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Mário de Andrade

Cartas
do
Modernismo
Curadoria: Denise Mattar
CENTRO CULTURAL CORREIOS RIO DE JANEIRO
14 de novembro de 2012 a 13 de janeiro de 2013

apoio patrocínio realização

LEI DE
INCENTIVO
À CULTURA LEI DE
INCENTIVO
À CULTURA
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“Anita do coração....”

A saudação é do poeta, romancista, professor, crítico... Mário de Andrade (1893-1945) em


carta datada de 1º de dezembro de 1924 e destinada à pintora Anita Malfatti. Essa e outras
cartas – selecionadas da vasta correspondência do escritor paulista – estão postadas
no Centro Cultural Correios do Rio de Janeiro e seus conteúdos, abertos ao público na
exposição “Mário de Andrade – Cartas do Modernismo”.

Entre os correspondentes do atuante modernista, estão também importantes e renomados


artistas plásticos, poetas e escritores brasileiros, como Tarsila do Amaral, Cândido Portinari,
Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Victor Brecheret, Enrico Bianco, Cícero
Dias, Henriqueta Lisboa e Di Cavalcanti que expressaram em cartas suas idéias sobre o
movimento modernista e seus sentimentos mais íntimos: amores, brigas, disputas...

A exposição, que encerra as comemorações dos 90 anos da Semana de Arte Moderna é


ilustrada ainda com imagens, fotos, textos e importantes e valiosas obras de arte assinadas
por Anita Malfatti, Cícero Dias, Ismael Nery, Zina Aita, Augusto Rodrigues, Lasar Segall e
Enrico Bianco. Compõe ainda a mostra, um recorte especial que destaca o curto período
em que Mário de Andrade viveu no Rio de Janeiro e sua amizade com Cândido Portinari.

Tanto o acervo de correspondências, como o da coleção particular de obras de arte do


escritor são guardados pelo IEB - Instituto de Estudos Brasileiros USP. Relíquias que,
delineadas com recursos atrativos de cenografia, museografia e de multimídia, podem ser
lidas, ouvidas e vistas na exposição, que apresenta ao público um panorama da implantação
e expansão do modernismo no Brasil e as personalidades desse momento histórico da arte
no País.

Prezado público...

Esta saudação é dos Correios, que escrevem o seu nome na realização da exposição “Mario
de Andrade - Cartas do Modernismo” para prestigiar você estudante, professor, artista,
pesquisador... Enfim cada pessoa que tem interesse pela arte e cultura brasileira e ao
aprimoramento do conhecimento. Os Correios selam essa escrita que expõe um conteúdo
rico do ideário modernista, tanto biográfico e pedagógico, quanto sentimental e emotivo,
assinando atenciosamente,

Centro Cultural Correios

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Índice
Gigantismo Epistolar
Marcos Moraes e Telê Ancona Lopez - IEB/USP................................................................................ 9
Para a Posteridade
Celso Rabetti.............................................................................................................................................. 11
Mário de Andrade - Cartas do Modernismo
Denise Mattar...........................................................................................................................................15
De Mário para Anita
No atelier (1922)......................................................................................................................................28
De Anita para Mário
27 de outubro [1923]..............................................................................................................................30
De Mário para Anita
3 de Janeiro 1924.................................................................................................................................... 32
De Di Cavalcanti para Mário
18 de Dezembro 1925............................................................................................................................. 35
Di Cavalcanti - Amoroso cantador
Mário de Andrade...................................................................................................................................36
De Mário para Tarsila
19 de dezembro de 1922........................................................................................................................38
11 de janeiro de 1923.............................................................................................................................. 40
15 de novembro de 1923........................................................................................................................42
De Mário para Portinari
Eliane Hatherly Paz................................................................................................................................59
O violinista e o contato com Mário de Andrade
Marcelo Téo..............................................................................................................................................64
De Mário para Portinari
30 de Abril de 1937................................................................................................................................66
De Mário para Carlos Drummond de Andrade
30 de Abril de 1937................................................................................................................................68
De Mário para Portinari
23 de Outubro de 1940.......................................................................................................................... 72
23 de Março de 1935.............................................................................................................................. 74
De Mário para Henriqueta Lisboa
11 de julho de 1941.................................................................................................................................... 76
Carta ao pintor moço
11 de julho de 1942.................................................................................................................................. 80
De Di Cavalcanti para Mário
24 de abril de 1922..................................................................................................................................86
1º de setembro de 1930........................................................................................................................ 88
As cartas de Mário de Andrade
Affonso Romano de Sant’Anna............................................................................................................96
Dos visitantes para Mário................................................................................................................ 102
Cronologia.............................................................................................................................................. 108

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Paulo Duarte

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Guilherme Isnard

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arquivo ieb

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Gigantismo epistolar

“Eu sofro de gigantismo epistolar”, escreve Mário de Andrade a Carlos Drummond de


Andrade em novembro de 1924. Nas mensagens que se espraiam por muitos cantos
do Brasil, entre os anos de 1920 e 1945, para chegar às mãos de escritores, músicos e
pintores de várias gerações, vigora o sentido pleno da partilha intelectual, mobilizada
pela amizade. Essas cartas, hoje conhecidas em expressivo número de edições,
configuram-se como a expressão de um notável projeto intelectual de largo alcance
no movimento modernista.

A correspondência desenha a rede da atuação empenhada do criador de Macunaíma


nos debates de seu tempo, colocando em pauta a literatura, as artes, assim como a vida
social e política do país. Entre tantos assuntos presentes nas missivas, em linguagem
desataviada, cobrindo páginas e mais páginas, ganham relevo a caracterização do
nacionalismo crítico no campo estético, a reflexão sobre patrimônio histórico nacional,
os meandros da experiência do artefazer e os caminhos da formação do artista, em
bases consistentes e autocríticas.

Textos, partituras, croquis seguiam endereçados a Mário de Andrade, com pedido de


opinião, alimentando a engrenagem crítica do diálogo epistolar. Tensões e consensos,
colaboração e resistências, no debate sobre obras em processo não apenas mostram
a configuração de gestos inventivos singulares e o confronto de perspectivas de
interpretação, como também resultam na definição de um ideário artístico coletivo,
caracterizando as suas linhas de força.

Nestas Cartas do modernismo, selecionadas no diálogo do crítico severo com artistas


plásticos brasileiros, caminhos e sentidos da arte brasileira são dimensionados, no
compasso das amizades que se constroem. Cartas e obras, traços, tintas e palavras
trazem à cena a fecunda interlocução de Mário de Andrade com Anita Malfatti, Tarsila
do Amaral, Di Cavalcanti, Portinari, Manuel Bandeira, Pedro Nava e Enrico Bianco.
Completada nos comentários confiados aos poetas Carlos Drummond de Andrade e
Henriqueta Lisboa.

Marcos Moraes e Telê Ancona Lopez


Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo

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arquivo ieb

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Para a posteridade

Estávamos no início do ano de 2012. Professores e alunos do curso de Crítica e Curadoria da PUC de São
Paulo se preparavam para as comemorações dos 90 anos da realização da Semana de Arte Moderna de 1922.
Eu, dentre eles. Sabíamos que muito tinha ainda a ser pesquisado e discutido sobre o assunto. Durante todo o
primeiro semestre, como previsto, discutimos calorosa e profundamente a Semana de 22 e a sua importância
para a arte brasileira.
Numa das disciplinas, conduzida pela professora Sônia Régis Barreto, foram apresentados vários textos que
tratavam do assunto. Um deles me chamou muita atenção. “Carta ao pintor moço” de Mário de Andrade.
Escrita em 1942 e endereçada ao jovem pintor Enrico Bianco, a carta dá uma verdadeira aula, com uma visão
extremamente crítica sobre a arte moderna naquele período.
O recado de Mário de Andrade ao pintor moço parecia ainda ecoar, causando em mim um profundo es­tra­
nhamento. O que de fato ele dizia nesta carta? As palavras nela contida pareciam vivas e me im­pres­sionaram.
Estranha sensação aquela. Algo em mim começou a pulsar. Um sentimento de “algo por fazer” se assolou
em minha mente. Uma urgência se instalou em meus pensamentos. Tinha pressa em amenizar esta angústia.
Em outra disciplina, ministrada pela professora Priscila Arantes, tínhamos que apresentar um projeto de
uma exposição. Estava ali a saída para minhas angustias. As cartas, pensei! O projeto de uma exposição
sobre as cartas de artistas. Por que não? As cartas de Mário! A troca de ideias. Não através de pinturas,
romances ou outra forma de expressão artística, mas sim no posicionamento vivo de pensamentos expressos
na comunicação verbal, escrita para a posteridade. Mário escreveu suas cartas para a posteridade!
Inevitavelmente me dirigi ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Lá se encontra todo o espólio de Mário
de Andrade. Tomei um susto. Fui atrás de algumas poucas cartas e me deparei com milhares de cartas, entre
ativas e passivas. Na carta a Bianco, Mário dizia: A beleza não é senão o elemento transpositor de que a arte se
serve pra funcionar dentro da vida humana coletiva.
E assim, quando da abertura do edital de ocupação do Centro Cultural Correios, sugeri à minha amiga e
curadora Denise Mattar que ela apresentasse o projeto das cartas de Mário. Ela se encarregaria de dar a
beleza e a profundidade que o projeto merecia. Através de suas mãos, de sua cuidadosa curadoria, meu
projeto acadêmico, tornou-se uma realidade. Deixou de ser projeto. Agora é para a posteridade. É como Mário
de Andrade gostaria que fosse! Para todos!

Celso Rabetti

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Guilherme Isnard

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Paulo Duarte

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Mário de Andrade
Cartas do modernismo

D urante alguns anos empreendi extensa pesquisa sobre o modernismo, que resultou nas exposições
Di Cavalcanti (1997), Flávio de Carvalho (1999), Ismael Nery (2000), Anita Malfatti (2001) e D. Olívia
Penteado (2002). Cada um destes trabalhos, me proporcionou uma visão muito próxima do período
que vai do início do século XX até os anos 30. Posso dizer que vislumbro as pessoas por trás dos
personagens e que consigo ouvir os risos, o ritmo frenético das construções e do fox-trot, contraposto
à residências com espessos tapetes, gobelins e móveis vindos de Paris.
Nas crônicas de Di Cavalcanti, nos textos de Flávio de Carvalho e de Ismael Nery, em jornais e revistas
da época é possível delinear esse momento especial dentro da história mundial e brasileira, pleno de
mudanças, políticas, artísticas, sociais e comportamentais, e cuja face mais conhecida no Brasil é o
chamado Primeiro Modernismo.
O protagonismo de Mário de Andrade dentro desse período é inegável: suas poesias, textos, críticas
e análises influenciaram artistas, apontaram talentos e abriram os caminhos modernistas. Dono de
muitos talentos, foi poeta, escritor, crítico literário, teórico de arte, musicólogo, folclorista e fotógrafo.
Dentro de sua extensa produção, nada porém é mais saboroso, revelador e rico em detalhes pessoais,
do que suas cartas. Uma das histórias que Mário contava, quase justificando sua extensa produção
epistolar, era a de que, por volta de 1914, enviara seus primeiros versos para o poeta parnasiano
Vicente de Carvalho, e ficara muito decepcionado por nunca ter recebido uma resposta. Segundo ele,
a partir dessa experiência decidiu que, quando ficasse famoso, sempre responderia aos jovens – e, de
fato cumpriu essa promessa.
A partir de uma conversa com meu amigo Celso Rabetti aceitei sua sugestão de fazer uma exposição
sobre essa correspondência, que resultou na mostra Mário de Andrade - Cartas do Modernismo. Como
recorte curatorial foquei as artes plásticas, priorizando a correspondência com artistas como Anita
Malfatti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Portinari, ou comentários sobre arte encontrados em cartas
a Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Henriqueta Lisboa, entre outros.
Dentro dessa proposta seria impossível deixar de mostrar ao menos parte da preciosa coleção de artes
plásticas que Mário de Andrade reuniu ao longo dos anos, quase sempre comprando os trabalhos.
Em carta a Oneida Alvarenga, datada de 1940, escrevia Mário: quando aos 16 anos e muito, resolvi me
dedicar à música, me fez concluir instantaneamente que a música não existe, o que existia era a Arte?...
E desde então, desde esse primeiro momento de estudo real (...) assim como estudava piano, não perdia
concerto e lia a vida dos músicos, também não perdia exposições plásticas, devorava histórias de arte, me
atrapalhava em estéticas mal compreendidas, estudava os escritores e a língua, e, com quê sacrifícios nem
sei pois vivia de mesada miserável, comprava o meu primeiro quadro!. E de fato, o jovem Mário comprou
um quadro de Torquato Bassi, um artista acadêmico.
Em 1917, depois de haver publicado, com o pseudônimo Mário Sobral, o livro Há uma gota de sangue
em cada poema, Mário de Andrade conheceu Oswald de Andrade e Di Cavalcanti. A modernidade que
já estava latente em sua produção encontrou eco no novo grupo e Oswald levou os escritos de Mário
para o Jornal do Commércio. Foi também com os dois que visitou a exposição de Anita Malfatti. Ao ver
os trabalhos sua primeira reação foi de um riso incontido, mas depois voltou várias vezes e tornou-
se amigo de Anita. A artista apresentava obras de tendência expressionista e cubista, entre as quais
figuravam “O Homem Amarelo” , “A Estudante Russa” e “O Japonês”, pinturas que posteriormente
Mário iria adquirir.

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Paulo Duarte

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A vasta correspondência trocada entre Mário e Anita ao longo de 15 anos mostra sobretudo a grande e
duradoura amizade que os uniu. Mário era carinhoso e atento à sensibilidade exacerbada de Anita, mas
também firme em suas convicções e bastante crítico do trabalho da artista. A partir de 1923, quando
ela passa a residir em Paris, ele acompanha passo a passo as atividades da amiga, dando conselhos
e sugestões. Anitinha, Anitoca queriquerida, Anitoca do coração, Nitoca são algumas das formas de
tratamento que ele usa para se dirigir a ela. Essas cartas não tem o caráter documental que marca a
correspondência dele com outros artistas e escritores; em contrapartida, por ela desfilam os principais
personagens do modernismo em suas disputas, brigas, sucessos e conquistas.
Como é sabido a exposição de Anita Malfatti, em 1917, suscitou o artigo de Monteiro Lobato intitulado
Paranoia ou Mistificação? no qual ele criticava violentamente a exposição. Esse ataque fortaleceu os
incipientes modernistas, que cerraram fileiras em torno da artista e passaram a se reunir e trocar
experiências com frequência.
Nos anos 1920 Mário frequentava o atelier de Victor Brecheret, recém-chegado da Europa, e lá fez
sua primeira aquisição moderna, a escultura “Cabeça de Cristo”. A obra causou comoção em sua casa
por mostrar uma imagem nada doce e suave do messias. Essa reação está na gênese do livro Paulicéia
Desvairada, cuja primeira escrita é de 1920, tornando-o um dos textos pioneiros da literatura modenista
no Brasil.
A amizade de Mário com Brecheret também se estendeu por muitos anos, mas da correspondência
entre eles restaram apenas algumas interessantes cartas do artista. Os textos delas são quase ilegíveis,
escritos com letra miúda numa pitoresca miscelânea de português e italiano; em contrapartida, as
cartas são ilustradas por belíssimos desenhos, esboços de trabalhos que o artista enviava para a
apreciação do amigo e crítico, cuja opinião respeitava muito. Nos anos 1920 as esculturas de Brecheret
chocavam os acadêmicos, mas o artista era celebrado pelo jovem grupo modernista como um gênio.
Dentro desse espírito de profissão de fé em novas idéias, foi realizada a Semana de Arte Moderna no
Teatro Municipal de São Paulo de 13 a 17 de Fevereiro de 1922, concebida a partir de uma sugestão de
Di Cavalcanti. O evento reuniu pintura, escultura, literatura, poesia e música, e causou escândalo na
cidade. Entre os participantes estavam Anita Malfatti, Victor Brecheret, Manuel Bandeira, Guilherme
de Almeida, Sérgio Milliet e Heitor Villa-Lobos. O cartaz e o catálogo do evento foram realizados por Di
Cavalcanti que trabalhou ativamente para trazer os modernistas cariocas.
Mário de Andrade tinha especial carinho por Di Cavalcanti, seu companheiro desses tempos heroicos
do Modernismo. Estima-se que a correspondência entre eles deva ter sido grande, mas Di não arquivava
nada, e mudava-se com frequência. Assim, nada existe das cartas de Mário para ele, mas restaram
cartas enviadas pelo artista, com frases espirituosas como esta, escrita tortuosamente em meio a um
belíssimo desenho: Mário, felizmente eu não me apresso, não quero nunca realizar obras primas como
[querem] o Brecheret, o Villa e mesmo já o Celso Antônio. O que acontece é que eles sem autocrítica já
estão paus e eu me sinto de uma mocidade comovente. Não é orgulho, é vaidade. Eles não amam a vida. E
eu amo sobretudo a vida, esta vida que me vem como os calores sexuais de baixo para cima.
Delicioso também é o poema-retrato que, entretanto, nunca se transformou numa pintura... Mário
divertia-se com o hedonismo do amigo com o qual às vezes se identificava. E, sobretudo, apreciava
na obra de Di Cavalcanti a sua brasilidade, tema que defendia ardorosamente. Na coleção de Mário
há vários trabalhos do início da carrreira de Di, que também realizou para ele a capa do livro Losango
Caqui e um projeto para Paulicéia Desvairada, que não se concretizou.

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Mário... um Homem Desinfeliz
Documentário
25 min
1993
Diretor: Adilson Ruiz
Produtora: Estúdio AR Cinema e Vídeo
Idealizado e realizado pelo Itaú Cultural em comemoração
ao centenário de nascimento do escritor
Paulo Duarte

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Logo após a Semana, Anita Malfatti encontrou Tarsila do Amaral. Recém chegada de Paris a artista
fazia uma pintura impressionista que pode ser vista na obra “Chapéu Azul” de 1922. Surgiu então uma
turma inseparável conhecida como o Grupo dos Cinco, composto por Anita Malfatti, Tarsila do Amaral,
Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia. Nesse período Tarsila e Anita pintavam
juntas muitas vezes, e Mário de Andrade foi um de seus modelos preferidos. Entre as obras desse
momento está “As Margaridas de Mário”, de Anita, retratando as flores enviadas por Mário a Tarsila
e que integra a coleção do crítico. Com o mesmo nome e pintada no mesmo dia, a obra de Tarsila
pertence hoje ao Museu de Grenoble, França.
Naquele período efervescente o Grupo dos Cinco se reunia para discutir arte, ouvir música e dizer poesias.
Oswald tinha um Cadillac verde e desfilava pela cidade com todos a bordo. O livro Pauliceia Desvairada,
de Mário de Andrade reúne um conjunto de poemas no qual ele espelha esse momento frenético de
construção de um ideário modernista. Mas, de repente tudo mudou. Em 1923, Oswald e Tarsila assumiram
sua paixão e foram embora para Paris, onde ela foi estudar com Léger. Anita seguiu para a Europa, com
bolsa do Pensionato Artístico. Di, Brecheret e Cícero Dias também se foram. Mário de Andrade, sozinho
no Brasil, escrevia a todos incessantemente, pedindo notícias e conclamando-os a voltar.
A correspondência trocada entre Mário e Tarsila é muito desigual pois foram muito maiores e mais
longas as cartas enviadas por Mário do que as respondidas por Tarsila. Mário deixava transparecer
toda a sua admiração e encantamento pela pintora, que respondia-lhe muitas vezes de forma bastante
sucinta. Algumas são cartas de um homem apaixonado e saudoso, mas em outras ele faz sua perene
defesa da brasilidade.
Em 1924 D. Olivia Penteado organizou uma viagem a Minas Gerais para visitar as cidades históricas
(que Mário de Andrade já conhecia). Segundo ela seria a primeira de uma série de viagens de
“descoberta do Brasil”. Com seu poder de convocatória ela chamou Tarsila e Oswald, que vieram de
Paris, acompanhados do poeta francês Blaise Cendrars. Essa viagem de fato abriu para eles um novo
entendimento do país. Na volta Oswald de Andrade publicou o livro Pau-Brasil, Tarsila iniciou a fase
de mesmo nome e Mário de Andrade escreveu Noturno de Belo Horizonte, considerado um de seus
mais importantes poemas. Blaise Cendrars, de quem Mário não gostava, encantou-se com a viagem, e,
embora sempre mantivesse uma postura um pouco irônica para com os jovens modernistas, convidou
Tarsila a ilustrar seu livro Feuilles de Route, editado em Paris.
Na viagem, as fazendas e paisagens mineiras foram registradas em desenhos por Tarsila e também
por Mário de Andrade, que era bom desenhista. Mas se o escritor os encarava apenas como um diário
de viagem, para a artista eram esboços de suas novas pinturas, entre elas “O Mamoeiro”, que integra
a coleção de Mário.
Em Minas um jovem poeta local veio se apresentar a Mário, e, em 28 de Outubro de 1924, enviou-lhe
uma tímida carta: Procure-me nas suas memórias de Belo Horizonte: um rapaz magro, que esteve consigo
no Grande Hotel. Ora, eu desejo prolongar aquela fugitiva hora de convívio com seu caro espírito.(...). Mário
respondeu com uma longa carta e isso foi o início de uma correspondência literária, criativa e afetiva
que durou 21 anos. O nome do poeta era Carlos Drummond de Andrade.
Em 1927 Mário de Andrade foi convidado por D. Olívia Penteado a acompanhá-la numa viagem ao
Amazonas. A experiência foi marcante para ele aumentando ainda mais seu interesse pela música,
lendas e tradições brasileiras. O escritor voltaria ao Norte no ano seguinte. No final de 1926 ele já
escrevera Macunaíma - O herói sem nenhum caráter, sobre o qual dizia em carta ao folclorista Luís

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da Câmara Cascudo: Escrevi um romance. Romance ou coisa que o valha, nem sei como se pode chamar
aquilo. Em todo caso chama-se Macunaíma. É um herói taulipangue bastante cômico. Minha intenção foi
esta: aproveitar no máximo possível lendas e tradições costumes frases feitas etc. Brasileiros. E tudo debaixo
dum caráter sempre lendário porém como lenda de índio e negro. O livro tem uma estrutura inovadora
e faz um retrato debochado e irônico do povo brasileiro, tornando-se um marco de nossa literatura.
Aprofundando sua pesquisa iniciada com “A Negra”, Tarsila pintou, em 1928, a tela “Abaporu” (“homem
que come gente” em tupi-guarani). Inspirado por ela Oswald de Andrade descobriu na antropofagia uma
metáfora original e surpreendente para legitimar a absorção da cultura europeia e sua transformação
em cultura brasileira. Mais do que uma teoria o seu Manifesto Antropófago é um verdadeiro grito
de guerra. De maio de 1928 a março de 1929 a Revista de Antropofagia teve duas fases, ou duas
“dentições”, como queriam seus autores. Mário participou apenas da primeira; na segunda já estavam
rompidas suas relações com Oswald.
Em outubro de 1929 a quebra da Bolsa de Nova York iniciou um período político, econômico e social
sombrio que se estendeu até 1945. No Brasil a derrocada da economia do café levou à falência a
aristocracia rural paulista evaporando as fortunas de Tarsila e Oswald que se separaram. Foi o fim de
uma era, e o momento em que se encerrou, melancolicamente, o Primeiro Modernismo no Brasil.
No início da década de 1930, o primeiro sopro do modernismo já havia passado, sem ter sido reconhecido
no Rio de Janeiro, então capital do país. Em 1931, o arquiteto Lúcio Costa, à frente da Escola Nacional
de Belas Artes, mudou esse quadro convidando os principais modernistas do Rio e de São Paulo a
participar do chamado Salão Revolucionário. Entre eles havia artistas de diferentes gerações, como
Tarsila, Brecheret, Anita, Ismael Nery, Cícero Dias e Guignard. O evento causou polêmica e levou à
demissão de Lúcio Costa.
Mário de Andrade visitou o Salão onde dois trabalhos chamaram sua atenção: o “Retrato de Manuel
Bandeira” e “O Violinista”, ambos do jovem pintor Cândido Portinari. Conhecendo a sua produção
o crítico viu no artista as principais qualidades que apreciava: o cuidado com os valores plásticos,
a qualidade artesanal da pintura, o interesse pelo assunto nacional e o compromisso com o social.
Ficaram amigos, trocaram longa correspondência, e Mário procurou elevá-lo ao posto de maior artista
nacional.
Entre 1935 e 1938, Mário de Andrade exerceu o cargo de diretor do Departamento de Cultura da
Prefeitura de São Paulo. Abdicando de projetos pessoais criou uma intensa programação cultural para
a cidade. Sua demissão, em 1938, por motivos políticos e não justificados, foi um choque ( do qual
nunca se recuperou) e Mário decidiu mudar-se para o Rio de Janeiro. Sua chegada coincidiu com a
ascensão de Getúlio Vargas e o início da Segunda Guerra. Ele assumiu o cargo de professor de Filosofia
e História da Arte, na Universidade do Distrito Federal, onde Portinari tinha a cátedra de Pintura.
Apesar de estar em funcionamento, a UDF havia sido nominalmente extinta e já estava em curso
sua incorporação à Universidade do Brasil, atendendo à vontade de Gustavo Capanema, Ministro da
Educação e Saúde de Vargas.
Assim, Mário de Andrade, que chegara ao Rio fugindo de intrigas políticas, veio parar em meio a
outras, muito mais complexas, e que tornaram sua situação bastante instável. Com a extinção da UDF
Mário tornou-se consultor técnico do Instituto Nacional do Livro e colaborador do SPHAN, do qual
foi um dos criadores. Mas ele não se sentia à vontade em participar do governo de Vargas, mesmo
cercado de colegas como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Rodrigo de Mello Franco.

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Nesse período difícil, Portinari e sua esposa Maria tornaram-se a família de Mário e ele teve
a oportunidade de assistir ao triunfo do amigo. Sucessivamente o artista foi convidado a criar os
afrescos e azulejos do prédio do MEC, teve uma exposição individual no MOMA de Nova York, e foi para
os Estados Unidos pintar os painéis da Biblioteca do Congresso em Washington.
Em 1941 Mário decidiu voltar para São Paulo, amargurado com a situação política e artística do país,
e sem nunca ter se adaptado verdadeiramente à cidade. Deixou no Rio os jovens amigos de farras
e conversas, Murilo Miranda, Lúcio Rangel, Carlos Lacerda e Moacir Werneck de Castro, com quem
passou a se corresponder intensamente.
Mário de Andrade voltou ao Rio em 1942, a convite da Casa do Estudante, para realizar, no Itamaraty, a
conferência O movimento modernista. A palestra foi um importante balanço daquele período, mas seu
tom já prenunciava a morte de Mário, que ocorreu em São Paulo a 25 de Fevereiro de 1945.
Para contar essa história a exposição Mário de Andrade – Cartas do Modernismo foi dividida em
núcleos: “Primeiro Modernismo” apresentava uma cronologia do movimento através de reproduções de
obras, livros e textos, e, nas cartas para Mário ilustradas pelos artistas. “Segundo Modernismo” tratava
da relação de Mário de Andrade com Portinari. Neste segmento, em vitrines, foram apresentadas as
cartas originais de Mario a Portinari, analisadas neste catálogo em artigo de Eliane Hatherly Paz.
As obras de arte de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Portinari e Bianco, majoritariamente
da coleção de Mário, eram acompanhadas por cartas gravadas colocadas em totens com fones de
ouvido. Interpretadas por João Paulo Lorenzón elas ressaltavam os diferentes tons que Mário usava
para os seus correspondentes: carinhoso para Anita, severo com o jovem Bianco, caloroso para
Portinari, professoral com Drummond, cúmplice com Manuel Bandeira e apaixonado por Tarsila. O
recurso tornou as cartas vivas e de mais fácil entendimento pelo público.
Na sala 2 apresentamos o docudrama Um Homem Desinfeliz, de Adilson Ruiz, produzido pelo Itaú
Cultural, e uma instalação de Guilherme Isnard que brincava com a enorme quantidade de cartas
escrita por Mário, convocando o público a escrever para ele. Em mídia eletrônica, letras giravam no ar,
como que expelidas da máquina de Mário, formando palavras, frases e poesias do autor.
Na sala do educativo foram apresentados um conjunto de fotografias realizadas por Mário de Andrade
na viagem ao Amazonas e um fotovídeo com imagens dos modernistas. Nas mesas de consulta o
público tinha acesso à correspondência com Anita, Tarsila, Câmara Cascudo, Drummond, Portinari,
Manuel Bandeira, e podia escrever suas próprias cartas. A resposta do público à nossa proposta,
apoiada no cuidadoso trabalho dos mediadores, foi surpreendente, e por isso anexamos ao catálogo
algumas poucas cartas, das muitas que foram coletadas.
Agradeço ao IEB - Instituto de Estudos Brasileiros da USP, instituição que abriga a memória e a herança
de Mário de Andrade e ao sr Carlos Augusto de Andrade Camargo, herdeiro do autor, certa de que sem
seu apoio esta exposição não seria possível. Agradeço também aos Correios que tiveram a sensibilidade
de patrocinar esta mostra, tão afinada com o trabalho da empresa. Igualmente fundamentais foram o
Projeto Portinari, o Itaú Cultural e os colecionadores que emprestaram obras. Mas, à equipe, que tanto
trabalhou para tornar essa ideia uma realidade, e que são tantos que não dá para nominar a todos, vai
meu maior agradecimento.

Denise Mattar - Curadora

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Guilherme Isnard

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Paulo Duarte

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Guilherme Isnard

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No Atelier

Estávamos os dois na penumbra oleosa do atelier. Ela arranjara a tela,


preparara as cores, e, gestos nervosos, serpentinos, esboçara o meu
retrato.
Havia uma alegria, de milagre lá fora. tínhamos-nos encontrado no porão,
ridentes, despreocupados, longe da vida como a manhã infantil que cambalhotava
pelos morros, em frente, como a própria paisagem silvestre que, numa ironia
feminina da natureza, sorria seus lábios verdes junto ao civilizado perfil
da cidade. Anita dera-me a mão, num “bom dia” primaveril. Toda de branco!
Eu, embora de negro, não trazia o coração “vestu du noir” como o de Charles
d’Orleans. Sentia-me feliz.
Agora, no crepúsculo do atelier havia como que um desapontamento entre nós
dois. É que as alegrias exteriores, passageiras, não cabem nas penumbras.
Abandonáramos a nossa, lá, nas mãos da manhã infantil; e sentíamos, na pouca
luz que desnuda, um amargor remanescente de vida quotidiana. E eu falei:
- Como é bom , Anita, a gente separar-se, assim, por umas horas, da caravana.
Abandonar trabalhos e preocupações, abandonar a própria felicidade que a todos
abraça num ou noutro instante, para viver esse limbo de lazer em que estamos
agora.
- Mário, uma senhora disse-me ontem que jamais vira nas águas um reflexo
de céu...
(...)
E o nosso diálogo politonal continuava. A pintora, com as pálpebras
semicerradas, trabalhava rápido, febril. Sua mão agílima abandonava pincéis,
misturava cores, criava tons inebriantes, imateriais, num frenesi potente de
criação. Toda entregue ao prazer de pintar, não me escutava, direi mesmo que
não me via. Isso consolava-me um pouco da minha pobre figura esguicho, sem
cores, muito morna. Anita criava! Como inconsciente, na exaltação que a possuía,
na divina loucura de inspiração, murmurava frases sem sentido, contradizia-
se, respondia perguntas inexistentes. Às vezes silenciava. Parava. Contemplava
a obra ou examinava o modelo. Depois era de novo o trabalho inspirado, feliz.
Escondia novamente a luz dos olhos entre as pálpebras apertadas, trementes.
Quando descobria um tom mais inédito, mais exato, sorria, cantava frases de
ópera fácil, numa clarinada de vitória.
(...)
Não sei se percebeu minha fuga. Pintava. Pintava sempre. Pintava de cor,
trêmula de ânsia, gloriosa de força divinatória. Suas cores eram fantasmagorias
simbólicas, eram sinônimos! Por trás da minha face longa, divinizada pelo
traço do artista, um segundo plano arlequinal, que era minha alma. Tons
de cinza que eram minha tristeza sem razão... Tons de oiro que eram minha
alegria milionária... Tons de fogo que eram meus ímpetos entusiásticos...
Eu vibrava, como que recoando a ressonância anímica da artista. E o atelier
era como que uma sinfonia de vidas incriadas, inexistentes, em acordes
físicos sobrefortes, em melodias espirituais sobre-elevadas!
Lá fora a manhã infantil cambalhotava pelos morros. Era a vida num momento
de rir! Na penumbra do atelier um entusiasmo artificial, um lirismo sem nexo,
fantasias sem modelo, colocava-nos para além das alegrias e das dores,
Era a arte num momento de sonhar!
- Não pinto mais. Estou cansada.
(...)

S. Paulo - Carnaval de 922

28
Anita Malfatti
Retrato de Mário de Andrade
Carvão e pastel s/ papel
36,5 x 29,5cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

29
14 (AM)
1 bis Rue du Maine
Hotel Central
Paris XIV
27 de outubro [1923]

Caro Mário.

Escrevo-te novamente depois de muito ver, e muito mudar. Não reli tua carta,
e lia-a mesmo muito depressa. Recebi-a acompanhada de muitas outras do Brasil,
ao chegar do teatro. Chove e não saí para jantar fora, estou descansada, sem
sono e como vês aproveitando uma hora quieta para dizer-te coisas um pouco
difíceis. [...]
Acho que fazes mal e que és sentimental para com o teu passado. Cuidado, podes
ficar “passadista”. Deve-se nascer todos os dias, para a Arte e para a vida.
Bem não danes comigo. Passemos às notícias de Paris. Moro no mesmo hotel
com Brecheret o glorioso, Di e Maria.
Di, cubista, cheio de coisas, entrevistas ao princípio nos víamos sempre,
agora tendo todos o que fazer, quase nunca. Tarsila vejo-a raramente faz
cubismo absoluto, vais gostar.
Oswald é o Homem da Hora, sempre apressado, não se zangue, adeusinho
e some-se no Metro. Tarsila e Oswald são íntimos de grandes modernos.
Eles te darão notícias em dezembro.
O monumento Mise au tombeau de Brecheret é um colosso – uma vitória definitiva
da arte brasileira em Paris – mas o melhor que B. tem é Simone a noiva dele.
Não chegamos a tempo para ouvir os versos cantados pela Vera. Paulo Prado
ficou danado conosco mas acabamos felizes no Café de la Paix.
No concerto da Vera a música do Villa foi muito bem aceita. Vi-o só 2 vezes.
Está a compor o bailado.
O livro novo do Oswald é engraçadíssimo. Penso porém que ele não nos acha à
altura, pois não o lê para nós, também ele vai muito aos dancings e diz que ama
uma arquiduquesa russa. Isto tudo distrai muito. O monumento Brecheret tem 2
metros de alto sobre uma base de 2 metros também. 4m. de comprimento e somente
75 cm. de espessura. Ficou colocado entre as 2 grandes escadarias da “rotonde”
do Grand Palais. Considerado por todos como “obra prima”. Mandar-te-ei uma foto.
Simone é grande e loura e maravilhosamente boa. É moça distintíssima, prevejo
um futuro feliz para ambos. Precisam esperar até o fim da pensão, coitados,
tenho pena. Não o contou aos amigos de S. P. de medo que isto o prejudique.
Outra noite me iniciaram nos cabarés de Montmartre. Fomos todos com o Paulo
Prado. Fiquei tão atordoada com tudo, que acabei não falando mais. O Oswald
parece um “édredron” dançando. O Vicky (Brecheret) um “tank” sério “qui va
jusqu’au bout” e mesmo P.P. está tomando lições de dança. Nos teatros de
variedades muitas mulheres completamente nuas. Tive a impressão de precisar
aproveitar a pose. Fiquei com um ateliê perto do do Brecheret, mas precisa de
tantos consertos e reformas que só confiando na divina providência. Mas, Mário,
aqui pintor sem ateliê, não é pintor. Quem não tem coragem não merece viver.
Terei portanto a coragem.
Mande-me teu livro e tuas poesias, isto me encherá de prazer.
Estou tão cansada, escrevo em posição forçada, no colo.
Mando-te todo meu carinho num grande abraço, parisiense (sem ser fraternal).

Annita

[...]

30
Anita Malfatti
As margaridas de Mário, 1922
Óleo s/ tela
51,5 x 53 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

31
S. Paulo 3 de Janeiro 1924

Anita querida:

Recebi ontem um teu recado de boas festas. Tão pequenino!


Tão lacônico! Que impiedade essa dos amigos que viajam. Vêem tanto,
contam tão pouco! Manda-me dizer como e quanto trabalhas. Que fazes,
que fazes, QUE FAZES????? Eu me sinto glorioso. Sei que trabalhas, pelo
Oswaldo. Disse-me ele que fizeste já umas coisas muito boas. Que teu
último trabalho já recorda o bom tempo do Homem Amarelo, do Japonês...
Bravíssimo! Lembras-te? Tu mesmo me confessaste que depois desse período
nada fizeras que te satisfizesse totalmente... Foi uma das últimas
frases tuas, quando conversamos pela última vez, na tua casa. Creio que
agora estarás de novo contente. Eu estou satisfeitíssimo. Paulo Prado,
vi ontem. Trouxe um Juan Gris maravilhoso. O Survage, não me agradou.
O do Oswaldo é muito milhor. Oswaldo trouxe também um Léger admirável.
Milhor que o meu – embora o meu seja bom também. Quem me surpreendeu
inteiramente foi Tarsila. Que progresso, para tão pouco tempo! Puxa!
Estou entusiasmado. Ainda não vi os quadros dela, que estão presos na
Alfândega. Mas vi estudos e magníficos desenhos. E penetrei-lhe sobretudo
a inteligência. Aquela Tarsila curiosa de coisas novas, mas indecisa,
insapiente que eu conhecera, desapareceu. Encontrei uma instrução
desenvolvida, arregimentada e rica. Vê-se que muito ouviu, muito leu e
muito pensou. Tu e ela são a esperança da pintura brasileira. Tu no teu
expressionismo, ela no teu cubismo. E o Brecheret vencendo... Que prazer!
Sinto-me aos pulos. Vivo em eterna dança indígena, tam-tam, chacoalhos
de jararacas sagradas, a cantiga bem ritmada e eu aos pulos, a dançar.
Vocês fazem a minha felicidade.
Trabalho como um doido. Termino o meu romance. Mais umas cem
páginas e estará pronto. Não tenho tempo para recopiar o teu Losango
Cáqui. Bem sabes, creio, que o livro te é dedicado. Perdoa a falta
de tempo. Mando-te aqui o meu último poema. Vê si gostas dele. Ah! dize
à noiva do Brecheret, que só ontem, catalogando as cartas de 1923 o
delicado cartão dela caiu da sobrecarta em que o mandaras junto com
tua carta. Não tive culpa. Peço-lhe perdão. As musicas seguirão breve.
Abraços a todos. A ti o mais apertado, o mais íntimo, o mais desejado
abraço.

Mário

32
Anita Malfatti
A Chinesa, 1921/22
Óleo s/ tela
100 x 77,3 cm
Coleção Particular – RJ

33
Di Cavalcanti
Mulher sentada com mão no queixo, s.d
Nanquim e pastel s/ papel
38,5 x 26,5 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

34
35
Di Cavalcanti - Amoroso cantador

(...) essa fidelidade ao mundo objetivo e esse amor de significar a vida humana
em alguns dos seus aspectos detestáveis salvaram Di Cavalcanti de perder
tempo e se esperdiçar durante as pesquisas do modernismo. As teorias cubistas,
puristas, futuristas, passaram por ele, sem que o descaminhassem.
Di Cavalcanti soube aproveitar delas o que lhe podia enriquecer a técnica, e a
faculdade de expressar a sua visão ácida do mundo se enriqueceu habilmente,
sem perder tempo. Nacionalizou-se conosco, ao mesmo tempo que o
modernismo o fazia mudar de hora e estação. Abandonou os tons velados de
outono e crepúsculo, pra se servir de todas as vibrações luminosas da arraiada
e da possível primavera. Principalmente com sua admirável série de mulatas,
de que soube revelar o rosado recôndito, Di Cavalcanti conquistou uma posição
única em nossa pintura contemporânea. Em nossa pintura brasileira. Sem se
prender a nenhuma tese nacionalista é sempre o mais exato pintor das coisas
nacionais. Não confundiu o Brasil com paisagens, e em vez do Pão de Açúcar
nos dá sambas, em vez de coqueiros, mulatas, pretos e carnavais. Analista
do Rio de Janeiro noturno, satirizador odioso e pragmatista das nossas taras
sociais, amoroso cantador das nossas festinhas, mulatista-mor da pintura, este
é o Di Cavalcanti de agora, mais permanente e completado, que depois de onze
anos, vai nos mostrando de novo o que é.

Mário de Andrade, Diário Nacional, São Paulo, 8 de maio de 1932

36
Di Cavalcanti
Menina de circo, 1937
Óleo s/ cartão
56 x 47 cm
Coleção Jones Bergamin – RJ

37
São Paulo, 19 de dezembro de 1922
A Exma. Sra. Tarsila do Amaral

Querida Amiga,

Escrevo-lhe para dizer que evoco de vez em quando sua imagem.


É um prazer. Sinto-me tão feliz ao seu lado. Essa felicidade
que vem da confiança mútua. Nada de preocupações ou de dúvidas.
Uma amizade muito grande, lindo oásis nesta vida de lutas, de
ambições, invejas e segundas-intenções. Tarsila, você não imagina
o bem que me faz. Sua passagem foi tão leve no meio de nós, não
há dúvidas minha amiga. Mas... pense um pouco no destino dos
sulcos das barcas no imenso mar. Segue uma barca sem rumo. em
torno tudo é mar oceano. E a barca faz um leve sulco nas águas
movediças. O sulco desapareceu. Não se vê mais. Acabou. Acabaria?
Não. Para destruírem os sulcos as ondas empolaram-se e encheram-
no. Mas se não existisse o sulco elas não teriam feito aquele
esforço, não teriam tomado aquela forma.E as novas ondas que vem
depois, também são modificadas no seu aspecto, por encontrarem as
ondas, que encheram o sulco, numa forma determinada? E as outras
ondas depois? E depois ainda as outras? E todo o mar oceano? de
forma, Tarsila, que se poderá dizer sem erro, que um pequeno sulco
modificou o aspecto exterior do mar. Você foi como um sulco.
Será vaidade comparar minha alma de poeta a um mar?

Mário de Andrade.

38
Anita Malfatti
Grupo dos Cinco, 1922
Oswald e Menotti dormindo no chão, Mário e Tarsila ao piano e ela própria no sofá
Tinta de caneta e lápis de cor s/ papel
26,5 x 36,5 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

39
Exma. Sra. Tarsila Amaral
Paris

São Paulo, 11 de janeiro de 1923.

Querida amiga

Se é mesmo verdade que os gregos e os romanos tratavam seus deuses


com familiaridade amiga, creio que foi o cristianismo que trouxe
para os homens ocidentais o temor pelas entidades divinas.

Aproximo-me temeroso de ti. Creio que é uma deusa: NÊMESIS, senhora


do equilíbrio e da medida dos excessos. Quando um homem da Terra
era demasiado feliz, via crescerem-lhe terras e riquezas, e tinha
em torno de si braços, lábios de amor, coroas de glória e alegrias
somente, Nêmesis aparecia. Vinha lenta, com seu passo lento,
sem rumor. Mas ao homem-da-Terra fugiam-lhe riquezas, alegrias.
Perdia amor, glória e riso.

És Nêmesis, sem dúvida. Eu era são. Alegre, confiante, corajoso.


Mas Nêmesis aproximou-se de mim, com seu passo lento, muito lenta.
Depois partiu. Doenças. Cansaços. Desconsolos. Ainda todo o final
de dezembro estive de cama. Venho agora da fazenda onde repousei
10 dias.

Mas será mesmo Nêmesis? Que és deusa, tenho certeza disso: pelo
teu porte, pela tua inteligência, pela tua beleza. Mas a deusa que
reprime o excesso dos prazeres? Não creio. Tua recordação só me
inunda de alegria e suavidade. És antes um consolo que um pesar.
A verdadeira, a eterna Nêmesis, são as horas implacáveis que passam
dia e noite, dia e noite, sol e escuridão. Estou nos meses da
escuridão. Foi a fraqueza que me fez pensar que eras tu Nêmesis.
Perdão. Estou a teus pés, de joelhos. Mais uma vez: perdão!

__________________

Espero tua carta longa, contando coisas breves de Paris. Já estou


a imaginar a lindeza do meu Picasso. Obrigado.
Dize-se alguma coisa da Arte. Já estás trabalhando? Pintas muito?
Recebeste KLAXON n. 7?
Adeus.

Mário de Andrade.

40
Tarsila do Amaral
Chapéu azul, 1922
Óleo s/ tela
67 x 50 cm
Coleção Simão Mendel Guss – SP

41
[São Paulo] , 15 de novembro de [1923] - Viva a República!

Tarsila, minha querida amiga:

(Agora a letra corrente da conversa:)

Cuidado! fortifiquem-se bem de teorias e desculpas e coisas vistas


em Paris. Quando vocês aqui chegarem, temos briga, na certa. Desde
já, desafio vocês todos juntos, Tarsila, Oswald, Sérgio para uma
discussão formidável. Vocês foram a Paris como burgueses. Estão
épates. E se fizeram futuristas! hi! hi! hi! Choro de inveja.
Mas é verdade que considero vocês todos uns caipiras em Paris.
Vocês se parisianizaram na epiderme. Isso é horrível! Tarsila,
Tarsila, volta para dentro de ti mesma. Abandona o Gris e o Lhote,
empresários de criticismos decrépitos e de estesias decadentes!
Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata-virgem, onde não
há arte negra, onde não há também arroios gentis. Há MATA VIRGEM.
Criei o matavirgismo. Sou matavirgista. Disso é que o mundo, a
arte, o Brasil e minha queridíssima Tarsila precisam.

Se vocês tiverem coragem venham para cá, aceitem meu desafio.

E como será lindo ver na moldura verde da mata, a figura linda,


renascente de Tarsila Amaral. Chegarei silencioso, confiante e te
beijarei as mãos divinas.

Um abraço muito amigo do Mário.

42
Tarsila do Amaral
Esboço para negra, 1923
Lápis e aquarela s/ papel
23,4 x 18 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

43
Mário de Andrade
Fazenda do Barreiro, 1924
Lápis s/ papel
10,6 x 15,1 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

44
Mário de Andrade
Mateus Leme, 1924
Lápis s/ papel
15,1 x 10,6 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

45
Mário de Andrade
Gruta do Capão da Traição, 1924
Lápis s/ papel
15,1 x 10,6 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

46
Mário de Andrade
Papel quadriculado n. 1, 1924
Lápis s/ papel
14,4 x 10,3 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

47
Lasar Segall
Chaminé de navio, 1928
Gravura em metal s/ papel
27,5 x 32,6 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

48
Lasar Segall
Duas mulheres, s.d.
Gravura em metal s/ papel
23,5 x 17,5 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

49
Lasar Segall
Mário de Andrade na rede, 1930
Gravura em metal s/ papel
25 x 31,6 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

50
Zina Aita
Retrato de Mário de Andrade, 1923
Nanquim s/ papel
28,1 x 21,9 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

51
Ismael Nery
Duas mulheres pensam em mim, cujo nome viram impresso num jornal e num programa, s.d
Lápis s/ papel
25,9 x 20,3 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

52
Ismael Nery
Homem e mulher, 1928
Guache s/ papel
22 x 12,2 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

53
Paulo Duarte

54
55
Guilherme Isnard

56
57
Portinari com Mário de Andrade e Oscar Simon, na calçada de sua casa no Leme.
Rio de Janeiro, 1941.
Foto: Hart Preston
Coleção Associação Cultural Cândido Portinari

58
De Mário para Portinari

Eliane Hatherly Paz1*

E
m tempos de correio eletrônico e amizades virtuais, adentrar o mundo epistolar é voltar a uma época
em que os laços humanos deixavam rastros por escrito. No Brasil, a tradição epistolar atingiu seu
auge com os modernistas. Somente Mário de Andrade trocou mais de sete mil cartas com seus 1.100
correspondentes, material que cobre duas décadas da vida cultural nacional. Missivista tomado de “paixão
sublime” pelo fazer epistolográfico, através de suas cartas Mário exerceu uma poderosa influência sobre os
artistas mais relevantes de sua época e alçou a epistolografia a gênero literário no país.
A Portinari, Mário endereçou 60 cartas. A amizade entre o pintor e o escritor começou no Salão de 1931,
quando Mário se encantou pelo retrato de Manuel Bandeira exposto por Portinari. Nessa ocasião, outro retrato
do poeta, do pintor alemão Frederico Maron, também participava da exposição, o que gerou uma comparação
imediata por parte de Mário a favor do quadro de Portinari. Naquela época, Mário de Andrade, vivendo o
segundo momento do Movimento Modernista, buscava um artista brasileiro ideal que correspondesse às
novas diretrizes do movimento – dentre elas a questão da identidade nacional nas artes. Apesar de suas
restrições iniciais à temática portinaresca – Mário confidenciou ao crítico Antonio Bento, após ver suas obras
no Salão de 31, que achava que Portinari “não estava voltado para os problemas de uma arte de temática
brasileira. Pintava muitos retratos.”2 –, o escritor, ao reencontrar Portinari em seu ateliê em fins de 1932,
reviu sua opinião e passou a apoiar o pintor, em quem identificou a “impulsividade nacionalística” que o Papa
do Modernismo tanto procurava nas artes plásticas.
As cartas de Mário para o pintor nos introduzem nessa amizade já em andamento, sendo sua primeira
missiva datada de 25.3.1935. Mário principia por declarar sua preocupação com a ausência do amigo: “Já
estava assustado com o seu silêncio” para, em seguida, desculpá-lo: “Mas tem-se que dar razão aos pintores,
que pintam melhor os setes das belezas plásticas que os agás e jotas tão pouco plásticos da escritura”3. O
amigo, esse Outro que é semelhante a nós, através dos quais vislumbramos as nossas próprias qualidades e
vulnerabilidades, é afagado dez linhas adiante, quando Mário registra, em tom de confissão, suas impressões
sobre o retrato dele que Portinari havia acabado de pintar: “(...) você me revelou o meu lado angélico (...).
Porque de-fato você mais que ninguém, não apenas percebeu, mas me revelou que eu... sou bom”4.
De início atento às formalidades – “... si já não lhe mandara um cartãozinho foi apenas porque não
sabia a sua residência”5 –, o contínuo estreitamento dos laços fraternais de Mário para com Portinari vai
sendo percebido à medida que, mais evidentemente, as formas de tratamento vão sugerindo intimidade,
com o acréscimo, junto ao nome do destinatário, dos adjetivos caro, querido, amigo, nas mais diversas
combinações, além do uso do pronome possessivo meu, que “timidamente” aparece na carta de 25.3.35,
em italiano (“Portinari, amico mio”), e assume a língua materna a partir da 11ª carta. “Portinari meu velho”,
“Meu querido Portinari”, “Potinari querido” e “Meu caro Portinari” serão os vocativos preferidos por Mário
para saudar o amigo.
Também o tom da conversa vai se tornando mais fraternal, chegando Mário a assumir “o papel” de irmão
mais velho do pintor, dando-lhe conselhos sobre sua vida particular e assuntos financeiros, e até criticando,
em tom de “pito”, sua extrema generosidade monetária:
(...) Mas eu insisto naquela conversa que tivemos em Brodósqui: você precisa regularizar a sua vida e
acabar com essa casa de Orates onde há sempre muita gente que entra a qualquer hora e almoços e jantares
diaários que são banquetes. (...) Você precisa regularizar sua vida.6

*
Eliane Hatherly Paz é jornalista e Doutora em Letras pela PUC-Rio.
2 BENTO, Antonio, p. 68.
3 MA/CP, 25.3.35, p. 47.
4 Idem, ibidem, p. 48.
5 MA/CP, 25.3.35, p. 47.
6 MA/CP, 20.4.41, p. 86.
59
Grupo de alunos e colegas de Portinari, na Universidade do Distrito
Federal. Entre eles: Mário de Andrade, Roberto Burle Marx, Enrico
Bianco, Héris Guimarães e Ignez Correa da Costa.
Rio de Janeiro, 1938.
Coleção Associação Cultural Cândido Portinari

60
Ou sua despreocupação financeira, como revela esta carta enviada a Portinari quando de sua viagem aos
Estados Unidos, entre julho e setembro de 1940, para a mostra Potinari of Brazil, no Museu de Arte Moderna
de Nova York:
Você diz na sua carta que já está pensando na volta. Mais uma vez insisto com você para aproveitar o mais
possível e sugar quanto puder dos Estados Unidos. Si receber encomendas aceite e vá ficando enquanto a
coisa render. O meu maior desejo é que você volte daí com uns bons cobres que garantam um futuro firme
pra você com Maria, para você então pintar descansado o que quiser, livre das imposições financeiras da vida.
Não se afobe nem deixe se levar pelas saudades. Você precisa antes de mais nada garantir um futuro
mesmo que seja modesto, pra não ter mais que a preocupação feliz de viver e educar o nosso querido João
Candido.7
O assunto é recorrente em carta de novembro de 1941:
(...) Mas veja si desta vez consegue economizar alguns cobrinhos, pra guardar depois, comprar uma casa,
coisa assim. Sempre penso muito em você, e me preocupa essa sua situação de gastar tudo quanto ganha,
sem pensar no dia de amanhã. Bom, não quero “passar pito”, que você sabe muito bem o que deve fazer da
sua vida.8
As notícias sobre sua saúde são tema constante na correspondência. Acusaçãozinha nos rins, desinteria
amebiana, gripe, oeração das amígdas, tratamento dental, erupção na pele, intoxicação alimentar, sinusite,
dores internas esqusitas, mal-estar, dores horríveis no fígado, dores de cabeça e úlcera no duodeno constituem
a lista das doenças de corpo de Mário, que se somam às doenças de alma que constantemente afligem o
poeta: desânimo, falta de vontade de viver, angústia e desgosto moral, e neurastenia. A descrição desses
males – pormenorizada para alguns correspondentes – é pouco detalhada para Portinari, como se Mário
poupasse o amigo de seus problemas de saúde:
(...) vivo numa afobação danada, (...), dormindo quase nada, comendo forçado, e já com uma acusaçãozinha
dos rins. [MA/CP, 30.5.35, p. 50]
Estive gravemente doente. (...) largado na cama, já sem forças pra nada, já com o médico a todo momento
me auscultando o coração, com medo que falhasse. Tudo por causa duma disenteria amebiana que me pegou
enfraquecidíssimo. [MA/CP, 8.7.36, p. 55]
Tive ultimamente um grande desgosto moral que não vale a pena contar por carta. Faz uns quinze dias
que não consigo dormir direito, sempre com a idéia no mesmo sofrimento. [MA/CP, 23.10.43, p. 93]
Quanto ao fechamento das cartas enviadas por Mário de Andrade, este evolui do tom casual, onde um
simples “Ciao” encerra a missiva, para despedidas mais elaboradas e repletas de emoção, como na carta de
7.7.1942, onde o escritor se despede com um “Sempre você ficando certo que de qualquer forma estou ao
lado de você e sou o seu amigo certo, Mário”.

O credo modernista
Mário de Andrade sempre praticou a pedagogia modernista através da epistolografia. Entretanto, o
escritor pouco registrou nas cartas que escreveu para Portinari suas concepções sobre as artes plásticas em
geral e sobre a arte do amigo em particular. O espaço para essa crítica foram outros – os inúmeros artigos
para jornais, revistas, livros e catálogos que escreveu sobre o pintor e dos quais sempre lhe deu notícias:
(...) já escrevi a nota sobre você prá Revista Acadêmica, que mandei ontem. [MA/CP, 3.5.38, p. 60]
Recebi sua carta e fiquei contente de você ficar contente com o artigo. [MA/CP, 8.6.38, p. 66]
As ocasiões em que trata nas cartas da pintura de Portinari, criticamente ou não, o faz de maneira
corriqueira e coloquial, como quando comenta suas obras, mostras e exposições, ou apóia seus projetos:
Portinari, já tive notícia do sucesso da sua exposição e nem esperava outra coisa. [MA/CP, 30.4.35, p. 49]
Seus quadros vi (...) no intervalo do concerto. Minha primeira sensação adorou a menina. Lhe direi mais
tarde (...) si a sensação se conservou. [MA/CP, s/d, provavelmente maio/junho.37]

7 MA/CP, 23.10.40, pp. 75-76.


8 MA/CP, 7.9.41, p. 91.

61
Grupo de intelectuais e artistas, durante jantar oferecido a Portinari. Entre eles: Guignard, Rachel de Queiroz, Santa Rosa,
Ismailovitch, Jorge de Lima, Mário de Andrade, Enrico Bianco e Manuel Bandeira. Rio de Janeiro, 1939.
Coleção Associação Cultural Cândido Portinari

Portinari, Antonio Bento, Mário de Andrade e Rodrigo de Melo Franco.


Rio de Janeiro, 1939c.
Coleção Associação Cultural Cândido Portinari

62
(...) recebi as duas remessas de fotografias e fiquei delirando. Há coisas que mesmo assim em ruins
fotografias me parecem admiráveis (...). Estou louco para ver tudo isso e também vou escrever sobre para a
rotogravura do Estado. [MA/CP, 10.3.41, p. 82]
A idéia de um álbum de quadros seus de cavalete é ótima. Mas não deixe de botar umas duas ou três
tricomias, é tão importante para se conhecer na verdade um pintor. [MA/CP, 23.5.38, p. 63]
Mário também demanda constantemente notícias das atividades do pintor:
Mas fiquei morto de curiosidade sabendo que você tem coisas novas e processos novos que ainda não
conheço. [MA/CP, 30.4.35, p. 49]
Mande sempre contar a marcha dos trabalhos. [MA/CP, 23.5.38, p. 63]
(...) Estou numa curiosidade quase esfomeada de ver as pontas-secas: Com a sensibilidade do seu traço
imagino o que elas podem ser. [MA/CP, 7.1.41, p. 79]
(...) Como vamos de pintura? Mande me contar que quadros novos fez e, si puder, algumas fotografias.
[MA/CP, 28.4.41, p. 89]
Portinari, naturalmente, comenta com maior frequência os seus trabalhos, mas escreve antes para
dar notícias a Mário do que anda fazendo do que para discutir questões estéticas. Nas cartas trocadas
entre ambos temos um exemplo bastante consistente do intercâmbio de ideias e, ao mesmo tempo, de
demonstração recíproca de profundo apreço intelectual. Nelas, constatamos que Mário não buscou doutrinar
Portinari no seu credo modernista: Candido Portinari já era moderno muito antes de conhecer Mário de
Andrade. Passando por cima de suas importâncias políticas e sociais – ma non troppo – ambos investiram na
construção desse relacionamento, e na elaboração de “verdades” sobre si mesmos, sobre o outro e sobre o
mundo nos dez anos em que escreveram e trocaram cartas. O clima íntimo desenvolvido pelos missivistas
resistiu aos inúmeros afastamentos e deveu-se ao investimento efetuado por ambos nas palavras e gestos
que estão para além das obrigações e das formalidades. O espaço em que se inscreveu essa amizade
epistolar nos deixa entrever fragmentos da personalidade de um e de outro, elineada em uma linguagem
transparente e direta. Mesmo que, ao contrário de Mário, “correspondente que não se furtava a confidências
sobre si próprio”9, Portinari ‘escondesse seus pensamentos em um baú secreto’, como confessou em um
de seus poemas, conseguimos vislumbrar sua personalidade passional e apaixonante como artista – na sua
dedicação à pintura, sua obsessão pela busca da perfeição, seu apreço pelo conhecimento, sua dedicação ao
ensino e sua coerência artística; e como homem – na sua bondade, sua paixão pela família e seu apego aos
pais e aos amigos, sua simplicidade, sua fragilidade, seu caráter e sua humildade. Ao longo desse intenso
diálogo, Portinari, talvez espelhando-se em Mário, passou a escrever cartas mais detalhadas – mesmo tendo
medo de se abrir sem “ter os braços e [a] cara” para ajudá-lo e se declarar “muito burro” para se “expressar
escrevendo”. Porém, diferentemente de Mário, que se esparramava nas cartas, Portinari nunca deixou de se
resguardar no que o editor José Olympio definiu como um “retraimento de velho urso desconfiado”.10
Envolvidos de maneira intensa nas questões um do outro, Portinari e Mário de Andrade foram amigos até
o fim. Mais do que compartilhar segredos e afinidades, depositaram um no outro uma confiança ilimitada.

Referências bibliográficas:
ANDRADE, Mário de. Portinari, amico mio: cartas de Mário de Andrade a Candido Portinari. Organização, introdução e
notas Annateresa Fabris. Campinhas: Mercado de Letras / Projeto Portinari / Autores Associados, 1995.
BENTO, ANTONIO. Portinari. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial, 1980.
PORTINARI, Candido. Poemas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.

9 MA/MB, p. 9.
10 OLYMPIO, J. “Nota da editora”, in Poemas de Candido Portinari, p.7.

63
O violinista e o contato com Mário de Andrade
Extrato do texto O tocador e o pincel - a música na obra de Portinari
de Marcelo Téo
V Encontro de História da Arte - IFCH/UNICAMP, 2009

O contato de Mário de Andrade com estas duas obras – O violinista e o


Retrato de Manuel Bandeira – é crucial para entendermos não apenas
sua atuação como crítico de artes plásticas, sempre permeada por conceitos
musicais, mas também sua relação com Portinari, a constituição de suas
posições no campo da produção artística e intelectual. Mário vai ao Rio
de Janeiro para visitar o Salão de 1931, que ficou conhecido como “Salão
Revolucionário” pela inserção, a partir do trabalho do recém-nomeado
diretor da Escola Nacional de Belas Artes, Lúcio Costa, de um amplo e
representativo repertório de artistas modernos. Suas primeiras visitas ao
Salão deram origem a duas impressões contraditórias e definitivas em seu
exercício crítico. Na primeira, acompanhado de Bandeira, Mário manifesta
uma impressão positiva do retrato do amigo feito pelo alemão Friedrich
Maron, que era tema das conversas no ambiente artístico carioca. Na
segunda visita, a qual faz sozinho e com mais demoro, Mário impressiona-se
com outro retrato de Manuel Bandeira, do então seu desconhecido Cândido
Portinari, bem como com outra obra do mesmo pintor, O violinista. (...)

Mário encontra em Portinari um classicismo de tom lírico que o agrada


profundamente. Embora argumente não conhecê-lo, é presumível que
tenha ouvido falar de Portinari através de Manuel Bandeira, cuja percepção
sobre o pintor girava em torno da personalidade interiorana que lhe era
característica. É possível que a caipirice do pintor, unida ao seu virtuosismo
técnico, tenham agradado a Mário de Andrade, abrindo uma nova porta
na busca por um continuador de Almeida Júnior. Nesse sentido, Portinari
parece responder de perto ao projeto intelectual andradiano, interessado
na criação de uma identidade coletiva nacional para a qual, segundo
Annateresa Fabris, “deveriam convergir tanto elementos racionais,
quanto elementos sentimentais, alicerçados no inconsciente coletivo, na
religiosidade e nas crenças populares”. A construção desse projeto incluía
não apenas artistas dotados de consciência social, mas “igualmente de uma
consciência do próprio ofício e de uma ética refletida na busca constante
de aperfeiçoamento”, traço definidor da personalidade de Portinari. (...)

Cândido Portinari
O violinista – Retrato de
Oscar Borgerth, 1931
Óleo s/ tela
100 x 0,80 cm
(sem moldura)
Coleção Marta e
Roberto Siqueira

64
65
Paulo 30 - IV - 37

Portinari

Ia, pretendia ir pro Rio hoje, mas estou gripado e tenho


ocupação no dommingo aqui no Departamento, não posso ir.
Preciso sua colaboração pro Congresso da Língua Nacional
Cantada!!! em que um pintor pode contar no Congresso? Cristo:
O Congresso vai dar vários concertos na semana dele, pelo menos
três. Ora os programas devem ter capa, uma capa única, que
quero firmada pelo maior pintor e maior desenhista do Brasil:
você. O tamanho da capa é o que vai junto. Você faça o que
quiser: desenho em branco e preto, desenho colorido, aquarela,
guache, o que quiser. Nessa capa devem estar os seguintes
dizeres: “Teatro Municipal” (sem h) e “Congresso da Língua
Nacional Cantada”. E além disso o desenho que você quiser desse
gênero. E faço questão da sua assinatura. Pagamos pelo desenho
200$000. Não é nada, sei, mas você faz por amizade. Irão os
cobres com os últimos quinhentos paus que estou devendo pra
você agora e agora já estou, uf! em condições de pagar.

Como vai você? e Maria? e todos? Vi seus quadros pro


Salão de Maio. O da menina é simplesmente um soco na gente, cem
por cento de admirável. Um abraço besta de entusiasmo.

E ciao com abraço fraterno deste seu


Mário

66
Cândido Portinari
Capa de convite para Congresso da Língua Nacional Cantada, 1937
Nanquim preto e vermelho s/ papel
25,7 x 18,4 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

67
São Paulo, 10 de novembro de 1924

Meu caro Carlos Drummond,


(...)
Eu conto no meu “Carnaval Carioca” um fato
a que assisti em plena avenida Rio Branco. Uns
negros dançando o samba. Mas havia uma negra moça
que dançava melhor que os outros. Os jeitos eram os
mesmos, mesma habilidade, mesma sensualidade, mas
ela era melhor. Só porque os outros faziam aquilo um
pouco decorado, maquinizado, olhando o povo em volta
deles, um automóvel que passava. Ela não. Dançava com
religião. Não olhava para lado nenhum. vivia a dança.
E era sublime.
Esse é um caso em que tenho pensado muitas vezes.
Aquela negra me ensinou o que milhões, milhões é
exagero, não me ensinaram.
Ela me ensinou a felicidade. (...)

Mário

68
Cândido Portinari
Cabeça de mulata, 1934
Lápis s/ papel
21,2 x 16,8 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

69
Cândido Portinari
Mãos e Pé, 1937
Carvão s/ papel
Coleção particular - RJ

70
Cândido Portinari
Colona sentada, 1937
Carvão s/ papel
Coleção particular - RJ

71
Rio 23-X-40

Meu caro amigo Portinari

Acabo de receber sua carta a que respondo imediatamente. Aliás não


estava esperando carta pra mandar resposta, só não lhe escrevi antes
por vadiação besta. Sempre me lembrava de escrever porque você não me
sai da lembrança. A verdade é que você deixou um vazio danado aqui em
nosso grupo familiar e ficamos assim como baratas tontas, de cá pra
lá, meio sem destino. Além disso havia a curiosidade de saber o que
estava acontecendo aí com você, até que as primeiras boas notícias nos
sossegaram mais.
O meu curso na sua casa vai continuando regularmente. Amanhã mesmo
dou mais uma aula e depois só ficarão faltando duas. Aliás eu saio deste
curso mais convencido que nunca que estas coisas não adiantam nada e que
a nossa dinâmica e vibrante Lota está redondamente enganada. No meio de
tanta gente as próprias alunas de você que são o que interessa, ficam
envergonhadas, não perguntam, não discutem e em vez de aula pra aprender
a coisa vira conferência na A.B.I., grã finagem pura. Não interessa.(...)
Também o Bianco abriu agora a exposição dele. Muita coisa fraca,
muita influência de você, o que é natural, mas o rapaz tem talento e já
apresenta algumas coisas bem boas. E uns desenhos excelentes, embora
muito escola francesa demais. Vou escrever sobre ele pra animá-lo e pôr
em relevo a escola de você. Guardarei o artigo aqui pra você ler quando
vier.
Você diz na sua carta que já está pensando na volta. Mais uma vez
insisto com você pra aproveitar o mais possível e sugar quanto puder nos
Estados Unidos. Si receber encomendas aceite e vá ficando enquanto a
coisa render. O meu maior desejo é que você volte daí com uns bons cobres
que garantam um futuro firme pra você com Maria, para você então pintar
descansado o que quiser, livre das imposições financeiras da vida.
Não se afobe nem deixe se levar pelas saudades. Você precisa antes
de mais nada garantir um futuro mesmo que seja modesto, pra não ter mais
que a preocupação feliz de viver e educar o nosso querido João Cândido.
Como vai ele? E a Olga que já deve estar valente no inglês?
Bem vou parar com estas conversas que já está na hora do meu almoço.
A terra vai correndo sem novidade. Infelizmente sem novidades... E eu
curtindo essa minha eterna angústia de viver longe da família e dos meus
livros. Pra mim, então, a falta de você e de Maria, tem sido enorme,
pois era no seu meio que eu encontrava um eco carinhoso da minha vida
familiar. Si não fosse a casa da Liddy Chiaffarelli com o Mignone, creio
que não me aguentava neste deserto de afeições verdadeiras que é o Rio
de Janeiro. Mas sei fazer das tripas coração. Vá ficando aí, meu amigo,
quanto puder e enquanto a América... der.
Uma lembrança muito afetuosa pra Maria com Olga e que Deus dê saúde
ao João Cândido.
Com o abraço velho do
Mário

72
Cândido Portinari
Torso de homem, s.d
Litografia s/papel
33,2 x 29,8 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

73
Paulo, 25 - III - 35

Portinari amico mio,

já estava assustado com o seu silêncio. Mas tem-se que dar razão aos
pintores, que pintam melhor os setes das belezas plásticas que os agás
e jotas tão pouco plásticos da escritura. Aliás si já não lhe mandaram
um cartãozinho foi apenas porque não sabia a sua residência. Aqui tudo
na mesma. Depois de amanhã dou uma reunião aos amigos e uns professores
franceses, pra que venham ver o meu retrato que todos anseiam por ver.
Lhe escreverei depois contando os gritos de entusiasmo do pessoal.
Todos que aparecem por aqui se assombram com o retrato. Si eu pudesse e
houvesse uma boa revista que publicasse tricromias, escrevinhava como o
Manuel um ensaio sobre os Meus Dois Pintores, você e o Segall. Mostraria
então o que foi pra mim uma revelação, um verdadeiro soco na barriga
quando descobri: é que você me revelou o meu lado angélico, ao passo
que o Segall me revelou o meu lado diabólico, as tendências más que
procuro vencer. Às vezes me paro em frente do seu quadro e fico, fico,
fico, não só perdido na beleza da pintura, mas me refortalecendo a mim
mesmo. Porque de-fato você mais que ninguém, não apenas percebeu, mas me
revelou que eu... sou bom. Seu quadro me dá uma confiança em mim, me dá
mais vontade de trabalhar, de continuar, é um verdadeiro tônico. Foi um
bem enorme que você me fez, palavra.

O Carnaval aqui esteve bem divertido, apesar da frieza paulista. Eu


pelo menos me diverti à larga e os bailes estiveram colossais, todos
dizem. Mas nem assim deixava de imaginar de vez em quando no que
estariam fazendo vocês aí os do grupinho. Vejo pela sua carta que a
coisa não foi tão divertida assim e lastimo por vocês. Agora aqui está
fazendo uma delícia de dias claros, mornos, sem chuva e noites quasi
frias, gostosas da gente dormir. Vai chegar a grande época de S. Paulo,
abril, maio, com tardes que a gente chega a pensar que vai arrebentar de
tanta gostosura. É o tempo aliás em que levo um pouco flauteadamente a
vida porque não há meio, para um gozador que nem eu, de ficar encerrado
dentro de casa, com um tempo assim lá fora. Viro passarinho, viro flor,
não sei o que viro, sei é que me esqueço de ser Mário, nestas tardes
sublimes. Venha com Maria apreciar a coisa.

No resto, continuo na minha vidinha, sempre com saudades de vocês dois


e dos nossos momentos de convívio, infelizmente tão pequenos. Escrevi
hoje pro Antônio Bento também, e agora vou trabalhar um bocado, dar
conta das correções de provas dum livro que a Revista Acadêmica aí
do Rio está publicando. E ciao. Um grande abraço pra você e outro pra
Maria.

Mário

74
Cândido Portinari
Retrato de Mário de Andrade, 1935
Óleo s/ tela
73,5 x 61 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

75
São Paulo, 11 de julho de 1941

Henriqueta,

(...)

Uma coisa que tem me dado horas de pensamento é me contemplar


juntamente nos dois retratos que o Segall e o Portinari fizeram de
mim. Tenho muitos retratos meus, vários deles completamente sossobrados
como o de Tarsila, o de Hugo Adami. O Di Cavalcanti e o Reis Júnior,
então, pararam no meio sem poder solucionar os seus problemas. Ou meus
problemas, nem sei! Anita Malfatti, nos tempos do Modernismo, talvez
tenha feito uns vinte retratos meus. Eu, com a Semana de Arte Moderna,
perdera todos os alunos, tinha dias inteiros vazios sem o que fazer.
Anita também. Eu ia pro ateliê dela e como não tínhamos o que fazer ela
fazia o meu retrato, muitas vezes tornando a me pintar sobre uma tela
em que eu já estava e ela reputava inferior. De toda essa retrataria,
três ficaram: o primeiro, feito mesmo com a intenção de retrato, creio
aliás que anterior a 1922, muito ruim como pintura, mas curioso como
época e como... como eu. Sou bem eu e somos bem nós daqueles tempos,
gente em delírio, lançada através de todas as maluquices divinas e
minha magreza espigada um pouco com ar messiânico de quem já jejuou
quarenta dias e quarenta noites. Além desse, guardo um pastelzinho, mais
croquis propriamente, mas que é de um flagrante, de uma expressividade
desenhística e poética bem forte. Anita, por sua vez, guardou um que
preferiu aos mais, um eu mais desiludido, mais “desmilinguido”, já
dos fins do nosso excesso de camaradagem e da fase aguda dos combates
de arte. A camaradagem fora de fato excessiva assim de dias inteiros
homem com mulher. A discrição em mim: paulista, nela: puritana, jamais
nos permitira chegar a muito íntimas confissões, ela sabia sem por mim
oficialmente saber, das cavalarias que eu andava fazendo por fora, e
eu vagamente suspeitava nela a existência de um amor não correspondido.
Naquele contato diário prolongado viera se entremeter uma como que...
desilusão do sexo. Pra salvarmos a amizade, nos afastamos cautelosamente
mais, um do outro. E além dessa razão pra explicar o retrato tão
“escorrido” que ela fez de mim, havia também outra desilusão, e esta
era de todos nós, a desilusão da vitória. Embora muito combatidos e
insultados ainda, o grupo modernista aumentara, as adesões de todo o
Brasil chegavam numerosas, três salões dos mais ilustres nos recebiam com
carinho e aplauso semanalmente, o de dona Olívia Penteado, o de Paulo
Prado e o de Tarsila e era festa muita, alegria muita. Se passara pra
sempre o tempo de exaltação em que assustados, batidos de todas as partes
e apenas três ou quatro, nós, pela simples e primeira exigência de nos
sabermos vivos, nós nos achávamos invariavelmente uns gênios e cada obra
que fazíamos uma obra-prima imortal. Ainda não havia sombra de dissolução
do grupo, mas era, sim, era exatamente a desilusão da vitória. Já nos
examinávamos com maior franqueza e verdade, já nos entrecriticávamos,
já chegávamos à frígida calma de não gostar. (...)

76
Lasar Segall
Retrato de Mário de Andrade, 1927
Óleo s/ tela
73 x 60 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

77
Carta de Mário para Henriqueta Lisboa
02 de julho de 1941
Coleção Acervo dos Escritores Mineiros da UFMG

78
Carta de Mário para Henriqueta Lisboa
02 de julho de 1941
Coleção Acervo dos Escritores Mineiros da UFMG

79
Carta ao pintor moço
São Paulo, 11 Junho de 1942.
Meu caro B.

Você bem sabe o carinho com que tenho seguido a sua carreira
artística. Mas estou, no momento, na impossibilidade total de
escrever artigo público sobre você. (...) Ora você me aparece
com uma exposição só preocupada com problemas estéticos de arte.
Isso provocou em mim, aliás em nós, o grupo dos que comigo nos
interessamos pela sua arte, um grande desinteresse inicial e uma
desilusão.(...)

Veja bem, B. : eu não exijo que você faça arte de combate. (...)
A bem dizer, não existe uma arte de combate. Mas se não existe
uma “arte de combate”, toda arte é essencialmente combativa por
definição. Pois ela nunca foi um exclusivo problema de beleza;
a beleza não é senão o elemento transpositor de que
a arte se serve pra funcionar dentro da vida humana coletiva.
Eu não nego que existam exemplares e mesmo pequenas fases de
arte (pequenas, note bem) que cuidem da realização exclusiva da
beleza e da técnica estética, porém mesmo essas manifestações
foram participantes, foram derrotistas, foram não-conformistas,
foram anti-acadêmicas, foram sociais.

Ora você, preocupado exclusivamente com os seus problemas


técnicos, se esqueceu que você existe. A arte, os quadros que
você apresenta, neste sentido, são muito piores que os mostrados
na exposição anterior! E quer saber por quê? Porque da última
vez a sua arte era uma festa, era um cântico de felicidade,
era a alegria, era a leviandade, a riqueza das formas sensuais,
do gostoso, do bonito. (...) Agora não. (...)
Você está em busca da Beleza, fazendo uma arte muito mais séria.
Você não está cumprindo a sua função de artista que é viver
funcionalmente a vida com a sua arte. (...) Você é muito
solicitado pelos prazeres do mundo. E pelas dificuldades
econômicas do mundo... Mas a arte nada tem a ver com isso.

Mário de Andrade

80
Enrico Bianco
Retrato de Mário de Andrade, 1941
Óleo s/ tela
72,2 x 59 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

81
Para Mário

82
Victor Brecheret
Composição - Nú feminino com leque, 1924c
Lápis s/ papel
19,5 x 15,1 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

83
Victor Brecheret
Madalena e Cristo (carta para Mário de Andrade), 1923
Tinta de caneta s/ papel
32,4 x 25,1 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

84
Victor Brecheret
Pietá (carta para Mário de Andrade), 1924
Lápis de cor s/ papel
26,6 x 21 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

85
Rio 24 IV 922

MARIO querido

Hoje recebi tua carta de felicitações, que também traz-me a


participação que o grupo vae ter uma revista! “Klaxon”. Muito bem, as
felicitações eu e Maria agradecemos com todo coração e à revista uma
vida eterna. Mandarei breve o desenho pedido com todo prazer. Eu também
ando com ideas de fazer aqui uma pequena revista, que absolutamente
não prejudicará a do grupo, pelo contrário...mas tudo depende. Tenho
trabalhado bastante e com muito amor. Chega-nos da Europa mais um do
grupo, é o Alberto Cavalcanti (parente) decorador e architecto. Elle
é extraordinário de modernismo. Quando fôr a S. Paulo com exposição
irei com elle provavelmente isto lá para Setembro em fuga das festas do
Centenário cruel. Verás então o que tenho de novo. Aqui todos vão bem e
dahi desejava saber se os illustríssimos SRS:
Rubens de Moraes
Oswaldo de Andrade
Luiz Aranha
Guilherme de Almeida
Serge Milliet e Pedro Rodrigues de Almeida, ainda existem e se estão
dispóstos a responder novas remeças de correspondência. Radiante como
esta bahianinha assigno esta carta.
Radiante por saber-te feliz e sempre amigo do seu

Di Cavalcanti

Um abraço da Maria

86
Di Cavalcanti
Carta ilustrada para Mário de Andrade, 1922
Lápis de cor, tinta de caneta e nanquim s/ papel
33,7 x 17,7 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

87
1 de IX-930

Meu muito querido Mário saudades

Então velho ingrato nem um bilhete para o seu amigo e mestre


nas festanças... mas o melhor é não ligar e ir de vez em quando
escrevendo para o mago da rua Lopes Chaves.
V. perdeu o enterro do sinhô que eu assisti e vou fazer um quadro
para matar o greco na cabeça elle que fez o enterro do conde de
Argaz. Manoel está gozando as delícias de Bello Horizonte e Cícero
dias apaixonou-se por Miss Russia. Abandonei o gordo Schimidti
definitivamente elle possue o ordinarismo de O. Andrade sem nenhum
encanto creador. Apenas a persistência na baixeza é que faz que
a gente julgue-o engraçado. Abandonando o Schimidti vejo pouco
o Ovalle. Agora dedico-me à solidão produtiva nem vou a casa
do Alvaro quasi. Espero que os meus trabalhos dêem me qualquer
cousa porque parece-me já mereço tempo de realizar o que sei que
realizarei: Mário felizmente eu não me apresso, não quero nunca
realizar obras primas como quiz o Brecheret o Villa e mesmo já o
Celso Antonio o que acontece é que elles sem autocrítica já estão
paus. E eu me sinto de uma mocidade comovente. Não é orgulho é
vaidade. Elles não amam a vida. Amam a arte como a um mytho. E eu
amo sobretudo a vida esta vida que me vem como os calores sexuaes
de baixo para cima. recado do Di

88
Di Cavalcanti
Carta ilustrada para Mário de Andrade, 1930
Nanquim sobre papel
30,4 x 22,4 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

89
Anita Malfatti
Carta desenho (com John Graz), 1925c
Crayon, nanquim e guache s/ papel
30,5 x 29,8 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

90
Anita Malfatti
Carta desenho (com John Graz), 1925c.
Crayon, nanquim e guache s/ papel
30,5 x 29,8 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

91
Cícero Dias
Carta ilustrada para Mário de Andrade, 1930
Guache s/ papel
27,7 x 21,1 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

92
Cícero Dias
Cortejo, 1930
Nanquim e Aquarela s/ papel
47 x 30 cm
Coleção Mário de Andrade
Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP

93
Paulo Duarte

94
95
AS CARTAS DE MÁRIO DE ANDRADE
Affonso Romano de Sant’Anna
para Otto Lara Rezende, que responde...

Mário de Andrade:

não posso chamar-te amigo.


Nunca trocamos cartas
ou um aperto de mão.
Mal aprendia a cartilha
em Minas
_ e em São Paulo, morrias.
Morrias sem deixar epístola
ou sermão para o adolescente
que carente padecia
como outros provincianos
vendo que repartias
tuas cartas, como um messias
a escrita da comunhão.

Não ter te conhecido


é estar despido e mendigo
é ver prosperar no umbigo
a indústria da própria fome.
Não ter te conhecido
é ter perdido o melhor filme,
derramar o melhor prato
chegar tarde ao teatro
abrir a porta da casa
e ver um morto no quarto.
Não ter te conhecido
é ter vivido no exílio
de tua literatura,
confere com ter nascido
em tempos de ditadura.

Meço a minha tristeza:


que grande autor em ti perderam
a literatura alemã
_ e a francesa,
que voraz leitor em mim perderam
tuas cartas
_ jamais saídas da mesa.

_ A que horas escrevia esse homem?


No teclado do piano?
enquanto esperava o bonde?

96
na moldura futurista?
na canoa do sertão?
no lombo brabo do dia?
no fino talher dos Prado?
na entulhada escrivaninha?

Os homens comprando ações


_ e ele escrevendo cartas.
Os homens comprando terras
_ e ele escrevendo cartas.
A Bolsa e o tremendo craque
_ e ele escrevendo cartas.

Boto jarras na janelas,


exponho toalhas, tapetes,
enquanto na rua passa
_ a procissão
dos missivistas de Mário.

Os mais velhos causam inveja


e exibem nacos de cartas,
conselhos do Grande Irmão.

_ O que fazem, hoje, na manhã,


sem cartas
os destinatários
de Mário?
_ Tornam-se melhores?
_ Ou se quedaram avaros?

_ Teria o correio literário


nacional se pervertido
após a morte de Mário?

_ Ou acabaram os escribas
missivistas-missionários?

Como nunca me escreveste


me espicho no ombro alheio
lendo as cartas que expedias
para mil correspondentes:

provincianos brasileiros,
argentino e uruguaios,
europeus e americanos,
talvez algum asiático
e, quem sabe? alguém em Marte?

97
Lá vou eu, órfão
_ não do morto,
de vivos destinatários
aqueles que mal respondem
antes de mim se escondem
num envelope de evasivas.

Mas que bobagem a minha


querer ser amigo de quem
só era amigo de Mário,
derramando em seu correio
minha escrita perdulária,
tentando suprir com eles
o meu falto epistolário.

_ Escreviam eles cartas


que dissessem algo a Mário?

_ Ou eram só um pretexto
de espertos correspondentes
coletando selos raros
que expõem no frio armário?

Penso o que se perdeu


nessa não-correspondência,
naqueles que como eu
ficaram acenando cartas
depois
que o trem de Mário partiu.

Pior que mau aluno, discípulo


desperdiçado, bato com a burra
cabeça, não na lombada dos livros
- na caixa postal fechada.

Mas por compulsão escrevo


quer tenha resposta ou não,
há muito que correspondo
com meu próprio imaginário.

Não foi de jeito. Não tive


o mestre que merecia. Sem guia
não sendo Dante, fico num canto
da sala olhando a estante
por entre as frestas dos livros
na espera que de repente
encontre a carta perdida.

98
Ah, eu bem conheço
esse logo e outros jogos
de cartas frias no espelho,
onde narciso reflete
as cicatrizes e medos.

Já esperei cartas como um suicida


vendo vazar a vida
insone
na espreita que a aurora surja
num envelope de surpresas
e no resgate da morte.

Já me prostrei no hall,
no portão, como um danado cão
ou ermitão
_ na espera de sinais.

Já esperei bondes, amantes,


prêmios, esperei Buda e Jesus Cristo
sozinho ao pé do monte.

E na madrugada alemã
após beber todo o Reno
num trago de solidão,
escrevo um poema-carta
para o amigo temporão.

Contemplo o branco envelope,


o irrespondível endereço
lá da Rua Lopes Chaves.
Fingindo amizade imensa
invento o pai, o amigo, o irmão
e envio cartas tardias
que um carteiro preguiçoso
jogará em qualquer rio.

P.S.
Aquele que escreve cartas
não apenas cola selos
num envelope de nuvens
lançado sobre o horizonte.
Espera que quem recebe
saiba ler na linha d’água
a sede do eterno instante
e jorre afeto e respostas
num diálogo de fontes.

99
fotos: Paulo Duarte

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101
Dos visitantes
Para Mário

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104
105
106
107
Cronologia

Mário de Andrade,
1917

Reservista do
exército, faz
Ingressa na A morte do irmão exercícios militares
Escola de Renato, a 22 de como voluntário,
Comércio Álvares junho abala durante a 1ª Guerra
A infância de Penteado, muito Mário. Mundial.
Mário decorre mas permanece Desiste da Morte do pai, a 15
na companhia por apenas dois carreira de de fevereiro de 1917.
de tios e primos. meses. Frequenta concertista, já Publica, sob o
Seu irmão Renato o 1° ano da que, após a grave pseudônimo Mário
nasce em 1899 e Faculdade de crise emocional Sobral, Há uma gota
Nasce Mário sua irmã Maria de Filosofia e Letras suas mãos ficam de sangue em cada
Raul de Moraes Lourdes em 1901. da Faculdade de trêmulas. poema. Encontro
Andrade a 9 de Aos 6 anos, Mário São Paulo, no com Oswald de
outubro, na casa entra para o Grupo Mosteiro de Professor de Andrade que
da Rua Aurora, Escolar da Alameda São Bento. piano e História leva artigos seus
320, no centro do Triunfo. da Música no para o Jornal do
de São Paulo. A seguir no Ginásio Entra para o Conservatório. Commercio.
É o segundo Nossa Senhora Conservatório
filho do casal do Carmo dos Dramático Publica seu Visita com Di
Maria Luísa de irmãos maristas, e Musical, primeiro texto Cavalcanti a
Almeida Leite formando-se habilitado na imprensa. exposição de Anita
Moraes e Carlos em 1909. Estuda para o 3° ano Uma crítica Malfatti. Volta várias
Augusto piano em casa de piano. Deseja musical no Jornal vezes, tornando-se
de Andrade. com a mãe e a tia. ser concertista. do Commercio. amigo da pintora.

1893 1895/1909 1910/11 1913/1915 1916/1917

“Na rua Aurora eu nasci “assim como estudava piano, “Depois a Vida me ensinou
Na aurora de minha vida não perdia concerto e lia A vida. Meu pai morreu. Quando
E numa aurora cresci. a vida dos músicos, também Órfão me vi, chora-chorando,
não perdia exposições Minha miséria se acabou.”
No largo do Paiçandu plásticas, devorava
histórias de arte, me Mário de Andrade - Losango cáqui
Sonhei, foi luta renhida,
Fiquei pobre e me vi nu. atrapalhava em estéticas
mal compreendidas, estudava
Nesta rua Lopes Chaves os escritores e a língua,
Envelheço, e envergonhado e, com quê sacrifícios nem
Nem sei quem foi Lopes Chaves. sei pois vivia de mesada
miserável, comprava o meu
Mamãe! me dá essa lua, primeiro quadro!”
Ser esquecido e ignorado Carta a Oneida Alvarenga;
Como esses nomes da rua.” Rio de Janeiro, 1940

Mário de Andrade -
Lira paulistana

108
Ajuda a organizar e
participa da Semana de
Arte Moderna lendo trechos
de Paulicéia desvairada e A
Foto da Semana de 22 no escrava que não é Isaura.
saguão do Teatro Municipal. Reunião dos Mário de Andrade no Ante a repercussão da
Mário de Andrade com Em sentido horário: Modernistas. Mário de chão, atrás dele Zina
colegas, em frente Semana perde seus alunos
René Thiollier, Manuel Andrade (de chapéu), Aita ( à esquerda) e
ao Conservatório Bandeira, Mário de Andrade, particulares de piano.
Baby e Guilherme Anita Malfatti, 1922
Dramático e Musical, Manoel Vilaboin, Francesco Publica Paulicéia desvairada
de Almeida, Antonio
1918 Pettinati, Motta Filho, Carlos Couto de às suas custas. Faz parte de
Paulo Prado, Graça Aranha, Barros, Rubens Klaxon, revista modernista
Afonso Schmidt, Goffredo Barbosa de Moraes, de São Paulo. Escreve,
da Silva Telles, Couto de Yan de Almeida Prado, Losango cáqui, durante os
Barros, Tácito de Almeida, Tácito de Almeida, exercícios de reservista.
Luís Aranha, Oswald de frente à casa de
Andrade ( sentado no chão), Guilherme de Almeida Forma com Tarsila do
Rubens Borba de Moraes
Amaral, Anita Malfatti,
Oswald de Andrade e
Menotti del Picchia o Grupo
Colabora em várias dos Cinco.
Mário de Andrade com
revistas; entre elas, Muda-se para a casa
Prof. Wancole e colegas
do Conservatório, 1918 Papel e Tinta; Revista da Rua Lopes Chaves em Escreve o poema “Carnaval
do Brasil e Ilustração companhia da mãe e da tia- carioca”. Publica “Crônicas
Brasileira. Frequenta madrinha, com quem viverá de Malazarte” e dois contos
Escreve em A Gazeta o estúdio do escultor até o final da vida. de Belazarte na América
como crítico de Victor Brecheret e A 27 de maio Oswald de Andrade Brasileira, revista carioca.
música. compra um exemplar publica “Meu poeta futurista”, no Escreve para a revista Ariel.
É colaborador do bronze Cabeça de Jornal do Commercio, elogiando Completa a redação de A
de A Cigarra, Cristo. Em dezembro Mário, que responde em 6 de escrava que não é Isaura,
o Echo e A Gazeta. escreve os poemas de junho com o artigo “Futurismo?” poética modernista.
Paulicéia desvairada,
Viagem a Minas primeiro livro Conhece Manuel Bandeira no Rio, Professor catedrático
Gerais, onde conhece modernista e moderno em outubro. Uma amizade que de Estética e História da
a obra de Aleijadinho. brasileiro. motivará longa correspondência. Música, no Conservatório.

1918/1919 1920 1921 1922/23

“(...) Eu estava aparentemente “Mário de Andrade, intransigente pacifista,


calmo, como que indestinado. internacionalista amador, comunica aos camaradas
Não sei o que me deu. Fui até a que bem contra-vontade, apesar da simpatia dele
escrivaninha, abri um caderno, por todos os homens da Terra, dos seus ideais
escrevi o título em que jamais de confraternização universal, é atualmente
pensara, ‘Paulicéia desvairada’. soldado da República, defensor interino do Brasil.”
O estouro chegara afinal, depois
Mário de Andrade - Losango cáqui
de quase ano de angústias
interrogativas. Entre desgostos,
trabalhos urgentes, dívidas,
brigas, em pouco mais de uma
semana estava jogado no papel um
canto bárbaro, duas vezes maior
talvez do que isso que o trabalho
de arte deu num livro.”

Mário de Andrade. “O movimento modernista”

109
Faz a primeira redação de
Macunaíma. Publica Losango Casa de
cáqui, poesia e Primeiro Mário de
andar, contos. Colabora na Andrade na
Revista do Brasil e em Terra Rua Lopes
Roxa e outras Terras; torna- Chaves,
se crítico do jornal carioca São Paulo
A Manhã, suplemento de
São Paulo.
Mário de Andrade,
Praia do Chapéu
Integra a Virado, Belém, 1927 Inicia sua experiência de
caravana fotógrafo que irá até 1931.
modernista
que vai a Minas Viaja para a Amazônia,
conhecer chegando a Iquitos no Peru
as cidades e à fronteira da Bolívia. Sombra Minha, Mário de pijama,
históricas. Blaise Santa Tereza 1929
Cendrars faz Realiza mais de 500 do Alto, 1928
parte do grupo. fotografias registrando Publica o
Encontra Anibal aspectos arquitetônicos, Publica Macunaíma “Compêndio de
Machado, Pedro paisagísticos, e retratos da o herói sem nenhum história da música”.
Mário de Andrade
Nava e Carlos à bordo do “São população local. Escreve o caráter, 800 Escreve os “Poemas
Drummond de Salvador, 1927 diário do Turista aprendiz, exemplares. Redige da negra” e os
Andrade, com se mas não o publica em vida. o libreto de Pedro “Poemas da amiga”.
corresponderá Colabora Malazarte, ópera Inicia o romance
por muitos anos. n’ A Revista do Colabora na revista Verde cômica. “O café”, que
modernismo de de Cataguases. ficará inacabado.
Compra a Belo Horizonte. Entre dezembro de Rompimento da
máquina Publica A escrava Publica à suas custas, 1928 e março de 1929, amizade com
de escrever que não é Isaura”. Amar Verbo Intransitivo segunda viagem ao Oswald de Andrade.
Remington, Compõe e Clã do Jabuti. Escreve nordeste, destinada a Publica “Modinhas
batizada “Louvação matinal” críticas de arte, literatura recolher dados sobre imperiais” e
Manuela, em e “Louvação da e música, crônicas, poemas, a música, o folclore e “Remate de males”
homenagem ao tarde”, de Remate contos para o Diário a cultura popular da e o ensaio “Origens
amigo Bandeira de Males. Nacional (até 1932). região. do fado”.

1924 1925 1926 1928 1929/30

“Fui na fazenda passar um mês.


Pois me veio o saci de uma idéia
pra um romance na cabeça, escrevi
o tempo todo, teve dias em que
escrevi até duas da manhã! trouxe
mais um livro na mala mas porém
não descansei nem um bocadinho.”

Mário de Andrade. Carta a Anita


Malfatti. 9 fev. 1927

Realizada por Denise Mattar a partir da


cronologia completa de Telê Ancona Lopez
e Tatiana Longo Figueiredo, da Equipe
Mário de Andrade do IEB -
Instituto de Estudos Brasileiros USP.

110
A convite do Conferência “O movimento
Prefeito de São modernista”, importante
Paulo, Fábio Prado balanço, no Itamaraty, a
torna-se Diretor convite da Casa do Estudante,
do Departamento no Rio de Janeiro.
Municipal de Cultura. Reassume o cargo de
Inaugura a Discoteca Catedrático no Conservatório.
Mário de Andrade, entre
Pública, cria parques Contrata com a Editorial
alunos de Portinari na
infantis e projeta Losada, de Buenos Aires,
Universidade Federal, 1938
Escreve os casas de cultura. livro sobre Portinari.
poemas de Elabora com Paulo Em julho de 1938 assume Inicia a publicação das “Obras
“Rito do irmão Duarte o anteprojeto a diretoria do Instituto de Completas”, “Aspectos da
pequeno” e de do Serviço do Artes da Universidade do literatura brasileira”, “Os
“Girassol da Patrimônio Histórico Distrito Federal, no Rio, Mário de Andrade, filhos da Candinha”, “O baile
madrugada”. e Artístico Nacional onde ministra o Curso Portinari e Oscar das quatro artes” e “Obra
Dirige com Paulo (SPHAN) e inicia de Filosofia e História Simão em frente à imatura”, esta reunindo “Há
Prado e Antônio correspondência da Arte. É consultor casa do artista, 1941 uma gota de sangue em cada
de Alcântara com Rodrigo Melo técnico do Instituto poema”, “Contos selecionados
Machado a Revista Franco de Andrade. Nacional do Livro, onde Regressa a de Primeiro andar” e
Nova. Cria a Sociedade de elabora projeto para uma São Paulo, à “A escrava que não é Isaura”.
Início da Etnografia e Folclore; enciclopédia brasileira. casa da rua
correspondência organiza o Congresso Participa da programação Lopes Chaves Escreve “Lira paulistana”,
com Oneida de Língua Nacional cultural do Ministério e ao cargo de poesia.
Alvarenga. Cantada. Capanema. professor no Inicia a redação do poema
Apoia a Revolução Eleito membro Conservatório. “Meditação sobre o Tietê”, que
Constitucionalista. da Academia Paulista Frequenta grupo de jovens Trabalhando no termina às vésperas da morte.
de Letras. escritores: Murilo Miranda, SPHAN, inicia a
Completa 40 Deixa a direção do Carlos Lacerda, Moacir pesquisa sobre Participa do I Congresso
anos; adoece com Departamento de Werneck de Castro, da o pintor e Brasileiro de Escritores
nefrite. Angústia Cultura. A frustração Revista Acadêmica. padre Jesuíno (São Paulo, 22-26 jan.).
e doença moldam de ver seu trabalho Viaja a Belo Horizonte do Monte A 25 de fevereiro, em sua
os poemas interrompido lança para pronunciar Carmelo. casa, em São Paulo, morre
escritos nesse Mário em dura crise. conferências. Publica “A Nau Mário de Andrade, de infarto
ano: “Grã Cão Sua saúde piora. Inicia correspondência Catarineta” do miocárdio. É enterrado
do outubro” e “O Muda-se para o com Henriqueta Lisboa e “Música no Cemitério da Consolação.
Grifo da Morte”. Rio de Janeiro. e Moacir Werneck Castro. do Brasil”. Neste ano sai Lira paulistana.

1931/34 1935/38 1938/40 1941 1942/45

“A vida é para mim, está se vendo, “Quando eu morrer quero ficar,


Uma felicidade sem repouso; Não contem aos meus inimigos,
Eu nem sei mais si gozo, pois que o gozo Sepultado em minha cidade,
Só pode ser medido em se sofrendo. Saudade.
Meus pés enterrem na rua Aurora,
Bem sei que tudo é engano, mas sabendo No Paiçandu deixem meu sexo,
Disso, persisto em me enganar... Eu ouso Na Lopes Chaves a cabeça
Dizer que a vida foi o bem precioso Esqueçam.
Que eu adorei. Foi meu pecado... Horrendo No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Seria, agora que a velhice avança, Um coração vivo e um defunto
Que me sinto completo e além da sorte, Bem juntos.
Me agarrar a esta vida fementida. Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos
Vou fazer do meu fim minha esperança, Telégrafos,
Oh sono, vem!... Que eu quero amar a morte Quero saber da vida alheia,
Com o mesmo engano com que amei a vida.” Sereia.
Mário de Andrade . Grã Cão do Outubro O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...
Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há-de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...
As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.”
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Mário de Andrade. Lira paulistana
CuradorIa: Denise Mattar Agradecimentos:
Cenografia: Guilherme Isnard Carlos A. C. Camargo
Programação Visual: Kaminari Comunicação Instituto de Estudos Brasileiros USP
Locução: João Paulo Lorenzón Maria Angela Faggin Pereira Leite
Iluminação: BeLight Marina de Mello e Souza
Design de luz: Samuel Betts Telê Ancona Lopes
Multimidia: Rafael Renzo Marcos A. Moraes
Elizabeth Ribas
Produtor Executivo: Celso Rabetti Projeto Portinari
Produtor Local: Claudio Fernandes - Clan Design João Cândido Portinari
Assistente de curadoria: Gabriela Albuquerque Noélia Coutinho
Assessoria de Imprensa: Raquel Silva Marta e Roberto Siqueira
Educativo: Bernardo Almeida (coordenação) Jones Bergamin
Mediadores: Fabiana Arruda Luis Antonio de Almeida Braga
Karla Cristina Gomes Simão Mendel Guss
Gilson Maia Acervo de Escritores Mineiros - UFMG
Lucas Trindade Marcus Vinicius de Freitas
Elaine Caramella
Fotos da exposição: Guilherme Isnard Priscila Arantes
Paulo Duarte Sonia Régis Barreto
Fotos históricas: Arquivo IEB Izabel Ferreira
Associação Cultural Cândido Portinari Aracy Amaral
Museologia: Bianca Dettino - IEB Acervo Itaú Cultural
Lúcia Elena Thomé - IEB - USP Eduardo Saron
Thereza Kahl Fonseca - RJ Kety Fernandes
Raul Carvalho - SP Adilson Ruiz
Site: Wagner Bartoletti Junior Celeste Bartoletti
Montadores: Renato das Dores
João Batista Silva
Fábio Francisco de Paula
Impressões: FXImpressões
Transporte: Millenium Transportes
Seguro: Affinite Corretora de Seguros

Produção: Facto Arte

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