O Programa Favela-Bairro surge dentro de um contexto de refor- Segundo o Proap-Rio3, o Programa Favela-Bairro objetiva “com-
mulação da política habitacional pela prefeitura do Rio de Janeiro, plementar ou construir a estrutura urbana principal (saneamento e
na década de 1990, com diretrizes elaboradas pelo novo Plano democratização de acessos) e oferecer condições ambientais de leitura
Diretor (19921), período em que 16% da população da cidade morava da favela como bairro da cidade”, tendo como metas “a integração
em favelas, aproximadamente 900 mil pessoas, segundo o censo social e a potencialização dos atributos internos das comunidades”. A
do IBGE de 19912. Com novo aparato institucional, por meio da Prefeitura do Rio de Janeiro acompanhou os projetos do Favela-Bairro
criação da Secretaria Municipal de Habitação (1994), as políticas por intermédio do IplanRio (empresa de tecnologia da informação e
habitacionais se direcionaram e se ampliaram para programas de comunicação), da Riourbe (Empresa Municipal de Urbanização) e da
urbanização de favelas e de regularização dos loteamentos. Secretaria Municipal de Habitação, porém adotou a terceirização dos
serviços de projetos, execução das obras e seu acompanhamento
Experiências anteriores, como o Projeto Mutirão (1984) e sua inter- técnico. Como previsto, o Programa não construiu unidades habitacio-
venção em 126 favelas para projetos de saneamento e acessibilidade nais, uma vez que seu foco era a realização de obras de infraestrutura
foram importantes para o apoio técnico ao Programa Favela-Bairro, (abertura de vias de acesso), obras de saneamento, eliminação das
mas a partir deste ampliou-se a concepção de integração da favela áreas de risco e implementação de equipamentos públicos (creches,
ao restante da cidade, considerando as demais infraestruturas quadras esportivas e praças). Destacam-se cinco critérios principais
para um programa de urbanização integral, como equipamentos para seleção das áreas de intervenção4:
públicos, espaços de lazer, iluminação pública, infraestrutura de
mobilidade, abastecimento de água e coleta de esgoto. ▸ dimensão da favela entre 500 e 2.500 domicílios;

▸ déficit da infraestrutura (porcentagem de domicílios com serviços


Considerado um caso de referência nacional e internacional, o
inadequados de água potável e esgotamento sanitário);
Programa Favela-Bairro (1993-2008) atendeu dezesseis favelas
utilizando recursos municipais até que, em 1997, passou a receber ▸ carência socioeconômica (média dos fatores: porcentagem de
investimentos do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) chefes de família com rendimento até um salário mínimo, porcen-
por intermédio do Programa de Urbanização de Assentamentos tagem de domicílios cujos chefes são analfabetos, porcentagem
Populares do Rio de Janeiro (Proap-Rio) e ampliou sua atuação para de domicílios chefiados por mulheres e porcentagem de crianças
mais territórios (70 favelas na fase I, e 88 favelas na fase II), incluindo de 0 a 4 anos);
também processos de regularização de loteamentos irregulares.
▸ graus de facilidade de urbanização (existência de infraestrutura
prévia e do custo e complexidade para implantá-la);

▸ dimensão estratégica (existência de programas complementares


já planejados).

3  Decreto nº 14.332, de 7 de novembro de 1995. Cria o Programa de Urbanização


de Assentamentos Populares do Rio de Janeiro PROAP-RIO, aprova o seu Regula-
1  O Plano Diretor de 1992 atualizou o parcelamento e o uso do solo, com a delimi- mento Operacional e dá outras providências.
tação e inclusão na malha urbana das Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS).
4  CARDOSO, Adauto Lucio. O Programa Favela-Bairro: uma avaliação. Rio de Janei-
2  SILVA, M. N.; CARDOSO, A. L.; DENALDI,, R. Urbanização de favelas no Brasil: ro: Universidade Federal do Rio de Janeiro e Instituto de Pesquisas e Planejamento
trajetórias de políticas municipais. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2022. Regional, 2005.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

15.8.1_ FAVELA-BAIRRO — DE PROJETO INOVADOR A conta a proximidade entre as favelas, a fim de evitar contrastes
MODELO DE POLÍTICA URBANA muito amplos entre comunidades vizinhas que fossem receber
o projeto. Assim, as favelas e os loteamentos irregulares6 foram
Por que um projeto se torna emblemático ranqueados numa lista de prioridades que prevaleceu durante
Poucos são os projetos que se tornam largamente conhecidos e todas as fases do programa.
reproduzidos. O Favela-Bairro é um deles. As razões para esse
reconhecimento podem ser atribuídas ao seu pioneirismo, à me- Planejamento prévio e participativo
todologia adotada e aos seus importantes resultados. Um dos aspectos mais importantes do programa foi o planeamento
das intervenções, realizado em consulta com cada comunidade.
Tudo começou em 1995, quando a Prefeitura do Rio de Janeiro e o Para cada favela foi contratado um estudo urbanístico, no qual eram
Banco Interamericano de Desenvolvimento iniciaram uma colaboração diagnosticadas características socioeconômicas das comunidades,
com o propósito de ampliar a escala de ações destinadas a atender detalhados os déficits existentes de infraestrutura e as ameaças
as comunidades carentes da cidade . Consistiam em intervenções
5
ambientais, entre outros aspectos. A partir desses diagnósticos era
pontuais, utilizando parcialmente a mão de obra da própria comunida- preparado um plano inicial de intervenção urbana. Esse processo
de, destinadas a melhorar as redes de água e os acessos às favelas. era efetuado em consulta e com intensa participação da comuni-
Essas ações se tornaram possíveis graças à mudança na perspectiva dade, especialmente na concepção das opções de localização de
municipal de que as favelas e outras categorias de ocupação urbana equipamentos sociais, áreas de lazer e outros aspectos de desenho
não poderiam mais ser ignoradas, já que aproximadamente 25% dos projetos. É importante destacar que, além do plano para as
dos domicílios na cidade eram informais: não constavam sequer intervenções de infraestrutura, era elaborado também um para a
dos mapas da cidade, não eram atendidos pelos serviços públicos, execução das ações sociais, visando coordenar as atividades de
não tinham endereços postais. O reconhecimento dado pelo Plano vários setores da prefeitura envolvidos na sua execução. Ele era
Diretor deu a largada para o planejamento de ações sistemáticas denominado Plano de Ações Sociais Integradas (PASI).
voltadas ao atendimento daquelas comunidades, que passaram a
contar com a parceria com o BID, no que seria o primeiro de três A meta básica dos projetos era levar água potável e ligação de
projetos denominados Favela-Bairro. esgoto a cada um dos domicílios da comunidade, além de acesso
seguro, seja por vias pavimentadas, seja por escadarias. Incluía
Seleção de favelas sistema de drenagem pluvial, iluminação pública dos logradouros,
Diante da dimensão do problema — de uma população de 5,5 milhões arborização, proteção contra deslizamento de encostas e inundações
na época, algo em torno de oitocentos mil se concentravam em e implantação de praças, áreas de lazer e de recreação. Quanto a
cerca de setecentas favelas, de vários tamanhos e características equipamentos sociais, cada projeto incluía pelo menos uma creche
geográficas distintas —, o primeiro desafio foi definir um critério por comunidade e a ampliação ou reforma das escolas e postos de
de priorização de tais conglomerados habitacionais, com base em saúde nas vizinhanças, quando necessário.
critérios técnicos. Para isso foi desenvolvido um sistema pontos que
consideraram três variáveis básicas: o déficit de infraestrutura, o
nível de pobreza (utilizando como proxi a percentagem de domicílios
liderados por mulheres) e uma variável estratégica que levava em

6  O programa atendeu também a loteamentos irregulares, aqueles que não tinham a


5  O Favela-Bairro foi implementado em três etapas, mediante financiamento do infraestrutura básica e outros requisitos necessários para obter autorização municipal.
BID e contrapartida municipal, totalizando US$ 900 milhões. Cerca de 20% dos recursos foram destinados à regularização desses loteamentos.
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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

Custo máximo por família reassentar famílias e, em certos casos, comércios construídos de
Quando se trabalha com comunidades de diferentes tamanhos e forma irregular, o que frequentemente representa uma dificuldade
necessidades de investimento, e ainda se contratam projetos urba- para a execução dos projetos. O tratamento dessas questões se
nos com diferentes firmas de arquitetura/urbanismo, é necessário faz com muita informação para as famílias, assegurando que elas
estabelecer um critério de investimento básico. No Favela-Bairro foi tenham uma alternativa residencial melhor e mais segura que a atual.
utilizado o do custo máximo de investimento por família. Para chegar
a esse parâmetro, foram preparados quatro projetos iniciais, em Assim, o programa não só construiu vários conjuntos habitacionais,
comunidades com diferentes características físicas (encostas, áreas sempre priorizando a sua localização nas cercanias das favelas de
planas etc.). Tais projetos incluíam as alternativas de investimento origem, como também ofereceu a alternativa da “compra assistida”,
de mínimo custo, ou seja, as mais eficientes para alcançar as metas que consiste na aquisição de imóveis dentro ou nas proximidades
desejadas em termos de cobertura de infraestrutura e serviços das comunidades e sua entrega às famílias reassentadas.
sociais. Com base nesses projetos, foi calculado o custo máximo
de investimento por família, ou seja, o volume de investimentos Regularização urbanística e fundiária
que seria aplicado a cada favela de acordo com sua população, Para completar o ciclo de regularização das comunidades são
estabelecendo um parâmetro de orientação para o desenho dos necessários dois estágios. Primeiro, a regularização urbanística,
projetos para todo o programa. que significa a incorporação das áreas faveladas (e os loteamentos
irregulares, quando for o caso) aos cadastros da cidade. Isso signi-
Execução integrada fica o reconhecimento das áreas ocupadas como parte da cidade, a
Uma vez que os planos de intervenção urbanística eram completados delimitação dos lotes e a identificação e numeração dos domicílios de
e validados pelas comunidades, a prefeitura efetuava a licitação cada comunidade. Esse processo veio a ser facilitado pela criação,
para as obras de infraestrutura e eventuais unidades habitacionais. por lei federal, das Zonas de Especial Interesse Social (ZEIS), o que
Um fator importante a destacar foi a orientação de que as obras permitia regularizar áreas com dimensões de vias públicas e lotes
em cada favela fossem contratadas com um só empreiteiro, o que distintos das normas municipais existentes.
assegurava tanto o planejamento integrado dessas ações como a
coordenação na execução das várias intervenções setoriais (redes A segunda etapa é a regularização fundiária de cada lote, o que
subterrâneas, pavimentação, iluminação pública etc.). As firmas implica a outorga de títulos de propriedade individuais aos seus
contratadas instalavam-se fisicamente e eram incentivadas a utilizar ocupantes (ou instrumentos equivalentes, como a concessão de
a mão de obra da própria comunidade. Isso facilitava bastante a direito de uso). Tal processo é bastante mais complexo e envolve a
sua operação e as relações com a população local. assistência jurídica aos beneficiários para a titulação, a participação
dos cartórios de registro de imóveis e intenso envolvimento dos
Reassentamento beneficiários. Requer a contratação de estudos cartográficos de
Um dos aspectos mais complexos dos projetos de melhoramento de cada comunidade, identificação da cadeia de propriedade e reunião
bairros se refere aos reassentamentos. As intervenções urbanas em de documentos que permitam identificar a ocupação dos imóveis
muitos casos requerem a abertura de vias de acesso para os serviços por mais de cinco anos, utilizando o instrumento do usucapião
públicos, como coleta de lixo, manutenção de drenagem ou mesmo urbano ou outras formas de aquisição de propriedade ou direito de
ambulâncias e bombeiros. Muitas vezes, também é necessário uso legal. Por tudo isso, os processos são lentos e, com frequência,
realocar domicílios situados em áreas sujeitas a deslizamento de ultrapassam o período de execução dos programas.
terra e outras situações de perigo. Isso implica a necessidade de

372 373
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

Avaliação sob o conceito de Programas Integrais de Melhoramento de Bairro


Várias avaliações foram efetuadas sobre o Favela-Bairro. Uma (PIMB). Esses programas foram adotados pela maioria dos países
das mais completas se baseou nos indicadores desenhados es- da América Latina, onde o BID atua, e fora da região, seja por
pecificamente no início do programa e utilizou a metodologia governos nacionais (Índia, África do Sul etc.), seja por autoridades
de diferenças-em-diferenças . Esse método implica medir uma
7
locais. São reconhecidos pelo Programa das Nações Unidas para o
série de indicadores nas comunidades que tiveram intervenções Habitat e por outras organizações multilaterais de financiamento
do programa e em um grupo de controle, consistindo em favelas e cooperação como uma forma eficaz de atuação na obtenção de
com características similares que não tenham essas intervenções. objetivos urbanos e sociais.
Esses indicadores são medidos antes e depois do programa, a
fim de comparar as diferenças entre os que integram cada grupo. Os PIMB, como o Favela-Bairro, têm demostrado que constituem
Nessa avaliação foram utilizados indicadores simples, ou seja, a estratégias eficazes para resolver não só problemas de urbanização
cobertura de cada um dos serviços e obras implementados pelo pro- informal como outros que atingem as comunidades carentes, afinal:
grama (água, esgoto, drenagem, acesso seguro etc.), e indicadores
compostos, em particular os de Integração Urbana (combinando o ▸ São instrumentos de política urbana, por enfrentar a dualidade
acesso a serviços públicos, equipamentos urbanos e conectividade nas condições de urbanização das diferentes partes das cidades,
à cidade), e o Índice de Desenvolvimento Social (acesso a serviços buscando integrá-las de maneira equitativa; nesse sentido, são
de saúde, nível educacional, renda familiar etc.). Outro indicador também instrumentos de política habitacional, ao contribuir para a
significativo foi o de valorização imobiliária, que representa um redução dos déficits qualitativos (carência de infraestrutura básica
proxi de benefícios ao refletir o conjunto de atributos externos dos domicílios), os mais frequentes registrados nos países pobres;
aos domicílios, que se traduzem na melhoria da qualidade do seu
▸ Seus impactos sobre a pobreza traduzem-se na atenção às
entorno e, consequentemente, no aumento seu valor de mercado.
necessidades não satisfeitas das comunidades, em termos de
infraestrutura básica, o que melhora a qualidade de vida e valoriza
Os resultados dessa e de outras avaliações foram geralmente
o patrimônio das famílias pobres residentes nesses territórios;
positivos (os detalhes ultrapassam o escopo deste capítulo), con-
sagrando a percepção de que os programas, via de regra, trazem ▸ Refletem também nas condições de salubridade e, consequen-
grandes benefícios à qualidade de vida das famílias residentes temente, nos indicadores de saúde da população residente nas
nas comunidades e conseguem integrá-las efetivamente ao seu áreas beneficiadas;
entorno urbano. As avaliações chamam a atenção, entretanto,
▸ Têm impactos ambientais, ao promover a segurança dos bairros e
para a necessidade de o governo municipal efetuar a manutenção
de seus habitantes mediante a proteção contra eventos climáticos
adequada da infraestrutura implantada e dar continuidade aos
extremos como inundações e deslizamentos de terra.
serviços e projetos sociais introduzidos pelos programas.

Conclusões Finalmente, cabe ressaltar que alguns dos problemas que afligem
A metodologia aplicada ao Favela-Bairro foi sendo aperfeiçoada as comunidades carentes não são diretamente solucionados pelos
e consolidada ao longo de vários projetos financiados pelo BID, programas de melhoramento de bairros. A questão da geração de
renda é um deles. Apesar de incluir iniciativas de geração de renda,
os PIMB não são desenhados como programas específicos dessa
7  Para saber mais, ver DE DUREN, Nora; OSORIO, Rene. Bairro: 10 anos depois. natureza. As melhorias nos territórios beneficiados são modos de
IABD, 2020.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

facilitar o acesso à educação e ao mercado de trabalho, mas não A cidade do século XXI não tem uma morfologia homogênea;
asseguram tais resultados. O mesmo ocorre com as situações tampouco resulta de um só ideário urbanístico. Tem variadas
de violência (ou sua percepção) nas comunidades, aspectos que, apresentações, formais e informais, legais e irregulares. Ainda
embora amenizados pela melhoria no entorno urbano e maior que nas cidades de países desenvolvidos os tempos históricos
integração ao restante da cidade, requerem ações mais complexas tenham conformado modelos próprios de urbanização, mesmo aí
que as melhorias físicas implementadas pelos PIMB. os tempos recentes constroem lugares diversos e em grande parte
em ambientes de segregação social, étnica e econômica. No nosso
15.8.2_ O FAVELA-BAIRRO E A REINVENÇÃO DA caso, a morfologia da cidade brasileira é majoritariamente resultante
CIDADE do esforço das famílias pobres, em processo de autoconstrução,
em loteamentos irregulares ou clandestinos de periferia, ou em
Sabemos que a cidade, como maior artefato da cultura, está em favelas distribuídas pela mancha ocupada pela cidade.
permanente construção. Mas a cidade do século XXI, quando a
humanidade se tornou majoritariamente urbana, e, no caso brasi- Assim, a cidade brasileira do século XXI ainda é lugar de alta
leiro, quando a quase totalidade da população vive nela, pede uma carência na oferta de infraestrutura e de serviços públicos. Nisso
nova compreensão sobre suas potencialidades e seus desafios. se inclui a escassez de Estado em áreas populares, implicando
adicionalmente um fenômeno recente: a dominação territorial
O quadro urbano e o urbanismo de favelas, loteamentos e conjuntos residenciais populares pela
As exigências relativas à provisão de infraestruturas e serviços bandidagem armada, submetendo suas populações e inviabilizando
públicos nas cidades cresceram exponencialmente; a cidade se a vigência da Constituição nesses territórios.
coloca no foco do enfrentamento da crise ambiental; tecnologias
de comunicação impactam os modos de interação social; o au- Mas tais áreas populares, em especial as favelas, têm se demons-
mento da desigualdade de renda exclui parcelas crescentes da trado também lugares de importante resistência político-cultural. E
população do acesso a bens e serviços urbanos; em contraponto, têm se expressado por diversos modos como parcela fundamental
a explicitação democrática dos direitos de cidadania conformam da vida pública nacional.
uma nova referência a ser atendida. Enfim, há uma realidade que
perpassa países e regiões e que se coloca imperiosamente em face Contribuição do Favela-Bairro
do urbanismo contemporâneo. É nesse contexto que se pode avaliar o significado e a contribuição
do Programa Favela-Bairro para a democratização da cidade do
A pandemia de covid-19 demonstrou a interdependência entre a Rio de Janeiro. E, por extensão, sua influência em outras cidades,
cidade e os elementos estruturadores do desenvolvimento global. daqui e do exterior, sendo expressivo o caso da Colômbia, bem
A ideia prevalecente de que a melhora da vida urbana só decorreria como de outros países da América Latina.
do crescimento econômico é contestada pela evidência de que
tal aumento pode até mesmo significar mais exclusão e piora dos Há muitos estudos e publicações sobre o Favela-Bairro (ver in-
indicadores urbanos. A cidade é coprotagonista no amplo campo dicações adiante). Contudo, devo registrar que o programa não
formador da vida social neste século, não é mera coadjuvante. nasceu por geração espontânea, pois foi fruto de décadas de luta
Tratá-la muito bem é condição para o bem-estar geral da sociedade de favelados e de parte da sociedade carioca contra a remoção de
em seus amplos componentes — econômicos, políticos, culturais favelas. Nasceu também pela revisão epistemológica do Urbanismo.
e, indiscutivelmente, ambientais. O reconhecimento das preexistências materiais e culturais das

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

favelas cariocas foi a pedra fundadora do Programa e, de certo Para tanto, foi indispensável o comprometimento de muitas pessoas
modo, foi contribuição pioneira ao urbanismo contemporâneo. O e instituições, da Prefeitura do Rio e da sociedade, não apenas
Favela-Bairro teve irmãos. Convém nomear a experiência do projeto a carioca, bem como das equipes de servidores municipais, dos
Guarapiranga, em São Paulo, sob condução da arquiteta Elisabete escritórios de arquitetura e urbanismo contratados por concursos
França, na prefeitura do município (ver adiante). públicos organizados pelo IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil),
das empresas construtoras e em especial das lideranças políticas
O objetivo central do Programa Favela-Bairro era dotar as favelas da cidade e comunitárias das favelas.
cariocas das condições de urbanização exigíveis pela cidade con-
temporânea. Essa tarefa se materializou com a implantação das Foi fundamental o apoio de instituições de financiamento: o BID,
infraestruturas de água, esgoto, drenagem, iluminação pública, a partir de dezembro de 1995; a União Europeia, a partir de abril
clara definição dos espaços públicos com abertura e pavimenta- de 1998; a Caixa Econômica Federal, a partir de julho de 1998.
ção de ruas, praças, caminhos e áreas esportivas, equipamentos Elas contribuíram com expertise e com recursos que englobaram
sociais de educação infantil, saúde familiar, geração de trabalho e cerca de 50% do investimento, sendo a outra metade decorrente
renda e garantia dos serviços públicos, inclusive de coleta de lixo do orçamento municipal, alcançando o total de R$ 1,5 bilhão nos
e de controle urbanístico, além de provisão de moradia para as programas da Política Habitacional no período.
famílias atingidas com as obras necessárias à urbanização. Foram
significativas a concepção e a promoção dos Postos de Orientação Também muito importante foi o reconhecimento de personalidades
Urbanística e Social, compostos por técnicos da prefeitura, para mundiais, cuja presença significou apoio político necessário à
regular a ocupação do solo e oferecer assistência técnica para quebra de arestas no âmbito local. Lembro as visitas da rainha da
melhora e reforma de moradias. Dinamarca, do presidente do Brasil, do primeiro-ministro holandês,
do presidente dos Estados Unidos e do rei do futebol, entre tantos.
Um caminho inovador O presidente do BID comprometeu-se a levar o Programa aos países
Como as favelas se apresentam com grande variedade morfológica, latino-americanos — e o fez.
não seria desejável a implantação de um modelo preestabelecido;
mas, ao contrário, o caminho foi o da explicitação de uma estrutura Desnecessário ressaltar que, em se tratando de administração
urbana que aflorasse do próprio assentamento e que pudesse ser pública, o êxito do Favela-Bairro decorreu da determinação e do
concebida em acordo com os próprios moradores. Essa estrutura apoio dos gestores municipais, tendo à frente os prefeitos Cesar
deveria buscar a interligação mais clara possível às estruturas Maia (1993-1996) e Luiz Paulo Conde (1997-2000).
dos bairros do entorno, de modo a criar uma rede urbana inter-
dependente. O poder do projeto
Neste Guia, que ressalta, com justiça, o valor do urbanismo, tenho
Implementação em ampla articulação que destacar que o processo de projeto arquitetônico-urbanístico
O Programa Favela-Bairro foi concebido em 1993, no âmbito da foi condição essencial para o bom trabalho no Favela-Bairro.
formulação da Política Habitacional da Cidade do Rio de Janeiro. Foram elaborados projetos completos e abrangentes de cada
Iniciou-se sua implementação logo a seguir, com a criação da favela, atitude pioneira, com ampla participação das lideranças
Secretaria de Habitação, da qual fui o titular desde 1993 até fins locais e dos moradores. Afirmamos, com convicção, que o desenho
do ano 2000. Nesse período, trabalhamos em 155 favelas, com 550 arquitetônico-urbanístico tem papel central para a articulação
mil habitantes. entre os diversos e eventualmente conflitantes interesses, seja

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

na comunidade, seja no governo, e que tal articulação potencializa descontinuidade das políticas públicas. Mas, no nosso caso, é
os esforços de todos. fator determinante para a inclusão social de milhões de brasileiros
e para a garantia dos direitos de plena cidadania previstos em
São exemplos expressivos o Favela-Bairro Parque Royal, na Ilha do nossa Constituição.
Governador; o Favela-Bairro Fernão Cardim, no bairro de Pilares; o
Favela-Bairro Burity-Congonhas, em Madureira; entre muitos outros. Assim, dotar os assentamentos populares dos requisitos sociour-
bano-ambientais exigidos pela vida contemporânea é instrumento
▸ O projeto do Parque Royal, de autoria do escritório Archi5, poderoso, e mesmo indispensável, para o próprio desenvolvimento
articulou a favela e seu entorno, deu condições para implantar do país. Ademais, está plenamente demonstrada a viabilidade
a estrada Canárias-Tubiacanga, de interesse para toda a Ilha do técnica, política e econômica da urbanização, como se viu com o
Governador e que estava projetada havia décadas sem sucesso; Programa Favela-Bairro.
definiu os limites de ocupação sobre a Baía de Guanabara, com a
eliminação das palafitas e a construção de moradias assistidas; Reconhecer as preexistências ambientais e culturais, expressas
abriu vias internas à favela, permitindo o acesso público e a criação nas diversas formas de cidade, é compreender a cidade con-
e formalização de inúmeras atividades comerciais e de serviços, temporânea em sua ampla complexidade e permitir que suas
um case de sucesso estudado por encomenda do BID; entre os potencialidades sejam exercidas. Em benefício da garantia da
demais requisitos comuns ao Programa; interação social, da equidade urbana e da defesa do Planeta,
esse movimento pode representar uma reinvenção da cidade.
▸ O projeto de Fernão Cardim, de PAA-Jáuregui / H. Casé, permitiu
Felizmente, como sabemos, para isso o Urbanismo contemporâneo
equacionar um grave problema de saneamento e de enchentes da
é bom parceiro: sem ser dogmático nem autossuficiente, ele tem
região, com a construção da canalização do rio que atravessava a
a dimensão da participação cidadã e institucional como base para
favela; inverteu o acesso à favela, antes nos fundos da área, depois
o seu melhor desempenho.
voltada para a avenida principal do bairro e ruas adjacentes. Ao
visitar Fernão Cardim, constatando a plena integração urbanística
decorrente do projeto, o escritor Millôr Fernandes perguntou: onde
é o limite entre a favela e o bairro?
!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ O projeto Burity-Congonhas/Complexo do Sapê, também do ▸ Capítulo 2.

escritório Archi5, caracterizou-se por ampla articulação com as ▸ CARDOSO, A. L. O Programa Favela-Bairro: uma avaliação. Rio de Janeiro:
favelas lindeiras e com o bairro de Madureira. Em especial, permitiu Universidade Federal do Rio de Janeiro e Instituto de Pesquisas e Planejamento
Regional, 2005.
a preservação e a ampliação das áreas florestadas a montante,
▸ CONDE, Luiz Paulo; MAGALHÃES, Sérgio. Favela-Bairro: uma outra história do Rio
criando-se um parque de interesse para a região.
de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. Rio Books, 2004.

▸ BRAKARZ, J.; ENGEL, W. Favela-Bairro: scaled up urban development in Brazil.


IADB, 2004.
Cidade e cidadania
A construção de cidades com maior equidade depende da uni- ▸ ROJAS, Edward (ed.). Construindo cidades: requalificação de bairros e qualidade
de vida urbana. IADB, 2010.
versalização das infraestruturas e serviços públicos a partir da
▸ JAITMAN, Laura; BRAKARZ, Jose. Evaluation of slum upgrading programs:
realidade urbana que está posta. A urbanização das favelas é um
literature review and methodological approaches. IADB, 2013.
dos caminhos, testado, aprovado, e que, infelizmente, sofre pela

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

15.9_
PROGRAMA MANANCIAIS, A urbanização de favelas passou a integrar as agendas públicas dos
SÃO PAULO governos municipais a partir dos anos 1980, com ações relevantes
para enfrentar a cristalina realidade brasileira — um país cada vez
mais urbano e com níveis crescentes de precariedade. Programas
como o citado Favela-Bairro, no Rio de Janeiro, Guarapiranga, em
São Paulo, bem como o de Alagados, em Salvador, ganharam natural
destaque, pois propunham uma nova abordagem para a questão
das favelas: sua integração urbanística como suporte básico para
ÁREA DE
SÃO PAULO PROTEÇÃO DOS
BACIA
BACIA BILLING o desenvolvimento social e para as condições de habitabilidade
GUARAPIRANGA
MANANCIAIS
dos bairros precários. Todos eles tinham como preocupação
POPULAÇÃO
(HAB)
12,3 milhões 2,3 milhões 1,16 milhões 1,14 milhões central o respeito à cidade construída, suas preexistências, e
aos investimentos realizados pelos mais pobres, mesmo que de
Fonte: Programa Mananciais, PMSP, 2022
maneira não regular e formal.

Os projetos foram elaborados pelas equipes técnicas como um


constante processo de mediações e readequações, em função das
características de cada assentamento e das reivindicações dos
moradores. A diversidade cultural das comunidades, aliada aos
processos de participação democrática na definição dos rumos
dos planos urbanísticos, contribuíram para garantir a diversidade
das intervenções.

No conjunto dessas intervenções, destacava-se uma diretriz compar-


tilhada à época: a centralidade da qualificação dos espaços públicos,
de modo a assegurar o respeito às preexistências ambientais e
culturais e a diluição das fronteiras urbanísticas simbólicas entre a
área antes marginal e o bairro formal de seu vizinho. Para os mora-
dores, o acesso às qualidades e benefícios reconhecidos, até então
na cidade formal, elevava-os a uma nova condição de cidadania.

Projetos que apresentaram bons resultados na melhoria da quali-


dade de vida dos moradores de favelas, premiados por organismos
DEMARCAÇÃO FAVELAS
nacionais e internacionais, foram sendo abandonados à medida que
um novo programa habitacional se tornava hegemônico no país a
partir da década de 2010 — o Minha Casa Minha Vida. Centrado
na produção habitacional em grande escala, permitindo, em seu
início, ações integradas de urbanização e construção de novas
Mapa: São Paulo e as bacias Guarapiranga e Billings (em branco), com as demarcações de favelas (em vermelho).
unidades, o MCMV rapidamente se concentrou apenas na produção
Fonte: Google Earth, edição própria.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

de novos conjuntos habitacionais, não conectados às necessidades ▸ Adotar um modelo de gestão transparente, no qual todos os
da precariedade urbana brasileira. setores da sociedade tenham acesso à informação a partir da
aceitação dos mais inovadores instrumentos disponíveis, bem
Mais recentemente, e também como uma das consequências da como da implantação de sistemas de monitoramento e avaliação
pandemia de covid-19, descortinou-se, para o conjunto da sociedade de resultados;
brasileira, a triste realidade urbana das favelas: a inexistência
▸ Implementar um plano de pós-ocupação para garantir a ma-
ou precariedade das redes de saneamento básico (quase cem
nutenção das redes, serviços públicos, áreas verdes e parques;
milhões de moradias), a dificuldade de acesso a água potável (35
milhões de residências) e o adensamento nas habitações, que não ▸ Como etapa final, implementar um plano de regularização
permitiram o tão necessário distanciamento social na fase mais fundiária que garanta o acesso legal à moradia, coroando o longo
aguda da doença. Essa precariedade urbana foi acompanhada por processo da urbanização.
uma enorme crise econômica, que teve como resultado o aumento
Todas essas recomendações têm como pressuposto a participação
dos índices de pobreza no país.
dos moradores, de suas lideranças e da sociedade civil, em todas
as etapas do projeto.
Como resultado, o debate sobre os programas de urbanização
de favelas volta à pauta, agora com formatos que resultam de
Com foco nas lições aprendidas, a Prefeitura de São Paulo retomou
um conjunto de revisões e avaliações dos projetos anteriores.
o Programa Mananciais, a partir de 2020, visando concluir contratos
O estudo das experiências clássicas de urbanização de favelas,
assinados em 2011. Nessa etapa, o Programa Mananciais está implan-
como o Favela-Bairro e o Programa Mananciais, de São Paulo (nas
tando obras de urbanização que beneficiaram cerca de 28 mil famílias,
primeiras fases), reforçou a ideia de possibilidades e limites da ação
bem como a construção de oito mil novas unidades habitacionais para o
pública. Muitas são as lições aprendidas com os acertos e erros
reassentamento dos moradores que se encontram em situação de risco
dos projetos elencados, que contribuem para o aprimoramento dos
e em frentes de obras. Também está sendo implantado um conjunto
programas atuais e para o aperfeiçoamento das políticas públicas
de parques e espaços públicos ao longo dos córregos que chegam às
relacionadas ao tema da habitação.
represas, bem como ao longo das duas represas da região, de modo a
transformar o território antes precário em áreas de lazer. Respondendo
Diante dos desafios que se apresentam para as cidades no século
às demandas da comunidade, uma série de equipamentos públicos
XXI, em especial para aqueles que vão trabalhar em programas de
faz parte do programa da urbanização, como creches, unidades de
urbanização, listamos aqui algumas recomendações:
saúde e unidades de capacitação para o emprego, entre outros.

▸ Incorporar a questão ambiental como componente central das


Parte importante do orçamento municipal vem sendo utilizada para
intervenções, reconhecendo que o esgotamento dos recursos natu-
desenvolver essas intervenções, que recebem aportes dos fundos
rais traz consequências catastróficas para quem vive nas cidades;
municipais Fundurb e FMSAI1, bem como recursos das parcerias com
▸ Implementar ações multissetoriais baseadas na integração o governo do estado, por meio da SABESP e da CDHU2.
institucional como uma nova cultura que se impõe às políticas
públicas, de forma a permitir agilidade, complementaridade e 1  FUNDURB: Fundo de Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de São Paulo; FM-
otimização de recursos técnicos e financeiros; SAI: Fundo Municipal de Saneamento Ambiental e Infraestrutura instituído junto à
SEHAB (Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo).

2  SABESP: Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo; CDHU:


Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

A urbanização de favelas é desenvolvida em várias etapas, que se


integram em diversos momentos. De maneira simplificada, elas
podem ser anunciadas assim:

▸ Levantamentos da área, adotando-se aqui o território da bacia


hidrográfica;

▸ Elaboração do plano urbanístico;

▸ Elaboração de projetos básicos e executivos, compreendendo


todas as disciplinas complementares;

▸ Implantação das obras;

▸ Elaboração do plano de regularização fundiária.

Em cada uma dessas etapas, o trabalho social participa na or-


ganização das comunidades para que sejam protagonistas nas
decisões de projetos.

Na ilustração a seguir há a sistematização das várias etapas de


trabalho que conformam um projeto de urbanização de favelas e
que resumem os esforços em curso das equipes técnicas envolvidas
no desenvolvimento do Programa Mananciais:

Fonte: Programa Mananciais, PMSP, 2022

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

PROJETO PARQUE CANTINHO DO CÉU e obras e programa de adequação urbanística, habitacional e


ambiental do território;
O projeto Parque Cantinho do Céu faz parte do Programa Manan-
▸ Planejamento social;
ciais da Secretaria Municipal da Habitação da capital paulista,
que teve início na década de 1990, visando ações de urbanização ▸ Lançamento de edital para contratação das obras;
e regularização fundiária de assentamentos precários (favelas e
▸ Contratação do projeto executivo pela incorporadora;
loteamentos irregulares), localizados na bacia hidrográfica das
represas Guarapiranga e Billings. ▸ Desenvolvimento do projeto e início de obras.

Após sua inauguração, a iniciativa se tornou oficialmente um parque


O Cantinho do Céu está localizado às margens da Billings, no extremo
da cidade de São Paulo. Assim, sua administração, manutenção e
sul do município de São Paulo, no distrito de Grajaú, onde existe
limpeza são realizadas pelo Departamento de Parques e Áreas Verdes
uma comunidade de aproximadamente dez mil famílias (trinta mil
(Depave), da Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente (SVMA).
moradores), contexto no qual se encontram habitações e ocupações
irregulares e uma enorme carência de espaços públicos e de infraes-
O desenvolvimento do projeto com a participação da comunidade
trutura básica, compreendendo uma área de cerca de 1.500.000 m².
local mostrou-se essencial para o reconhecimento dos moradores
sobre seu próprio território. De acordo com o escritório de arquitetura
Considerado um projeto emblemático pela extensão de sua inter-
responsável — Boldarini Arquitetos Associados —, a reaproximação
venção e pela estruturação de um planejamento social efetivo, o
das pessoas às margens da represa e o reconhecimento daquela
desenvolvimento do programa envolveu a população, principalmente
paisagem como familiar foram muito importantes para sua apro-
devido à condição de risco de algumas famílias, que acabaram sendo
priação como espaço de lazer, onde antes predominava o abandono.
removidas. Desde sua concepção, o projeto do parque pretendeu
realizar o menor número possível de remoções, concentrando tais
Como paradigma dos processos de reurbanização de favelas
ações apenas em áreas comprometidas ou em Áreas de Preservação
anteriores à década de 1990, marcados por intensas remoções de
Permanente (APP).
famílias, o Cantinho do Céu se insere em uma política pública de
recuperação urbana de territórios em situação de vulnerabilidade
Iniciado em 2008, parte do programa foi concluída no ano de 2012,
por meio de melhorias urbanas, infraestrutura básica e equipamen-
e ainda hoje existem etapas de sua expansão em construção, en-
tos públicos, reinserindo áreas marginalizados no direito à cidade.
globando infraestruturas como pavimentação, drenagem, parque
linear (com 7 km de extensão) e equipamentos de esporte e lazer
Por suas diversas inovações, com destaque aos espaços públicos
(quadras poliesportivas, playground, anfiteatros e academias ao
de alta qualidade impontados às margens da represa, o projeto
ar livre, pistas de skate, píer etc.). Para sua implementação, foram
ganhou o prêmio Future Cities: Planning for the 90 per cent, da
consideradas sete etapas principais:
Bienal de Arquitetura de Veneza em 2012.

▸ Delimitação das áreas de intervenção prioritárias;


O desafio que se instala hoje é em relação a manutenção e a ad-
▸ Diretrizes para urbanização: manutenção da população; ministração do parque e a sustentação da qualidade do ambiente
construído a longo prazo. Segundo a opinião dos idealizadores
▸ Desenvolvimento do Projeto Básico: estudo e diagnóstico da
do projeto, publicada na revista Vitruvius, a presença do poder
área, propostas de soluções e diretrizes na elaboração de projetos

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

público na região é condição fundamental para a manutenção da


integração do bairro à cidade propiciada pelo projeto. Portanto,
é necessária uma permanente articulação entre todos os atores
envolvidos na transformação do território, tal como se prevê em
projetos de urbanismo social, com suas estratégias de atuação
integral e participativa, desde o planejamento e o diagnóstico até
os processos de gestão, manutenção e monitoramento.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Boldarini Arquitetos Associados. Cantinho do Céu.

▸ ALVIM, Angélica. Direito à cidade e ao ambiente na metrópole contemporânea: o


projeto “Cantinho do Céu” na represa Billings. São Paulo: Arquitextos, 2011.

▸ Urbanização do Complexo Cantinho do Céu — Boldarini Arquitetura e


Urbanismo.

O projeto premiado Cantinho do Céu, parte do Programa Mananciais, desenvolvido pela Sehab da Prefeitura de
São Paulo, dá oportunidade para a comunidade local vivenciar as margens da represa, dentre vários espaços pú-
blicos de alta qualidade promovidos neste território na periferia sul da cidade.
Fotos: Heloísa Takahama.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

PARQUE NOVO SANTO AMARO V: Liberariam faixas de proteção ambiental e funcionariam como
HABITAÇÃO-ESTRUTURA suportes às atividades comerciais e de serviços que passariam a
abrigar, além de serem articulações para as conexões de cotas, as
O projeto Parque Novo Santo Amaro V representa um enfrentamento quais surgiriam de suas “vias elevadas”. Uma estrutura-embrião,
da questão das ocupações irregulares na área de mananciais da que poderia ser entendida como gênese/matriz da ocupação de
cidade de São Paulo com uma proposta que articula diferentes cotas um território especial.
(alturas), valoriza e cria centralidades e elabora tipologias habitacio-
nais que contribuam para a estruturação de elementos da cidade, O Parque Novo Santo Amaro V constitui um dos desafios mais
alterando as ocupações inadequadas de fundos de vale e encostas. emergentes: a ocupação dos mananciais já está reconhecidamente
dada, muito por conta da omissão e permissividade do Estado. Só
Uma das questões iniciais quando do enfrentamento desse trecho na região da Guarapiranga vivem mais de 1 milhão de pessoas.
da enorme área de proteção aos mananciais da cidade de São Paulo A reestruturação, que criou condições reais de habitabilidade e
ocupada indevidamente de que algumas propostas estruturais recuperação ambiental, por meio de espaços públicos, acabou se
pudessem ser referência para uma ação no território contínuo configurando como um dos desafios no sentido de se converter
daquela região (Subprefeitura do M’Boi-Mirim). em cidade aquela grande mancha espraiada de habitações e ruas.

A ocupação irregular espraiou-se e acabou caracterizando, ainda Sublinhe-se que a área do Parque Novo Santo Amaro tem topografia
que sob o viés da pressão econômica, o que Milton Santos1 chamou acidentada, fundos de vale ocupados, casas autoconstruídas — em
de território das “horizontalidades”, dos “lugares contíguos reunidos muitos casos em situação de risco —, raros equipamentos públicos
por uma continuidade territorial” (o conceito de horizontalidade e ligações viárias descontínuas. É de propriedade municipal e foi
está ligado à ideia de resistência. As ocupações não deixam de ocupada a partir da década de 1980.
ser uma possibilidade nesse sentido).
As edificações habitacionais, de vários pavimentos, apresentam
Justamente por conta de a construção desse território dar-se assim, uma lógica clara de implantação: confrontam as ruas, ocupam as
como uma “revanche” da população pobre em face dos interesses encostas em desnível — adaptando-se a elas — e apresentam uma
econômicos hegemônicos2, é que uma hipótese de estruturação, elevação posterior ao fundo de vale. Essas elevações posteriores
mais abrangente e que poderia vir a ser sistêmica deveria ser são muito mais precárias do ponto de vista construtivo que as
perseguida (sempre resguardando o tema da proteção ambiental). frontais. As que dão frente para as ruas têm algum tipo de cuidado
construtivo, além de incluírem atividades de comércio e serviço,
No projeto para o Parque Novo Santo Amaro V, do mesmo modo conformando uma urbanidade possível àquelas condições.
como se esboçou no Boulevard da Paz , levantou-se uma hipótese
3

nessa direção: edifícios habitacionais seriam pensados como es- À medida que vamos nos aproximando das cotas mais baixas, mais
truturas que articulam topografia e vale (as linhas d’água) às vias provisórias são as construções e piores as condições sanitárias (o
e poderiam acontecer ao longo de toda a área a ser urbanizada. córrego é um canal de esgoto a céu aberto).

1  SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993. As conexões entre as cotas acontecem tendo-se que vencer todo
2  Idem. o desnível. Para se passar de uma das bordas da área à outra, com
3  Boulevard da Paz é outro projeto do Programa Mananciais, também desenvolvi- cotas semelhantes, só existia a alternativa de descer até o fundo de
do por Vigliecca & Associados.
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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

vale e novamente subir a encosta. Dado que alguns dos elementos Dessa maneira foi projetada a lâmina habitacional: “serpenteando”
urbanos catalisadores, como a escola, por exemplo, situam-se em a área, ela se dispõe junto às cotas altas, abriga o comércio, onde
uma dessas cotas altas, o trajeto das crianças que moram na borda toca o térreo, cria frontalidade para o campo de futebol (reposi-
oposta acabava se dando de maneira indevida, por entre a área cionado e acrescido de equipamentos complementares), ampara a
mais precária e com desafios topográficos significativos. área de fundo de vale e funciona como suporte das transposições
transversais, que se dão a partir dos pórticos de acesso ao parque
A referida escola, com sua quadra, um equipamento do Estado, de fundo de vale. Ou seja, as edificações laminares propostas,
representava uma das centralidades urbanas existentes por ali. A alinhadas às ruas, viabilizam diferentes acessos, dada a topografia,
outra, um campo de futebol, estava no outro extremo, se considerado e incluem uma “via elevada”, resultado, em alguns momentos, da
o percurso longitudinal ao longo da linha d’água. concordância entre o edifício e uma cota real do terreno. Por isso,
são também pontos de apoio às transposições.
A partir dessas constatações e observações construiu-se uma
formulação de projeto que articulava preexistências — habitacionais, Uma linha de espelhos d’água e uma pista de skate recompuseram
de equipamentos e de percursos — às novas estruturas propostas. a área de fundo de vale e de nascentes, dada a impossibilidade de
manter o córrego a céu aberto. Alterou-se, dessa forma, a carac-
Para conformação de um partido, considerou-se aquilo que já terística de fundos e de desvalorização da paisagem do córrego.
apresentava uma interação clara entre a ocupação informal e os
elementos de uma reconhecida urbanidade e introduziram-se O grande edifício, que se desdobra pela área tangenciando de modo
escalas, arquiteturas e espaços públicos que buscaram enfrentar diferente as estruturas urbanas preexistentes, coloca a discussão
a ausência de cidade e o território ambientalmente frágil. da escala. Habitação como cotidianidade e habitação como exceção,
monumento. Se considerarmos que a maior porcentagem do tecido
Desse modo, muito das casas construídas nas bordas do perímetro das cidades corresponde à habitação, considerá-la como uma po-
da área, voltadas para as ruas, foram mantidas e as das encostas e tente estrutura na constituição de lugares de precária urbanidade
da várzea é que seriam substituídas. Aqui, não parecia mais estar parece um recurso desejável. Essa foi a hipótese colocada pelo
colocada a hipótese da tipologia do edifício convencional (caixa projeto para o Parque Novo Santo Amaro.
de escada, circulação horizontal, unidades habitacionais) como
suficiente ao enfrentamento de área conformada de maneira tão
distante da experiência urbana formal.

Parecia ser necessário que se pensasse não mais exatamente


em uma tipologia convencional, mas em um edifício que pudesse
funcionar como uma “estrutura urbana”. Ou seja, que incluísse no
seu programa, em sua espacialidade, itens que contribuíssem para a
dinâmica da rua, para as transposições de cota, que abrigassem os
equipamentos coletivos e públicos, que configurassem paisagem,
que permitissem unidades habitacionais diversas para os diferentes
arranjos familiares, entre outros aspectos.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

15.10_ ILHA DE DEUS,


RECIFE

RECIFE ILHA DE DEUS

ÁREA (KM2) 218 0,052

POPULAÇÃO 1.200
1.537.704
(HAB) (estimada em 2007)

Fonte: Diagonal.

Foto: Leonardo Finotti.

Cabe-nos, agora, atenção em face dos desdobramentos dessa proposta quando considerado
o tempo histórico, que atribui densidade e sentido à experiência humana nos ambientes
construídos das cidades1.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ RUBANO, Lizete M. (org.). O terceiro território: habitação coletiva e cidade. São


Paulo: Vigliecca & Associados, 2015.

▸ Vigliecca & Associados. Parque Novo Santo Amaro.

▸ Programa Mananciais.

▸ FRANÇA, Elisabete. Favelas em São Paulo (1980-2008): das propostas de


desfavelamento aos projetos de urbanização: a experiência do programa
Guarapiranga. Tese (Doutorado) — FAU-Mackenzie, São Paulo, 2009.

Mapa: Recife e Ilha de Deus (laranja).


1  RUBANO, Lizete M. (org.). O terceiro território: habitação coletiva e cidade. São Paulo: Vigliecca & Associados, 2015. Fonte: Google Earth, edição própria.
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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

O exemplo da intervenção Ilha de Deus abrange a maior parte das Infraestrutura da Cidade do Recife, transformando-se na Zeis Ilha
dimensões trabalhadas em urbanismo social. Envolveu a participa- de Deus. Em 2001, as Zonas Especiais de Interesse Social foram
ção da comunidade de modo deliberativo em todos os processos incorporadas ao Estatuto da Cidade, tornando-se um importante
do trabalho, desde o diagnóstico, definição e acompanhamento instrumento urbanístico para os municípios brasileiros.
do projeto urbanístico até as obras, a articulação dos programas
sociais e as estratégias de desenvolvimento local. PROJETO

HISTÓRIA Assim como as demais áreas pobres e ribeirinhas da cidade de


Recife, a comunidade da Ilha de Deus surgiu como uma ocupação
A história dos aterros dos mangues de Recife remonta à época espontânea em terras alheias, sem traçado urbano planejado,
do domínio holandês, no século XVII. A ocupação holandesa foi infraestrutura básica ou serviços instalados, com a construção
responsável por várias transformações na então vila, inclusive de moradias, em sua maioria, em forma de palafitas localizadas
urbanísticas, dentre as quais a construção de diques, drenagens, sobre as águas.
canais e obras sanitárias. Após a saída dos invasores, o crescimento
de Recife continuou sobre o ambiente do manguezal, sendo o rio Em janeiro de 2007, o governo do estado de Pernambuco anunciou
Capibaribe um importante sistema de mobilidade fluvial. Esse as obras de urbanização para o fornecimento de infraestrutura
modelo de expansão pela mobilidade fluvial aumentou a demanda destinado à comunidade já consolidada da Ilha de Deus, apre-
por terras, intensificando os aterros dos mangues. sentando um projeto piloto para o desenvolvimento da área de
intervenção. O programa, Projeto de urbanização na comunidade
No início do século XXI, a ocupação das áreas alagadas pela popu- de Ilha de Deus, foi iniciado no mesmo ano, a partir da realização
lação menos favorecida já era visível na paisagem da cidade e, até de um diagnóstico do território, e executado em parceria com a
mesmo com a política de erradicação dos mocambos, os manguezais Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da Universidade Federal
continuavam sendo ocupados. Os moradores expulsos buscavam de Pernambuco (Fade) e pela empresa de consultoria Diagonal, por
reconstruir suas casas em outros manguezais, mais distantes da meio de contrato com a Secretaria de Planejamento e Gestão do
vista da política sanitarista. Então, já a partir da década de 1940, o Estado de Pernambuco (Seplag-PE). Em seguida, entre os anos de
manguezal do Pina passou a sofrer grande especulação imobiliária 2009 e 2016, a Diagonal assumiu, por meio de licitação, o Processo
e parte da população de pescadores iniciou a ocupação de suas de Urbanização Integrado e Participativo da Ilha de Deus e também
margens, incluindo a Ilha de Deus. o gerenciamento do Plano de Ação Integrado de Investimentos da
Zeis Ilha de Deus.
Posteriormente, nos anos 1980, o Movimento Popular do Recife e
a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife Atualmente, a Ilha de Deus se consolidou como destino de turismo
apresentaram um projeto de lei denominado Plano de Regularização criativo e de base comunitária da região metropolitana de Recife,
das Zonas Especiais de Interesse Social (Prezeis), previstas na Lei sendo o trabalho de urbanização lá efetuado um exemplo bem-su-
de Uso e Ocupação do Solo no Recife (Luos) — Lei nº 14.511/1983. cedido do que pode ser feito por meio da política pública.
As organizações conseguiram que a gestão municipal de Recife
inaugurasse o modelo de efetivação e proteção das referidas áreas,
denominadas Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis). Assim,
em 1995, a Ilha de Deus passou a fazer parte do Plano Global de

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

Vistas aéreas da Ilha de Deus antes (a esquerda) e depois (a direita) da intervenção.


Fotos: Diagonal

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

METODOLOGIA ▸ Volume 4: Mapas temáticos: apresentou quadros georreferen-


ciados resultantes da pesquisa socioeconômica aplicada na Ilha
e levantamentos de campo realizado pela equipe urbanístico-am-
biental e social;

▸ Volume 5: Diagnóstico integrado: forneceu uma análise em


conjunto dos problemas e potencialidades que foram apresentados
nos relatórios anteriores, trazendo também a reunião de diretrizes
norteadoras das ações de intervenção;

▸ Volume 6: Plano de ação integrada de investimentos para a Zeis


Ilha de Deus;

▸ Volume 7: Etapa de escolha da proposta de intervenção urba-


nístico-ambiental: registro da opção pela alternativa que melhor
atendeu as expectativas da maioria das famílias moradoras.

GERENCIAMENTO

Localização da Ilha de Deus dentro do território do Recife e do Manguezal do Pina e O trabalho contemplou os seguintes eixos:
o tipo de material das habitações antes da intervenção.
Imagens: JUCÁ, Carolina de Queiroga; DOURADO, Vilma. Ilha de Deus: uma história
de resistência e transformação. São Paulo: Diagonal, 2021. ▸ Fiscalização e acompanhamento do projeto executivo e das obras;

▸ Implantação, execução e monitoramento das ações sociais volta-


DIAGNÓSTICO das para famílias durante a fase de obras e ações sociais focadas
no processo de pós-ocupação e pós-urbanização da intervenção
Realizado por uma equipe de profissionais especializados, o trabalho na Ilha de Deus;
foi documentado em sete publicações:
▸ Acompanhamento e monitoramento das ações do Projeto Ambiental;

▸ Volume 1: Diagnóstico socioeconômico: apresentou análise da ▸ Implantação, execução e monitoramento das ações focadas em
pesquisa quantitativa censitária e da qualitativa, com um recorte arranjos produtivos locais e de economia solidária.
do perfil socioeconômico e sócio-organizativo da população;

▸ Volume 2: Diagnóstico sócio-organizativo; As fases foram interpostas e as atividades de engenharia e das


ações socioambientais, sincronizadas. Isso permitia, em determinado
▸ Volume 3: Diagnóstico urbanístico-ambiental: trouxe as análises
momento do projeto, encontrar famílias em todos os estágios da
da oficina “A Voz Comunitária”, realizada com a população local,
intervenção. Vale enfatizar a complexidade e o desafio do projeto,
focando as características de ocupação e condições de habitabi-
pois a execução das diversas frentes de obras foi realizada com
lidade e a relação das pessoas com o meio em que vivem;
as famílias residindo na área.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

ORGANIZAÇÃO Reassentamento. A Coordenação-Geral e a Coordenação Setorial


de Obras e Infraestrutura ainda executaram a adequação e com-
O projeto de gerenciamento contemplou três coordenações: a patibilização do Projeto de Saneamento Integrado (PSI).
Coordenação-Geral, a Coordenação Setorial de Obras e Infraes-
trutura e a Coordenação Setorial Social. Sublinhe-se que essas Por fim, o Plano de Entrega do Empreendimento mobilizou todos os
coordenações trabalhavam de forma matricial, garantindo a gestão atores envolvidos no projeto, tais como as Coordenações Setoriais
integrada do Projeto. da Gerenciadora em articulação com a equipe da Seplag-PE, bem
como algumas instituições parceiras. Esse plano compreendeu
A Coordenação-Geral ficou responsável pela interlocução com a desde a preparação das famílias para a nova condição de moradia
Seplag-PE, além de abranger todas as atividades do escopo do até o momento de sua recepção na entrega dos imóveis.
gerenciamento, com o objetivo de integrar e garantir a compatibi-
lidade das etapas do projeto. A Coordenação Setorial de Obras e EXECUÇÃO
Infraestrutura teve a seu encargo o planejamento, acompanhamento
e apoio técnico na execução de todas as atividades de arquitetura A Execução do Gerenciamento de Obra, sob responsabilidade da
e engenharia realizadas na área. Por fim, a Coordenação Setorial Coordenação Setorial de Obras — sempre com interlocução com
Social ficou responsável pela relação com a comunidade e seu a Coordenação Setorial Social —, englobou:
entorno, pela interlocução com as diversas secretarias de governo
relacionadas às políticas públicas sociais e pela interlocução com ▸ Acompanhamento e fiscalização dos trabalhos da empreiteira:
as entidades sociais locais. fiscalização da conformidade das obras com os projetos e o diligen-
ciamento e a verificação dos prazos de execução, com a implantação
PLANEJAMENTO de uma rotina de reuniões e visitas periódicas às obras;

▸ Monitoramento das áreas de risco: realizado pela equipe da


A primeira atividade realizada foi a elaboração do Plano de Trabalho
Coordenação Setorial de Obras nos locais com esse perfil na
Ajustado pela Equipe de Coordenação. Nesse sentido, foi elaborado
comunidade da Ilha de Deus;
o Plano de Execução, focado no planejamento das ações a serem
desenvolvidas. Foi elaborado também o Plano de Monitoramento e ▸ Apoio técnico às remoções e reassentamento das famílias atingi-
o Sistema de Informações do Empreendimento, entendido como o das: a fim de atender à solicitação da população para que a remoção
produto da análise das informações existentes, garantindo o controle ocorresse em etapas, como forma de garantir a permanência na
da qualidade dos produtos realizado em tempo real e evitando a comunidade, foi aprovado em assembleia o Plano de Obras, que
propagação de erros em etapas subsequentes. dividia a Ilha em três partes: a Área-Piloto, com 27 moradias; a
Área I, com 129 moradias; a Área II, com 116 moradias; e o Conjunto
Além disso, foi elaborado o Plano de Acompanhamento e Orientação Habitacional, com 78 moradias.
da População, no qual esteve inserido o Plano de Comunicação
Social — nesse último caso, elaborado pela Coordenação-Geral
em conjunto com a Coordenação Setorial Social com o intuito de
criar um canal de comunicação contínuo entre o empreendedor e
a sociedade. Em conjunto, as coordenações montaram um sistema
periódico de revisão e adequação do Plano de Obra e do Plano de

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

ENTREGA Além da construção das unidades habitacionais, o projeto executou


a reconstrução de quatro equipamentos comunitários e públicos já
A finalização do empreendimento exigiu o apoio técnico de campo para: existentes: Unidade de Saúde da Família (USF), Escola Municipal
Capela Santo Antônio, Centro Educacional Popular Saber Viver e
▸ Apoio técnico ao recebimento de obras: realizando o controle de Espaço Caranguejo Uçá. Na época em que o diagnóstico foi feito,
cadastros e as built em campo, como documento de recebimento a comunidade não possuía uma organização sociopolítica estru-
de obras; turada em torno de uma associação ou conselho de moradores.
As principais referências para a população eram a ONG Centro
▸ Apoio técnico de campo ao reassentamento definitivo e à
Educacional Saber Viver e a organização Ação Comunitária Caran-
pós-urbanização e pós-ocupação: realizando a vistoria da regu-
guejo Uçá. O reconhecimento de lideranças e instituições locais
laridade das ocupações das novas unidades habitacionais e dos
estava relacionado ao envolvimento delas na luta por melhores
equipamentos comunitários, como apoio técnico ao trabalho social
condições de vida e de moradia das famílias habitantes e na luta
na discussão de problemas de ocupação das novas moradias e na
pela permanência no território.
documentação de suas condições físicas;

▸ Avaliação das condições de conservação e manutenção das


moradias e redes de infraestrutura: deslocamento de equipes de
campo para a área, com o propósito de identificar os problemas de
manutenção e conservação das moradias e seu encaminhamento
adequado aos responsáveis.

Tipologias habitacionais antes (à esquerda) e depois (acima) da intervenção.


Fotos: Diagonal.
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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

TRABALHO SOCIAL comunidade. Tratou-se, portanto, do referencial para a elaboração


do planejamento do trabalho que seria executado.
O trabalho social desenvolvido junto às famílias da Ilha de Deus
se fundamentou em um dos princípios da Política Nacional de EXECUÇÃO
Habitação (PNH), que pressupõe a gestão, com a participação dos
diferentes segmentos da sociedade, possibilitando governança O gerenciamento sob responsabilidade dessa coordenação englobou:
social e transparência nas decisões. Nesse sentido, a equipe, ao
considerar a gestão democrática, buscou o compartilhamento de ▸ Acompanhamento social das famílias na fase de obras: foram
responsabilidades sociais, para que o morador começasse a ter formadas comissões de moradores com o objetivo de promover
a compreensão do seu papel de sujeito do processo, pois quem o diálogo entre a população e as equipes executoras do projeto e
vivencia os problemas locais poderá ajudar a solucioná-los de estimular a participação popular em determinados níveis decisórios
maneira mais adequada. das obras, a fim de criar um sentimento de pertencimento à inter-
venção urbanística. Compondo a Comissão de Moradores havia a
A mobilização da população foi feita a partir de visitas domiciliares, Comissão de Obra, responsável pelo acompanhamento do processo
distribuição de panfletos, fixação de cartazes, reuniões, divulgação de urbanização, por meio de visitas aos canteiros de obras. Também
via “anuncicleta” e na rádio comunitária. Todo esse processo se deu foi formado o Grupo Referência, que tinha a finalidade de analisar
por meio da realização de assembleias, tanto de escuta quanto de e discutir casos especiais de atendimento e apontar coletivamente
debate, e com a formação de grupos temáticos, muitos dos quais os principais problemas e desafios enfrentados pelo projeto, além
com direito a voz e voto. de identificar possíveis resoluções.

▸ Plantão social: era o espaço de comunicação e informação direta


Vale destacar que no território a organização sociopolítica se dá por
entre as equipes profissionais e as famílias beneficiárias. Ao longo
meio de lideranças informais reconhecidas pela população e orga-
de todo o projeto, foram realizados mais de cinco mil atendimentos
nizadas em grupos comunitários voltados para o desenvolvimento
individuais.
local. Esses atores sociais são importantes para o desenvolvimento
das atividades que ocorrem dentro da comunidade que construíram. ▸ Negociação e execução das remoções: houve o acompanhamento
Também têm protagonismo por serem formadores de opinião, da mudança das famílias para moradias provisórias. Foram realizadas
possuírem o conhecimento da dinâmica local e por facilitarem o também visitas domiciliares para dar apoio em situações especiais,
diálogo junto aos moradores. como no caso das moradias provisórias distantes da Ilha de Deus, a
fim de mantê-las informadas sobre o projeto. O mesmo foi feito no
PLANEJAMENTO caso de moradores que apresentavam dificuldades de locomoção
e de famílias que viviam em estado de vulnerabilidade ou que se
Na fase do Planejamento, a Coordenação Setorial Social ficou tornaram alvos de situações de risco e violência.
responsável pelo Conhecimento do Contexto Social na Área de
Além disso, foi feito o acompanhamento social das famílias que
Intervenção, por meio da realização de vistorias, levantamentos e
apresentaram dificuldades para efetuar a matrícula de seus filhos
questionários para atualização cadastral da ocupação da área de
em outras creches e escolas por estarem em moradia provisória. O
intervenção, identificação das organizações sociais e lideranças,
acompanhamento social consistiu, ainda, em apoiar e orientar aquelas
bem como políticas públicas oferecidas à população, programas
famílias beneficiárias que decidiram adquirir um novo imóvel em
e projetos presentes no local e mobilização e sensibilização da
outros bairros ou cidades.
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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

ENTREGA do Morador. Complementando a estratégia, constituíram-se grupos


de representantes de quadras e foram realizadas reuniões para a
Essa etapa tinha o compromisso de viabilizar a realocação das discussão das demandas cotidianas das famílias. A equipe social
famílias no próprio território após as intervenções urbanísticas, também ficou responsável, nessa etapa, pela implantação do Plano
com o propósito de mantê-las o mais próximo possível de onde de Desenvolvimento Social e Econômico, cujo objetivo era estimular
moravam anteriormente. Envolveu os seguintes processos: e fortalecer instituições, empreendimentos e iniciativas existentes
na comunidade. Foi dado o suporte à formalização das entidades,
▸ Conhecimento da nova realidade social e urbana local: durante além da assessoria para o aprimoramento das atividades e a busca
essa fase a equipe social realizou, periodicamente, o Plantão Iti- por meios e recursos para dar apoio financeiro a essas iniciativas.
nerante para atendimento social às famílias no próprio território,
▸ Organização para a gestão pós-ocupação: nessa etapa, esti-
com o objetivo de monitorar sua nova situação;
mulou-se o fortalecimento e a ampliação da base organizativa da
▸ Plano de trabalho social na fase de pós-urbanização e pós- comunidade, trabalhada junto às lideranças constituídas e suas
-ocupação: objetivando manter os vínculos com a vizinhança, a organizações. Para tanto, desenvolveram-se atividades voltadas para
equipe social realizou reuniões com os moradores para a definição a formação do Conselho Gestor, grupo no qual seriam discutidos os
da localização dos imóveis. Ademais, todos puderam escolher a cor problemas coletivos da comunidade. Além disso, foram realizados
da fachada de seus imóveis, dentre quatro opções, o que contribuiu treinamentos administrativos para os integrantes das comissões
para o sentimento de pertencimento em relação à nova moradia. de moradores. Também se elaborou a construção coletiva das
Reuniões intituladas “Prepare-se para a mudança” serviram para normas de convivência que iriam compor o Regulamento Interno.
orientar sobre como organizar os móveis no dia da mudança e
esclarecer dúvidas em relação à disponibilidade dos transportes
Portanto, a democratização das decisões requer a responsabilidade
necessários para realizá-la. Na data em questão, as equipes técni-
conjunta naquilo que é decidido. A tomada de decisão participativa
cas ficavam à disposição no plantão social, esclarecendo dúvidas
implica o desenvolvimento de um sentido de coletividade. Assim,
e resolvendo pendências que surgiam durante todo o dia. Além
cooperar na execução da ação integrada para a Ilha de Deus trouxe
disso, foi aplicada uma pesquisa de interesse, com o objetivo de
muitos desafios, mas gerou naqueles moradores um sentido de
conhecer os principais temas de relevância das famílias para a
coparticipação e de responsabilidade fundamental.
realização de oficinas socioeducativas que tinham o intuito de
promover o exercício de novos hábitos e costumes. Realizaram-se
também atividades e cursos de educação e capacitação profissional,
RESULTADOS
que possibilitaram a absorção dos moradores da Ilha de Deus e do
entorno na execução das obras de urbanização, chegando ao pico de
O trabalho realizado na Zeis Ilha de Deus de forma compartilhada
duzentos trabalhadores, representando 50% do pessoal contratado
significou uma experiência ímpar para todos os agentes envolvidos.
pela construtora na época. Foi feito ainda o Mapa Falado, no qual
Para o êxito do Projeto de Intervenção Integrada somaram-se os
os moradores indicavam não apenas os problemas mas também
esforços do governo do Estado, da população local e de seus repre-
refletiam sobre suas soluções e identificavam os responsáveis pelo
sentantes e dos grupos de profissionais (Seplag-PE, Fade, Diagonal,
encaminhamento das demandas. As famílias foram também instru-
Colmeia Engenharia e Arquitetura e as Construtoras EngeMaia e
ídas sobre as relações de vizinhança, com incentivo ao diálogo e à
Rocha), comprometidos e alinhados com o mesmo objetivo.
minimização de conflitos, ação reforçada pela distribuição do Manual

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

A integração horizontal, com a execução do gerenciamento do


projeto de obras e do processo socioambiental realizados pelas
equipes da Diagonal, permitiu a maximização da eficiência na
condução do projeto, com alinhamento de conceitos, metodologia
e procedimentos. Além disso, a integração da equipe de obras com
a equipe social facilitou a prestação de informações adequadas
sobre as questões tratadas com a população.

Ressalte-se a importância da aceitação dos moradores e dos seus


representantes de se incorporarem ao processo da gestão integrada,
participativa e sistemática de todas as ações planejadas e execu-
tadas na Ilha de Deus. A população abraçou o projeto, debateu e
apontou seus pontos de vista — nem sempre em concordância com
as propostas apresentadas, é verdade — e, dessa maneira, dividiu
com as equipes técnicas e entre vizinhos momentos de conflitos e
negociações. Isso se deu, entretanto, com um coletivo, buscando
o melhor para todos.

Acesso antes e depois da intervenção (Fotosnte: Diagonal)

Para saber mais, ver:


• PROJETO DE URBANIZAÇÃO NA COMUNIDADE ILHA DE DEUS
http://www.portais.pe.gov.br/web/seplag/ilha-de-deus
• JUCÁ, Carolina de Queiroga; DOURADO, Vilma. Ilha de Deus: uma história de resistência e

! transformação. São Paulo: Diagonal, 2021.


Acesso às moradias antes e depois da intervenção.
• Webinários do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper - Ilha de Deus, uma História de
PARA SABER MAIS, VER: Fotos: Diagonal.
Resistência e Transformação
https://www.insper.edu.br/agenda-de-eventos/ilha-de-deus-uma-historia-de-resistencia-e-transf
▸ Projeto de urbanização na comunidade Ilha de Deus. ormacao/
▸ JUCÁ, Carolina de Queiroga; DOURADO, Vilma. Ilha de Deus: uma história de
resistência e transformação. São Paulo: Diagonal, 2021.

▸ Webinários do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper – Ilha de Deus, uma


História de Resistência e Transformação.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

15.11_ PROGRAMA BRAÇOS ABERTOS,


BOA VISTA
APRESENTAÇÃO

O caso de Boa Vista (Roraima) reflete um processo de mudança


na gestão pública no intuito de democratizar o orçamento da
cidade, visando atender demandas estruturais e sociais das áreas
mais vulneráveis do município, onde vivia a maior parte de sua
população. A partir de um plano de governo que olhava para as
questões sociais, econômicas e ambientais da cidade e buscava
envolver a sociedade — dando, sobretudo, voz às comunidades mais
BAIRROS DR. SÍLVIO BOTELHO, vulneráveis —, teve origem uma série de Planos Locais de Ação
JD. TROPICAL, OLÍMPICO, BAIRRO
BOA VISTA
OPERÁRIO E PINTOLÂNDIA CENTENÁRIO Integrada em cada bairro, conectando os projetos e programas
setoriais da prefeitura às demandas locais. Em muitos bairros, as
ÁREA (KM2) 122,00 (2020) 6,00 2,42
ações setoriais integradas caracterizam exemplos de urbanismo
POPULAÇÃO
436.491 (2021) 20.251 (2010) 5.497 (2010) social, atendendo o caráter de visão holística dos problemas das
(HAB)
comunidades, no espaço e no tempo.
Tabela: relação entre área e população de Boa Vista e Bairros do Programa Braços
Abertos.
Fonte: Diagonal. Embora o programa tenha se direcionado a todas as regiões e
bairros da capital, destacam-se duas áreas, predominantemente
ocupadas por famílias de baixa renda, que receberam intervenções
abrangentes que mudaram as condições urbanísticas, sociais e
ambientais dessas localidades, situadas na zona oeste da cidade: o
bairro Centenário e a região composta pelos bairros Jardim Tropical,
Doutor Sílvio Botelho, Olímpico e Pintolândia.

CONTEXTO

Em 2001, a nova gestão da Prefeitura de Boa Vista propôs a aplicação


de metodologia de gestão dialogada orientada ao tratamento das
vulnerabilidades sociais, com a integração de suas secretarias e
órgãos e um intenso processo de participação social em todas as
fases, desde o diagnóstico da realidade e da priorização das ações
até o acompanhamento do processo de implementação.

Na época, a capital de Roraima, com duzentos mil habitantes e


diversos problemas financeiros, urbanísticos, sociais e ambien-
tais, encontrava-se politicamente polarizada após as eleições. A
Mapa: Boa Vista, Programa Braços Abertos (laranja). cidade tinha muitos jovens que não estudavam nem trabalhavam,
Fonte: Google Earth, edição própria. desemprego geral, lixo por toda parte, ruas esburacadas e sem

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

asfalto, trânsito desordenado e violento, falta de iluminação pública, O PROGRAMA BRAÇOS ABERTOS
de saneamento básico e de drenagem, alto índice de crianças na
rua, trabalho infantil, grande quantidade de valas abertas, malária Para os 180 dias iniciais de governo, foi proposto um programa de
e dengue, precariedade do sistema de saúde, muita ocupação participação intitulado Braços Abertos, envolvendo a população na
irregular e muito desmatamento. elaboração de diagnósticos e planos1. O foco das primeiras ações
realizadas pela prefeitura foi seu alto impacto e baixo custo, com
METODOLOGIA geração de emprego e renda. Para todas as novas ações eram
feitos projetos-piloto com o objetivo de testar o modelo e capacitar
A fim de realizar o plano de governo, com a participação efetiva da os funcionários da administração municipal na sua execução. Isso
população, foi criada a Secretaria de Gestão Participativa e Cidadania, auxiliava na captação de recursos, pois o piloto demonstrava, em
considerando o processo de governança com os habitantes da cidade, pequena escala, o que cada ação era capaz de alcançar e, conse-
organização e levantamento de dados, informações e pesquisas. quentemente, aumentava a credibilidade no trabalho.
Esse modelo de atuação integrado priorizaria quatro dimensões:
socioeconômica, organizativa, urbanístico-ambiental e legal-fiscal. A prefeitura, com apoio da consultoria Diagonal, iniciou o processo
participativo realizando a apresentação e a discussão do programa
Iniciou-se, então, a descentralização do trabalho da prefeitura, com a população e desenvolvendo pesquisas socioeconômicas e
oferecendo avanços na intersetorialidade e na ação integrada, para sócio-organizativas e vistorias físicas que ofereceriam as bases
aproximar a administração da capital à sociedade, com boas práticas para o diagnóstico e a implementação das primeiras ações2.
e respostas rápidas nos 48 bairros existentes. Assim, a atuação
municipal foi dividida em três regiões, conforme a figura a seguir: INÍCIO DO PROJETO

Logo no começo do trabalho em Boa Vista, percebeu-se a precarie-


dade de estudos, pesquisas, dados e informações para que fosse
possível elaborar um diagnóstico integrado. O censo estava muito
desatualizado3 e não havia informações suficientes. A solução foi
desenvolver pesquisas censitárias, a fim de levantar informações
imprescindíveis para a definição de políticas públicas e a tomada
de decisões de investimentos.

O primeiro passo foi ir para a rua, em todos os bairros, a fim de


conversar com a população por meio de reuniões de apresentação
e discussão do Programa Braços Abertos. Foram feitos setenta

1  Com o poder das comunidades para deliberar as decisões.

2  Cabe destacar a importância das consultorias naquela época e ainda hoje na


gestão pública de muitas cidades de médio e grande porte, e em áreas metropolita-
nas, dada a carência de quadros técnicos efetivos das prefeituras.
Regionalização para o Diagnóstico Integrado. 3  O Censo de 2000, no início do governo (2001), não havia sido disponibilizado pelo
Fonte: Diagonal, 2001. IBGE, e utilizar dados de 1991 não fazia sentido.

416 417
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

encontros, envolvendo 39 bairros, tendo sido entregues 33 mil DIAGNÓSTICO


convites, de porta em porta. As reuniões contavam sempre com
a participação da prefeita, Teresa Surita, e de uma estrutura com Com as informações completas de Boa Vista em mãos, iniciou-se
telão e cadeiras para facilitar a comunicação com a comunidade. o diagnóstico, desenvolvido com base na pesquisa censitária, na
Nelas, era apresentado o programa, com informações como o início pesquisa qualitativa, em dados secundários e outras fontes.
do censo e as visitas dos pesquisadores em cada casa.
Desse modo, foram identificados e georreferenciados todos os
PESQUISA CENSITÁRIA problemas da cidade, tais como a existência de 12.844 famílias
na linha de indigência, 11.688 famílias na linha de pobreza, 8.965
Para viabilizar a estratégia do programa, foram mobilizadas duas pessoas de 15 a 65 anos desempregadas, 3.522 chefes de família
unidades de planejamento: a Unidade de Planejamento 1 tinha a desempregados, 550 crianças de 7 a 14 anos fora da escola, 1.911
função de pensar a capital e suas grandes regiões, desenvolven- jovens de 15 a 21 anos fora da escola e do mercado de trabalho,
do estudos urbanos e ambientais com a prefeitura; já a Unidade 9.300 analfabetos, 9.320 imóveis sem banheiro, 13.855 imóveis de
de Planejamento 2 ocupava-se dos bairros e das comunidades, madeira e restos de material, entre muitos outros.
trabalhando cada local a partir do diagnóstico socioeconômico e
participativo e dos planos locais de ação integrada. O diagnóstico permitiu ganho de clareza acerca dos núcleos que
deveriam ser priorizados e possibilitou criar mapas para todos os da-
Com base nos estudos complementares realizados nas duas uni- dos levantados. Dessa maneira, adquiriu-se profundo conhecimento
dades de planejamento foi possível estruturar uma estratégia de do território e da localização exata de cada problema encontrado.
intervenção para a cidade, elaborando planos e projetos específicos Ao olhar para o mapa, identificaram-se os bairros onde mais de
(temáticos e territoriais) e realizando o planejamento operacional 70% das famílias estavam em situação de indigência e pobreza,
das ações a serem implantadas e monitoradas. sabia-se onde havia crianças e jovens fora da escola, conhecia-se a
localização de imóveis sem banheiro, de moradias construídas com
Assim, iniciou-se um trabalho de focalização no território e em seus material inadequado e de imóveis com abastecimento de energia
moradores, principalmente dos grupos mais vulneráveis. O censo elétrica impróprio. Sabia-se onde viviam as 12.947 crianças de 0 a
foi realizado com 70% da população (cerca de 160 mil pessoas), 3 anos na linha da indigência e pobreza e que, desses total, 11.565
o que possibilitou localizar os principais problemas do município. estavam fora da escola.
Os funcionários da prefeitura receberam treinamento adequado
para a realização da pesquisa, e o trabalho permitiu a elaboração Esses e muitos outros dados ofereciam absoluta clareza a respeito
de um banco de dados detalhado com georreferenciamento de das políticas públicas adequadas para cada núcleo.
todas as informações da cidade. Foram também realizadas pes-
quisas socio-organizativas, mapeadas todas as 147 organizações AÇÕES POR GRUPOS SOCIAIS
sociais, as 106 lideranças informais e os 144 moradores antigos,
levantando-se a história de luta e ocupação de cada bairro. Após o diagnóstico, foram realizadas as reuniões para devolução da
pesquisa. A prefeita voltava para os bairros e reportava aos moradores,
em reuniões de apresentação, todos os dados gerados pelo censo,
auxiliando a população a compreender melhor a sua realidade.

418 419
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

Com todas as informações de Boa Vista à disposição, era possível para as que tinham crianças de 0 a 6 anos, o complemento à renda
desenvolver ações efetivas para cada problema. Uma das informações familiar a crianças/jovens de 6 a 14 anos e o atendimento médico e
levantadas no momento das pesquisas eram os tipos de reivindicações nutricional para crianças de 0 a 3 anos. Foi desenvolvido o Programa
prioritários para cada morador. Nos questionários, toda a população Saúde em Casa, que ofereceu assistência médica a 100% das crianças
tinha que informar, em ordem de prioridade, as suas três principais de famílias em situação de risco. Diversos outros programas foram
reivindicações. Dessa leitura, definiam-se as ações a serem imple- sendo criados, como o Bolsa-Escola, o Peti (Programa de Erradicação
mentadas, estabelecendo os planos locais de ação integrada. do Trabalho Infantil), o Projeto Crescer (para jovens fora da escola e
do mercado de trabalho) e a Bolsa-Educação. A Secretaria de Gestão
Os planos, por sua vez, eram elaborados por meio da segmentação Participativa monitorava cada um deles. Foram trabalhadas ainda
de grupos sociais, trabalhando em duas categorias: (i) risco e insa- duas ações de massa, abordando problemas muito complexos na
lubridade e (ii) degradação e isolamento. Em seguida eram definidas região: violência, drogas e práticas de degradação ambiental.
as estratégias de intervenção, os critérios de priorização das ações,
os recursos orçamentários existentes e os recursos adicionais PRIMEIRAS AÇÕES
a serem captados. Desse processo resultou o planejamento da
agenda de trabalho da prefeitura de 2001 a 2004. Reuniam-se as Já no primeiro ano de mandato, a Prefeitura de Boa Vista iniciou di-
secretarias, debatia-se o plano de ação a partir do planejamento versas ações de melhorias para a cidade. A Operação Asfalto, a maior
elaborado e traçavam-se as ações por grupos sociais. reivindicação da população, construiu 293 ruas e 101 km de asfalto.
A Operação Calçada construiu mais de dez mil metros de calçadas.
A partir de então, os dados levantados com a pesquisa censitária se O Projeto Arborização realizou o plantio de 32 mil novas árvores. A
tornaram a base para todo o trabalho da administração municipal. Operação Banheiros terminou o ano de 2001 com 460 construídos nas
No segundo ano de governo, toda a população queria estar com casas da população e 1.937 projetos aprovados. A Operação Faxina
seu cadastro atualizado no banco de dados da prefeitura, pois os retirou 160 mil toneladas de lixo das ruas e providenciou uma nova
habitantes da capital viam na prática as pessoas serem contem- frota de caminhões e coleta seletiva para a população. O Programa
pladas pelas ações públicas, comprovando que a transformação de Energia Elétrica auxiliou na redução das gambiarras que geravam
social estava acontecendo. Para facilitar essa atualização de dados risco de vida para os moradores, beneficiando 776 famílias. O aten-
constante, foi criado o centro de geoprocessamento. dimento dos programas sociais com bolsa-auxílio foram ampliados,
beneficiando 6.894 crianças e jovens. A prefeitura trabalhou também
Alguns dos grupos sociais vulneráveis, em degradação e isolamento, em melhorias na educação, com quatro módulos-piloto do Projeto
que foram focalizados no planejamento das atividades, eram os Estuda, sinalização de trânsito, regularização fundiária, com 367 títulos
seguintes: famílias em situação de pobreza e indigência, crianças e concedidos, alfabetização de adultos contemplando 1.400 pessoas
jovens fora da escola na linha de pobreza, chefes de família desempre- e 15 comunidades indígenas beneficiadas com plantio mecanizado,
gados, adultos e jovens analfabetos, entre outros. Iniciou-se também fortalecimento do artesanato e atendimento médico pelo Expresso
o atendimento a grupos sociais por segmento: jovens de 15 a 18 anos, Saúde. Foram ações realizadas no primeiro ano de mandato, com foco
terceira idade, pessoas com deficiência e comunidades indígenas. em entregas rápidas e contínuas para o atendimento de demandas
urgentes das comunidades vulneráveis e do restante da cidade.
Para o problema das 12.844 famílias em situação de indigência, por
exemplo, estabeleceu-se como prioritário o fornecimento de cestas Só em 2001, foram gerados de mais de dois mil empregos. Todas
básicas àquelas com renda zero, o fornecimento de vale-alimentação as empreiteiras contratadas pela prefeitura para realizar as obras

420 421
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

tinham contratualmente a obrigação de empregar pessoas da lista prioridades estabelecidas pela população. Uma parte da verba
de desempregados, mapeada pela administração municipal. municipal era reservada para ser definida e aprovada pelos mo-
radores (orçamento participativo).
Havia, por parte da prefeitura, a meta de alcançar o atendimento
total da população. Para isso, calculava-se o orçamento necessário A organização da gestão participativa se iniciava com um planeja-
para atingir esse objetivo e captavam-se recursos federais para mento, no qual se desenvolviam os planos locais de ação integrada
completar o que faltava. Durante todo o mandato, a prefeita se e planos operativos. Em seguida, realizavam-se a mobilização social,
dirigiu regularmente à população para apresentar os números. a construção das ações de massa e a articulação para as ações de
desenvolvimento. Por fim, implantavam-se as ações, avaliando e
GESTÃO COMPARTILHADA monitorando toda a execução.

No início do projeto, a população tinha pouca ou nenhuma partici- RESULTADOS


pação comunitária, pois não havia conscientização acerca do papel
de cada cidadão. Os moradores não conheciam os canais para Por meio de uma gestão comprometida com a transformação so-
fazer reivindicações de melhorias e não frequentavam instituições cial, Boa Vista viu muitos de seus indicadores mudarem. A cidade
comunitárias. apresentou redução dos índices de atos infracionais praticados por
crianças e adolescentes, redução de 35 gangues juvenis/galeras para
A estratégia para organização dos habitantes foi justamente criar cinco grupos remanescentes e redução de 72% no índice de violência
representações por bairro e por setores, nos casos em que havia (dados dos três primeiros meses de 2002 em relação aos três últimos).
recortes territoriais diferenciados na mesma localidade, a fim de ga-
rantir que 1% da população participasse de modo direto das decisões Em 2004, fez-se uma pesquisa para avaliar o governo. Para 79% da
políticas e 10% da população participassem de forma indireta, com população da capital de Roraima, a cidade estava melhor do que
estímulo a fazerem parte das organizações comunitárias existentes. em 2001, pois se encontrava mais limpa, mais bonita e estruturada,
mais preocupada com as crianças, adolescentes e idosos, com mais
Para isso, foi feito um trabalho de mobilização e eleição dos repre- iluminação pública, mais ruas e avenidas asfaltadas.
sentantes dos moradores e grupos sociais organizados, capacitação
dos representantes eleitos, discussão dos planos locais de ação A avaliação da administração municipal atingiu nota 10 para 50% dos
integrada, priorização das ações e agenda 2001-2004 e assembleias habitantes da cidade. A grande maioria dos entrevistados concordava
de aprovação dos planos com a população. que a prefeitura estava retirando crianças da rua (89%), trabalhando
para diminuir a violência entre os jovens (85%), investindo em esporte
O ano de 2001 — o primeiro de mandato, repita-se — terminou com e lazer (78%), melhorando o atendimento na educação (75%) e ouvindo
todas as assembleias realizadas e todos os planos elaborados e mais a população (70%).
aprovados com a população. Oitocentos representantes das comu-
nidades elaboraram uma carta de compromisso e responsabilidade Esses resultados positivos possibilitariam a reeleição de Teresa Surita
para a gestão compartilhada. para a prefeitura e a continuidade de muitas ações e atendimento
de novas demandas. No novo mandato, a estratégia de diagnóstico e
E, então, começou-se a discutir o orçamento participativo para priorização valeu-se do Mapa falado em todos os bairros da cidade
o ano seguinte, de modo a executar os planos de acordo com as por meio de oficinas participativas.

422 423
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

Na década de 1990, Boa Vista figurava entre os piores indicadores


socioeconômicos e ambientais dentre as capitais brasileiras — e
muito atrás de diversas urbes do centro-sul do Brasil. Atualmente,
15.12_ BARRIO 20,
BUENOS AIRES

está entre as cem melhores cidades do país, ocupando o 1º lugar em


geração de energia limpa pública, no abastecimento e distribuição
de remédios da Rede Remume e entre as capitais nacionais que mais
fizeram investimentos em infraestrutura urbana. Foi considerada
a 3ª capital com melhor situação fiscal do Brasil, a 5ª melhor em
educação pública municipal, a 5ª melhor em qualidade de vida, a
6ª com mais quilômetros de ciclovias por habitante, a 6ª melhor
também para a prática de esportes e a 11ª melhor para criar filhos.
Essa mudança de posição é reflexo das ações participativas de-
senvolvidas e focalizadas nos bairros mais vulneráveis.

Projeto Reluz.
Foto: Diagonal.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ Webinários do
Laboratório Arq.Futuro
de Cidades do Insper —
Utopias, em Iztapalapa,
México, e Programa
Projeto Reluz. Braços Abertos, Boa Mapa: Barrio 21, Buenos Aires.
Foto: Diagonal. Vista, Roraima. Fonte: Google Earth, edição própria.

424 425
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

INTRODUÇÃO PARTICIPAÇÃO NO PROCESSO-PROJETO NO BARRIO 20

A cidade de Buenos Aires tem um déficit de moradia que afeta cerca O processo-projeto do Barrio 20 tem origem em três elementos rele-
de trezentos mil pessoas, das quais uma porcentagem significativa vantes: uma comunidade organizada, reflexiva e com experiência em
vive em favelas e assentamentos com condições habitacionais processos de urbanização; um estado local que priorizou a intervenção
deficientes em termos de serviços, posse e qualidade material, nos barrios populares e destinou recursos para desenvolvê-la; uma
entre outros. O Barrio 20 é a quarta favela mais populosa da ci-
1
equipe técnica com uma perspectiva participativa que permitisse
dade, com cerca de trinta mil habitantes, dos quais 75% vivem na articular atores e interesses. Esses três elementos foram combina-
pobreza. O Barrio está localizado na Comuna 8, ao sul da cidade, dos no desenvolvimento de um determinado diálogo com as partes
em um setor que passou por processos de reforma e investimento interessadas, cuja prioridade foi estabelecer os principais objetivos
público a partir do desenvolvimento de programas de grande porte. do processo-projeto: a requalificação do Barrio e a implementação
de uma estratégia de tomada de decisão participativa que incluísse
Embora o Barrio tenha passado por iniciativas anteriores de ur- todas as partes interessadas, bem como as diferentes organizações
banização, desde 2016 o Instituto de Habitação da Cidade (IVC), sociais, cujo trabalho territorial se localizava naquele território. O
juntamente com as organizações sociais da localidade e outros modelo de intervenção se ancorou na definição de critérios gerais
órgãos estaduais, iniciou um programa que teve como base justa- de concepão, gestão e implementação de ações assentes na procura
mente as experiências prévias do processo de produção social do de consenso e na geração de decisões participativas no quadro
Barrio em seus mais de setenta anos de existência. Essa iniciativa de mecanismos de participação especificamente desenhados. A
teve a particularidade de consolidar um processo-projeto de gestão concepção dos dispositivos levou em conta a função do espaço
e intervenção participativa que envolveu organizações sociais e de decisão (levantamento, diagnóstico, decisão, informação etc.),
moradores autônomos do Barrio e órgãos estatais em nível local a escala de implementação (Barrio, quarteirão, agregado familiar
e nacional, além do CAF — Banco de Desenvolvimento da América etc.) e os atores envolvidos (quantidade, conhecimento do processo,
Latina, que financia parte das intervenções de construção habita- disponibilidade de tempo, recursos etc.), para citar três dimensões
cional e de melhoria do Barrio. da questão.

O foco desta seção é descrever as principais características do O dispositivo-marco desenhado no início do processo foi a Mesa
processo participativo enfrentado pelo Barrio 20 e as organizações de Gestão Participativa (MGP), definida na Lei 5.705, de 2016, cuja
envolvidas no âmbito do conceito de urbanismo social, bem como redação se deu no âmbito do referido dispositivo, antes da aprovação
refletir sobre os obstáculos, desafios e lições por meio dos quais o formal de todos os atores envolvidos no consenso (a aprovação no
processo-projeto contribuiu para o desenvolvimento de intervenções Legislativo da Cidade de Buenos Aires ocorreu por unanimidade).
e melhoria urbana na América Latina e no Caribe. Desse dispositivo emergiram dois de importante relevância para a
definição dos aspectos técnicos e para a concepção e execução do
projeto de requalificação: a Mesa Técnica de Gestão Participativa
(MTGP), que visa promover as definições técnicas relacionadas com
os vários aspectos envolvidos no processo; e as Oficinas Definidoras
do Projeto Integral de Reurbanização (PIRU) de Manzanas, que foram
1  Em espanhol, em especial na América Latina, o termo “Barrio” é também usa-
implementadas em cada uma das mais de trinta quadras e setores
do como sinônimo de favela. Optou-se neste caso por manter a expressão original: do Barrio, com vistas a definir o projeto de intervenção urbana e
Barrio 20.

426 427
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

arquitetônica em torno da abertura de ruas e passagens, geração Trabalhar em conjunto com organizações de fomento permite não
de pátios e pulmões do quarteirão e definição de lotes e casas apenas canalizar recursos financeiros como também contribuir
(regularização dominial). para a disseminação de experiências e a construção de consen-
sos regionais sobre um modelo de desenvolvimento urbano que
O modelo de gestão do processo-projeto implica uma revisão cons- aborde o acesso à moradia e ao hábitat adequado a partir de uma
tante dos dispositivos e sua adaptação metodológica ao contexto abordagem ampla e interdisciplinar.
particular de aplicação. Nesse sentido, ao longo dos anos de projeto,
mais de trinta dispositivos foram projetados e implementados, bem A atuação da CAF está alinhada com as estratégias de intervenção
como adaptações e melhorias promovidas pelo diálogo interacional no processo-projeto previamente definidas e busca viabilizar e cata-
do MGP. Essa lógica resiliente e adaptável do modelo baseado na lisar as ações promovidas no âmbito dos dispositivos para fortalecer
tomada de decisão conjunta possibilitou a redução de conflitos a integralidade das atuações e viabilizar programas com foco no
de curto, médio e longo prazos, uma vez que as imperfeições são urbanismo social, perspectiva de gênero, diversidade e inclusão,
assumidas como coletivas e se modificam justamente a partir de bem como sustentabilidade no contexto das mudanças climáticas.
novas tomadas de decisão coletivas. Os recursos são utilizados para financiar a construção de casas
e o processo de intervenção existente no barrio, principalmente
O PAPEL DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS com a execução de obras de infraestrutura para serviços públicos.

Para realizar as intervenções, o IVC conta com o apoio técnico e REFLEXÕES, DESAFIOS E LIÇÕES APRENDIDAS
financeiro de diversos atores internacionais, entre eles o CAF. Ele é
implementado por meio de um empréstimo de US$ 100 milhões para O caso do Barrio 20 mostra que é possível promover processos
redesenvolvimento, zoneamento e integração urbana, habitacional de tomada de decisão por parte das comunidades a partir de
e socioeconômica de três assentamentos informais na cidade de uma diversificação de instrumentos (dispositivos) que permitam
Buenos Aires (Barrio 20, Rodrigo Bueno e Playón de Chacarita). reduzir e canalizar conflitos para fortalecer as estratégias locais de
melhoria da localidade. A experiência indica que a transformação
O apoio financeiro e técnico do CAF foi estruturado tendo em conta dos processos deve ser realizada no marco de suas lógicas de
as premissas fundamentais do modelo de intervenção proposto funcionamento, respeitando os critérios e metodologias preesta-
pelo IVC, com ações estruturadas em três eixos: belecidos em conjunto entre a comunidade e o Estado.

▸ Integração habitacional (condições mínimas de habitabilidade, Assim, tem sido amplamente reconhecido que os programas de melho-
acesso a serviços públicos e segurança de posse); ria integral abordam questões essencialmente complexas e desafiam
práticas tradicionais, não apenas em políticas públicas mas também
▸ Integração urbana (melhoria da mobilidade, disponibilização de
na implementação de apoio técnico e financeiro de organizações
serviços básicos e espaços públicos de qualidade aos assentamentos);
internacionais. Por um lado, os programas desafiam a instalação de
▸ Integração socioeconômica (desenvolvimento produtivo e em- novas formas de trabalho articulado e integrado entre diferentes áreas
pregabilidade, desenvolvimento do potencial humano, educação, (infraestrutura, habitação, equipamentos sociais, gênero e alterações
saúde e cultura). climáticas, entre outras), que, muitas vezes, não dispõem de canais
institucionais formalizados para um trabalho colaborativo. Por outro
lado, as características intrínsecas dos processos de melhoria do

428 429
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

hábitat informal colocam uma reflexão essencial para as organizações


internacionais quanto aos desafios na estruturação de instrumentos
financeiros, na definição do seu âmbito, no cumprimento dos objetivos
15.13_ BARRIO 31,
BUENOS AIRES

propostos e nos termos de execução planejada.

A participação é um instrumento reconhecido para a promoção de


programas e intervenções. Todavia, ainda há um longo caminho a
percorrer para promover maiores níveis de participação na tomada
de decisões sobre questões substanciais dos processos e para
modificar os padrões institucionais dos órgãos e instituições estatais
que implementam e operacionalizam as intervenções. Para tanto,
é necessário um olhar que ultrapasse o cumprimento das metas
operacionais. É preciso também internalizar a participação social
como eixo estruturante de intervenção para garantir o exercício de
direitos, transparência e sustentabilidade dos processos para as
comunidades envolvidas no curto, médio e longo prazo.

!
PARA SABER MAIS, VER:

▸ CAF promueve la inclusión social de 200.000 personas en tres asentamientos de


la Ciudad Autónoma de Buenos Aires.

▸ Webinários do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper — Buenos Aires |


Plano de Intervenção Integral em assentamentos precários — Villa 20. Mapa: Barrio 31, Buenos Aires.
Fonte: Google Earth, edição própria.

430 431
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

O caso da localidade Padre Carlos Mugica, conhecida como Villa A implementação do projeto teve início no ano de 2016, a partir
31, é um projeto emblemático de um Plano Integrado de Barrio da criação de uma governança específica dentro da estrutura
(Favela) em Buenos Aires, na Argentina. Localizado próximo à da gestão pública da cidade, a Secretaria de Integração Social
zona portuária da cidade, Mugica foi construído e historicamente e Urbana, responsável pela coordenação e desenvolvimento do
habitado por imigrantes e trabalhadores, de modo irregular, a partir projeto. Liderado pela Prefeitura de Buenos Aires, o financiamento
de 1932. Seu território foi se expandindo, de maneira espontânea do Plano de Integração de Barrio também contou com os recursos
e sem planejamento, em uma zona limítrofe às áreas urbanizadas e o suporte técnico do Banco Mundial e do Banco Interamericano
e "formais" centrais da cidade, chegando atualmente a ocupar 72 de Desenvolvimento (BID).
hectares (0,72 km ) e abrigando aproximadamente quarenta mil
2

habitantes. Dado interessante é o fato de sua população majoritária Um dos principais aspectos do Barrio Mugica é seu isolamento físico
ser composta por jovens, dentre os quais 50% têm menos de 24 devido às barreiras urbanas, tais como os trilhos do trem e a rodovia
anos e 70%, menos de 35. elevada, além da zona portuária. Cercado por essas infraestruturas,
um dos maiores desafios encontrados diz respeito à sua integração
Na década de 1970, as políticas públicas de regularização de barrios à malha urbana viária formal. O projeto de integração do Barrio
informais promoveram ações de remoção das famílias da Villa 31 permitiu que pela primeira vez na história o sistema de transporte
para outras regiões mais afastadas do centro, o que não resolveu público formal circulasse por ele, com linhas de ônibus ligando
as problemáticas locais relacionadas à falta de infraestrutura, habi- Mugica ao centro. Além da abertura de novas vias de acesso, a
tação formal e desenvolvimento socioeconômico, com indicadores mobilidade urbana recebeu melhorias, com novos desenhos de
urbanos muito inferiores aos do restante da capital argentina. calçadas e ciclovias, modais sustentáveis e ativos.

No ano de 2015, a Prefeitura da Cidade de Buenos Aires lançou o Os resultados e impactos gerados ao longo dos últimos anos no
Plano de Integração do Barrio Mugica, com intervenções múltiplas Barrio Mugica, as contribuições entregues à população através do
e simultâneas em toda a localidade, considerando como pilares de planejamento do Barrio junto à Prefeitura de Buenos Aires foram
atuação a oferta de infraestrutura básica e acesso aos serviços exitosas e promoveram melhorias tanto na qualidade do espaço
públicos de água, esgoto, iluminação pública, drenagem etc.; urbano construído (habitações, escolas, parques, praças) como
visando a quatro objetivos principais: no desenvolvimento socioeconômico local, por meio da criação do
Centro de Desarrollo Emprendedor y Laboral (CeDEL) — com a oferta
▸ Integração urbana: acesso aos serviços básicos e conectividade de cursos de capacitação de empreendedores e microempresas,
com a cidade formal através do transporte e mobilidade; dando suporte aos pequenos negócios e permitindo a inclusão dos
moradores em trabalhos formais.
▸ Habitação: desenvolvimento de moradias adequadas e seguras
para todos os residentes do Barrio;
Para garantir a sustentabilidade do projeto de bairro a longo pra-
▸ Integração social: melhoria do o acesso à educação e saúde zo, além do fomento à ativação da economia local e da geração
públicas e promoção de atividades culturais junto à comunidade; de renda, a Prefeitura de Buenos Aires criou junto à Assembleia
Legislativa uma estrutura legal e regulatória para a mitigação
▸ Integração econômica e sustentável: oferecimento de capacitação
de processos de gentrificação, com definições de uso do solo e
profissional e de formalização de empresas e empreendedores
regularização fundiária.
no Barrio.

432 433
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

Resumidamente, foram entregues em Mugica1:

▸ 17.700 metros lineares de infraestrutura básica (saneamento,


15.14_ URBANIZAÇÃO COMO PRÁTICA DE PROJETO
SOCIAL NA AMÉRICA LATINA

drenagem, pavimentação, iluminação pública, eletricidade e água


potável); Produzir práticas de programas para um planeta em rápida urba-
nização constitui um projeto geracional. Uma pergunta inevitável
▸ 1.154 novas unidades habitacionais;
que acompanha o desenvolvimento dessas práticas é se elas vão
▸ 1.732 residências com melhorias em sua estrutura; destruir as qualidades sociais e ambientais das cidades, como
muitos já fizeram antes, ou se há outro caminho a seguir. Com
▸ Três novas escolas, e uma escola existente foi renovada;
efeito, podemos conceber imaginários urbanos — motores de tais
▸ Dois novos centros de atendimento médico, e um centro existente práticas — plenos de qualidades derivadas da nossa relação com
foi renovado; a natureza?

▸ 27 espaços públicos renovados;


GROTÃO — FÁBRICA DE MÚSICA, 2011
▸ Um Centro de Desenvolvimento Empresarial e Trabalhista (Centro FAVELA PARAISÓPOLIS, SÃO PAULO
de Desarrollo Emprendedor y Laboral – CeDEL).
Fizemos uma parceria com um escritório colaborador local e fecha-

! mos um contrato de projeto direto com a Secretaria de Habitação


(Sehab) da Prefeitura de São Paulo. Depois de várias interações
PARA SABER MAIS, VER:
para adaptação do projeto original do “El Sistema” venezuelano aos
▸ BID, 2019. Workshop internacional B31: Soluciones de habitabilidad en barrios requisitos da Orquestra Filarmônica de Paraisópolis e grupos de ci-
informales.
dadãos, líderes comunitários e outras partes interessadas, a iniciativa
recebeu o LA Golden Holcim Architecture Award. Comemoramos
a premiação em uma cerimônia no Centro Educacional Unificado
(CEU) do Jardim Parque Morumbi, em Paraisópolis, recebendo a
distinção junto com nossos clientes e moradores da comunidade.

Em Paraisópolis, o problema estava em outro lugar: grandes constru-


toras que administram vultosos orçamentos para vários programas
de urbanização de favelas simultaneamente na cidade estavam
céticas em desenvolver um protótipo diferente em um território
como aquele. Ainda assim, outros fatores impulsionaram o pro-
jeto: o envolvimento com a comunidade levou à implementação
de uma inovadora infraestrutura social e física que conectou o
planejamento urbano pós-desastre — depois um deslizamento de
terra — a aspectos de transporte e infraestrutura verde-azul ou à
integração de demandas culturais. No entanto, fazer tudo isso em
um projeto sobrecarregou os requisitos gerenciais de todas as
1  Urban Sustainability Exchange (USE): New residences of Barrio 31.
434 435
Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

partes envolvidas. O tempo tornou-se cada vez mais um problema, DO MÉTODO DE DESIGN AO DESIGN DE MÉTODO
e incorporar as necessidades complexas das pessoas ao processo
tradicional de contratos e de urbanização muitas vezes colocava Nossa prática projetual está firmemente baseada na aproximação
a iniciativa no final da linha de produção das construtoras rota- entre sociedade civil, órgãos governamentais locais e multilaterais
tivas. Após o encerramento daquela gestão municipal, a equipe e indústria ativa da América Latina e além. Os escritórios regionais
executiva responsável mudou e a nova suspendeu o projeto — a — com equipes circulando entre Zurique, Medellín e Sarajevo — nos
descontinuidade de políticas públicas, como se sabe, não chega permitiram formar uma família de especialistas experientes e
a ser uma novidade. comprometidos com os projetos.

Todavia, apesar dos contratempos, continuamos na interação com Suportar as contingências da pandemia nos últimos anos e o cenário
a comunidade de Paraisópolis para construir o Grotão – Fábrica em transformação de mais de dezessete instituições parceiras
de Música. Estaremos prontos quando chegar a hora, unindo a públicas e privadas permitiu que a equipe Urban Think Tank_next
paisagem em terraços ao edifício próprio para o projeto, em uma (UTT-next) desenvolvesse protótipos para cinco programas inte-
resposta inteligente às zonas de alto risco que funciona como um grados de infraestrutura em cidades colombianas. Em resposta à
catalisador para um novo espaço público urbano cultural produtivo. importância de unir, incorporar e restaurar a interação humana e
natural, todos eles foram integrados aos corredores verdes.

A preocupação com a reconstrução e recuperação da diversidade


urbana é indissociável do apelo urgente à resposta às alterações
climáticas. Em sintonia com referências globais como os ODS (Ob-
jetivos do Desenvolvimento Sustentável, da ONU), os profissionais
devem prevenir ativamente os piores conflitos sociais desenca-
deados pelas mudanças no clima. Enquanto as ilhas de calor, o
aumento do nível do mar e fenômenos relacionados acompanharem
o processo de urbanização, podemos supor que a natureza será
capaz de lidar com eles. O urbanismo social e ambiental baseia-se
na reconciliação da humanidade com a natureza como benefício
compartilhado e patrimônio mundial da diversidade das cidades
latino-americanas. Oferecemos uma visão completa do contexto,
imaginação, implementação da intervenção e impacto do nosso
trabalho, tanto em termos metafóricos quanto absolutos, com-
partilhando as ferramentas, métodos e objetivos de construção
de uma prática latino-americana.

!
PARA SABER MAIS, VER:
Grotão — Fábrica de Música Paraisópolis.
Foto: Hubert Klumpner. ▸ Holcim Foundation Architecture Award — Centro de Acção Social por Música.
Grotao, Paraisopolis Sao Paulo Brazil

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

15.15_ PLANEJAMENTO ORIENTADO


PARA O DIÁLOGO E A
INCLUSÃO SOCIAL: O URBAN
humana — para atender às necessidades básicas da população.
O equilíbrio entre “estratégia”, “projeto” e “ação local” é o que
torna interessante o Urban Design Lab. Às vezes uma plataforma
DESIGN LAB NA AMÉRICA de discussão é necessária para discutir desafios, potenciais e
LATINA E NO CARIBE soluções; enfim, trazer todos para a mesa. Nossa hipótese é
estabelecer um think tank local temporário durante o processo
A América Latina e o Caribe estão entre as regiões com as maiores de planejamento, ou seja, por pelo menos quatro meses. Após
taxas de urbanização do planeta. Até 80% de suas respectivas um intenso mapeamento de stakeholders, pretende-se iniciar um
populações vivem nas cidades — e a tendência é de crescimento. As intenso diálogo com a administração local, universidades locais,
taxas de crescimento, por sua vez, são caracterizadas por um alto empresários, organizações não governamentais e cidadãos, entre
índice de informalidade na produção habitacional. Nesse contexto, o outros, a fim de: a) definir conjuntamente a área de planejamento;
desenvolvimento urbano espacial é regulamentado por lei em todas b) definir uma tarefa precisa; c) estabelecer contatos com as partes
as cidades, porém o planejamento formal não surte efeito no caso interessadas; d) organizar entrevistas, grupos focais e oficinas de
do crescimento informal. São outros mecanismos que controlam o cocriação; e e) continuar a perseguir o projeto como um grupo de
crescimento espacial — por exemplo, grilagem informal de terras, apoio local após a cooperação.
mas também expansão planejada nas periferias urbanas.
DESAFIOS DA URBANIZAÇÃO NA
Para resolver a complexa tarefa de planejar a informalidade (e a AMÉRICA LATINA E NO CARIBE
formalidade) da região, nosso grupo de pesquisadores e profissio-
nais montou think tanks locais em mais de vinte cidades da América O trabalho no Urban Design Lab revelou que as cidades de médio
Latina e do Caribe, de 2013 a 2019, desenvolvendo ferramentas porte são caracterizadas pelo monocentrismo e, em muitos casos,
de planejamento para projetos sociais urbanos que envolvam e há apenas um centro histórico. Esse centro histórico é geralmente
apoiem os bairros. O chamado Urban Design Lab foi desenvolvido caracterizado pela presença de escritórios e usos comerciais, bem
como parte do Programa de Parceria Acadêmica (APP), uma cola- como assentamentos informais com populações empobrecidas. A
boração entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), maior parte da população costuma viver fora dos centros históricos
o Ministério Federal da Fazenda da Áustria (BMF) e o Instituto de nos chamados barrios, que também são bairros residenciais mono-
Desenho Urbano da Universidade Técnica de Viena. Desde 2018, funcionais. Essas zonas residenciais, escassamente povoadas, das
a metodologia do Urban Design Lab também é utilizada em outras classes média e alta são pouco conectadas ao transporte público.
regiões do mundo no contexto de cidades em rápido crescimento.
Na maioria das cidades de médio porte da América Latina e do
UM THINK TANK LOCAL QUE CRIA PLANOS DE AÇÃO Caribe não surgem novas áreas planejadas de uso misto ou novos
LOCAIS INTEGRADOS centros. Além disso, a cidade compacta e voltada ao pedestre
está se dissolvendo visivelmente, com os SUVs (carros grandes)
Como os urbanistas estão respondendo à rápida transformação das assumindo o controle da paisagem urbana. Isso é particularmente
cidades latino-americanas e caribenhas? Pergunta-se inicialmente evidente em cidades caribenhas como Nassau (Bahamas), Santiago
por onde começar com os desafios multifacetados. A resposta: de los Caballeros (República Dominicana) e Montego Bay (Jamaica).
com a produção de grandes planos de desenvolvimento urbano, A informalidade e a falta de manutenção caracterizam hoje quase
ou melhor, de projetos de pequena escala — vale dizer, em escala todas as cidades da América Latina e do Caribe.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

FATOS, DADOS E PARTICIPAÇÃO — A NECESSIDADE DE UMA OLHADA RÁPIDA NO PROCESSO DE PLANEJAMENTO


UMA ABORDAGEM INTEGRADA DE PLANEJAMENTO INOVADOR

Muitas vezes, o planejamento baseado em fatos e dados não é Os resultados de um Laboratório de Desenho Urbano são “Planos
possível nas cidades latino-americanas. Mesmo nas metrópoles, há de Ações Integradas” concretos que se inserem no respectivo con-
poucos dados disponíveis sobre demografia, estoque de edifícios texto. Ao envolver a população em um processo de planejamento
etc. Planejar sem dados é um desafio, entretanto técnicas criativas aberto e público, esses projetos contam com o devido apoio das
de participação podem produzir informações úteis para inventário e partes interessadas, principalmente dos tomadores de decisão e
análise. A experiência do Urban Design Lab mostra que uma imagem da população. A implementação harmoniosa é mais provável do
útil da situação urbana pode ser criada por meio de vários proces- que com outros programas desenvolvidos sem discurso público.
sos e formatos de participação. Em nossos Laboratórios Urbanos, Deixe-nos mostrar como conduzimos e cocriamos em muito pouco
chamamos os desafios e problemas de "Tópicos Emergentes" — ou tempo o processo de planejamento.
seja, as questões, desafios e potenciais importantes para a tarefa.
Então, acreditamos que os dados qualitativos possam substituir ▸ Criação de um think tank local temporário
os dados quantitativos até certo ponto.
Para resolver uma tarefa de planejamento complexa, o estabele-
cimento de um think tank local temporário é fundamental. Ele é
Os resultados do planejamento integrado são promissores, como
configurado para a duração do processo de planejamento, ou seja,
mostram as boas práticas na Colômbia, Brasil e Chile. Os exemplos
pelo menos quatro meses. O objetivo é iniciar um diálogo intensivo
de sucesso combinam não só aspectos econômicos, culturais e
com a administração e universidades locais, empresários, ONGs etc.;
sociais como também culturais e governamentais com desenhos
urbanos. Parece que a integração desses elementos é um fator-cha-
▸ O Urban Design Lab transforma as partes interessadas em
ve para criar iniciativas exitosas. Os urbanismo social em Medellín
codesigners
(Colômbia), ou os projetos de teleféricos e academias verticais do
Urban Think Tank em Caracas (Venezuela), os programas integra- As partes interessadas são convidadas a participar intensamen-
dos do programa Favela-Bairro no Rio de Janeiro ou os projetos te do processo de planejamento. O Urban Design Lab utiliza o
habitacionais do arquiteto Alejandro Aravena, no Chile, podem ser conhecimento local de moradores, artistas, cientistas, políticos,
citados como exemplos de sucesso. Contudo, como se chega lá? administradores, arquitetos e planejadores locais. O conhecimento
coletivo e local deve ser levado a todas as fases do projeto.
Observamos que os departamentos de planejamento urbano das
cidades latino-americanas de médio porte que colaboraram nos ▸ A imprevisibilidade nos processos criativos
Laboratórios de Desenho Urbano sofrem de uma escassez crônica
“Participação” costuma ser uma palavra da moda e, de fato, muitos
de pessoal, contando geralmente com cinco funcionários, ou até
planejadores a confundem com informação do cidadão. Falamos
menos. O planejamento urbano estratégico e integrado está,
sobre codesign e coprodução de ideias para criar projetos. É impor-
portanto, fora de questão. Via de regra, os engenheiros assumem
tante criar soluções “baseadas no local”, não apenas estratégias
as tarefas de planejamento urbano e têm trabalho administrativo
vagas. Precisamos de discussões abertas sobre possibilidades,
suficiente para emitir licenças de construção.
ações. Essas abordagens são essenciais no processo de planeja-
mento e acabarão por produzir soluções criativas e imprevisíveis.

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

▸ Colaborações acadêmicas como fator experimental ativamente como moderadores e projetistas em um processo de
desenvolvimento orientado pela comunidade.
Um elemento-chave no processo de planejamento cooperativo é
testar novas ideias e abordagens alternativas de planejamento.
O Urban Design Lab provou ser um método e uma ferramenta
Envolver grupos de estudantes locais é perfeito para essas expe-
inovadora de participação e inclusão para o desenvolvimento de
riências espaciais. Mesmo ideias irrealistas provocam discussão
novos projetos urbanos integrados. O método também é usado
e diálogo na comunidade. A cidade não pode só testar ideias e
experimentalmente em Viena para o desenvolvimento de programas
soluções envolvendo o setor acadêmico. Porém, é assim que as uni-
de placemaking e de projetos de espaços públicos. Além disso, foi
versidades têm oportunidade de chegar ao mundo real e vice-versa.
adotado para servir em contextos culturais na Ásia, África subsaariana
e Europa Central e Oriental. Em última análise, o método Urban Design
▸ Crie projetos envolventes voltados para a comunidade
Lab não tem limites. Vemos o futuro do planejamento em diálogo
Ao envolver todas as partes interessadas no início do processo de com as pessoas — aliás, os futuros usuários dos bairros urbanos.
planejamento, a confiança é criada, as pessoas se sentem ouvidas
e atendidas; elas são questionadas sobre suas opiniões e visões e O método de planejamento, a caixa de ferramentas, os relatórios de
objetivos comuns são definidos. Assim, ao envolver a população no campo e todos os projetos urbanos do Urban Design Lab na América
processo de planejamento, os projetos tornam-se mais vinculativos. Latina e no Caribe foram documentados e publicados em um livro
abrangente, Urban Design Lab handbook (Berlin: Jovis, 2019), que
▸ A narrativa urbana como instrumento de planejamento será lançado como e-book neste ano de 2023.

Desenvolver junto à comunidade visões e ideias de projetos pode


fortalecer os valores e as qualidades das iniciativas. Os Urban Design
Labs visam criar um denominador comum na forma de olhares e
!
PARA SABER MAIS, VER:
propostas de programas. É importante desenvolver uma narrativa
▸ KREBS, Roland, TOMASELLI, Markus (ed.). Urban Design Lab handbook. Berlin:
convincente de um projeto que vá além do mero marketing. A
Jovis, 2019.
narrativa pode ser usada especificamente para a comunicação de
ideias e é apoiada no processo de planejamento de, por exemplo,
ações de placemaking em espaços públicos ou produções de vídeo.

O NOVO PAPEL DOS URBANISTAS

O papel dos urbanistas é redefinido no processo de planejamento


orientado para o diálogo. Eles mantêm uma visão geral do processo
e atuam como orientadores. Inicialmente, os planejadores ouvem
com atenção, organizam caminhadas e entendem sua posição como
moderadores de um processo cooperativo de projeto. Possíveis
soluções são experimentadas com intervenções de placemaking
e imediatamente colocadas em discussão. Portanto, é necessário
que os planejadores saiam de seu papel passivo e apareçam

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Guia de Urbanismo Social Capítulo 15 : Casos Referenciais

15.16_ BOOXHIBITION:
IMAGINANDO O FUTURO
Também reconhecemos os problemas com maneiras mais formais
de engajamento com as comunidades. As reuniões tradicionais
formais da comunidade podem ser úteis, porém geralmente apenas
arranham a superfície. Elas podem ajudar a cumprir os requisitos
Em 2015, na Harvard University Graduate School of Design (GSD estatutários, em vez de aumentar o conhecimento. No Laboratório,
Harvard), as professoras Martha Schwartz e Virginie Lefebvre desenvolvemos maneiras de compartilhar o cotidiano o máximo
desenvolveram um estúdio de projeto sobre Derry-Londonderry, possível com as comunidades para entender como as pessoas
a segunda maior cidade da Irlanda do Norte. Doze alunos foram vivem suas vidas diariamente.
encarregados de imaginar o futuro de Derry-Londonderry, encon-
trar maneiras de rejuvenescê-la e construir uma ponte sobre o rio Por exemplo, em um projeto nas Bahamas, nossos alunos e pes-
que atravessa a urbe dividida. Posteriormente, os projetos foram quisadores passaram uma semana vivendo entre comunidades
trabalhados em uma cartilha que foi divulgada junto à comunidade insulares e tentando coletivamente entender melhor seus valores,
local. Muitos anos depois, altos funcionários do governo municipal esperanças e aspirações. Eles mantiveram anotações, esboços e
confirmariam que todos os projetos dos estudantes tinham se tor- desenhos detalhados, refletindo não apenas sobre como as pessoas
nado realidade — de um modo ou de outro. As imagens da cartilha interagem com a terra agora, mas também, como as coisas poderiam
inspiraram o governo, técnicos e cidadãos a tomar sua própria ser diferentes no futuro. Estávamos descrevendo e prescrevendo
iniciativa para moldar o futuro. Visualizar o futuro é uma forma de ao mesmo tempo. No final, produzimos um processo em vez de
moldá-lo e ajudar os outros a imaginá-lo — e moldá-lo também. um plano. Não houve um relatório final e, sim, várias intervenções
com muitos pontos de entrada — o que chamamos de “caixa de
Para moldar o futuro, devemos imaginar o futuro. Imaginações ferramentas” (design tool-kit). O projeto foi concebido como uma
do futuro fundamentadas no presente têm maior probabilidade série de intervenções inter-relacionadas. Alguns dos projetos
de sucesso porque se baseiam no conhecimento e nas práticas foram implementados à medida que avançavam. Construímos doze
existentes. O futuro, é claro, também conterá o inesperado; nunca galinheiros em três ilhas diferentes nas fases iniciais do projeto, por
podemos conhecer o desconhecido com certeza. Sabemos que o exemplo. Então, quando ele foi concluído, já estava em andamento.
desconhecido vai acontecer. E podemos antecipar o desconhecido.
Muito do presente moldará o futuro. Para entender o presente, Inspirados pelos resultados do estúdio de 2005 e pelo exemplo nas
devemos saber como as pessoas vivem, trabalham e habitam uma Bahamas, citado anteriormente, fomos solicitados a concluir um
paisagem. Ao não considerar o futuro, o futuro ainda virá, talvez novo projeto na Irlanda em 2019, Atlas for a City-Region: Imagining
mais cedo do que pensamos. Ainda assim, abrimos mão de nosso the Post-Brexit Landscapes of the Irish Northwest. Os governos que
poder de criar futuros mais desejáveis. Podemos aterrissar em patrocinaram o estudo nos disseram que queriam encontrar mais
futuros menos desejáveis se não reivindicarmos nosso papel na maneiras de envolver o público no processo de projeto e planeja-
formação do futuro. mento. Para tanto, 27 alunos passaram uma semana em fazendas
e aldeias dos dois lados da fronteira. Alguns estavam debruçados
Projetar é, em muitos aspectos, imaginar o futuro. “O Laboratório sobre o presente, complementando e desafiando as estatísticas
de Projeto de Paisagens Críticas” da GSD Harvard adota uma oficiais por meio de suas observações diárias. Suas conversas no
abordagem centrada nas pessoas — comunidades locais — para o território foram essenciais para o processo de design e trouxeram
projeto de paisagens. Como vivem suas vidas, seus valores e dese- muitos novos insights. Por meio de um estúdio de projeto, outros
jos, as pessoas são agentes essenciais na formação de paisagens. doze alunos imaginaram o futuro ao longo de duzentos anos.

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Guia de Urbanismo Social

Com os resultados, desenvolvemos um “booxhibition”, livro híbrido,


com exposição adaptável, flexível, que pode ser aberto e compar-
tilhado. A mostra pode ser aberta em uma escola, salão de igreja,
espaço comunitário, escritório de governo ou mesa de cozinha. O
formato flexível permite vários momentos de entrada de muitos
constituintes em situações diferentes. Criticamente, o booxhibition
está repleto de imaginações do futuro: porque, se não imaginarmos
o futuro, insista-se, não podemos moldá-lo.

Devemos continuar encontrando maneiras de conversar com diver-


sos públicos, permitindo que sejam ouvidas vozes normalmente
não incluídas no projeto e engajamento, em um processo que
inclui quatro etapas:

▸ Envolver um público diversificado em conversas sobre o futuro;

▸ Imaginar possíveis futuros desejados;

▸ Descrever e visualizar esses possíveis futuros;

▸ Comunicar futuros desejados para inspirar conversas sobre o futuro.

Ao seguir os quatro pontos e compartilhar visões de futuro, podemos


envolver um grupo mais abrangente de coagentes na forma de vários
futuros desejados, lembrando que os projetos referenciados se
encontram em áreas desfavorecidas socialmente e que estávamos
sempre desenvolvendo maneiras de ser mais inclusivos socialmente.

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O território importa. As pessoas importam.
Em um país com tantas desigualdades
sociais, é no uso dos espaços em nossas
cidades que elas se revelam — e demandam
soluções urgentes. Este Guia de Urbanismo
Social apresenta um “cardápio” amplo de
tópicos e temas sobre a pauta ao longo de
seus quinze capítulos — integração e terri-
torialização de políticas públicas, planos de
ação local e questões ligadas a, mulheres
e territórios, saúde, cidades e crianças, go-
vernança e regulação urbana, dentre outros
–, sempre com uma linguagem acessível e
preocupações de ordem prática, visando
contribuir para a melhoria da vida sobretudo
das comunidades mais vulneráveis.

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