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O RAP E A CRISE DA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

SLIDE. Capa apresentação

Boa tarde! Gostaria de agradecer o convite pra participar


dessa mesa, que para mim é motivo de muita honra e satisfação.
Queria agradecer particularmente ao Henrique, pela generosidade e
por estar sempre aberto ao diálogo e a troca de ideia. Espero que a
gente possa ter um papo bastante produtivo nessa tarde e que
possa ser um processo prazeroso de troca de ideias e aprendizado
mútuo.

O objetivo inicial dessa minha fala é apresentar e defender


uma hipótese que até pouco tempo encontrava certa resistência no
circuito acadêmico, mas que agora tem sido aceita com certa
facilidade, se tornando quase que hegemônica. A ideia de que o rap
brasileiro é hoje um dos gêneros artísticos e culturais mais
importantes do país. Apesar de ainda não receber o mesmo
destaque internacional que a bossa nova, o samba, ou a MPB, há
pelo menos trinta anos ele tem sido o responsável por produzir
alguns dos trabalhos artísticos mais relevantes do Brasil. Alguns
álbuns clássicos do rap nacional, como o Sobrevivendo no Inferno,
dos Racionais, Rap é Compromisso, do Sabotage, Nó na Orelha, do
Criolo e Babylon by Gus, do Black Alien, entre outros, estão a meu
ver entre as melhores coisas já produzidas em termos de música
popular brasileira, ao lado dos álbuns clássicos do João Gilberto,
Tom Jobim, Jorge Ben, Gilberto Gil, Martinho da Vila e tantos
outros.
O hip hop brasileiro tem hoje não só talvez aquela que seja a
produção cultural mais relevante em termos artísticos do país, como
fornece também uma espécie de síntese de um modelo
epistemológico da juventude negra de periferia que atualmente
produz um dos mais avançados e complexos diagnósticos de
realidade do Brasil. Algumas das nossas principais figuras e
lideranças intelectuais hoje são em alguma medida vinculadas ao
hip hop. E esse é um fenômeno absolutamente impressionante,
caso a gente leve em consideração que se trata de uma produção
artística e intelectual que consegue atingir um grau de inteligência e
posicionamento crítico só encontrada na melhor produção
intelectual do Brasil, como Drummond, Machado de Assis e Chico
Buarque. Só que, nesse caso, produzida por sujeitos negros de
periferia que, segundo a lógica do Estado deveriam estar mortos
antes dos trinta anos. Trata-se, portanto, de um tipo de
conhecimento que se organiza enquanto resistência ao negar
radicalmente aquilo que o país oferece enquanto projeto
civilizatório.

SLIDE. Bolsonaro genocida

E aqui eu abro um breve parêntesis, porque acredito que


atualmente, com o atual governo de extrema-direita que está no
poder, a própria ideia de que é preciso construir um projeto de
civilização nacional foi abandonada completamente e substituída
por outra coisa. O sujeito que alguns aqui insistem em chamar de
presidente, por exemplo, decidiu se colocar contra os Estados que
fizerem lockdown para conter a pandemia, propondo uma série de
sanções e punições, e isso num momento em que o Brasil se tornou
o epicentro da pandemia com quase 2500 mortes diárias. Estamos
falando de um sujeito que demite quem usa máscara e chama
publicamente o luto pelas famílias que tiveram perdas de “frescura”.

Isso que nós estamos vivendo no Brasil nesse momento,


apesar de ter uma continuidade histórica com aquilo que nós somos
em profundidade – porque o Brasil sempre foi em grande medida
uma máquina de extermínio de populações marginalizadas –
apresenta também uma série de novidades perversas, mesmo em
relação a momentos politicamente violentos como a Ditadura Militar
de 1964, que apresentava um projeto de civilização autoritário e
antidemocrático. Isso porque o bolsonarismo é muito mais do que
antidemocrático: ele é anticivilizatório. Seu projeto, por mais
absurdo que possa parecer, é de destruição total. É por isso que ele
opta por facilitar a disseminação do vírus ao invés de preservar a
vida das pessoas. É uma gestão de morte no sentido biopolítico
mais estrito, com o progressivo aumento de poder das instituições
que lucram com a aceleração do processo de precarização da vida,
como a face mais perigosa do exército, os setores mais violentos da
polícia e do agronegócio, além de setores religiosos
fundamentalistas. Um projeto de queima total que remonta a
práticas pré-republicanas.

II. Adeus à MPB

[SLIDE. Adeus à MPB]

Para deixar mais evidente o impacto cultural que o rap


ocasionou no contexto brasileiro, eu queria partir de uma questão
ligada ao campo da MPB, justamente pra que nós possamos
perceber pela comparação o quanto que o rap representou uma
mudança radical em relação a uma série de pressupostos
fundamentais da música popular até então.

Pra isso eu queria partir de um ensaio breve do professor


Carlos Sandroni - que é um etnomusicólogo da Universidade
Federal de Pernambuco, e que tem uma pesquisa fundamental
sobre samba -, que se chama “Adeus à MPB”. Nesse texto o
Sandroni vai defender a seguinte ideia: a partir de um certo
momento, ali entre os anos 1980 e 1990, a sigla MPB, que até
então parecia se referir a um sistema de obras mais ou menos
reconhecíveis, deixa de fazer sentido, e começa a girar no vazio. O
conjunto de valores e estilos a que a sigla se referia perde algo da
sua substância e parece não se referir a mais nada em específico,
se tornando uma classificação puramente comercial, que serve no
máximo pra organizar as prateleiras das lojas de CD por nichos de
mercado. É como se a sigla de repente se esvaziasse, apesar de
continuar sendo utilizada.

Essa percepção do Carlos Sandroni, elaborada em 2004, faz


parte de um debate mais amplo que estava circulando no meio da
crítica cultural brasileira desde o início dos anos 2000, em torno do
tema do fim da canção. A sua expressão mais conhecida talvez
seja uma entrevista que o Chico Buarque deu para o jornal Folha
de São Paulo em 2004, e que eu vou ler aqui pra vocês:

[SLIDE. Chico Buarque e o fim da canção]

“Talvez tenha razão quem disse que a canção, como a conhecemos, é um


fenômeno próprio do século passado. […] A minha geração, que fez aquelas canções
todas, com o tempo só aprimorou a qualidade da sua música. Mas o interesse por isso
hoje parece pequeno. Por melhor que seja, por mais aperfeiçoada que seja, parece
que não acrescenta grande coisa ao que já foi feito. E há quem sustente isso: como a
ópera, a música lírica foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a
conhecemos, seja um fenômeno do século 20. No Brasil, isso é nítido. Noel Rosa
formatou essa música nos anos 1930. Ela vigora até os anos 1950 e aí vem a bossa-
nova, que remodela tudo - e pronto [...] Quando você vê um fenômeno como o rap,
isso é de certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos. Talvez seja o
sinal mais evidente de que a canção já foi, passou”.

É claro que quando o Chico Buarque diz que o modelo de


canção que a geração dele cultivou deixou de existir, e que o
sintoma disso é o rap, ele não está dizendo que a MPB literalmente
desapareceu. Inclusive os representantes da geração dele
continuam realizando trabalhos de grande qualidade. Os últimos
trabalhos do Caetano Veloso, da Elza Soares e do próprio Chico
Buarque estão entre os melhores discos gravados recentemente no
Brasil. Mas o que tanto ele quanto o Carlos Sandroni estavam
identificando naquele momento é que algo do sentido mais amplo
do próprio conceito de MPB estava entrando em crise, e dando
lugar para outra coisa.

Porque de fato, definir o que seja a MPB é uma das coisas


mais difíceis de se fazer. Porque aquilo que o brasileiro chama de
MPB não é propriamente um estilo musical, mas um conjunto de
elementos absolutamente heterogêneos e diferentes entre si que
são abarcados sob um mesmo rótulo. Não é possível reduzir a MPB
a uma série de características formais definidas a partir de critérios
estritamente musicais, por exemplo. A MPB é muito mais que um
estilo específico: na verdade é quase uma instituição, um sistema
estético, social e discursivo suficientemente amplo pra incluir desde
Nelson Cavaquinho até Tom Jobim, mas suficientemente restrito
para excluir um determinado tipo de rock de matriz norte-americana,
por exemplo. Além disso, seus sentidos são flexibilizados ao longo
do tempo: Roberto Carlos, por exemplo, entre as décadas de 60 e
80 foi considerado como o oposto da verdadeira MPB, uma espécie
de música comercial e romântica de baixa qualidade, que no Brasil
é tratado como música brega. Até que a partir dos anos 1990 ocorre
um movimento de aproximação forte entre os artistas da MPB com
Roberto Carlos, tanto os da geração anterior quanto os mais jovens,
que torna mais difícil manter essa distinção.

[EXEMPLOS curtos de MPB??] João Gilberto – Roberto Carlos


– Danado pra Catende – O vira

Portanto, quando o Sandroni diz que a MPB deixou de fazer


sentido, ele não está se referindo a um conjunto específico de
procedimentos estéticos, que continuam sendo utilizados (inclusive
pelos mesmos artistas dos anos 1960), e sim a esse complexo
cultural, social e ideológico que integrava em um mesmo horizonte
de significado um conjunto de práticas musicais bastante
heterogêneas.

[SLIDE o que é MPB]

Mas qual seria esse complexo cultural, social e ideológico que


sofre um abalo profundo a partir dos anos 2000? Pois ainda que
não seja possível definir a MPB a partir de um conjunto fechado de
características particulares - porque qualquer estilo musical pode vir
a se tornar MPB - é perfeitamente possível recuperar uma série de
acontecimentos históricos e eventos específicos que tornaram
possível o desenvolvimento do gênero.

Foi preciso, em primeiro lugar, que houvesse um determinado


grau de desenvolvimento da indústria fonográfica brasileira, criando
as condições materiais necessárias para o desenvolvimento do
mercado de música popular no país. Não podemos esquecer que a
MPB dos anos 1960 e 1970 é um fenômeno diretamente ligado ao
fortalecimento do mercado fonográfico. Por mais que existam
artistas que assumam uma posição mais crítica em relação ao
mercado e ao que se chamava então de Imperialismo Cultural
norte-americano, o fato é que a MPB sempre foi um fenômeno de
mercado, que dependia diretamente do desenvolvimento da
Indústria Fonográfica nacional. Não é por acaso, portanto, que a
crise da MPB se confunde em grande medida com um momento de
crise profunda do próprio mercado fonográfico. E não é por acaso
também que a MPB vai se consolidar justamente no período mais
rígido da ditadura militar, porque ainda que os militares ocupassem
o espectro político oposto, eles compartilhavam com a esquerda e
com os setores liberais o mesmo pressuposto nacionalista de
desenvolvimento da indústria nacional, que gerava uma curiosa
confluência de interesses, marcada por uma série de tensões.

[SLIDE Propaganda canção de protesto]

Além disso a MPB sempre dependeu estruturalmente do


desenvolvimento tecnológico promovido pela Indústria Fonográfica.
Não existiria MPB, por exemplo, caso o LP não tivesse sido
inventado. Além disso, ela vai estar diretamente vinculada ao
processo de popularização da televisão, ocasionando um encontro
de grande sucesso entre a maior novidade tecnológica da época,
representada pela televisão, e a grande novidade estética, que era
a música produzida pela juventude universitária de esquerda.

Em termos culturais e políticos, pode-se dizer que o conceito


de MPB surge vinculado a uma série de debates que, ao longo dos
anos 1960 e 1970, giravam em torno da ideia de identidade
nacional e povo brasileiro, que vai ser representada de diversas
formas, as mais conflituosas possíveis. O Brasil é um para os
Tropicalistas, é outro para a Bossa Nova, e é outro para Jorge Ben.
Mas de todo modo, a MPB – junto com o samba – vai ser um dos
espaços privilegiados de negociação e representação dessas
identidades, amparada pelo projeto das classes médias de
esquerda de encontrar formas mais efetivas de comunicação com
as classes populares.

[SLIDE cultura popular]

Em suma, a tradição da MPB que toma forma na década de


1960 faz parte de um espectro cultural mais amplo que interpreta a
cultura popular brasileira como sendo marcada por uma longa e
permanente tradição de encontros e mediações culturais. Esses
encontros produziriam como marca distintiva da civilização
brasileira uma cultura radicalmente marcada por diversos níveis de
mistura e conciliação entre raças e classes sociais, dominado de
alto a baixo pelo espectro da mestiçagem. Nesse sentido, a
mestiçagem não se refere apenas ao aspecto racial, mas diz
respeito a uma característica mais abrangente do país, espécie de
marca distintiva da cultura brasileira, aquela que seria a principal
contribuição do Brasil à civilização Ocidental.
Essa seria a história do samba como síntese do encontro
entre classes e raças nos quintais das casas das mães de santo no
Rio de Janeiro; a história da mulata como símbolo maior desse
encontro; a história da ressignificação do futebol europeu por
negros e mestiços brasileiros, elevando o esporte a um novo
patamar de excelência; a história da bossa nova, em que a classe
média de Ipanema se aproxima e reinventa os sambas dos negros
pobres dos subúrbios e morros cariocas. É a história de Francisco
Alves, Mário Reis, Nara Leão, Zé Keti, Noel Rosa e Chico Buarque.
Como afirma o ensaísta Francisco Bosco, ele próprio parte dessa
tradição, “o século XX no Brasil é atravessado quase de cabo a
rabo pela presença forte de uma autoimagem cultural afirmativa,
baseada nos valores da mistura, da graça, do desrecalque corporal,
do princípio do prazer, e da apropriação criativa de valores
Ocidentais”.

Mas o mais importante para a nossa discussão é que essa


imagem altamente positiva da cultura brasileira durante muito tempo
alimentou a esperança de que seria possível realizar o mesmo
processo de transmutação do horror em beleza no campo social.
Ou seja, não se trata apenas de uma visão de cultura, mas de uma
visão de cultura que impulsiona modelos de atuação e organização
política com efeitos concretos na vida social. A cultura popular –
que para essa tradição é formada pela mistura de pretos, brancos,
mulatos, pobres, ricos e classe média – fornecia uma espécie de
imaginário utópico para muitos artistas e intelectuais, prefigurando
um projeto de sociedade que o Brasil tinha o dever de realizar no
plano social.
A MPB, portanto, foi um dos campos culturais privilegiados a
partir de onde foi possível a uma classe média progressista
representar os mais diversos tipos de integração entre o popular e o
erudito, fortalecendo todo um imaginário nacional que tinha como
horizonte a necessidade de superação dos processos de exclusão
do país a partir da incorporação dos mais pobres aos horizontes
mínimos de cidadania. Ao longo da década de 1960 e 1070, esse
imaginário atravessa todo o campo das artes, sendo debatido pelo
teatro, cinema, artes plásticas, literatura e pela música popular.

Grosso modo, de uma perspectiva mais progressista e crítica,


essa forma permitia olhar pra realidade nacional e julgá-la a partir
do sucesso ou fracasso em realizar na prática o projeto de
integração que se verificava no campo cultural. É nesse sentido que
deve ser interpretada a frase clássica de Caetano Veloso, de que “o
Brasil precisa merecer a bossa nova”. Trata-se de criar um modelo
civilizatório que incorpore na política e na sociedade os avanços
que se verificavam no âmbito da cultura popular, apresentando um
projeto político a altura de nosso horizonte cultural. Nesse sentido a
MPB foi uma forma privilegiada de dar contornos simbólicos e
imaginários a ideia de civilização brasileira, permitindo sonhar um
modelo alternativo de modernização, cujo grande contraponto são
os EUA, como afirma o Caetano Veloso em uma importante
conferência que ele apresentou no Museu de Arte Moderna do Rio
de Janeiro, e que eu gostaria de ler um trecho aqui:

[SLIDE Caetano Veloso MAM]

“Considerar vantajosas até mesmo as condições adversas com que a história


nos presenteou; fazer, por exemplo, do fato de não termos sido eficientes o suficiente
no extermínio dos índios como os nossos irmãos do norte — cuja eficácia nesse
campo aprendemos a aplaudir nos filmes em que outro herói hollywoodiano prova ser
tão frequente quanto o jornalista delator: o matador de índios — , e mesmo o fato de
vermos que ainda estamos efetuando com atraso, esse extermínio, uma oportunidade
de nos tornarmos índios ao passo que nos reconhecemos ultraocidentais”.

Hoje essa inspiração da cultura popular baseada nos


encontros e na conciliação, essa aposta estratégica nos termos em
que ela se apresentou como modelo para a transformação da
sociedade brasileira, parece em larga medida esvaziada. O
encontro, a mistura, a cordialidade, a malandragem e a ideia de
democracia racial atualmente parecem muito mais com imagens
ideologicamente mobilizadas pela cultura do espetáculo e da
propaganda hegemônica do que com lastro legítimo de organização
da cultura popular. Porque o país que a MPB imaginava, e que ela
tornava possível imaginar, desapareceu. E é por isso que o núcleo
de força mais interessante da canção a partir desse momento se
desloca para gêneros que não partilham desse horizonte nacional.
E um dos gêneros mais bem-sucedidos nesse sentido é justamente
o rap, que tem na obra dos Racionais MC’s um dos seus momentos
de maior força.

[OUVIR: início Capítulo IV versículo III]


III

A fúria negra ressuscita outra vez

[SLIDE: Sujeito Periférico]

Boa parte do rap brasileiro dos anos 1990 irá construir sua
obra a partir da perspectiva de que as promessas de
desenvolvimento nacional, e a consequente integração dos mais
pobres ao horizonte de cidadania, tão sonhadas pela MPB, não
eram mais historicamente viáveis. De fato, o lugar que percebe
antes de todo mundo que esse projeto de desenvolvimento nacional
havia chegado ao fim, e que, portanto, o próprio imaginário nacional
havia sido completamente reconfigurado, foi a periferia. E isso muito
antes das universidades, dos intelectuais e artistas consagrados
tomarem consciência do que estava acontecendo.

E existe uma razão bastante lógica para isso: é que a periferia


era o alvo privilegiado da lógica estatal de gestão da miséria pela
violência. Nesse sentido, a forma como o Estado passa a atuar nas
periferias se torna uma espécie de laboratório paradigmático do
modo como a sociedade brasileira se organiza enquanto nação, a
partir de um modelo baseado em princípios neoliberais de exclusão
social, em processos de destruição de instituições públicas básicas
e em mecanismos de gerenciamento da miséria por meio de
processos de extermínio e encarceramento em massa da juventude
negra.

[SLIDE: números do encarceramento em massa no Brasil]


Ao longo dos anos 1990, após o período de abertura
democrática do país após o período da ditadura militar, o Brasil
passou por uma série de reformas neoliberais que foram
absolutamente desastrosas em termos sociais, ocasionando um
aumento vertiginoso dos índices de precarização do trabalho e do
desemprego, muitos similares aos índices atuais, que levaram a
uma explosão sem precedentes dos índices de violência nas
comunidades periféricas.

Além disso, a forma que o Estado encontrou de gerenciar


essa crise foi por meio da criminalização da periferia. Só para vocês
terem uma ideia, em 1992 a população carcerária de São Paulo
totalizava cerca de 52.000 presos distribuídos em 43 presídios. Em
2002 esse número já tinha triplicado, subindo para quase 110.000
presos em cerca de 80 presídios. De 2004 para cá, a taxa de
adultos presos aumentou em 84%.

Além disso, todos os índices de violência contra a periferia


também aumentaram escandalosamente ao longo desse período:
apenas entre 1992 e 1993 - que é quando o rap ganha projeção
nacional - ocorreram o Massacre do Carandiru, cujo saldo foram
111 mortes confirmadas; a chacina da Candelária – em que a
polícia atirou em 70 crianças que viviam na rua, matando 8 e ferindo
várias; e apenas um mês depois a chacina do Vigário Geral, que
deixou 21 mortos.

Naquele momento já havia se tornado mais do que evidente


para os moradores da periferia que os eventos que haviam
acontecido no Massacre do Carandiru e nas Chacinas da
Candelária e do Vigário Geral não eram exceções, mas
representavam o próprio modo de atuação do Estado brasileiro. Ele
não apenas havia abandonado a periferia, como promovia um
processo perverso de higienização e extermínio. É por isso que os
Racionais vão compor “Diário de um Detento”, que narra e analisa o
massacre do Carandiru da perspectiva dos presos, e colocar a
música exatamente no meio de seu trabalho mais importante, que é
o “Sobrevivendo no Inferno”. Porque eles percebem que o
Massacre do Carandiru havia se tornado o modelo paradigmático
de gestão do Estado. O símbolo do país não era mais o futebol ou o
carnaval, mas as práticas de genocídio direcionadas contra a
população preta e pobre. E a própria ideia de nação, que nunca
chegou a ser uma realidade no país, deixava inclusive de pautar o
imaginário social, a não ser enquanto ideologia.

É por isso que a linguagem da música popular não poderia


mais ser a mesma utilizada pela MPB ou pelo samba. Não faz
sentido que a periferia adote um modelo estético cujo pressuposto
seja uma possível integração a uma comunidade nacional, quando
o próprio conceito de nação se torna o verdadeiro inimigo a ser
combatido, uma vez que o Estado assume de vez seu projeto de
marginalização e extermínio.

Eu gostaria de mostrar pra vocês o trecho de um clipe dos


Racionais pra música “Diário de um detento”, que eu encontrei com
legenda em Inglês. Esse clipe foi um grande acontecimento e
acabou influenciando muito da linguagem cinematográfica do Brasil,
como nos filmes Cidade de Deus e Tropa de Elite. Foi uma das
primeiras vezes que a prisão era retratada com tanto realismo.

[VÍDEO: Diário de um detento]


E aqui nós podemos abrir um outro parêntesis, porque alguém
pode lembrar com razão de que na época da ditadura militar o
inimigo declarado da MPB também era o Estado, ou o Sistema.
Isso, portanto, não representa nenhuma novidade. Só que para os
artistas ligados a MPB o Estado Brasileiro havia sido sequestrado
por forças totalitárias antidemocráticas e, portanto, a forma de
libertá-lo era por meio da defesa radical da Democracia, a partir de
uma aliança entre setores progressistas da classe média e
movimentos populares. O que acontece no contexto de emergência
do rap é que o Estado já é Democrático e, portanto, esse projeto de
extermínio dos mais pobres é um projeto da Democracia, e não da
Ditadura. O Estado para MPB é um estado ilegal, não democrático,
enquanto que pra periferia o Estado é perfeitamente legal e, ao
mesmo tempo, genocida. Nesse caso, o problema está na própria
democracia, e na ideia de uma unidade nacional construída sobre
seus termos. O ponto de partida muda completamente. A questão
para o rap brasileiro dos anos 1990 não é mais construir um projeto
de nação, e sim como sobreviver a ele.

[SLIDE. Mano Brow e Sabotage]

Um aspecto fundamental dessa mudança radical de


paradigma tem a ver com a própria percepção do lugar ocupado
pela mestiçagem na construção desse imaginário nacional. Para o
paradigma da MPB que viemos acompanhando até aqui, a
mestiçagem funciona como a imagem mais bem acabada dessa
possibilidade civilizatória de tipo novo que emergiria na cultura
popular. É o paradigma que está presente nos modernistas como
Oswald e Mário de Andrade, na visão de democracia racial de
Gilberto Freyre, na utopia de modernização conciliatória da Bossa
Nova, na promessa de um povo moreno original de Darcy Ribeiro.
Tudo se passa como se a mestiçagem fosse um dado fundamental
da experiência brasileira e concentrasse em si a fonte de onde
poderia emergir um novo tipo de subjetividade, que a partir da visão
binária e dicotômica das experiências norte-americana e europeia
não seria possível.

O rap brasileiro aposta na construção de uma identidade


formada a partir da ruptura com esse paradigma cordial, por meio
da afirmação de uma comunidade negra que se desvincula do
projeto de nação mestiça tal como concebida até então. Ele irá se
reconhecer enquanto um gênero cantado por negros que
reivindicam uma tradição cultural negra, por meio de um discurso de
demarcação de fronteiras que denuncia o aspecto de violência e
dominação contido no modelo cordial de valorização da
mestiçagem. O que o rap vai revelar é a existência de outro
movimento oculto no interior mesmo do processo de valorização da
identidade nacional mestiça. Em suma, o rap brasileiro vai
identificar como o principal elemento do projeto civilizatório
brasileiro não a mestiçagem, mas um tipo particular e muito efetivo
de racismo estrutural, cujo segredo maior é o processo de
criminalização do corpo negro.

Nesse sentido, o destino do “bandido” e daqueles que estão a


margem da sociedade aparece como uma espécie de imagem
síntese do destino de todo jovem negro periférico, na medida em
que se compreende que a violência crescente contra a população
negra não é um acidente ou um problema que o Estado deseje
superar, mas a consolidação mesma do projeto de Estado Nacional.
Portanto, oferecer alternativas reais para a vida desses sujeitos é
uma condição prévia para a emancipação da periferia como um
todo, uma vez que a produção do bandido preto pobre como um
corpo que pode ser morto e descartado, é o que garante a
manutenção da “normalidade” social genocida. Não por acaso,
diversos rappers desse período eram, eles próprios, detentos ou
criminosos, como o caso do rapper Sabotage e Dexter.

[SLIDE Mariele Franco]

Ao longo desse processo, o rap brasileiro tem sido


fundamental também para ajudar a compreender o modo específico
de organização e desenvolvimento do racismo brasileiro,
demonstrando de forma brilhante as maneiras como ele se articula
tanto social quanto ideologicamente. É possível dizer que, a partir
da influência do hip hop, não é mais possível deixar de reconhecer
que o Brasil é um país extremamente racista. Com o rap, o mito da
democracia racial não tem mais como se sustentar.

Entre outras coisas, o grupo ajudou a desmontar a visão de


que o racismo brasileiro seria velado, ou sutil, justamente por não
ter ocorrido no país algo parecido com o Apartheid ou ao sistema
Jim Crown. É verdade que o racismo brasileiro nunca foi
institucionalizado nesse sentido, o que ajudou a sustentar por
muitos anos a imagem de que a questão racial por aqui havia se
encaminhado de uma maneira mais humanizada. Mas os processos
de violência e discriminação contra a população negra do país, são
explícitos e cotidianos, a tal ponto que podemos dizer que o racismo
brasileiro é uma estrutura social que funda a nação. O Brasil só
existe porque é racista, é um país construído literalmente sob
corpos negros.

Portanto, não é verdade que o racismo brasileiro seja mais


sutil, ou mais leve. Na mesma semana em que nós tivemos os
protestos globais pela morte de George Floyd, o Miguel Otávio, uma
criança negra, filho de uma empregada doméstica, foi assassinada
em Pernambuco por uma senhora branca rica. E alguns dias
depois, um policial militar em São Paulo repetiu exatamente o
mesmo gesto do policial que matou George Floyd com uma mulher
negra, com a certeza de que seria filmado. O assassinato da
vereadora Marielle Franco, uma mulher negra e periférica, em 14 de
março de 2018, mobilizou milhares de pessoas em todo o Brasil e
fora dele. O crime continua sem solução porque é um fator
estrutural do racismo brasileiro o fato dele acontecer “sem racistas”,
como se fosse um dado da natureza. Negros morrem e ponto. A
naturalização das mortes do povo negro e a desresponsabilização
total dos assassinos é a espinha dorsal que funda o país.

[SLIDE Orgulho Negro]

É importante dizer também que o rap não apenas ensinou pra muita
gente que o racismo existe, e como ele existe. Mas também ajudou
a difundir a noção moderna de negritude como resistência,
juntamente com os esforços do movimento negro brasileiro, mas
com um alcance muito mais amplo, por se tratar de uma produção
artística. O Brasil tem um amplo histórico de difusão da imagem do
negro escravizado e humilhado e o rap ajudou a transformar essa
humilhação em orgulho e revide. Com o hip hop, a negritude vira
sinônimo de resistência. Como disse a filósofa Djamila Ribeiro, os
Racionais mostraram para a periferia como organizar o seu ódio,
fazendo com que os negros passassem a tratar a sua raça como
arma, um instrumento de luta contra o genocídio do seu povo.

Ao romper com as bases de representação do imaginário


nacional que conferiam sentido simbólico e ideológico para MPB, o
rap dos Racionais torna a dissolução do horizonte simbólico que
orientava parte da sociedade brasileira seu ponto de partida. Aquilo
que para MPB representou uma crise profunda - a ponto do próprio
Chico Buarque afirmar que o modelo de canção que a sua geração
havia consolidado provavelmente teria chegado ao fim – ou seja, a
miragem do nacional desenvolvimentismo, é o ponto de partida dos
Racionais MC’s. Dessa maneira, o grupo consegue transfigurar em
matéria formal aquilo que o Brasil havia efetivamente assumido
enquanto projeto político: um verdadeiro campo de extermínio a céu
aberto, que tem como aspecto decisivo a produção e a gestão da
violência. É por isso que conciliação não é mais a palavra de ordem
do momento, e sim Fogo nos Racistas, que é um verso do rapper
Djonga, da nova geração.

[SLIDE Djonga Fogo nos Racistas]

Gostaria de finalizar com outro vídeo dos Racionais, também


com legenda em inglês, de uma música que se tornou um hino da
periferia no começo dos anos 2000. Negro Drama.

[VÍDEO Negro Drama com legenda]

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