Você está na página 1de 45

ARTE E ESTÉTICA

Unidade II
3 A ESTÉTICA MODERNA

O Impressionismo, porta de entrada da Arte Moderna, e a ascensão da abstração trouxeram grande


impacto estético ao longo do século XX. Os movimentos de vanguarda e o Cubismo tiveram papel
fundamental nas influências artísticas, subvertendo os impulsos realistas e trazendo liberdade estética
na capacidade imaginativa do artista e do público.

3.1 Do realismo à abstração

Eu não entendo as pessoas que falam sobre Beleza. O que é Beleza? Na


pintura você tem que falar sobre problemas! Pinturas são nada além
de pesquisa e experiência. Nunca pintei um quadro como uma obra de
arte. Tudo é pesquisa. Eu continuo pesquisando, e nesta investigação
constante há um desenvolvimento lógico (PICASSO, 2006, p. 66,
tradução nossa).

Após a Revolução Industrial, houve uma rápida ascensão da modernidade, rompendo com o realismo
que ainda dominava as camadas da sociedade.

O ritmo acelerado da crescente urbanização e o surgimento de novas camadas da sociedade também


se refletem no âmbito artístico, na tentativa de promover mais sensibilidade e resgatar o que havia se
perdido em meio ao aglomerado de máquinas.

Dentro desse universo de revolução em todos os âmbitos da sociedade, a invenção da fotografia


seria outro fator determinante na mudança da estética, principalmente no movimento artístico
impressionista pois, ao em vez de rivalizar com a pintura como muitos declamaram, ela auxiliou
diretamente a obra de alguns artistas, como Degas, para quem a fotografia contribuiu com a
descoberta e a fascinação de cenas e ângulos inesperados, como podemos observar nas imagens
a seguir:

39
Unidade II

Figura 25 – L’Absinthe, Degas, 1876

Figura 26 – Boating on the River Epte, Monet, 1890

Para Ernst H. Gombrich, um dos mais reconhecidos historiadores e teóricos das artes plásticas e
visuais contemporâneos, a fotografia assumiu a função da arte pictórica, na qual só “[...] o pintor podia
derrotar a natureza transitória das coisas e preservar o aspecto de qualquer objeto para a posteridade”
(GOMBRICH, 1988, p. 416). Isso causou um golpe na posição da maioria dos artistas, conflito não ocorrido
com o movimento impressionista.

40
ARTE E ESTÉTICA

Antes dessa invenção, quase toda pessoa que se prezava posava para seu retrato, pelo menos uma
vez na vida. Naquele momento, as pessoas raramente se sujeitavam a isso, a menos que quisessem
ajudar um pintor amigo.

Assim sendo, os artistas viram‑se cada vez mais compelidos a explorar regiões em que a fotografia
não podia acompanhá‑los. De fato, a Arte Moderna dificilmente se converteria no que é sem o impacto
dessa invenção (GOMBRICH, 1988, p. 416).

O fato é que o impacto causado pela fotografia na intelectualidade europeia tomou proporções
nunca antes vistas. Três gerações após o advento da fotografia, alguns pintores abandonaram o
retratismo e passaram à abstração, e outros abriram seus ateliers fotográficos, primeiramente como
atividade paralela e, logo depois, como atividade exclusiva.

Neste ínterim, o Impressionismo surgiu como primeiro movimento artístico a sofrer as influências
que a fotografia começava a proporcionar no âmbito cultural e, mais tarde, nos movimentos de
vanguarda, à medida que artistas introduziram algo novo quanto à percepção visual além das novas
experiências com a própria linguagem estética.

Veremos a seguir os movimentos de vanguarda que influenciaram a estética na história da Arte.

Nota‑se que o avanço acontece gradualmente, com Delacroix, nos anos de 1830, no uso das cores e
movimentos; com Courbet nos anos de 1840, com o tema e com Manet, nos anos de 1850, na alteração
da luminosidade e da forma, para citar alguns exemplos.

Figura 27 – Young ladies on the bank of the Seine, Courbet, 1857

41
Unidade II

Figura 28 – Música nas Tulherias (detalhe), Manet, 1862

Observação

A vida urbana parisiense, a sociedade educada e elegante, retratadas


com naturalidade e delicadeza, as personagens extraídas do cotidiano
vão se diluindo ao fundo em contornos menos incisivos. Manet liderou a
criação do “Salão dos Recusados” (pela pintura oficial), abrindo caminho
para os impressionistas.

O movimento impressionista foi, portanto, a porta de entrada para a experimentação que tomaria
conta do cenário artístico do século XX. Seus maiores expoentes foram Renoir, Monet e Degas.

Muitos artistas impressionistas buscaram espaços diferenciados em suas experimentações sensoriais,


como fizeram principalmente os pintores Renoir e Monet. Observavam espaços urbanos e elementos
naturais cotidianos na vida dos parisienses, além de estudarem as nuances temporais do ambiente,
repetindo inúmeras vezes a incidência da luz natural e as alterações cromáticas dos diferentes horários,
criando a técnica chamada “séries” de pinturas, como esclarece Canton:

O Impressionismo tem a ver com a atitude de pintar as impressões, e não


a realidade que se vê. Os artistas impressionistas não se preocupavam
com o que pintar, mas, sim, com como pintar. Em sua maioria, pintavam
cenas de ruas, edifícios, paisagens, flores. O francês Claude Monet
(1840‑1926) é considerado o mais impressionista desses pintores. Ele
usava pinceladas soltas, captando brilho e luz em diferentes horários do
dia (CANTON, 2006, p. 32).

42
ARTE E ESTÉTICA

Figura 29 – Rouen Cathedral, Monet, 1894 Figura 30 – Rouen Cathedral (2), Monet, 1894

Figura 31 – O almoço dos remadores, Renoir, 1881

Dentro desse contexto, a fotografia era considerada a tradução fiel da representação, um relato visual
de tamanha exatidão que quase sugeria um exagero de detalhe. O fotógrafo, porém, tem a capacidade
de controlar a natureza da câmera, manipulando‑a tanto técnica quanto esteticamente, e é esse o
motivo pelo qual se encadeia ao interesse pela abstração.

Enquanto a representação é o instrumento mais eficaz da mensagem visual, o estado abstrato, por
sua vez, é o essencial.

É extremamente útil no processo de exploração descompromissada de um


problema e no desenvolvimento de opções e soluções visíveis. A natureza da
abstração libera o visualizador das exigências de representar a solução final e
consumada, permitindo, assim, que aflorem à superfície as forças estruturais
e subjacentes dos problemas compositivos, que apareçam os elementos

43
Unidade II

visuais puros e que as técnicas sejam aplicadas através da experimentação


direta (DONDIS, 1997, p. 103).

Nossa percepção é capaz de suprir pormenores da mensagem estética, como uma ação que, por
meio de outra ação, tende a anular a precedente estabelecendo o equilíbrio e outras ações decorrentes
de motivos racionais como o emprego de métodos planejados.

Mas a abstração é muito mais respeitável que isso para o significado. Enquanto a abstração pura
manifesta‑se pela redução da mensagem até a mínima informação representacional, ela também se
manifesta desconstituída de qualquer vínculo com os dados visuais manifestos, sejam eles quais forem.
O ato da abstração é decisivo, repleto de caluniosos inícios. Busca‑se a pureza dos elementos básicos e
a liberdade da expressão, qualidades não oriundas da câmera fotográfica – afinal, “[...] por que competir
com ela?” (DONDIS, 1997, p. 104).

A abstração não carece necessariamente de ter alguma analogia com o desenvolvimento de


símbolos quando estes são construídos pela imposição de haver significado. Ao reduzirmos a mensagem
visual pelos elementos básicos, também desenvolvemos um processo de abstração e observamos uma
estratégia importante na compreensão da estrutura da mensagem.

Quanto mais representacional for a informação visual, mais específica será sua referência; quanto
mais abstrata, mais geral e abrangente. Em termos visuais, a abstração é uma simplificação que busca
um significado mais intenso e condensado (DONDIS, 1997, p. 95).

A partir do século XX, as tendências estéticas foram em busca da forma ideal. “Em termos visuais, a
abstração é uma simplificação que busca um significado mais intenso e condensado” (DONDIS, 1997,
p. 95). Como consequências dessa inquietação, surgiram várias tendências que se sobrepuseram à
racionalidade da abstração sobre a emotividade do Impressionismo: Surrealismo, Cubismo, Fauvismo,
Construtivismo, Futurismo, Expressionismo e Dadaísmo são alguns exemplos do novo lugar da estética
na primeira metade do século XX.

O rompimento da tradição acadêmica pelas abstrações artísticas tem seu auge com o surgimento da
Arte Moderna, tornando a discussão sobre o inconsciente e “morte” da arte cada vez mais frequente. A
psicanálise de Freud, apontando para a descoberta do inconsciente, revoluciona a concepção do homem,
marcada até então pela filosofia cartesiana. Dessa forma, o artista se libertava do retratismo visível e
dava asas às suas realidades psíquicas pelo formalismo em detrimento do tema.

3.2 Os movimentos de vanguarda

Após a Revolução Industrial, a desigualdade social começou a fazer parte do processo na Europa,
onde figurava a elite de um lado, a massa de operários excluídos de outro e o avanço no processo
burguês‑industrial na disputa de domínio de mercado. Nesse clima de euforia e insatisfação, a classe
artística começou a introduzir novas experiências com a linguagem estética, que representavam um
anseio de oposição social. Esses artistas foram denominados “vanguardistas” e tiveram papel fundamental
nas influências artísticas ao longo do século XX.
44
ARTE E ESTÉTICA

O termo “vanguarda”, do francês avant‑garde (marcha na frente), designa originalmente as tropas


de frente no campo de batalha. No decorrer do século XIX, a palavra foi metaforizada, como explica
Lúcia Helena em Movimentos da Vanguarda Europeia:

Significa o movimento artístico que “marcha na frente”, anunciando a criação de


um novo tipo de arte. Esta denominação tem também uma significação militar
(a tropa que marcha na dianteira para atacar primeiro), que bem demonstra o
caráter combativo das “vanguardas”, dispostas a lutar agressivamente em prol
da abertura de novos caminhos artísticos (HELENA, 1993, p. 8).

Dessa forma, o movimento de vanguarda representa o que o próprio nome diz: uma batalha avançada
com o propósito de abrir novos caminhos para o futuro. A expressão, primeiramente aplicada no contexto
político e de progresso social, foi se deslocando à posição reacionária de autonomia da arte, marcada pelo
protesto realizado em 1863, em Paris, por artistas recusados no Salão de Paris por serem considerados,
pelos membros da Real Academia Francesa de Pintura e Escultura Francesa (uma divisão da Academia de
Belas Artes), “não acadêmicos”. Na ocasião, Édouard Manet teve seu quadro, Almoço na Relva, considerado
insolente e erótico, ainda mais por ter retratado pessoas conhecidas da sociedade parisiense.

Figura 32 – Almoço na Relva, Manet, 1863

O protesto, encabeçado por Manet, que gozava de grande prestígio nos meios mais avançados, teve
apoio dos impressionistas, intelectuais, escritores e admiradores e resultou em uma exposição paralela
autorizada pelo imperador Napoleão III no Salón des Refusés (Salão dos Recusados) em resposta às
fortes declarações dos artistas recusados em relação à falta de democracia e transparência na seleção.
A mostra acabou atraindo grande público, disposto a ridicularizar as obras dos recusados, nos anos
posteriores, contudo, esse público mudou seu ponto de vista e o salão passou a ser forte concorrente ao
salão oficial da academia.

Após esse polêmico episódio considerado marco do surgimento da Arte Moderna, vários artistas
começaram a expor seus quadros individualmente, principalmente os impressionistas. O termo “vanguarda”
se estendeu aos movimentos que foram se formando na Europa e passou a representar uma nova estética
da arte, caracterizada pela experimentação voltada à individualidade e subjetividade do artista e pela
ruptura das linhas éticas e estéticas que regiam as normas e linguagens artísticas da época.
45
Unidade II

Dentre os movimentos vanguardistas que se formaram a partir de então, destacam‑se o


Expressionismo, o Cubismo, o Surrealismo, o Dadaísmo e o Futurismo, tópicos que veremos a seguir.

Observação

O Salão de Paris

Exposição de arte oficial da Academia de Belas Artes de Paris, fundada


em 1667, e organizada anualmente, e depois bienalmente, no Salón
Carré do Museu do Louvre. Os jurados, cada vez mais academistas e
conservadores, pouco abertos a novos artistas e a novas linguagens, se
mostravam menos receptivos ainda aos impressionistas, recusando cada
vez mais obras a cada mostra.

O governo francês retirou o patrocínio oficial do Salão de Paris em


1881, que passou a ser organizado por um grupo denominado “Sociedade
dos Artistas Franceses” e que propunha a exposição de artistas jovens
não premiados. Desde então, o Salão de Paris foi perdendo seu prestígio
na França.

3.2.1 O Cubismo

A forma vem resgatar, com a Arte Moderna, a solidez que o Impressionismo dissolvera em luz,
tornando‑a expressiva e impactante, propensa a experimentações. Foi com o movimento cubista que a
Arte Moderna chegou ao seu auge, modificando completamente as noções de estética.

Fernand Léger (1881‑1955), representante do Cubismo francês, resume o aparecimento da Arte


Moderna da seguinte maneira:

[...] Toda obra pictórica deve comportar esse valor momentâneo e eterno,
que é responsável por sua duração fora da época de criação. Se a impressão
pictórica mudou, é porque a vida moderna tornou‑a necessária. A existência
dos homens criadores modernos é muito mais condensada e mais complicada
do que a das pessoas dos séculos precedentes. A coisa representada por
imagem fica menos fixa, o objeto em si mesmo se expõe menos do que antes.
Uma paisagem atravessada e rasgada por um automóvel, ou por um trem,
perde em valor descritivo, mas ganha em valor sintético; a janela dos vagões
ou o vidro do automóvel, conjugados à velocidade adquirida, mudaram o
aspecto habitual das coisas. O homem moderno registra cem vezes mais
impressões do que o artista do século XVIII; a tal ponto, por exemplo, que
nossa linguagem está cheia de diminutivos e de abreviações. A condensação
do quadro moderno, sua variedade, sua ruptura das formas, é a resultante
de tudo isso (LÉGER, 1989, p. 29‑30).
46
ARTE E ESTÉTICA

Figura 33 – Contrast of Forms, Léger, 1913

A arte de Picasso é um bom exemplo disso. Uma exposição de arte africana, em 1905, causou‑lhe
tamanha impressão que ele procurou retratá‑la em suas pinturas, tornando-se referência para outros
artistas do Modernismo. A simplicidade das formas e predominância de cores terrosas, principalmente
das máscaras sagradas, podem ser notadas na fase da obra de Picasso denominada por alguns
estudiosos de protocubismo.

Figura 34 – Máscara africana do Congo, Museu


Figura 35 – Les Demoiselles D’Avignon, (detalhe), Picasso, 1907
Barbier‑Mueller, Genebra

47
Unidade II

No Cubismo, a espontaneidade evidencia a preocupação do artista somente com o necessário,


desvinculado do realismo da representação e destacando o aspecto conceitual a fim de acender
sentimentos e emoções no espectador. Segundo Gombrich, essas obras “possuíam precisamente o que a
arte europeia parecia ter perdido nessa longa busca – expressividade intensa, clareza de estrutura e uma
simplicidade linear na técnica” (GOMBRICH, 1988, p. 563).

A forma ganha novo impulso com o Cubismo. Sua característica marcante é


apresentar o objeto significante sob vários ângulos. Apresenta nos seus traços
a frente e as costas, o que está dentro e fora, o acima e o abaixo, com o
objetivo de desmistificar a ilusão da perspectiva linear, para uma representação
simultânea da totalidade do objeto representado (SILVA, 2005, p. 54‑5).

A Arte Moderna foi um processo gradativo quanto às suas características. O pintor francês Paul
Cézanne (1839–1906), por exemplo, foi se distanciando do Impressionismo e sua arte já esboçava o
bastante para que ele fosse considerado por alguns estudiosos como o “pai da modernidade”:

Figura 36 – Les Grandes Baigneuses, Cézanne, 1900‑1906

Diante de Les Grandes Baigneuses, verificam‑se características como contrastes, hachuras e


pinceladas diagonais encurtadas que, por sinal, por assemelharem‑se a cubos, aludem ao nome do
movimento. As faces esquematizadas dos corpos femininos e a peculiaridade das formas “cubificadas” e
sem detalhes serviram de inspiração à obra de Picasso.

Junto ao francês Georges Braque (1882–1963), Pablo Picasso, artista plástico espanhol (1881–
1973), foi um dos maiores expoentes da escola de pintura abstrata, em voga no século XX. Os
abstracionistas se distanciavam cada vez mais do mundo real, aproximando o espectador de
elementos que criavam uma relação de significados. Em Woman with a Guitar, Braque introduziu
letras, partituras e cordas para aludir à ideia de um instrumento musical. Percebe‑se a guitarra
e a pessoa a partir de traços; e pelos olhos fechados da mulher, a sensação de satisfação e
prazer. Nesse contexto, podemos entender que o jogo de associações criado pelo artista através de
48
ARTE E ESTÉTICA

simbologias e elementos do mundo reconhecido aproxima o observador da linguagem do artista,


facilitando, de alguma forma, a compreensão da obra.

Figura 37 – Woman with a Guitar, Braque, 1912

O estilo de Picasso, por sua vez, caminhou por várias vertentes da linguagem plástica, do
Expressionismo ao clássico, bem como do semiabstrato ao abstrato (figuras 37, 38, 39 e 40).

Figura 38 – Frugal Repast, Pablo Picasso, 1904

49
Unidade II

Figura 39 – Le Moulin de la Galette, Pablo Picasso, 1900

Figura 40 – Autoportrait Yo, Pablo Picasso, 1901

50
ARTE E ESTÉTICA

Figura 41 – Femme à la Mandoline, Pablo Picasso, 1908‑9

Picasso alterou os fatores visuais para destacar a cor e a luz, não obstante tenha cultivado o realismo
e a tendência realista. Sempre inclinado à devoção pela informação representacional, se dedicou ao
divinismo da figura humana que, mesmo na fase mais clássica, era visível por meio de seus traços
levemente exagerados.

As grandes liberdades que tomou com a realidade resultaram, primeiro,


em efeitos extremamente manipulados, e, por fim, no completo abandono
do conhecido, em favor do espaço e do tom, da cor e da textura. Assim,
este último estilo visual estava apenas preocupado com questões de
composição e com a essência do design. Nesse avanço que o levou da
preocupação com a observação e do registro do mundo circundante a
experimentos com a essência mesma da criação de mensagens visuais
elementares, o desenvolvimento da obra de Picasso seguiu por um caminho
não necessariamente sequencial, mas que percorreu etapas diferentes do
mesmo processo (DONDIS, 1997, p. 98).

O percurso de Picasso pode ser distinguido mais facilmente se o compararmos à evolução


artística do neoclássico inglês J. M. W. Turner (1775–1851). Quando jovem, Turner tinha como
característica artística sua dedicação à detalhada sutileza de suas pinceladas, sendo detentor de
uma técnica representacional extraordinária. Buscou, ainda, nessa fase, preservar sua época na
maioria de seus temas.

51
Unidade II

Porém, com o tempo, a obra de Turner foi adquirindo uma insinuação incerta e questionadora da
realidade, até atingir, finalmente, características quase que completamente abstratas, com predominância
de formas quase sempre ausentes de rastros visuais, como elucidamos nas imagens a seguir:

Figura 42 – Folly Bridge and Bacon’s Tower, Turner, 1787

Figura 43 – The Wreck of a Transport Ship, Turner, 1810

Figura 44 – Venice: the Mouth of the Grand Canal, Turner, 1840

52
ARTE E ESTÉTICA

O movimento cubista trouxe muitas críticas quanto a sua natureza estética disforme,
manifestando‑se pela falta de compreensão diante da nova linguagem. No entanto, as contribuições
para a história, a partir das direções estéticas tomadas após o Cubismo, consagraram ao movimento
importância análoga à do Renascimento.

O movimento cubista não apenas rompeu com o comportamento do plano


tridimensional da pintura mas, sobretudo, resgatou sua forma bidimensional,
mostrando o objeto sob vários ângulos, simultaneamente, determinando forte
influência no desenho da página impressa (SILVA, 2005, p. 55).

O movimento não se extinguiu, mesmo tendo sua expansão interrompida durante a Primeira
Grande Guerra, abrindo campo para novas experiências estéticas e evoluindo em direção a outras
manifestações artísticas e de aspectos comerciais como, por exemplo, o design publicitário que
predominou durante toda a década de 1920. Isso corrobora o fato de que o Cubismo concebeu
mais que uma nova linguagem, tendo em vista a nova estética sugerir a construção das imagens
redesenhadas para um conceito que imitasse menos a realidade.

Lembrete

O que é iconografia?

O significado etimológico da palavra “iconografia” provém do grego


eikon, que significa “imagem”, e graphia, que significa “escrita”, ou seja,
“escrita da imagem”. Por outro lado, iconologia, cujo prefixo é o mesmo, difere
pelo significado do sufixo logia, logos ou pensamento, ou seja, “pensamento
da imagem”, que indica a ideia de análise em sentido mais profundo.

Apesar das tensas circunstâncias iniciais, o moderno se estabeleceu e transformou a cultura.


Essa resistência ao novo, aliás, se manifesta sempre que algo vem de encontro ao pensamento
tradicional.

3.2.2 O Expressionismo

No início do século XIX, surgiu o movimento expressionista como resposta à estética impressionista
a qual propagava que o objetivo do artista era a materialização de suas expressões emocionais, e não
da forma e da luz.

Com força mais evidente na Alemanha, caracterizou‑se pela agressividade de expor os traços sociais
da realidade, em uma crítica à burguesia vigente e aos interesses econômicos em detrimento dos valores
humanos. Os maiores representantes do Expressionismo foram Vincent Van Gogh, Paul Klee, Pablo
Picasso, Wassily Kandinsky e Edvard Munch. No Brasil, seus maiores ícones foram Cândido Portinari e
Anita Malfatti nas artes plásticas, e Nelson Rodrigues no campo teatral.

53
Unidade II

Figura 45 – Warning of the Ships, Klee, 1917

Saiba mais

Para melhor compreensão das obras do artista Paul Klee e do


movimento da arte abstrata, pesquise imagens, conteúdo e bibliografia
no site a seguir:

<http://www.tate.org.uk>.

3.2.3 O Surrealismo

O Surrealismo foi um movimento de vanguarda que surgiu na França em 1924, no período entre as
guerras mundiais e com base na experiência de outros movimentos, tais como: Futurismo, Cubismo e,
principalmente, Dadaísmo e Expressionismo.

O Manifesto do Surrealismo, idealizado por seu precursor, o escritor francês André Breton
(1896–1966), fundou sua ação na construção de uma utopia de sociedade livre e influenciada
pelos ideais freudianos do inconsciente como forma de liberdade de associação das ideias. Para
o movimento, o instinto era uma das fases da criação, necessária na busca de um caminho de
acesso ao profundo psiquismo humano. A partir daí, seria possível encontrar a imaginação e
fundi‑la à razão.

54
ARTE E ESTÉTICA

Freud se interessava pelo sonho e pela livre associação de maneira


bem diferente da de Breton e a incompreensão mútua foi grande. Ela
se baseia no fato de [que] os elementos do sonho não oferecem, para
a Psicanálise, interesse em si mesmos, mas em um contexto, que é
constituído, ao mesmo tempo, pelas circunstâncias da vida e pelas
associações que o paciente fará a respeito deles. O Surrealismo, ao
contrário, corta, isola esses elementos do processo de sua produção e
de sua interpretação, e os dá a ler ou a ver tais como se apresentam
(COMPAGNON, 1996, p. 73).

O Surrealismo explorou o reverso da lógica como verdade estética no cinema, nas artes plásticas e
nas letras, tendo como maiores representantes André Breton, Louis Aragon, Joan Miró e Salvador Dalí.

Figura 46 – A Mão de Dalí Retirando um Velo de Ouro em Forma de Nuvem


para Mostrar à Gala a Aurora Nua, Muito, Muito Longe por trás do Sol, Salvador Dalí, 1977

Observação

Um exemplo que deu outra perspectiva à pintura representacional,


transgredindo a tradição com aptidão e mérito ao encontrar soluções visuais
pela livre experimentação, a pintura hiper‑realista do catalão Salvador Dalí
(1904–1989) expressou a forma subjetiva do subconsciente, interpretada
como surreal.
55
Unidade II

3.2.4 O Dadaísmo

Considerado o movimento de vanguarda mais radical entre todos, por seu caráter de negação, o
Dadaísmo foi criado na Suíça, em 1916, pelo poeta Tristan Tzara. Diante do clima de instabilidade gerado
pelo temor e comoção social durante a Primeira Guerra Mundial, o conflito bélico foi o maior estímulo
para seu surgimento, cujas características principais eram o escárnio e ilogismos textuais, além da
aversão à arte racional, ao convencional, ao bom senso e à serenidade.

O caráter crítico do Dadaísmo indica uma função para a arte além da questão estética, característica
de todos os movimentos da vanguarda europeia. Epistemologicamente, “dada” não significa nada, sendo
que este “nada”, segundo o manifesto dadaísta, é sua expressão fundamental, sem apego aos vários
“ismos” que surgiam no início do século XX.

Com agressividade e incoerência, o Dadaísmo buscava se apropriar de um sistema de


representação social, normalmente objetos corriqueiros do cotidiano que, de forma irreverente,
eram transformados em arte para exprimir liberdade de criação e contestação. Esse era o principal
objetivo do movimento: contestar, além de desmitificar a arte e ridicularizá‑la, destruindo qualquer
significado lógico sobre ela.

Essa irreverência e linguagem propositalmente sem significado, sem ritmo ou rima podem ser
observadas no texto de Tzara de 1920, em que ele ensina a escrever um poema dadaísta:

Pegue um jornal.

Pegue a tesoura.

Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja dar a seu poema.

Recorte o artigo.

Recorte em seguida com atenção algumas palavras que formam esse artigo
e meta‑as num saco.

Agite suavemente.

Tire em seguida cada pedaço um após o outro.

Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tiradas do saco.

O poema se parecerá com você..

E ei‑lo um escritor infinitamente original e de uma sensibilidade graciosa,


ainda que incompreendido do público (TRISTAN apud TELES, 1986, p. 132).

56
ARTE E ESTÉTICA

Depois do Futurismo, o Dadaísmo foi o movimento da vanguarda europeia de maior adesão, e


teve como principais representantes os artistas Max Ernst, Marcel Duchamp e Francis Picabia, além
do poeta Tristan Tzara.

Figura 47 – The Hat Makes the Man, Ernst, 1920

Figura 48 – Bound (detalhe), Olynyk, 2001

3.2.5 O Futurismo

Experiências com o intuito de estudar o movimento humano e animal por meio da utilização de
sequências fotográficas tornaram‑se frequentes nas comunidades científica e artística no final do
século XIX. O fotógrafo inglês Eadweard Muybridge foi um desses precursores.

O estudo realizado por Muybridge sobre o movimento influenciou o pintor francês Marcel
Duchamp em uma de suas maiores obras, Nu Descendo uma Escada, de 1912. Nessa pintura,
Duchamp contrapôs às ideias futuristas seu interesse pela análise do movimento, na qual ele
57
Unidade II

decompõe o movimento em instantes sucessivos de imagens fixas, estabelecendo uma íntima


relação entre o Cubismo e o Futurismo.

Figura 49 – Estudo de mulher descendo escada (detalhe), Muybridge,1887

Figura 50 – Nu descendo uma escada, Duchamp, 1912

58
ARTE E ESTÉTICA

Observação

Muybridge e a fotografia sequencial

Na década de 1870, com o intuito de captar o movimento, Muybridge fez


várias imagens de um mesmo objeto de diferentes ângulos, com dezenas de
câmeras. Ele desenvolveu conceitos fundamentais para o cinema e o stop
motion (animação que utiliza centenas de fotografias, quadro a quadro),
revelando o movimento dos corpos de pessoas e animais.

Além da contribuição científica, seu estudo influenciou vários


animadores e cineastas até os dias de hoje.

O Futurismo foi o mais radical e subversivo dos movimentos de vanguarda, influenciando diretamente
a plataforma modernista no Brasil. Publicado em 1909 pelo escritor e poeta italiano Filippo Tommaso
Marinetti, o Manifesto Futurista propunha a destruição por completo do passado e do academicismo
das artes e a exaltação da tecnologia pela capacidade imaginativa através da utilização de versos livres
e liberdade de expressão, como se nota no poema Ode triunfal, de Álvaro de Campos, heterônimo do
poeta português Fernando Pessoa:

Ode triunfal
À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r‑r‑r‑r‑r‑r‑r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde‑me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas! (PESSOA, 1997, p. 87).

59
Unidade II

Sob essa perspectiva, a junção com o Cubismo trouxe o fluxo de movimento na pintura de uma forma
nunca antes vista. Na obra de Duchamp, observa‑se a nítida representação da ação como realmente
acontece, cuja pretensão é a eternização do efêmero. O memo se opera na obra a seguir, do italiano
Luigi Russolo:

Figura 51 – Dinamismo de um Automóvel, Russolo, 1913

O interesse principal do artista não era representar o automóvel, mas a dinâmica plástica em
movimento do objeto no espaço. Dentre seus maiores representantes, além dos já citados Duchamp,
Marinetti, Russolo e Pessoa, podemos mencionar ainda os italianos Umberto Boccioni e Carlo Carrà e os
brasileiros Oswald de Andrade e Anita Malfatti.

3.3 A vanguarda moderna no Brasil

No início do século XX, em meio a um Brasil agrário e aristocrático, em que a Revolução


Industrial caminhava a passos lentos, surgiam as primeiras levas migratórias para as grandes cidades
brasileiras e explodiam discussões sobre a identidade nacional e os problemas sociais germinados pela
industrialização. Poucos burgueses, artistas e intelectuais tinham acesso às influências que a Europa
ocupava na posição vanguardista cultural.

Figura 52 – Classe operária paulistana no início do século XX

60
ARTE E ESTÉTICA

Eufóricos pelo nacionalismo emergido da Primeira Guerra Mundial e contagiados pelo centenário da
Independência do Brasil, jovens de famílias paulistas abastadas eram exceção e já, em 1912, o escritor
Oswald de Andrade e a pintora Anita Malfatti (então com 22 e 23 anos de idade, respectivamente) já
tinham percorrido a Europa e mantido contato com os movimentos de vanguarda, principalmente com
Marinetti e seu Manifesto Futurista.

Figura 53 – Edifício Martinelli, o primeiro


arranha‑céu de São Paulo, inaugurado em 1929

A proposta estética futurista, renovadora e pregando o desprezo pelo passado, influenciou


diretamente esses jovens artistas que buscavam não mais copiar os modelos estéticos europeus e sim
criar uma arte que pudessem chamar de “brasileira”. Perceberam que a diversidade cultural e racial do
Brasil poderia reconstruir uma identidade e renovar as artes e as letras pela pesquisa estética a que
tinham direito, como assinala Amaral:

Assistimos, além dessa derrubada, à atualização da linguagem brasileira


com a do mundo contemporâneo, ou seja, universalismo de expressão.
Como consequência imediata daquele nacionalismo, emerge a consciência
criadora nacional: voltar‑se para si mesmo e perceber a expressão do povo e
da terra sobre a qual ele se estabeleceu (AMARAL, 1998, p. 13).

Após uma interrupção devido à Primeira Grande Guerra, o contato foi retomado. Duas
personalidades de liderança foram imprescindíveis para o plano teórico e a divulgação dos novos
movimentos estéticos das artes: Mário de Andrade e Oswald de Andrade, vindo a eclodir com a
Semana de Arte Moderna, evento realizado no Teatro Municipal de São Paulo entre os dias 7 e 17 de
fevereiro de 1922.

61
Unidade II

Figura 54 – Mário de Andrade Figura 55 – Oswald de Andrade,


por Tarsila do Amaral, 1922

3.3.1 A exposição de Anita Malfatti

Entretanto, apesar de a Semana de Arte Moderna de 22 ser unanimidade entre os estudiosos, outro
evento serviu de pré‑estreia ao advento da Arte Moderna no Brasil: a exposição de Anita Malfatti,
realizada em 1917, mesmo ano em que Mário e Oswald se conheceram. Após seus estudos e retorno
da Europa, Anita realizou uma mostra de suas obras, chamada “Exposição de Pintura Moderna/Anita
Malfatti”, e agita e choca a vida cultural paulistana. Influenciadas pelo Expressionismo e pelo Cubismo,
as 53 telas da artista – entre elas O homem amarelo, O japonês, A estudante e A boba, – são vistas sem
alarde por um público de cultura medíocre e de informação artística limitada, até que o jornal O Diário
de São Paulo publica a crítica do escritor Monteiro Lobato em 20 de dezembro de 1917, aferindo um
pesado julgamento às obras da artista e à Arte Moderna e defendendo a arte acadêmica, como nos
aponta Fonseca:

O artigo irado, que ficará conhecido por uma indagação de percurso,


“Paranoia ou mistificação?”, abala em primeiro lugar amigos e familiares
de Anita Malfatti. Em meio ao mal‑estar causado pela truculência
das palavras de Lobato, sai no Jornal do Comércio de janeiro de 1918
um pequeno artigo em defesa da artista. Aproveitando o ensejo do
encerramento da exposição, o articulista elogia a coragem da pintora
de apresentar seus trabalhos em um ambiente tão impermeável a
experiências inovadoras. E consagra Anita Malfatti como artista
(FONSECA, 2007, p. 114).

Apesar da defesa pública de Oswald, o prestígio de Lobato gera um golpe terrível para Anita. Muitos
compradores devolvem seus quadros e outros são atacados na exposição a bengaladas, tamanha
hostilidade que se formou em torno da artista.

62
ARTE E ESTÉTICA

A exposição Anita Malfatti

Encerra‑se hoje a exposição da pintora paulista sra. Anita Malfatti, que durante um mês
levou ao salão da Rua Líbero Badaró, 111, uma constante romaria de curiosos.

Exigiria longos artigos discutir‑se a sua complicada personalidade artística e o seu


precioso valor de temperamento. Numa pequena nota cabe apenas o aplauso a quem se
arroja a expor no nosso pequeno mundo de arte pintura tão pessoal e tão moderna.

Possuidora de uma alta consciência do que faz, levada por um notável instinto
para a notável eleição dos seus assuntos e da sua maneira, a brilhante artista não
temeu levantar com seus cinquenta trabalhos as mais irritadas opiniões e as mais
contrariantes hostilidades. Era natural que elas surgissem no acanhamento da nossa
vida artística. A impressão inicial que produzem os seus quadros é de originalidade
e de diferente visão. As suas telas chocam o preconceito fotográfico que geralmente
se leva no espírito para as nossas exposições de pintura. A sua arte é a negação da
cópia, a ojeriza da oleografia.

Diante disso, surgem desencontrados comentários e críticas exacerbadas. No entanto,


um pouco de reflexão desfaria, sem dúvida, as mais severas atitudes. Na arte, a realidade na
ilusão é o que todos procuram. E os naturalistas mais perfeitos são os que melhor conseguem
iludir. Anita Malfatti é um temperamento nervoso e uma intelectualidade apurada, a serviço
de seu século. A ilusão que ela constrói é particularmente comovida, é individual e forte e
carrega consigo as próprias virtudes e os próprios defeitos da artista.

Onde está a realidade, perguntarão, nos trabalhos de extravagante impressão que ela expõe?

A realidade existe mesmo nos mais fantásticos arrojos criadores e é isso justamente o
que os salva.

A realidade existe, estupenda, por exemplo, na liberdade com que se enquadram na


tela as figuras número 11 [O Homem Amarelo] e número 1 [Lalive]; existe, impressionante
e perturbadora, na evocação trágica e grandiosa da terra brasileira que é o quadro 17
[Paisagem de Santo Amaro]; existe, ainda, sutil e graciosa, nas fantasias e estudos que
enchem a exposição.

A distinta artista conseguiu, para o meio, um bom proveito, agitou‑o, tirou‑o da sua
tradicional lerdeza de comentários e a nós deu uma das mais profundas impressões de
boa arte.

Fonte: Andrade (1990, p. 144).

Essa passagem traumática resulta no ponto de partida para a Arte Moderna no Brasil, e Anita passa
a ser conhecida pelos intelectuais paulistanos, formados por Menotti del Picchia, Di Cavalcanti, Victor
63
Unidade II

Brecheret, além dos próprios Oswald, Mário. Mário de Andrade é um dos mais entusiasmados pela
qualidade artística de Anita, que “em parte resulta de assimilação consistente de tendências da vanguarda
estética. Naquela oportunidade, adquire O Homem Amarelo, obra que acompanhará o escritor até o fim
da vida” (FONSECA, 2007, p. 116).

Figura 56 – O Homem Amarelo, Malfatti, 1915‑16

Observação

Paranoia ou mistificação?

“Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem as coisas
e em consequência fazem arte pura, guardados os eternos ritmos da vida,
e adotados, para a concretização das emoções estéticas, os processos
clássicos dos grandes mestres. [...] A outra espécie é formada dos que veem
anormalmente a natureza e a interpretam à luz das teorias efêmeras, sob a
sugestão estrábica das escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da
cultura excessiva. [...] Estas considerações são provocadas pela exposição da
sra. Malfatti, onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude
estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e cia.” (LOBATO,
2008, p. 73‑4).

A partir desse histórico episódio, os pejorativamente denominados “futuristas paulistanos”


escandalizariam a sociedade. Achacados de loucos, rebeldes e estranhos, suas obras são o verdadeiro
manifesto modernista brasileiro: as esculturas de Brecheret, a Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade,
as mulatas de Di Cavalcanti, a música de Villa‑Lobos etc.

64
ARTE E ESTÉTICA

Figura 57 – Capa do livro Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade, 1920‑1

Figura 58 – Monumento às Bandeiras, Brecheret, 1936‑54

65
Unidade II

Figura 59 – Mulher com Gato, Di Cavalcanti, 1966

3.3.2 A Semana da Arte Moderna

Idealizada pelo pintor Di Cavalcanti, a Semana de 22 contava com novos adeptos do Modernismo,
como Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Sergio Milliet, Guiomar Novaes, Hildegardo Leão Velloso,
Guilherme de Almeida, Henri Mugnier, Zina Aita, Ferrignac, Ernani Braga, Wilhelm Haarberg, Tácito
de Almeida, Cândido Motta de Almeida e Georg Przyrembel. Arquitetos, poetas, músicos, escultores,
literários, pintores de São Paulo, Rio de Janeiro e de outros países, a maioria a postos para desfilar suas
novidades no evento. O objetivo destrutivo da Semana de 22 traria, como diria mais tarde Mário de
Andrade, “o direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a
estabilização de um consciência criadora nacional (ANDRADE apud AMARAL, 1998, p. 13).

Figura 60 – São Paulo, 1913: Viaduto do Chá: à esquerda, o Teatro São José; à direita, o Teatro Municipal

O espetáculo tinha o apoio do governo estadual e municipal, e contava ainda como o incentivo do
mecenas Paulo Prado, da tradicional aristocracia cafeeira paulistana, que conseguiu o patrocínio do
então presidente do Brasil, Washington Luís Pereira de Sousa. A programação de três dias foi divulgada
pelo O Estado de São Paulo.

66
ARTE E ESTÉTICA

Figura 61 – Cartaz da Semana de Figura 62 – Programa da Semana de Arte Moderna, 1922


Arte Moderna, Di Cavalcanti, 1922

Com exceção da abertura realizada no dia 7 de fevereiro, em que a plateia de gala desfilava no
saguão entre obras e palestras, os dias 15 e 17 são marcados por várias manifestações hostis de vaias e
de inquietação, como aponta Fonseca pelos olhos de Menotti del Picchia:

Menotti del Picchia, mestre‑de‑cerimônias no dia 15, lembra que


naquela noite os ânimos estão exaltados. Quando se proclama o nome
de Oswald de Andrade, a plateia desaba em vaias: “Uivos, gritos, pateadas
no assoalho, risadas, dichotes chistosos ou impertinentes. Um caos!”
(FONSECA, 2007, p. 131).

E completa:

Há viva disposição do público presente de impedir o espetáculo, com tumulto


generalizado. “Oswald não se perturbou. Marchou impávido para a frente da
ribalta. Tomou entre as mãos gordas mas firmes as tiras datilografadas de
um capítulo de Os condenados e pôs‑se a ler fundindo‑se sua voz na gritaria.
Em vão tentei restabelecer silêncio e ordem” (FONSECA, 2007, p. 131).

O relato de Menotti del Picchia, mesmo com o decorrer dos anos, parece ainda gravar a forte
impressão da contenda:

Como um herói numa trincheira visada por todos os lados pela fuzilaria
inimiga e revidando com o esvaziar a carga da única arma, Oswald, calmo,
com o sorriso mordaz com que fazia suas travessuras literárias, continuava a
ler a história da Alma, das criaturas fatalizadas e torturadas que torturavam
seu romance Os Condenados. Ao terminar, o estrondo de vaias aumentou
(PICCHIA apud FONSECA, 2007, p. 131).

67
Unidade II

O mesmo clima se impôs no encerramento da Semana de 22, cujo acontecimento mais marcante
foram as vaias para Villa‑Lobos que entrara com sapato em um pé e sandália em outro. O ato, visto
como provocação pela plateia, não o era: o músico tinha machucado o pé, o que não o impediu de se
apresentar naquela noite.

Figura 63 – Heitor Villa‑Lobos (1887‑1959)

Com exceção das obras de Villa‑Lobos e de Malfatti, pouco havia de vanguarda e moderno no
festival:

Porém, mesmo que não fosse vanguarda, aquilo que foi apresentado,
chocou. O grupo que rejeitava o passadismo era vitorioso na intenção
demolidora. Inexistente a qualidade, a segurança de linguagem, a audácia
maior, estavam presentes, contudo, a inquietação, em sintonia com o País, e
a percepção da necessidade de mudança (AMARAL, 1998, p. 16).

Vista na época como uma manifestação elitista, a Semana de Arte Moderna de 1922 deixou sua
mensagem de pré‑consciência do espírito nacional. Foi o ponto de partida para o vanguardismo
brasileiro pela redescoberta do Brasil por um projeto no qual a língua e a cultura foram objetos da nova
estética que surgia. Após a Semana de 22, ideias se fundiram a diversos manifestos nacionalistas, como
o Movimento Antropofágico de Oswald e Tarsila do Amaral. Obras literárias como Macunaíma, João
Miramar, Pau Brasil, Grande Sertão: Veredas, composições emblemáticas de Villa‑Lobos e quadros como
o Abaporu, de Tarsila, e os painéis Guerra e Paz, de Portinari, entre tantos outros, são resultados desse
esboço que se projetou muito além de seus objetivos iniciais.

A origem embrionária da Semana de 22, repleta de atitude estética revolucionária, atravessou os


anos 1920, 1930 e até os dias de hoje, seus propósitos estéticos são disseminados na cultura brasileira:

O grupo modernista que se forma em torno da Semana de Arte Moderna


vai se dispersando em novos núcleos e interesses. Para alguns ficou como
saudade da pauliceia que desvairou com seus jovens gloriosos, para outros,
68
ARTE E ESTÉTICA

um vendaval que se foi. Para Oswald e Mário, a vida artística começa a


intensificar seu brilho (AMARAL, 1998, p. 142).

Figura 64 – Abaporu, Tarsila do Amaral, 1928

Figura 65 – Guerra, Portinari, 1955

69
Unidade II

Figura 66 – Capa do livro Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa, 1956

4 GUERNICA E A “MORTE” DA MIMESE

Apesar das correntes tradicionais contrárias ao movimento cubista no início do século XX, seus
artistas mantiveram firmes seus conceitos e reconstruíram a maior parte do pensamento estético
daquele período.

Para esclarecermos as ideias estéticas desse momento, faremos um estudo sobre a Guernica, tendo
ainda como propósito compreender as tendências vanguardistas que vieram depois desse período.

Produzida trinta anos após sua primeira obra cubista, Les Demoiselles D’Avignon, de 1907
(considerada a obra que anunciou as transformações de concepção estética do belo), Guernica marca
o traço inovador e vigoroso do artista espanhol, modificando os rumos tomados da estética na história
da Arte, frisando a materialização do movimento e a simbologia da paz.

70
ARTE E ESTÉTICA

Figura 67 – Les Demoiselles D’Avignon, Picasso, 1907

Assim como a intervenção de vários artistas modernos registrava a denúncia como forma de
expressão, ela foi objeto de interpretações sobre o tema mais utilizado dentre as obras de Picasso.
Impulsionou ainda mais as mudanças estéticas do século XX e ousou guiar‑se pelo caminho das
sensações, do pensamento e das ideias.

Dentro desse universo ideológico no qual a arte se insere, encontra‑se a estética como produto
das manifestações artísticas de forma subjetiva, assim, podemos afirmar que Guernica é a expressão
emocional e particular do autor que proporciona ao observador percorrer o mesmo caminho da
percepção de tristeza causada pela guerra.

Como vimos anteriormente, Picasso, ao tomar conhecimento das barbaridades ocorridas


na cidade de Guernica, norte da Espanha, criou, em menos de um mês, uma das obras mais
significativas e importantes da história: a obra Guernica. Pintado a óleo, o imenso painel de 350
cm por 782 cm tornou evidentes seus sentimentos com relação à Guerra Civil Espanhola, além
da utilização de figuras distorcidas como ligação dos signos com a realidade, traço peculiar da
nova estética.

71
Unidade II

Figura 68 – Guernica, Picasso, 1937

Observação

“Foi você quem fez Guernica?”

D’Alessio (1998) conta que Picasso, durante a ocupação alemã em


Paris, foi interrogado por um oficial alemão, que lhe perguntou: “Foi você
quem fez Guernica?”, ao que ele respondeu: “Não, foram vocês”. Não se
sabe ao certo se a anedota é exata, mas, de qualquer maneira, ela é muito
pertinente. É evidente que há a representação, mas não se pode esquecer o
fato (D’ ALESSIO, 1998, p. 30).

Figura 69 – Pablo Picasso (1881‑1973)

72
ARTE E ESTÉTICA

4.1 A função estética

Guernica foi além da função social; foi resultado da leitura do mundo de seu autor e de como seus
sentimentos se manifestaram quanto ao ocorrido na cidade homônima. A influência subjetiva que a
cultura exerce no processo de conscientização do sujeito serve de norte aos seus interesses e profundas
aspirações, bem como às possíveis necessidades de afirmação como ser social.

Podemos afirmar, portanto, que a cultura norteia o ser sensível e o ser consciente. Consequentemente,
a cultura vem estruturar a sensibilidade do indivíduo, guiando‑o em suas ações e em sua imaginação.
Suas ações podem ou não influenciar seu meio, mas mesmo que Picasso não tenha transformado o
pensamento de seus contemporâneos quanto às atrocidades acontecidas em Guernica, sua mensagem
foi transmitida para as gerações posteriores.

A partir de barbáries como as ocorridas em Guernica, por tratar‑se de injustiça social, violência ou
busca desenfreada pelo poder, suscita especialmente questões relativas à ética. Para Schiller, a estética
governa o sujeito a um estado ético: “a Arte é filha da liberdade e quer ser legislada pelas leis do espírito,
não pela privação da matéria” (SCHILLER, 2002, p. 21‑2).

A obra Guernica levanta aspectos relativos à ética e, por meio de sua estética inquietante,
transporta o observador para o mundo de seus próprios sentimentos, em que seus valores e estado
ético são questionados.

A sensação preliminar do observador é reconhecer as figuras que expressam aflição, horror, dor,
sofrimento, reveladas pelo jogo de cores, predominantemente em branco, preto e tons de cinza. As cores
potencializam o sentimento, remetendo‑o à morte, à guerra e à desumanização; além de conferir ainda
uma credibilidade jornalística à atrocidade.

Tudo em Guernica é capaz de sugerir possibilidades de interpretação, raciocínio, análise e


imprecisão.

Sob essa perspectiva, notamos a interferência do Cubismo como agente construtor de uma
interpretação nova da realidade, através da linguagem própria do artista potencializada por um discurso
inteligente. Uma reconstrução baseada na exploração do inconsciente, contudo, que percorre também
as vias da razão.

Decodificar Guernica conduz à impressão, como já dissemos, de destruição e de morte, não apenas
por consequência do uso de cores, mas também pelos símbolos e associações que remetem ao mesmo
contexto. As associações provenientes de áreas profundas de nosso inconsciente ordenam o mundo
de nosso poder imaginativo. Espontâneas, elas convergem com rapidez tão admirável, que são quase
imperceptíveis para o consciente avaliar. As experiências vividas, com a carga de todo o sentimento e
emoção que existem na complexidade humana, são descontroladas da nossa percepção imediata.

Não há coincidência ao associar, mas coerência. As associações direcionam nossas percepções para
um mundo fantástico, não no sentido ilusório, mas na busca de experimentos criativos, imaginativos e
73
Unidade II

hipotéticos, dando amplitude ao nosso poder de imaginação e reação, mesmo que no campo mental.
E, a partir dessa potencialização perceptiva, anseios e expectativas são também ampliadas em nossa
mente, influenciando nosso desejo de criar.

Nossa capacidade de expressar a percepção vem de formas simbólicas de comunicação, como a fala,
mas aquela que se encontra na essência da criação é nossa capacidade de expressar‑se por meio de
nossas ordenações, ou seja, pelas formas. “Se a fala representa um modo de ordenar, o comportamento
também é ordenação. A pintura é ordenação, a arquitetura, a música, a dança, ou qualquer outra prática
significante” (OSTROWER, 1998, p. 24).

[Formas simbólicas] são configurações de uma matéria física ou


psíquica (configurações artísticas ou não artísticas, científicas, técnicas,
comportamentais) em que se encontram articulados aspectos espaciais e
temporais (OSTROWER, 1998, p. 25).

Perceber as formas simbólicas significa perceber circunstâncias dinâmicas do nosso ser. Encadeamentos
rítmicos de forças, desequilíbrios e equilíbrios emocionais, tristeza, marasmo, alegria, placidez, inquietude,
ansiedade são movimentos interiores por meio dos quais analisamos nossa percepção sobre nós mesmos.

Essa avaliação de nossa experiência de vida é o modo de configurarmos essa percepção e tomarmos
consciência dela. Essa movimentação é, portanto, um processo afetivo, a força motriz para concretizar a
expressão ordenada da forma simbólica, são as nossas formas psíquicas vinculadas ao ato criativo, junto
às ordenações externas.

Podemos falar com emoção, mas também sobre nossas emoções. Consequentemente, nos
distanciamos de nós mesmos e, imaginativamente, colocamo‑nos no lugar de outros. Assim como o
artista revela a frieza da guerra na sua arte, o cineasta o faz a partir de um filme, e o fotógrafo por meio
de seu olhar. Trata‑se de diferentes formas de nos apresentar à realidade. Voltamos a enxergar e, com o
senso estético, a nos emocionar com aquela informação.

4.2 Interpretação e Semiótica

Para nos auxiliar a enxergar a estética da obra de Picasso, iremos utilizar as premissas da Teoria
Semiótica de Peirce na relação triádica entre o ícone, índice e símbolo.

Observação

O que é Semiótica?

A Semiótica é uma ciência que estuda a relação entre os símbolos,


o poder de comunicação entre eles e o significado que oferecem. Por se
tratar de uma ciência nova, não se prende a ideias e conceitos fechados,
tornando‑se flexível e oferecendo maior abertura a novas concepções, sem
74
ARTE E ESTÉTICA

deixar de lado todo o conteúdo analisado anteriormente sobre o assunto


estudado. Seu maior objetivo é modificar, ou não, sob o olhar de novas
perspectivas, o que se analisa sob sua visão. Ela engloba todos os aspectos
de uma forma geral e influencia a percepção da imagem, não somente nos
signos que a compõem, mas também em todo o contexto no qual ela está
inserida.

Para a Semiótica, um ícone é a antecipação de uma ideia – por exemplo, um pássaro. Esse signo é
desprovido de categorias ou valores, assim como de outra associação a não ser aquela própria do que
realmente é representado.

O índice vem da palavra “indicar”, ou seja, é o signo que indica algo mais pessoal, que inclui o
sujeito como interpretador desse signo, por isso seu entendimento é subjetivo. Se voltarmos ao exemplo
anterior, para as pessoas que conhecem o Twitter, o pássaro azul significa mais do que uma categoria
do mundo animal, ele é um índice.

O símbolo, por sua vez, é a definição da marca, oriunda principalmente de valores simbólicos
construídos, como um carro esporte de alto valor aquisitivo. O signo simbólico indica, nesse caso, que o
consumidor é milionário.

Observação

Quanto mais abstrato for o símbolo, mais intensa deverá ser sua
penetração na mente do público para educá‑lo quanto ao seu significado.

As imagens são representadas como signos icônicos, mas nem todos os ícones são imagens visuais.
As formas acústicas, táteis, olfativas e conceituais de semelhança significam e também se encaixam
nessa categoria. A característica de semelhança entre o signo da imagem e o seu objeto de referência é
também uma das causas para a polissemia do conceito “imagem”.

O signo de imagem se constitui de um significante visual (representamen para Peirce), que remete a
um objeto de referência ausente e evoca o observador um significado (interpretante) ou uma ideia do
objeto, portanto, na semiologia:

• Representamen: refere‑se à forma como o signo se apresenta.

• Interpretamen: refere‑se ao sentido do signo, é o próprio significado.

• Objeto: refere‑se àquilo a que o signo se reporta.

Quando observamos o significado de Guernica, vemos que a obra não se forma apenas pela análise
dos signos que a compõem, mas sim pela análise de todo o contexto que envolve sua elaboração. Essa
análise nada mais é do que a utilização da Semiótica para analisar o que a imagem significa.
75
Unidade II

Na Guernica, portanto, o ícone mais evidente é a figura do touro, representando a nação espanhola
em metáfora ao ícone nacional associado às touradas. O ícone é chamado de “primariedade”, pois
representa um signo em sua primeira instância. A secundariedade, segundo a Semiótica, seria o
índice, a interpretação subjetiva de cada um em relação ao signo. Dessa forma, tourada pode ter uma
interpretação individual de cada um, que remete a um significado particularizado como, por exemplo, a
manifestação da materialização do orgulho, do instinto animal ou do misticismo. Tudo vai depender do
conhecimento e da bagagem cultural adquirida pelo signo.

Figura 70 – Guernica (detalhe), Picasso, 1937

Na relação entre o signo e o objeto, o símbolo, deste modo, materializa a ideia, ou seja, no nosso
contexto primário, a própria guerra é o objeto de Guernica e a mensagem de Picasso. Secundariamente,
podemos identificar vários símbolos: o cavalo simbolizaria a brutalidade, a fumaça simbolizaria o fogo
das bombas, a mãe com a criança nos braços, a fragilidade, a luz que emana da lamparina segura com
mãos firmes, a esperança ou a vida.

76
ARTE E ESTÉTICA

Figura 71 – Guernica (detalhe), Picasso, 1937

Figura 72 – Guernica (detalhe), Picasso, 1937

Um homem de braços abertos surge ao lado direito do painel. O movimento e a expressão levam
a crer que Picasso se inspirou na obra El Tres de Mayo de 1808 en Madrid, do pintor conterrâneo
Francisco De Goya (1746–1828), que retrata o fuzilamento de espanhóis pelo exército de Napoleão.
Comparemos as duas obras:

77
Unidade II

Figura 73 – Guernica (detalhe), Picasso, 1937

Figura 74 – El Tres de Mayo de 1808 en Madrid, Goya, 1814

Ao estabelecermos um paralelo entre as obras, observamos Goya denunciar o trágico massacre de


espanhóis inocentes por forças militares estrangeiras. Na imagem de desespero da figura central, que
ergue os braços clamando por misericórdia entre cadáveres e pessoas ajoelhadas, é possível notar a
semelhança com Guernica. Nota‑se que as duas obras estabelecem uma relação intertextual, mas com

78
ARTE E ESTÉTICA

um detalhe: o personagem de Picasso direciona os braços em direção aos céus, em referência às bombas
que caíam sobre a cidade. Picasso retoma as particularidades expressivas do tema e do idealismo, da
representação e da reflexão, entretanto, especialmente livre da rigorosa forma acadêmica, aproximando
a arte do lúdico através do jogo de cores e imagens.

A arte, pelos padrões platônicos, livre da mimese, leva o artista à sensação de liberdade, de reflexão
e do prazer estético, rompendo com a objetividade e desenvolvendo‑se moralmente.

Observação

Schiller afirma que, através da beleza, é possível elevar a alma e a


moral do povo e que, pelas belas‑artes, o homem se idealiza e se enobrece.
Para o autor, “não existe maneira de fazer racional o homem sensível sem
torná‑lo, antes, estético” (SCHILLER, 2002, p. 113).

Vale observar que Goya produziu sua obra no período anterior ao Cubismo, mas já demonstrava certa
ruptura com o estilo realista, essencialmente diante da temática histórica e das pinceladas, de certa
forma, sem nitidez. Por meio das obras de Goya e de outros artistas, esse momento da arte demonstra
o despertar de novas experiências estéticas, levando à representação ao mundo das ideias e da reflexão,
conjuntura que podemos observar na comparação de duas obras de Goya produzidas em um intervalo
de 45 anos:

Figura 75 – The Hunting Party, Goya, 1775

79
Unidade II

Figura 76 – Saturn Devouring his Children, Goya, 1820

Segundo a filosofia schilleriana, a estética que leva à reflexão ocasiona, consequentemente, sensações
de fascínio, pois alcança a linguagem do artista e compreende a excepcionalidade do novo, escapando
da linguagem objetiva e das formas convencionais. Essa experiência de construir novos significados,
segundo Schiller, é capaz de elevar o espírito, pois liberta o sujeito do estado lógico.

A estética cubista vem, portanto, proporcionar esta condição de subversão dos impulsos realistas
e a liberdade estética intrínseca no progresso espiritual e, a partir do momento que se manifesta o
conteúdo de pensamento, consequentemente, amplia‑se o conhecimento. Caso contrário, “para aquele
cuja mente não esteja desde logo preparada para ir, além da realidade, ao reino das ideias, o mais rico
conteúdo será aparência vazia e o mais alto ímpeto poético, extravagância” (Schiller, 2002, p. 62‑3).

Numa obra de arte verdadeiramente bela, o conteúdo nada deve fazer, a


forma tudo; é somente pela forma que se atua sobre o todo do homem, ao
passo que o conteúdo atua apenas sobre forças particulares. O conteúdo,
por sublime e amplo que seja, atua sempre como limitação sobre o
espírito, e somente da forma pode‑se esperar verdadeira liberdade estética
(SCHILLER, 2002, p. 111).
80
ARTE E ESTÉTICA

Para Schiller, o que limita a liberdade estética é o conteúdo, e não a forma. A forma, por sua vez,
é o que conduz o observador, a priori, à sensação de prazer. O conteúdo estaria ligado ao intelecto,
que dependeria da capacidade da percepção subjetiva para alcançar o nível de reflexão. Nesse
aspecto, notamos a capacidade do Cubismo de remeter à reflexão através de sentidos conotativos,
metáforas. Em Guernica, Picasso não diz, sugere, como elucida o filósofo e escritor italiano Umberto
Eco (nascido em 1932):

A experiência de decodificação torna‑se aberta, processual e nossa


primeira reação é acreditar que tudo quanto fazemos convergir para a
mensagem está de fato nela contido. Pensamos assim que a mensagem
exprime o universo das conotações semânticas, das associações emotivas,
das reações fisiológicas que sua estrutura ambígua e autorreflexiva
suscitou (ECO, 1976, p. 59).

A citação anterior corrobora o fato de que a compreensão de uma obra é subjetiva. Codificar seria
abrir um leque de interpretações que habita a percepção particular. Sob esse contexto, na construção do
conceito temático sobre a guerra em Guernica, Picasso poderia ter conceituado a figura do touro como
símbolo da brutalidade, e não exatamente como ícone do país em referência às touradas.

Essa situação, segundo o pensamento schilleriano, pressupõe que a abstração percorra o campo do
sentimento na busca de elementos que possam chegar à razão pura. Isso significa que o conhecimento
parte do sensível e volta para o lógico.

O Cubismo seria, portanto, o condutor que leva a percepção ao campo lógico a fim de concretizar
as informações textuais da obra de arte. A concepção lógica em Guernica está relacionada à iconografia
contida na apresentação das figuras metonímicas que, decifradas, montam a narrativa geral da obra.
A materialização da leitura se projeta a partir do raciocínio de compreender as possibilidades de
combinação e a ampliação do olhar. Esse processo aproxima o mundo do artista ao do espectador.

Na estética, Schiller chamou de impulsos as forças lógicas que transportam o espectador ao campo
da abstração. Veja:

O primeiro desses impulsos, que chamarei sensível, parte da existência física


do homem ou de sua natureza sensível, ocupando‑se em submetê‑lo às
limitações do tempo e em torná‑lo matéria. [...] O âmbito desse impulso
estende‑se até onde o homem é finito (SCHILLER, 2002, p. 63‑4).

Para Schiller, essa decodificação está relacionada a uma junção entre o estado lógico e lúdico, como
um jogo de diálogo entre o artista e o espectador. O limite será a capacidade imaginativa que leva o
espectador à reflexão e à compreensão narrativa sugerida pelo artista.

Guernica foi além dos princípios estéticos e críticos do Cubismo determinados pelo inconsciente,
estabelecendo o contexto social diante os nítidos anseios de transformação da época, e não somente
no panorama artístico.
81
Unidade II

Mesmo que atualmente o conceito de guerra não seja mais o mesmo, o fato é que Guernica mantém
o tema em relação à morte e injustiça atual e sublime, pois a mensagem de repúdio ao bombardeio
da cidade espanhola e contra a violência que Picasso deixou para a humanidade permanece até os
dias de hoje.

Guernica, assim como toda expressão artística, é um documento histórico. Através dela, é possível
analisar características culturais, sociais e políticas de uma época conturbada da nossa história, cujos
significados são percebidos coletivamente ou não. Simultaneamente é atemporal, pois se ajusta no
tempo como uma denúncia do aspecto sombrio e desumano da guerra, além de ser manifesto político
e humanitário.

Depois de muitos anos em Paris e exposta no Museu de Arte Moderna de Nova York, a obra‑prima de
Picasso retornou para a Espanha em 1992. Atualmente encontra‑se no Museu Rainha Sofia, centro de
arte contemporânea da capital espanhola. O desejo de Picasso foi que Guernica só retornasse à Espanha
quando o país fosse novamente um Estado democrático.

Ícone da concretização do Cubismo, símbolo de uma declaração pela paz, Guernica está incluída
no rol de obras excepcionais da história da arte. Perguntado sobre a arte em tempo de guerra, Picasso
respondeu: “Não, a pintura não está feita para decorar apartamentos. Ela é uma arma de ataque e defesa
contra o inimigo” (PICASSO, 1945, tradução nossa).

Resumo

A busca pela experimentação, engatilhada pela Revolução Industrial


e pelo movimento impressionista trouxe o interesse pela abstração,
desvinculando a mensagem visual da informação representacional e
transportando‑a para o estado psíquico, para um mundo de significados
mais intensos e condensados, e também proporcionando liberdade de
expressão estética. A partir desse contexto, a classe artística começou a
introduzir novas experiências com a linguagem estética.

Denominados “vanguardistas”, os revolucionários participantes


desse processo tiveram papel fundamental nas influências artísticas ao
longo do século XX, que eram voltadas para a subjetividade do artista
e propagavam a ruptura das linhas éticas e estéticas que regiam as
normas e linguagens artísticas da época. O Expressionismo, o Cubismo,
o Surrealismo, o Dadaísmo e o Futurismo foram os movimentos de
vanguarda mais influentes da história da arte, sendo o Futurismo a
plataforma modernista que mais influenciou a vanguarda no Brasil.

A proposta estética futurista, por seu caráter renovador, influenciou


diretamente jovens artistas que buscavam principalmente criar uma
arte que pudessem chamar de “brasileira”. O movimento modernista no
82
ARTE E ESTÉTICA

Brasil teve como personalidades principais Mário de Andrade e Oswald


de Andrade, figuras marcantes na divulgação dos novos movimentos
estéticos das artes, especialmente no evento que marcou o início da
vanguarda brasileira: a Semana da Arte Moderna.

O rompimento da tradição acadêmica pela abstração é intenso no


movimento de vanguarda cubista, como vemos na obra Guernica, de Pablo
Picasso, em que o artista impulsionou ainda mais as mudanças estéticas do
século XX e ousou guiar‑se pelo caminho das sensações, do pensamento e
das ideias. Levantando questões éticas, Guernica traz o próprio conceito da
estética cubista: transportar o observador para o mundo de seus próprios
sentimentos, em que seus valores e estado ético são questionados. E, a
partir do momento que se manifesta o conteúdo de pensamento, amplia‑se,
consequentemente, nosso conhecimento.

83

Você também pode gostar