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A METAMORFOSE DOS GOSTOS1

Pierre Bourdieu

P - Como mudam os gostos? Pode-se descrever cientificamente a lógica


da transformação dos gostos?

- Antes de responder a estas perguntas, é preciso lembrar como se definem os


gostos, isto é, as práticas (esportes, atividades de fazer, etc.) e as propriedades
(móveis, gravatas, chapéus, livros, quadros, cônjuges, etc.) através dos quais se
manifesta o gosto, compreendido como princípio das escolhas assim realizadas.
Para que haja gostos, é preciso que haja bens classificados, de "bom" ou
"mau" gosto, "distintos" ou "vulgares", classificados e ao mesmo tempo
classificantes, hierarquizados e hierarquizantes, e que haja pessoas dotadas de
princípios de classificações, de gostos, que Ihes permitam perceber entre estes
bens aqueles que Ihes convém, aqueles que são "do seu gosto". Com efeito, pode
existir um gosto sem bens (gosto sendo tomado no sentido de princípio de
classificação, de princípio de divisão, de capacidade de distinção) e bens sem
gosto. Pode-se dizer, por exemplo: "percorri todas as boutiques de Neuchâtel e não
encontrei nada de meu gosto". Isto coloca a questão de saber o que é este gosto
que pré-existe aos bens capazes de satisfazê-lo (contradizendo o provérbio: ignoti
nulla cupido, do desconhecido não há desejo).
Mas há também casos em que os bens não encontram os "consumidores" que
os considerariam de seu gosto. O exemplo por excelência destes bens que
precedem o gosto dos consumidores é o da pintura ou da música de vanguarda
que, desde o século XIX, só encontram os gostos pelos quais "chama" muito tempo
depois do momento em que foram produzidas, e às vezes até mesmo muito tempo
depois da morte de seu produtor. Isto coloca a questão de saber se os bens que
precedem os gostos (posto à parte, é claro, o gosto dos produtores) contribuem
para formar os gostos: a questão da eficácia simbólica da oferta de bens ou, mais
precisamente, do efeito da realização sob forma de bens de um gosto particular, o
do artista.

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Comunicação feita na Universidade de Neuchâtel, em maio de 1980.

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Chega-se assim a uma definição provisória: os gostos, entendidos como o
conjunto de práticas e de propriedades de uma pessoa ou de um grupo são
produto de um encontro (de uma harmonia pré-estabelecida) entre bens e um
gosto (quando digo "minha casa é do meu gosto", estou dizendo que encontrei a
casa conveniente para o meu gosto, onde meu gosto se reconhece, se reencontra}.
Entre estes bens, é preciso incluir, com o risco de chocar, todos os objetos de
eleição, de afinidade eletiva, como os objetos de simpatia, de amizade ou de amor.
Ainda há pouco eu colocava a questão de maneira elíptica: em que medida o
bem que é a realização de meu gosto, que é a potencialidade realizada, forma o
gosto que nele se reconhece? O amor à arte fala freqüentemente a mesma
linguagem que o amor: a paixão súbita é o reencontro miraculoso entre uma
espera e sua realização. É também a relação entre um povo e seu profeta ou seu
porta-voz: "você não me procuraria se não tivesse me encontrado". Aquele ao qual
se fala é alguém que tinha em estado potencial alguma coisa a dizer e que só o
sabe .quando isto lhe é dito. De uma certa maneira, o profeta não anuncia nada;
ele só prega aos convertidos. Mas pregar aos convertidos também é fazer alguma
coisa. É realizar esta operação tipicamente social, e quase mágica, este
reencontro entre um já-objetivado e uma espera implícita, entre uma linguagem e
as disposições que só existem em estado prático. Os gostos são o produto deste
encontro entre duas histórias − uma em estado objetivado, outra em estado
incorporado − que se conciliam objetivamente. Daí sem dúvida uma das
dimensões do milagre do encontro com a obra de arte: descobrir uma coisa de seu
gosto, é se descobrir, é descobrir aquilo que se quer ("é exatamente o que eu que-
ria"), aquilo que se tinha a dizer e que não se sabia dizer, e que em conseqüência.
não se sabia.
No encontro entre a obra de arte e o consumidor, existe um terceiro ausente,
aquele que produziu a obra, que fez uma coisa de seu gosto graças a sua
capacidade de transformar seu gosto em objeto, de transformá-lo de estado de
alma ou, mais exatamente, de seu estado de corpo em coisa visível e conforme o
seu gosto. O artista é este profissional da transformação do implícito em explícito,
da objetivação que transforma o gosto em objeto, que realiza o potencial, isto é,
este sentido prático do belo que só pode se conhecer realizando-se. De fato, o
sentido prático do belo é puramente negativo e feito quase que exclusivamente de
recusa. O objetivador do gosto está para o produto de sua objetivação na mesma
relação que o consumidor: ele pode achá-lo ou não de seu gosto. Reconhecemos-

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lhe a competência necessária para objetivar um gosto. Mais exatamente, o artista
é alguém que reconhecemos como tal, reconhecendo-nos naquilo que ele faz,
reconhecendo naquilo que ele fez aquilo que teríamos feito se soubéssemos fazê-
lo. É um "criador", palavra mágica que podemos empregar uma vez definida a
operação artística como operação mágica, isto é, tipicamente social. (Falar de
produtor, como se deve fazer, com muita freqüência, para romper com a
representação comum do artista como criador − privando-se assim de todas as
cumplicidades imediatas que esta linguagem tem certeza de encontrar, tanto entre
os "criadores" quanto entre os consumidores, que gostam de se pensar como
"criadores", com o tema da leitura como recriação −, é correr o risco de esquecer
que o ato artístico é um ato de produção de tipo muito particular pois deve fazer
existir numa forma completa algo que já estava lá, exatamente à espera de sua
aparição, e fazê-lo existir de uma maneira bem diferente, isto é, como uma coisa
sagrada, como objeto de crença).
Os gostos, como conjunto de escolhas feitas por uma pessoa determinada,
são, portanto, o produto de um encontro entre o gosto objetivado do artista e o
gosto do consumidor. Falta compreender por que, a um dado momento do tempo,
existem bens para todos os gostos (ainda que, sem dúvida, não haja gosto para
todos os bens); por que os clientes mais diversos encontram objetos de seu gosto.
(Em toda análise que faço, pode-se substituir mentalmente objeto de arte por bem
ou serviço religioso. A analogia com a Igreja mostra assim que o aggiornamento
um pouco precipitado substituiu uma oferta bastante monolítica por uma oferta
muito diversificada, satisfazendo todos os gostos, missa em francês, latim, de
batina, de roupa civil, etc.). Para dar conta deste ajustamento quase miraculoso da
oferta à procura (com a exceção que representa a oferta maior do que a procura),
poderíamos invocar, como faz Max Weber, a busca consciente do ajustamento, a
transação calculada dos clérigos com as expectativas dos leigos. Assim, isto
significaria supor que o padre de vanguarda que oferece aos moradores de um
subúrbio operário uma missa "Iiberada" ou o padre integrista que reza sua missa
em latim, têm uma relação cínica, ou pelo menos calculada, com sua clientela,
estabelecendo com ela uma relação de oferta e procura inteiramente consciente;
que ele está informado da demanda − não se sabe como, já que ela não sabe se
formular e só se conhece ao se reconhecer em sua objetivação − e que se esforça
para satisfazê-la (há sempre esta suspeita em relação ao escritor de sucesso: seus
livros tiveram sucesso porque ele foi ao encontro das demandas do mercado,

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subentendido aqui as demandas mais baixas, mais fáceis, mais indignas de serem
satisfeitas). Supomos então que por uma espécie de faro mais ou menos cínico ou
sincero, os produtores se ajustem à demanda: quem consegue é quem encontrou
seu "encaixe".
A hipótese que vou propor para dar conta do universo de gostos a um dado
momento do tempo é inteiramente diferente, mesmo que as intenções e as
transações conscientes jamais estejam excluídas, é claro, da produção cultural.
(Alguns setores do espaço de produção − esta é uma de suas propriedades
distintivas − obedecem o mais cinicamente possível à busca calculada do lucro,
portanto do "encaixe": dá-se um tema, seis meses, seis milhões e o "escritor" deve
fazer um romance que será um best-seller). No entanto, o modelo que proponho
rompe com o modelo que se impõe espontaneamente e que tende a fazer do
produtor cultural, escritor, artista, padre, profeta, feiticeiro, jornalista, um calculador
econômico racional que, por uma espécie de estudo de mercado, conseguiria
pressentir e satisfazer necessidades apenas formuladas ou até mesmo ignoradas,
de forma a tirar o maior lucro possível de sua capacidade de antecipar e portanto
de preceder aos concorrentes. De fato, há espaços de produção onde os
produtores trabalham com os olhos voltados muito menos para seus clientes, isto
é, para aquilo que é chamado o público, do que para os seus concorrentes. (Mas
esta ainda é uma formulação finalista que apela demais para estratégia
consciente). Mais exatamente, eles trabalham num espaço onde o que produzem
depende muito estreitamente de sua posição no espaço de produção (aqui eu
peço desculpas àqueles que não estão acostumados com a sociologia: sou
obrigado a avançar uma análise sem poder justificá-la de maneira simples). No
caso do jornalismo, o crítico do .Figaro2 produz com os olhos voltados não para
seu público, mas em referência ao Nouvel Observateur (e reciprocamente). Para
isto, ele não precisa referir-se intencionalmente a seu opositor: basta seguir seu
gosto, suas próprias inclinações, para se definir contra o que diz o crítico do lado
oposto, que também faz a mesma coisa. Ele pensa contra o crítico do Nouvel
Observateur mesmo que isto não seja consciente. Isto pode ser visto em sua
retórica que é a do desmentido antecipado: dirão que sou um velho gagá
conservador porque critico Arrabal, mas compreendo Arrabal o bastante para Ihes
assegurar que ele nada tem para ser compreendido. Ao se tranqüilizar, ele
tranqüiliza seu público, que se inquieta com as obras inquietantes porque

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ininteligíveis − se bem que este público sempre as compreenda o bastante para
sentir que elas querem dizer coisas que ele compreende bem mais. Para falar de
maneira um tanto objetivista e determinista, o produtor em sua produção é
comandado pela posição que ocupa no espaço da produção. Os produtores
produzem produtos diversificados pela própria lógica das coisas e sem procurar a
distinção (é claro que o que tentei mostrar opõe-se diametralmente a todas as
teses sobre o consumo ostentatório que fazem da busca consciente da diferença o
único princípio de mudança da produção e do consumo culturais).
Há, portanto, uma lógica do espaço de produção que faz com que os
produtores, querendo ou não, produzam bens diferentes. As diferenças objetivas
podem, é claro, serem subjetivamente aumentadas e, há muito tempo, os artistas
que são objetivamente distintos, procuram também objetivamente se distinguir −
em particular no estilo, na forma, naquilo que propriamente Ihes pertence, em
oposição ao tema, à função. Dizer, como eu fiz às vezes, que os intelectuais,
assim como os fonemas, só existem pela diferença, não quer dizer que toda
diferença tenha por princípio a procura da diferença: felizmente não basta procurar
a diferença para encontrá-la, e às vezes num universo onde a maioria procura a
diferença, basta não procurá-la para ser muito diferente...
Do lado dos consumidores, como as pessoas fazem suas escolhas? Em
função de seu gosto, isto é, de uma maneira que em geral é negativa (pode-se
sempre dizer o que não se quer, isto é, geralmente o gosto dos outros): gosto que
se constitui na confrontação com os gostos já realizados, que ensina a si próprio o
que ele é ao se reconhecer em objetos que são gostos objetivados.
Compreender os gostos, fazer a sociologia dos gostos que as pessoas têm, de
suas propriedades e suas práticas é, portanto, por um lado conhecer as condições
em que se produzem os produtos oferecidos e por outro as condições em que os
consumidores são produzidos. Assim, para compreender os esportes que as
pessoas praticam, é preciso conhecer suas disposições e também a oferta que é o
produto de invenções históricas. O que significa que o mesmo gosto poderia, num
outro estado da oferta, se exprimir em práticas inteiramente diferentes do ponto de
vista fenomênico, e no entanto serem estruturalmente equivalentes. (É a intuição
prática destas equivalências estruturais entre objetos fenomenicamente diferentes
e, no entanto, praticamente substituíveis, que nos faz dizer que Robbe-Grillet é
para o século XX o que Flaubert era para o século XIX; o que significa que quem

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N.T. - Le Figaro: jornal de direita.
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escolhia Flaubert na oferta da época estaria numa posição homóloga a de quem
escolhe Robbe-Grillet).
Depois de lembrar como os gostos são engendrados no encontro entre uma
oferta e uma demanda ou, mais precisamente, entre objetos classificados e
sistemas de classificação, podemos examinar como os gostos mudam. Em
primeiro lugar, do lado da produção, da oferta: o campo artístico é o lugar de uma
mudança permanente a tal ponto que, como se viu, para desacreditar um artista,
basta remetê-lo ao passado, mostrando que seu estilo apenas reproduz um estilo
já atestado no passado e que, fóssil ou falsário, ele não passa de um imitador,
consciente ou inconsciente, e totalmente desprovido de valor porque sem qualquer
originalidade.
O campo artístico é o lugar de revoluções parciais que perturbam a estrutura
do campo sem questioná-lo enquanto tal e nem o jogo que aí se joga. No campo
religioso, temos a dialética da ortodoxia e da heresia − ou da "reforma", modelo de
subversão específica. Os inovadores artísticos são, como os reformadores,
pessoas que dizem aos dominantes, "vocês traíram, é preciso retornar às origens,
à mensagem". Por exemplo, as oposições em torno das quais se organizam as
lutas literárias durante todo o século XIX e até nossos dias podem em última
análise se limitar à oposição entre jovens, isto é, os que chegaram por último, os
recém-chegados e os velhos, os estabelecidos, o establishment: obscuro/claro,
difícil/fácil, profundo/superficial, etc., estas oposições opõem definitivamente
idades e gerações artísticas, isto é, posições diferentes no campo artístico que a
linguagem nativa opõe como avançada/ultrapassada, vanguarda/retaguarda, etc.
(Podemos ver, de passagem, que a descrição da estrutura de um campo, das
relações de força específicas que o constituem como tal, inclui uma descrição da
história deste campo). Entrar no jogo da produção, existir intelectualmente, é
marcar uma época e, ao mesmo tempo, remeter ao passado aqueles que, em
outra época, também marcaram a época. (Marcar época é fazer história que é o
produto da luta, que é a própria luta; quando não há mais luta, não há mais
história. Enquanto há luta, há história e, portanto, esperança. Quando não há mais
luta, isto é, resistência dos dominados, há o monopólio dos dominantes e a história
pára. Os dominantes, em todos os campos, vêem sua dominação como o fim da
história − no duplo sentido, de final e de objetivo −, que não possui um após e
portanto se encontra eternizada). Marcar época é, portanto, remeter ao passado,
ao ultrapassado, ao desclassificado, aqueles que foram dominantes durante um

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tempo. Aqueles que são remetidos ao passado, desta maneira, podem se tornar
simplesmente desclassificados, mas podem também se tornar clássicos, isto é,
eternizados (seria preciso examinar, mas não posso fazê-lo aqui, as condições
desta eternização, o papel do sistema escolar, etc.). A alta-costura é o campo onde
o modelo que descrevi pode ser percebido mais claramente, tão claramente que é
quase fácil demais e por isto corremos o risco de compreender rápido demais,
facilmente demais, mas pela metade (caso freqüente nas ciências sociais: a moda
é um destes mecanismos que nunca se compreende porque os compreendemos
facilmente demais). Por exemplo, Bohan, o sucessor de Dior, fala de seus vestidos
na linguagem do bom gosto, da discrição, da moderação, da sobriedade,
condenando implicitamente todas as audácias exageradas dos que se situam à
sua "esquerda" no campo: ele fala de sua esquerda da mesma maneira como o
jornalista do Figaro fala do Libération. Quanto aos costureiros de vanguarda, eles
falam da moda na linguagem da política (a pesquisa foi feita pouco depois de 68),
dizendo que é preciso "fazer a moda descer para as ruas", "colocar a alta-costura
ao alcance de todos", etc. Por aí vemos que há equivalências entre estes espaços
autônomos que fazem com que a linguagem possa passar de um a outro com
sentidos aparentemente idênticos mas realmente diferentes. O que coloca a
questão de saber se, quando se fala de política em certos espaços relativamente
autônomos, não se está fazendo o mesmo que Ungaro ao falar de Dior.
Temos portanto um primeiro fator de mudança. Por outro lado, será que isto
vai continuar? Podemos imaginar um campo de produção levado pelo entusiasmo
e que "semeia" os consumidores. É o caso do campo da produção cultural, ou pelo
menos de alguns de seus setores, desde o século XIX. Mas este também foi o
caso, bem recentemente, do campo religioso: a oferta precedeu a demanda; os
consumidores de bens e serviços religiosos não pediam tanto... Temos aqui um
caso em que a lógica interna do campo se esvazia, verificando-se a tese central
que proponho, ou seja, que a mudança não é o produto de uma procura de
ajustamento à demanda. Sem esquecer este caso de defasagem, pode-se dizer
que, de um modo geral, os dois espaços, o espaço da produção de bens e o
espaço da produção de gostos a grosso modo mudam no mesmo ritmo. Entre os
fatores que determinam a mudança da demanda está, sem dúvida alguma, a
elevação do nível, quantitativo e qualitativo, da demanda que acompanha a
elevação do nível de instrução (ou duração da escolarização) e que faz com que
um número sempre maior de pessoas entrem na corrida pela apropriação de bens

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culturais. O efeito da elevação do nível de instrução se exerce, entre outras coisas,
pela intermediação daquilo que chamo de efeito da assignação estatutária
"Noblese oblige") e que determina que os detentores de um certo título escolar,
que funciona como um título de nobreza, realizam as práticas − freqüentar os
museus, comprar um aparelho de som, ler o Le Monde − inscritas em sua definição
social, poderíamos dizer em sua "essência social". Assim, o prolongamento geral
da escolaridade e, em particular, a intensificação da utilização que as classes que
Já o utilizam bastante podem fazer do sistema escolar explicam o crescimento de
todas as práticas culturais (previsto, no caso do museu, pelo modelo que
construímos em 1966). E dentro da mesma lógica pode-se compreender que a
parte das pessoas que se diz capaz de ler notas de música ou tocar um
instrumento cresce fortemente quando nos dirigimos à gerações mais Jovens. O
papel da mudança da demanda em relação à mudança dos gostos pode ser muito
bem percebido no caso da música onde, com o disco, a elevação do nível da
demanda coincide com um decréscimo do nível da oferta (no domínio, da leitura o
equivalente seria o livro de bolso). A elevação do nível da demanda determina uma
translação da estrutura dos gostos, estrutura hierárquica, que vai do mais raro,
Berg ou Ravel atualmente, ao menos raro, Mozart ou Beethoven; mais
simplesmente, todos os bens oferecidos tendem a perder sua raridade relativa e
seu valor distintivo à medida que cresce o número de consumidores que estão, ao
mesmo tempo, inclinados e aptos para a sua apropriação. A divulgação
desvaloriza; os bens desclassificados já não dão "classe"; bens que pertenciam
aos happy few tornam-se comuns. Os que se reconhecem como happy few, pelo
fato de lerem Éducation Sentimentale ou Proust, devem ir além a Robbe-Grillet, ou
mais ainda, à Claude Simon, Duvert, etc. A raridade do produto e a raridade do
consumidor diminuem paralelamente. É assim que os discos ou os discófilos
"avançam" a raridade do melômano. Opor Panzera a Fischer Diskau, produto
impecável da indústria do disco, como outros oporão Mengelberg à Karajan, é
reintroduzir a raridade abolida. Dentro da mesma lógica, pode-se compreender o
culto dos "78 rotações" ou das gravações "ao vivo". Em todos os casos, trata-se de
reintroduzir a raridade: nada de mais comum do que as valsas de Strauss, mas que
charme quando elas são tocadas por Fürtwangler. E Tchaikowsky por Mengelberg!
Outro exemplo, Chopin, durante muito tempo desqualificado pelas meninas de boa
família, agora encontrou a sua vez e possui defensores inflamados entre os jovens
musicólogos. (Se para ir depressa, temos que empregar uma linguagem finalista e

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estratégica para descrever estes processos, é preciso ter em mente que estas
empresas de reabilitação são inteiramente sinceras e "desinteressadas" e se
devem essencialmente ao fato do que os que reabilitam contra os que
desqualificaram não conheceram as condições contra as quais se levantavam os
que desqualificaram Chopin). A raridade pode portanto vir do modo de escuta
(disco, concerto, ou execução pessoa!), do intérprete, da própria obra: quando ela
é ameaçada por um lado, pode-se reintroduzí-Ia sob uma outra relação. E o fino do
fino pode consistir em brincar com o fogo, seja associando o gosto mais raro pela
música mais refinada às formas mais aceitáveis da música popular, de preferência
exótica, seja saboreando as interpretações estritas e altamente controladas das
obras mais "fáceis" e mais ameaçadas de "vulgaridade". Inútil dizer que os jogos
do consumidor se encontram com alguns jogos dos compositores que, como
Mahler ou Stravinsky, também podem se divertir brincando com o fogo, utilizando
secundariamente músicas populares, ou mesmo "vulgares", emprestadas do
music-hall ou dos bailes de taverna.
Estas são apenas algumas estratégias (na maioria das vezes, inconscientes)
através das quais os consumidores defendem a sua raridade defendendo a
raridade dos produtos que consomem ou da maneira de consumi-los. De fato, a
mais elementar, a mais simples, consiste em fugir dos bens divulgados,
desclassificados, desvalorizados. Sabe-se, através de uma pesquisa realizada em
1979 pelo Institut Français de Démoscopie, que há compositores, como por
exemplo Albinoni, Vivaldi ou Chopin, cujo "consumo" cresce à medida que se vai
em direção às pessoas mais velhas e também às pessoas menos instruídas: as
músicas que por eles oferecem são, ao mesmo tempo, ultrapassadas e
desclassificadas, isto é, banalizadas, comuns.
O abandono das músicas desclassificadas e ultrapassadas se acompanha de
uma fuga para a frente em direção às músicas mais raras no momento
considerado, isto é, evidentemente, em direção às músicas mais modernas: e
observa-se assim que a raridade das músicas, medida pela nota média que
recebem numa amostra representativa de auditores, cresce à medida que se vai
em direção a obras mais modernas, como se a dificuldade objetiva das obras fosse
tanto maior quanto mais elas contivessem história acumulada, mais referências à
história, e exigissem assim uma competência maior para ser adquirida e, portanto,
mais rara. Passa-se de 3,0 sobre 5 para Monteverdi, Bach e Mozart; a 2,8 para
Brahm; 2.4 para Puccini; e, ligeira inversão, 2,3 para Berg (mas tratava-se de

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Lulu); e 1,9 para Ravel, o Concerto para mão esquerda. Em suma, pode-se prever
que o público mais "advertido" vai se deslocar continuamente (e os programas dos
concertos o testemunham) em direção à música moderna. Mas também há o
retorno: vimos o exemplo de Chopin. Ou as renovações: a música barroca tocada
por Harnoncourt ou Malgoire. Daí resultam os ciclos inteiramente parecidos aos da
moda de roupas, a não ser quanto ao período que é mais longo. Nesta lógica,
poderíamos compreender as maneiras sucessivas de tocar Bach, de Busch a
Leonhardt, passando por Muchinger, cada um "reagindo" contra a maneira
precedente.
Podemos ver que as "estratégias" de distinção do produtor e as estratégias de
distinção dos consumidores mais advertidos, isto é, mais distintos, se encontram
sem necessidade de se procurarem. É isto que faz com que o encontro com a obra
seja freqüentemente vivido na lógica do milagre e da paixão súbita. E que a
experiência do amor à arte se exprima e se viva na linguagem do amor.3

Extraído de BOURDIEU, Pierre. 1983. Questões de sociologia. Rio de Janeiro:


Marco Zero. p. 127-135.

3
Desenvolvimentos complementares sobre este tema poderão ser encontrados em: P. Bourdieu, "La
production de Ia croyance, contribution à une économie de biens symboliques", Actes de la recherche
en seiences socieles, 13, 1977.

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