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Elias Wolff

CAMINHOS DO
ECUMENISMO
NO BRASIL
Paulinas
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inas Paulus S in o d a l
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Wolff, Elias
Caminhos do ecumenismo no B rasil: história, teologia, pastoral / Elias
Wolff. - 2 . ed. rev. e ampl. - São Paulo: Paulinas: P aulus: São Leopoldo, R S :
Editora Sinodal, 2018 .

Bibliografia.
ISBN 978-85-356-4358-9 (Paulinas)
ISBN 978-85-8194-118-9 (Editora Sinodal)

1. Ecumenismo 2. Ecumenismo - Brasil 3. Pluralismo religioso I. Título.

17-11144 CDD-262.00110981

Índice para catálogo sistemático:


1. B ra sil: Ecumenismo : Eclesiologia : Cristianismo 262.00110981

2a edição revisada e ampliada - 2018

Direção-geral: Flávia Reginatto


Conselho editorial: Dr. Antonio Francisco Leio
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Editora responsável: Vera Ivanise Bombonatto
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incluindo fotocópia e g ravação) ou arq u iv ad a em qu alq u er sistem a ou
banco de dados sem perm issão escrita d a Editora. D ireitos reservados. A meu pai José (in memoriam) e a minha mãe Maria lida,
pelo testemunho de diálogo, respeito, confiança e amor mútuo,
bases da perseverança nos caminhos da unidade.

A quem alimenta a utopia de ver realizada na terra a sua finalidade


de ser o espaço da oikoumene vivida por todas as criaturas que a povoam.
I Os desafios para o ecumenismo no Brasil

A com preensão dos caminhos do ecumenism o exige a tom ada de


consciência da natureza dos desafios que eles apresentam para quem
se propõe a percorrê-los. A consciência desses desafios ajuda as igrejas
a avançarem com convicção e realismo rum o à m eta da unidade al­
mejada. Não se trata de analisar a história de cada Igreja. O que se faz
necessário é com preender os elem entos que m arcam os encontros e
desencontros nas relações entre elas e os desafios que daí surgem para
0 diálogo sobre a doutrina da fé. Tais desafios apresentam -se em dois
principais horizontes: no interior do pluralismo eclesial, com dimensões
jurídicas, teológicas e pastorais; e no interior da realidade social, na
qual eles se configuram, de um lado, pela existência de outras orienta­
ções religiosas (sobretudo pentecostais, afro-brasileiras e de tendência
oriental) e, de outro lado, pelos fatores sociais que tam bém influenciam
na relação intereclesial. Ajudar as igrejas a superar os conflitos que se
apresentam nesses dois horizontes é a grande tarefa do diálogo ecum ê­
nico local, que visa à com unhão na fé cristã.

1 Os conflitos do pluralismo eclesial


Quando as tradições anglicanas e protestantes chegaram ao Brasil,
encontraram a Igreja Católica Rom ana como Igreja oficial e vínculo de
unidade nacional. Não havia tolerância para outras m anifestações de
fé. As expressões religiosas dos povos indígenas e negros eram consi­
deradas coisas de pagãos e selvagens. Enquanto não fossem batizados
eram como coisa estranha, fora da sociedade. Também os protestantes
não eram considerados pelos católicos como cristãos: “Ser protestante
significava ser pagão, perigoso, mau. Alimentavam-se o sarcasm o e a
zombaria contra os hereges”.1 Por outro lado, para o protestantism o,
sobretudo de cunho missionário, o Brasil precisava ainda ser evange-

1 HAUCK, J. E A Igreja na emancipação. In: BEOZZO, J. O. (Org.). História da Igre­


ja do Brasil. São Paulo: Paulinas; Petrópolis: Vozes, 1985, v. 2, p. 128.

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lizado, e nisso estava a razão da sua presença no país. A tarefa missio­ Assim, professar a fé cristã no Brasil colonial e imperial era tam ­
nária dos protestantes tinha como objetivo eliminar as “superstições bém um a questão legal, e não som ente teológica ou pastoral. As bata­
católicas”, consideradas a causa do atraso material e moral do povo. lhas dos portugueses contra outros colonizadores assum iam tam bém
Assim, as diferentes tradições eclesiais confrontam-se m utuamente conotações religiosas, de m odo que a defesa do território era tam bém
num a polêmica que por muito tempo foi a principal característica da re­ a defesa da fé cristã no m odelo católico romano. Tratava-se de defen­
lação entre elas: a afirmação da própria identidade cristã e eclesial acon­ der o monopólio do espaço religioso ocupado pelo catolicismo. Nesse
tecia pela negação da identidade do outro. Historicamente, esse conflito contexto, o horizonte jurídico do conflito eclesial estabelecido no Brasil
aconteceu em três principais áreas: jurídica, teológica e pastoral. possui três etapas bem definidas: a proibição, a tolerância e a liberdade
religiosa. Cada um a dessas etapas se deu num m om ento específico da
1.1 As implicações jurídicas form ação da sociedade brasileira: Colônia, Império e República.
A história das relações entre as diferentes igrejas no Brasil, bem
].].] k proibição do pluralismo eclesial
com o entre os diferentes grupos religiosos, é m arcada por implicações
A disciplina religiosa no Brasil nos tem pos da colonização era ri­
jurídicas. No passado, essas implicações foram motivo de fortes conten­
gorosa e atingia a ordem civil e política. A Igreja do período colonial
das entre católicos e protestantes, como m ostra o período da implan­
era jurisdição da Igreja da m etrópole, de m odo que os interesses da
tação das comunidades protestantes no país. Os esforços para a pene­
Com panhia das índias se ajustavam à disciplina eclesiástica. E os que
tração de cristãos acatólicos no Brasil confrontaram-se com elem entos
entravam no novo território (como os colonos flamengos) tinham seus
legais da sociedade civil, que influenciavam diretam ente o com porta­
docum entos examinados, sendo extraditados todos os que não se sujei­
m ento religioso dos seus cidadãos. Esses elem entos estavam radicados
tassem às novas orientações religiosas.
no sistem a do padroado, que obrigava os portugueses à propagação
É nesse contexto que acontece o que pode ser considerado como
da fé católica nos novos territórios conquistados. Consequentem ente,
o primeiro caso de “processo religioso” no país, envolvendo as autori­
a extensão do território português e a extensão do catolicismo rom ano
dades públicas. Trata-se da Confessio Fluminensis, um docum ento teo­
se confundiam, com implicações jurídicas:
lógico que perm itia ao alm irante Nicolau Durant Villegagnon executar
seus próprios compatriotas, franceses huguenotes, que se recusaram
A presença físicà da Igreja Católica não deve ser entendida só com o área de
influência religiosa [...] era também uma presença jurídica, pois que a for­ a colaborar com seus projetos no país. Com esse documento, firma­
mação dos bairros, vilas, cidades e municípios brasileiros está intimamente do pelas autoridades políticas e religiosas, em 9 de fevereiro de 1558,
ligada à Igreja [...]. O sentimento religioso do colonizador o levava, em breve, Villegagnon passou a perseguir os três pastores que acom panhavam
a erguer rústica capela onde logo os vizinhos passavam a se reunir, para os os colonos calvinistas, condenando à m orte dois deles. Jacques de Bal-
atos religiosos. [...] Em torno da capela [...] começava a surgir a aglomeração leur, o único pastor que escapou, refugiou-se num a aldeia dos padres
urbana [...] com o um patrimônio do santo invocado com o seu padroeiro. [...] jesuítas. Mas em 1560, Mem de Sá assum iu o governo da Colônia e, em
Assim, é fácil entender como era ampla a presença física da Igreja Católica,
1567, m andou enforcar Balleur com o herege, no Rio de Janeiro, depois
não sendo possível a uma outra religião encontrar espaço para se inserir.2
de oito anos de prisão na Bahia. Os cristãos protestantes de hoje con­
sideram esses pastores com o os “primeiros m ártires protestantes no
continente am ericano”.3

2 MENDONÇA, A. G. O celeste porvir, a inserção do protestantismo no Brasil. São 3 KICKHOFEL, O. Notas para uma história da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil -
Paulo: Paulinas, 1984, p. 121-122. IEAB. Metrópole, 1995, p. 31; CRESPIN, J. Actes des Martyrs. Genebra, 1964, p. 861.

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Até o fim do século XIX viveu-se no Brasil um período de legislação apostólica rom ana continuará a ser a religião do Império. Todas as ou­
restritiva quanto à imigração, e os obstáculos aos imigrantes protestantes tras religiões serão perm itidas com seu culto dom éstico ou particular,
eram tão grandes que alguns estudiosos definiram esse período como em casas para isso destinadas, sem form a alguma exterior de tem plo”.6
“a idade das trevas”.4 Como religião oficial, o catolicismo reforçava as Essa prescrição legal foi muito im portante para o protestantism o,
leis proibitivas da penetração de outros credos no país, vinculando seus que nos primeiros tem pos teve que, por diversas vezes, se valer dela.
projetos missionários com os interesses políticos da nação. Em 1720, foi Continuavam, no entanto, as restrições quanto aos lugares de culto, à
proibido a qualquer pessoa entrar no Brasil, a não ser a serviço da Coroa construção de templos, ao não reconhecim ento civil dos casam entos
ou da Igreja. Tal foi o caso do Barão von Humboldt, que no ano de 1800 e ao registro de crianças. Também os cemitérios, administrados com
foi proibido de entrar no país porque o governo português informou ao exclusividade pela Igreja Católica, perm aneciam inacessíveis a evangé­
seu representante no Pará que Humboldt, procedente de país protestan­ licos e anglicanos. As Leis do Código Criminal previam a aplicação do
te, poderia influenciar o povo com novas ideias e falsos princípios. Esse artigo V, sobretudo em relação à ofensa à moral, à religião e aos bons
fato é entendido como “um grande freio às mudanças sociais, pois a liber­ costumes, no seguinte teor:
dade religiosa viria sacudir o seu jugo e libertar o povo, o que constituía
um perigo evidente”.5 Durante todo o período do Brasil colonial, as co­ 276 - Celebrar em casa ou edifício que tenha alguma forma exterior de tem­
plo, ou publicamente em qualquer lugar, o culto de outra religião que não seja
m unidades protestantes viviam sua fé como podiam, procurando evitar
a do Estado:
confrontos com as autoridades do país, um a vez que o com portam ento
PENAS. No grau máximo - serem dispersos pelo juiz de paz os que estiverem
religioso era tam bém um a questão jurídica.
reunidos para o culto, demolição da forma exterior e multa de 12 mil réis, que

1.1.2 A tolerância religiosa pagará cada um.


277 - Abusar ou zombar de qualquer culto estabelecido no Império, por meio
Entre 1759 e 1855, vários fatores contribuíram para form ar um
de papéis impressos, litografados ou gravados, que se distribuírem por mais de
quadro pouco favorável às instituições católicas no Brasil, o que serviu quinze pessoas, ou por meio de discursos proferidos em públicas reuniões ou
para favorecer a penetração de outras igrejas. Essa situação se estabele­ em ocasião e lugar em que o culto se prestar.
ceu no Brasil império, quando o governo português passou a viver sob a 278 - Propagar por meio de papéis impressos [...] que se distribuírem por
proteção da Inglaterra por apoiá-la na guerra contra a França, em 1793. mais de quinze pessoas ou por discursos em públicas reuniões doutrinas que
O Tratado de Aliança e Amizade e Comércio e Navegação, firmado en­ diretamente destruam as verdades fundamentais da existência de Deus e da
tre Portugal e Inglaterra em 1810, criou um impasse para a hegemonia imortalidade da alma.7

do catolicismo romano no Brasil, um a vez que a intolerância religiosa


Vê-se que o Brasil continua sendo legalmente um país católico,
seria forte obstáculo à execução do Tratado. Abria-se a possibilidade
e o im perador é o protetor da fé. As outras expressões religiosas são
para a presença legítima de comunidades cristãs de orientação evan­
apenas toleradas. Mas os constituintes estavam divididos. De um lado,
gélica e anglicana no país e, a partir de então, elas passaram a gozar de
posicionavam -se os de m entalidade liberal, entre os quais alguns ecle­
um a liberdade parcial para expressarem suas convicções de fé. O artigo
siásticos, imbuídos das filosofias francesas para exigir tam bém a liber­
V da Constituição do Império de 1824, afirmava: “A religião católica
6 BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil, 25 de março de 1824. Cons­
4 BRAGA, E; GRUBB, K. G. The Republic of Brazil: a survey of the religious situa- tituições do Brasil, 1824 (1834 acto. add), 1891,1926 e 1934. 1934, p. 298.
tion. London, 1932, p. 47. 7 BRASIL. Código Criminal do Império do Brasil. Apud REILY, D. A. História Docu­
5 HAUCK, J. E A Igreja na emancipação. In: BEOZZO, J. O. (Org.), op. cit., p. 129. mental do Protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1984, p. 28.

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dade religiosa no país, e os empresários, que viam na liberdade religiosa Art. 1 - É proibido à autoridade federal, assim como à dos estados federados,
um a força para atrair para o Brasil industriais e capitalistas de países expedir leis, regulamentos ou atos administrativos, estabelecendo alguma re­
ligião, ou vedando-a e criar diferenças entre os habitantes do país, ou nos ser­
protestantes. De outro lado, estavam os que se opunham à tolerância
viços sustentados às custas do orçamento, por motivo de crenças ou opiniões
religiosa, destacando-se Maciel da Costa, argum entando que, enquanto
filosóficas ou religiosas.
o respeito à religião favorecia a classe governante, a liberdade religiosa
Art. 2 - A todas as confissões religiosas pertence por igual a faculdade de
implicaria o perigo de conscientização do povo. exercerem o seu culto, regerem-se segundo sua fé e não serem contrariados
Contudo, em bora de m odo limitado, a Constituição e as leis nela nos atos particulares ou públicos, que interessem o exercício deste decreto.
baseadas definiram o status do protestantism o, estabelecendo os limites Art. 3 - A liberdade aqui instituída abrange não só os indivíduos nos atos indi­
das suas atividades. Assim, respeitada a religião oficial, ninguém mais viduais, senão também as Igrejas, associações e institutos em que se acharem
seria perseguido por questão de religião. De qualquer modo, a nova le­ agremiados; cabendo a todos o pleno direito de se constituírem e viverem

gislação ajudou os evangélicos e os anglicanos na superação de muitas coletivamente, segundo o seu credo e a sua disciplina, sem intervenção do
poder público.
dificuldades para a sua difusão pelo território nacional.
Art. 4 - Fica extinto o padroado com todas as suas instituições, recursos e
1.1.3 A legitimidade do pluralismo eclesial prerrogativas.

Aos poucos, em muitas regiões do Brasil os líderes das igrejas evan­ Art. 5 - A todas as Igrejas e confissões religiosas se reconhece a personalidade
jurídica, para adquirirem bens e os administrarem, sob os limites postos pelas
gélicas e anglicanas com eçaram a ganhar espaço para atuar na socieda­
leis concernentes à propriedade do mão-morta, mantendo-se cada uma o do­
de. Tal foi o caso do anglicano Richard Holden, enviado ao Brasil pelo
mínio de seus haveres atuais, bem com o dos seus edifícios de culto.
Conselho de Missões da Igreja Episcopal dos Estados Unidos e pela
Art. 6 - 0 governo federal continua a prover à côngrua, sustentação dos atuais
Sociedade Bíblica Americana. Em 1860, Holden iniciou seus trabalhos serventuários do culto católico e subvencionará por um ano as cadeiras dos
no Pará. Ali, ele adquiriu um ponto no centro comercial em Belém para seminários; ficando livre a cada estado o arbítrio de manter os futuros mi­
o depósito e venda de Bíblias e panfletos. Com eçou tam bém a realizar nistros desse ou de outro culto, sem contravenção do disposto nos artigos
cultos com o objetivo de criar um a com unidade perm anente na cidade antecedentes.
e a escrever artigos para a im prensa local. Não obstante as polêmicas Art. 7 - Revogam-se as disposições em contrário.8
com o bispo de Belém, dom Antônio de M acedo Costa, Holden obteve
um relativo sucesso em suas iniciativas. Vê-se que, na República, em lugar de apenas tolerância do culto
das igrejas de inspiração protestante existe liberdade, na form a da lei,
O projeto de povoar o Brasil com imigrantes europeus teve que
garantindo o livre exercício e propaganda de suas opiniões religiosas.
afrontar o problem a das garantias religiosas. Em 11 de setem bro de
Esse fato parece ter sido favorecido pelas questões que envolviam a
1861, foi criado o decreto legal n. 1.144, regulam entado pelo de n.
m açonaria e as m ás relações entre o Estado e a Igreja Católica. A m e­
3.069, de 17 de abril de 1863, perm itindo que os pastores protestan­
lhoria das relações do Estado com o protestantism o não tem seu equi­
tes, devidam ente registrados, realizassem casam entos com efeito civil
valente em relação à Igreja Católica no m esm o período. Para esta, a
e impedindo qualquer tentativa católica de considerá-los nulos. Muitas
oposição não só continuou como foi inclusive reforçada pela influência
questões foram sendo aos poucos resolvidas, até que o período republi­
cano trouxe a separação definitiva entre Igreja e Estado, pelo decreto
8 BRASIL. Decretos do Governo Provisório. In: Constituição da República do Brasil'.
n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890, abandonando definitivamente um a
acompanhada das leis orgânicas publicadas desde 15 de novembro de 1889. Rio
religião oficial para a nação. Foi a extinção do padroado e, a partir dali, de Janeiro, 1890, p. 50.

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no Brasil do pontificado de Pio IX (1846-1878), sobretudo com o sylla- 1.2 As implicações teológicas
bus de 1864. Enquanto Igreja e Estado estavam em disputa, fortalecia- A Igreja oficial do Brasil colonial e imperial expressava um a cons­
-se o protestantism o. Nesse contexto, as polêmicas continuaram , pelo ciência religiosa fundam entada num a interpretação própria do axioma
fato de os católicos buscarem recuperar os direitos legais perdidos na teológico Salus extra ecclesiam non est.9Essa interpretação é questionada
relação Igreja-Estado e pelos conflitos públicos entre padres católicos pelo pluralismo eclesial no país. A tensão gerada forçou a m udança
e pastores protestantes. Os ortodoxos não participaram das polêmicas, da legislação brasileira, influenciando o com portam ento religioso da
seja porque se estabeleceram no país mais tarde, seja pela m aior proxi­ sociedade. Daí resultou um confronto no qual se chocam , ainda hoje,
m idade doutrinal com o catolicismo. convicções doutrinais, identidades eclesiais e m otivações missionárias
As implicações legais no confronto entre as confissões cristãs con­ distintas.
tinuam a existir tam bém no século XX, m as agora possuem novas for­
1.2.1 0 choque de imagens entre as igrejas
mas. Na prim eira m etade do século, uns e outros procuram eleger, nas
As relações intereclesiais são dependentes da imagem que as igre­
diferentes instâncias do governo, tanto os seus próprios representantes
jas possuem um as das outras, imagens que se configuram a partir das
quanto aqueles que favoreciam a liberdade religiosa, a educação leiga circunstâncias históricas e das m otivações pessoais. Essas imagens es­
e a liberdade de pensam ento e de expressão. Em nossos dias, com a tão na base das relações entre as igrejas e, no Brasil, assum em três
diminuição das tensões jurídicas entre as tradições eclesiais históricas, principais características: a apologética conflituosa, em que vigora o
esse espaço político passou a ser usado sobretudo por setores do pen- espírito de polêmica, calúnia e afronta; o respeito crítico, com posturas
tecostalismo. É considerável o núm ero de m em bros das comunidades de tolerância; e a convivência, com atitudes de diálogo e cooperação.
pentecostais, sobretudo pastores, que se encontram envolvidos em Nenhum a dessas atitudes está desvinculada do contexto internacio­
algum a questão jurídica pelo m odo com o se relacionam com outras nal das relações intereclesiais. Percebe-se que essas relações no Brasil
religiões, sobretudo de matriz afro. Outra questão legal que na atuali­ acontecem , em grande parte, segundo os ventos soprados do exterior.
dade causa tensão entre as igrejas é o m odo com o o acordo assinado 1) A apologética conflituosa - A visão católica do protestantism o
em 2010, entre a Santa Sé e o governo brasileiro, relativo ao Estatuto depende de como ela considera os pais da Reforma. M artinho Lutero,
Jurídico da Igreja Católica no Brasil, apresenta no artigo 11 o Ensino Calvino, Zwinglio, Wesley e outros receberam de não poucos católicos
Religioso nas escolas públicas. Quando a maioria das igrejas se posicio­ um a com preensão que influenciou as feições e o cunho das relações

na a favor de um Ensino Religioso em perspectiva ecum ênica e inter- durante gerações: “Não faltou quem procurasse form ar um retrato de
Lutero para tom á-lo ainda mais odioso, não som ente aos católicos, m as
-religiosa, o acordo dá a possibilidade de um a perspectiva confessional
tam bém aos hereges”.10 As imagens construídas para m anchar a repu­
ou pluriconfessional, o que pode causar dificuldades para que o Ensino
tação dos reform adores foram estendidas tam bém para os seus segui­
Religioso seja prom otor de um a positiva interação e intercâm bio entre
dores.
as diferentes com preensões e vivências da fé, com o tam bém dificultar
as já frágeis iniciativas de diálogo ecumênico e inter-religioso no Brasil.
Contudo, na atualidade, os conflitos do pluralismo eclesial não são pro­ 9 CIPRIANO. Epistula 73,21. Apud QUASTEN, J. Patrologia: iprimi due secoli. Ca-
sale, 1995, v. 1, p. 603.
priam ente um problem a jurídico, ao m enos entre as igrejas do CONIC, 10 MEYER, H. Lutero na opinião da Igreja Católica Apostólica Romana. In: Estudos
e concentram -se basicam ente no cam po teológico-pastoral. Teológicos, p. 15, 1961. Edição especial.

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Nesse contexto apologético destacaram -se os padres Júlio Maria atraso para a civilização brasileira e mostram que o catolicismo é uma religião
e Leonel Franca. Para eles, os reform adores nada mais eram do que contraditória.12
falsos intérpretes da fé cristã, das Escrituras e da Tradição. Por isso se
sentiam na obrigação de m ostrar às claras os seus “erros”, não apenas Por tudo isso, considera-se que a Igreja Católica é um a religião
doutrinais com o tam bém morais, o que se constata no tom apologético só de nome, distante de suas origens, mitológica, propícia aos ricos,
contraditória e responsável por boa parte da irreligiosidade reinante
de suas publicações. Esses “erros”, segundo eles, estavam presentes
na sociedade. É a religião da maioria. E o católico é “o hom em que não
tam bém nos seguidores dos reformadores, de m odo que se fazia ne­
cessário com bater a todo custo qualquer possibilidade de continuidade lê a Bíblia, que adora os santos, que perdeu a sua liberdade por tê-la
de suas tradições religiosas no Brasil. Essa pregação calou fundo na hipotecado ao papa, e que não confia por inteiro na salvação que vem
m aioria das com unidades católicas, de m odo que: de Cristo e só d’Ele”.13
Por volta do ano 1920, católicos e protestantes viveram um dos
Para o católico tradicional, o protestante é o homem da anarquia, porque não últimos conflitos que m arcaram essa fase da polêmica. Tratou-se do
tem autoridade na sua Igreja; o homem que despreza Nossa Senhora; aquele confronto entre o presbiteriano Eduardo Carlos Pereira e o padre je ­
que se fecha no puro individualismo, porque lê a Bíblia sem nenhum critério;
suíta Leonel Franca. Para o pastor, todo o problem a religioso no Brasil
aquele que não tem perdão dos pecados, porque não tem a confissão e que
resumia-se no fato de que a Igreja Católica, em bora fosse “um ram o”
não crê na presença de Cristo na Eucaristia.11
do cristianismo, não era fiel em sua evangelização. Como resposta, o
Do outro lado, quando as com unidades protestantes buscaram sacerdote Leonel Franca afirma a convicção católica sobre suas doutri­
afirmar seu espaço no território brasileiro, sentiram a necessidade de nas e ação missionária, contra os erros da fé protestante. Com a m orte
form ar um a imagem do catolicismo que servisse de razão para esse de Pereira, em 1923, seu companheiro Ernesto Luiz de Oliveira entrou
objetivo. No clima de batalha que m arcou o período da implantação na discussão, respondendo às críticas do padre Franca, o qual, por sua
e consolidação dessas comunidades, elas consideravam o catolicismo vez, publicou mais um livro contra os protestantes.14
como um inimigo do Evangelho, que deveria ser erradicado das terras 2) O respeito crítico - É evidente que o contexto de polêm ica consti­
brasileiras para nelas im plantar a fé pura. A imagem que o protestan­ tui um obstáculo para as relações intereclesiais. Felizmente, m udanças
tismo missionário fazia do catolicismo nesse período encontra-se prin­ aconteceram no interior das igrejas e elas passaram , então, a assumir
cipalmente na ação dos seus pastores. Em sua estratégia pastoral, em um com portam ento de tolerância m útua. É a fase do respeito crítico. A
sua prédica e em sua reflexão teológica, o pastor busca considerar as história das relações entre as igrejas m ostra que, m esm o sem reconhe­
“heresias” do catolicismo que precisam ser combatidas. Afirma que a cer a legitimidade da fé do outro, cristãos de um a Igreja desenvolvem
Igreja Católica transm ite um a falsa segurança porque ela não se susten­ relações amigáveis com mem bros das outras igrejas. As motivações
ta nos fundam entos bíblicos da fé e sim nos costum es e ritos. Para a fé são múltiplas, destacando-se os laços de parentesco, a curiosidade em
protestante,
12 TORRES, J. C. de Oliveira. História das ideias religiosas no Brasil. São Paulo: Gri-
a Igreja Católica não garante a salvação eterna e as penitências pelo sofri­ jalbo, 1968, p. 177.
13 PEREIRA, E. C. O problema religioso da América Latina. São Paulo: Imprensa Me-
mento corporal são obras humanas, para nada servem; suas superstições são
thodista, 1920, p. 52.
14 Para aprofundar esse fato, ver ainda: FRANCA, L. A Igreja, a reforma e a civiliza­
11 HORTAL, J. O Evangelho e a Igreja perante a realidade brasileira. In: ALTMANN, ção. Petrópolis: Civilização Brasileira, 1934; OLIVEIRA, E. L. de. Roma, a Igreja e
W. (Ed.). Desafio às Igrejas. São Paulo: Loyola; São Leopoldo: Sinodal, 1976, p. 108. o anticristo. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1945.

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conhecer de perto a fé do outro e, inclusive, motivos políticos (estes, prio de fazer teologia na perspectiva da libertação, que m ostra o vigor e
sobretudo, no período da implantação da República, considerando o o dinamismo da fé num engajamento concreto no meio social, as comu­
protestantism o um pensam ento m odernizador da sociedade). Assim, o nidades populares que assum em a consciência eclesial são fatores, entre
fecham ento nas posições apologéticas deixa frestas para a possibilida­ outros, que influenciam de tal modo a visão protestante do catolicismo
de de um respeito crítico e até m esm o de certa admiração. É quando que alguns chegam até mesmo a reconhecer nele “o rosto da infância do
uns consideram os outros como “gente esquisita, m as sim pática”.15 Na protestantism o”.17 A Igreja Católica passa, então, a ser vista
atualidade, muito contribui para isso a legitimidade do pluralismo ecle-
sial/religioso, um a vez que nenhum credo pode se impor com o única com o uma Igreja-irmã, mesmo quando fizer questionamentos críticos a ela.
Serão questões em familia. A fase da polêmica entre catolicismo e protestan­
orientação religiosa da sociedade. Assim, o respeito crítico indica que
tismo pode e deve ceder sempre de novo e cada vez mais, à fraternidade e à
m esm o se não se com preende a fé das outras pessoas, há o reconheci­ cooperação. Isso será dito tanto a católicos quanto a nós protestantes.18
m ento de que elas têm o direito de vivê-la como caminho na sua rela­
ção com o Transcendente. O contexto de serenidade nas relações perm ite a reconstrução da
3) A convivência - Tal foi o caminho para a fase da convivência, o imagem que um a Igreja tem da outra e perceber que existe entre elas
que possibilitou às igrejas em algumas regiões do país a busca de um um rosto de irmãs. Nesse contexto situam-se o nascim ento e o cresci­
conhecim ento m útuo com fins de superar os conflitos e buscar cami­ m ento do m ovim ento ecumênico no Brasil, de m odo que, pelo m enos
nhos de diálogo e de cooperação: entre as igrejas participantes do CONIC, a situação atual poderia ser
qualificada de convivência ativa, um a fraternidade restabelecida com
Em todos os estados do Sul e em alguns pontos dos Estados do Rio de Janeiro
múltiplos contatos e m útua colaboração.
e do Espírito Santo [...] o fato da convivência entre uns e outros acabou por ser
considerado com o algo natural. Entre os imigrantes alemães havia já uma cer­ 1.2.2 0 conflito doutrinal
ta tolerância [...] foi precisamente a cidade de São Leopoldo [...] o lugar onde
A multiplicidade doutrinal é um a das características mais palpáveis
o processo de convivência, de contatos e colaborações, de amizade e estima
recíprocas foi atingindo aos poucos o clima propício para o desenvolvimento do pluralismo eclesial. Interpretações diferentes, e não poucas vezes
do diálogo ecumênico.16 em notória oposição, do kerygma cristão levaram ao surgim ento de di­
versas tradições eclesiais. Não se trata de um simples pluralismo de
Mas foi somente a partir de m eados do século XX que isso se inten­ tendências teológicas, o que pode ser encontrado m esm o no interior de
sificou. Na década de 1960, questões conjunturais da Igreja Católica em cada Igreja. Esse pluralismo, em bora se por vezes é causa de tensões
nível internacional possibilitaram novas relações com diferentes igrejas no nível interno das confissões cristãs, não significa rejeição a um con­
em todo o mundo. É central para isso a realização do Concílio Vaticano teúdo doutrinário comum. Mas na complexidade do pluralismo eclesial
II e suas propostas renovadoras na liturgia, na eclesiologia do Povo de vem os mais que tendências teológicas diferentes, existem divergências
Deus, no uso da Bíblia, no diálogo com a sociedade, com as igrejas e com e contradições em elem entos constitutivos da fé cristã, o que está na
as religiões. No Brasil, a presença da Igreja no meio social e o seu com ­ raiz das questões a serem resolvidas no diálogo ecumênico.
promisso com as questões que o afligem, o surgimento de um modo pró-
17 ALTMANN, W. De que maneira os protestantes entendem a contribuição dos
15 MENDONÇA, A. G., O celeste porvir, p. 156. católicos romanos no Brasil. In: MATEUS, O. R (Ed.). Teologia no Brasil: teoria e
16 HORTAL, J. O Evangelho e a Igreja perante a realidade brasileira. In: ALTMANN, prática. São Paulo: ASTE, 1985, p. 197.
W. (Ed.). Desafio às Igrejas, p. 107. 18 Ibidem, p. 191.

34 35
O pluralismo doutrinal no interior do pluralismo eclesial no Bra­ m arcadas em sua história por um com portam ento teológico eclético de
sil, considerando apenas as igrejas que com põem o CONIC, se expres­ tendências variadas, com o o pietismo, o denominacionalismo, o funda-
sa nos horizontes católico, ortodoxo, evangélico e anglicano. Não são mentalismo.
horizontes que não se tocam. Contudo, o m odo com o as convicções O universo teológico do protestantism o de imigração, por sua vez,
doutrinais estão neles cim entadas dificulta a abertura de caminhos que
apresenta características que o distingue do protestantism o missionário.
possibilitem um a interação fecunda das diferentes doutrinas, de m odo
Os luteranos conservam a doutrina da justificação por graça e fé, m as
a favorecer o diálogo intereclesial.
esforçam-se para com preendê-la na direção dos acordos ecumênicos
As igrejas seguidoras dos ensinam entos de Lutero, Calvino e Wes-
dos últimos tempos. Primam pela necessidade de um a com preensão
ley apresentam acentuações próprias e em muito convergentes da fé
racional da fé, favorecendo a elaboração de um corpo de doutrinas sóli­
cristã. No anglicanismo há quem se pergunte sobre qual é de fato a
das, bem estruturadas, e que funcione com o elo das diversas tendências
“doutrina anglicana”, visto que ele apresenta elem entos de aproxima­
que possam existir no seu interior. A m esm a característica encontra-se
ção por vezes com evangélicos e por outras com o catolicismo, em bora
nos anglicanos, os quais buscam conciliar a teologia da Reforma com
não possa ser definido nem como um nem como outro:
um a organização eclesiástica, os ministérios e o culto próximos ao ca­
A sua confissão de fé não possui características nem realces denominacionais. tolicismo. O m odo como o protestantism o de imigração e os anglicanos
Simplesmente aceita e proclama a herança católica expressa no Credo dos estabilizaram o ensinam ento doutrinal e organizacional de suas com u­
Apóstolos e no Credo Niceno. A própria maneira de a nossa Igreja apelar para
nidades, explica por que as diferentes concepções teológicas não têm
as verdades das Santas Escrituras foge aos moldes das fórmulas doutrinárias
na Reforma, preferindo expor essas verdades com o se encontram engastadas
provocado muitas rupturas no seu interior, o que é mais expressivo no
nos velhos credos do cristianismo indiviso.19 protestantism o missionário.
Não obstante a pluralidade de inspiração teológica, as igrejas pro­
A Igreja Católica considera-se m antenedora de um a doutrina que
testantes apresentam traços comuns, que podem ser aqui apresentados
vem dos apóstolos e, consequentem ente, tem dificuldades para admi­
como características gerais:
tir a veracidade da totalidade da doutrina cristã com o proposta pelas
1) Entre o Deus transcendente e a hum anidade o principal instrum en­
demais tradições eclesiais. Tal dificuldade, porém , não se constata na
to de m ediação é a Bíblia, na qual o fiel descobre a vontade livre e
relação do catolicismo com as igrejas ortodoxas, onde se verifica real
soberana de Deus. Assim, existe um confronto com o catolicismo
comunhão no conteúdo central da fé cristã.
e a ortodoxia, que valorizam a existência de vários outros meios
E claro que no interior do protestantism o existem diferenças dou­
salvíficos através dos quais Deus atua na salvação do fiel, como a
trinais consideráveis, o que não possibilita apresentar um m esm o ca­
hierarquia, os sacram entos e a intercessão aos santos.
tecism o doutrinal para todas as igrejas protestantes. As denom inações
missionárias estão originalmente vinculadas pela “Era M etodista”, 2) A soteriologia protestante é centrada em Jesus Cristo, o único que
caracterizada pelo avivamento que enfatiza a experiência pessoal na salva, com riscos de um cristomonismo, pois Cristo, além de exer­
com preensão e vivência da fé. Não poucas delas foram profundam ente cer a função de único m ediador entre Deus e o fiel, tende a incor­
porar as três pessoas da Trindade.
19 KRISCHKE, E. M. A posição histórica e doutrinária da Comunhão Anglicana. In:
KRISCHKE, E. M. (Ed.). A Igreja episcopal no país do futuro. Porto Alegre: Metró­ 3) Implícita na concepção soteriológica está a visão do ser humano,
pole, 1960, p. 26. do m undo e da história, não sem riscos de dualismo, sobretudo no

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protestantism o missionário, com preendendo com o m au o m undo sistiram à formação de estruturas fixas ou um organismo paraeclesiástico
do presente e bom o m undo vindouro. supraparoquial, como a constituição de Sínodos”.21
4) A expressão cúltica da fé protestante centrada na pregação da pa­ Diferentes eram as com unidades católicas. Estas desde cedo ex­
lavra por vezes acentua um intelectualismo que tende a diminuir o perim entavam o sentim ento de pertença a um a Igreja estruturada.
mistério litúrgico, o que é enfatizado na liturgia católica e ortodoxa. Mesmo se não possuíam ampla com preensão teológica dessa pertença,
5) Por fim, algumas com unidades protestantes não estão, ainda hoje, com preendiam -na pelos sinais visíveis que lhes eram palpáveis, como
totalm ente livres das m arcas do liberalismo europeu e norte-am eri­ os sacram entos e as devoções aos santos. Desde cedo o catolicismo
cano do século XIX, com o qual estavam estreitam ente vinculadas primou pela form ação de estruturas que dessem estabilidade às suas
quando se instalaram no Brasil. Tal fato, além das m otivações teo­ comunidades, diferenciando-se das demais igrejas, cuja organização
lógicas, tam bém em basa a ênfase na liberdade individual na acei­ estrutural aconteceu num período posterior.
tação e vivência da fé, diferenciando do forte aspecto coletivo do Com o tempo, as com unidades cristãs protestantes desenvolveram
com portam ento religioso católico romano.20
sua própria eclesiologia. Inicialmente, a consciência eclesial não é pro­
Isso ajuda a com preender por que na época da implantação do priam ente doutrinal, m as fundam entalm ente baseada na fraternidade
protestantism o no Brasil foi intenso o confronto com a teologia católi­ espiritual, devido à m escla das várias tendências teológicas e ao caráter
ca romana, fortem ente arraigada nos conceitos medievais e tridentinos peregrino das comunidades que, no início, se formavam pelas reuniões
contra as tendências m odernistas. E m esm o se nos tem pos atuais gran­ nas casas dos adeptos, norm alm ente sem lugar fixo. Aqui os cristãos
de parte da teologia católica se desfez das teias medievais, o diálogo protestantes sentem -se cham ados a viver a forma prim ária do teste­
teológico com a teologia das igrejas oriundas das Reformas do século m unho evangélico, com o anúncio, lem brança histórica e pregação das
XVI a XVIII não é isento de tensões, visto que as características aqui grandezas e maravilhas de Deus (SI 78,4; At 2,11). No protestantism o
apresentadas ainda são constitutivas da identidade de uns e de outros. missionário, a inspiração m etodista favorece para conceber um a “Igreja
invisível”, até quase m ais im portante do que a comunidade visível.22
1.2.3 A consciência eclesial
Com o tem po vão surgindo os salões especiais para as reuniões
As igrejas protestantes não demonstraram, nos primeiros tem pos da
religiosas. À m edida que as com unidades se estruturam e crescem, bus­
sua presença no Brasil, muita preocupação com a estrutura eclesial dos
ca-se recuperar o ensino dos reform adores como base para a formação
agrupam entos que iam surgindo. As comunidades eram consideradas um
da consciência eclesial. Dois elem entos são fundamentais, a Bíblia e
prolongamento da ação evangelizadora da Igreja-mãe. Os fiéis partici­
os sacramentos: onde a Palavra de Deus é pregada e ouvida e os sa­
pavam de pequenas reuniões familiares para estudos bíblicos, orações
cram entos administrados, ali está a Igreja de Cristo, com o a congre­
ou simples confraternização, formando um espaço de salvação sem ser,
gação dos santos.23 Assim, a Igreja de Cristo é, sobretudo na doutrina
necessariamente, concebido como Igreja institucional. Antes do desen­
volvimento da consciência eclesial, surgiram as sociedades voluntárias,
21 ALTMANN, W. Lutero e libertação. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2016, p. 146.
registradas como sociedades civis sujeitas às leis do país, visando usar os
22 VELASQUES FILHO, P. O nascimento do “racismo” confessional. In: MENDON­
direitos legais para a garantia da própria existência. Por muito tem po “re- ÇA, A. G.; VELASQUES FILHO, P. Introdução ao Protestantismo no Brasil, p. 111;
MENDONÇA, A. G. O celeste porvir, p. 71.
20 MENDONÇA, A. G. Evolução histórica e configuração do protestantismo no Bra­ 23 DREHER, N. M. (Ed.). A Confissão de Augsburgo. São Leopoldo: Sinodal, 1999,
sil. In: MENDONÇA, A. G.; VELASQUES FILHO, R Introdução ao Protestantismo no art. 7. “Onde vem os a Palavra de Deus ser corretamente pregada e ouvida, e
Brasil. São Paulo: Loyola, 1990, p. 33ss; MENDONÇA, A. G. O celesteporvir, p. 146. os sacramentos administrados de acordo com a instituição de Cristo, ali, sem

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dos reformadores, um grupo ou um a reunião de pessoas que se unem Igreja é o anúncio do Reino que a transcende, a instituição não é de
em torno do Evangelho e da graça sacram ental dada por Cristo. Estes todo m enosprezada e é vista com o um elem ento da m anifestação con­
dois elem entos fazem da congregação a Igreja desejada por Deus, um creta da Igreja: “Em bora a Igreja verdadeira seja invisível e objeto de fé,
povo santo, cristão. Mas, em term os concretos, a organização eclesial ela sem pre se m anifesta em concretizações institucionais”.25
resum e-se basicam ente na inscrição dos m em bros no livro de rol após É im portante observar com o nessas igrejas acontece a evolução
a sua admissão segundo o rito de cada denominação, e na participação teológico-doutrinal com o despertar da consciência eclesiológica que
regular do culto, dos sacram entos e da instrução religiosa. Os angli­ expressa a razão de ser da com unidade de fé. Partindo de um a dimen­
canos diferem do protestantism o evangélico nos elem entos doutrinais são espiritual e peregrina, a estabilidade da comunidade exige a con­
que fundam entam a consciência eclesial, o cham ado “Quadrilátero de sideração dos elem entos institucionais e doutrinais. Contudo, na ecle­
Lam beth”, form ado pelo episcopado histórico, os sacram entos, as Es­ siologia protestante tais elem entos são, apenas, frutos dos condiciona­
crituras e o Credo Niceno-Constantinopolitano. Mas a doutrina tende a m entos históricos em que vivem as comunidades, de m odo que a Igreja,
ser considerada apenas um m odo de ser, o éthos anglicano. em si mesm a, não tem elem entos estruturais que sejam essenciais à sua
Evangélicos e anglicanos consideram de m odo diferente do catoli­ natureza ou imutáveis. Esse é um fator de confronto com a consciência
cismo e da ortodoxia os elem entos institucionais da Igreja. No protes­ eclesial do catolicismo romano e da ortodoxia.
tantism o luterano, isso é verificável sobretudo nos Artigos de Esmalcade,
nos quais Lutero recusa cerimônias eclesiásticas e símbolos litúrgicos
1.2.4 A autoridade na Igreja
como constitutivos da Igreja. Só são aceitos aqueles elem entos dados As diferenças doutrinais expressam a identidade eclesial das di­
diretam ente pela existência da congregação dos crentes, isto é, pelo ferentes confissões cristãs, as quais têm a ver com a com preensão da
fato de se reunirem. Fora do catolicismo e da ortodoxia, existe pouco autoridade na Igreja, com ênfases em elem entos específicos: para os
espaço para assegurar o valor de um a hierarquia eclesiástica, pois as católicos, a autoridade se visibiliza na hierarquia e nos dogmas; para os
com unidades “não estão ligadas por um a autoridade central legislativa ortodoxos, na tradição; e para os protestantes, na Bíblia. Não são ele­
e executiva, m as por lealdade m útua”.24 Essa posição confronta-se di­ m entos exclusivos da expressão da autoridade, m as a forma como essa
retam ente com a eclesiologia católica e ortodoxa, que valoriza os ele­ mais se expressa no cotidiano das igrejas.
m entos da tradição como fundamentais para a visibilidade estrutural da É comum às igrejas fundam entarem biblicamente a autoridade no
Igreja. Enquanto na doutrina católica acentua-se o prim ado da Igreja poder dado por Cristo a Pedro (Mt 16,17-19) e /o u no m andato mis­
Universal, presente nas realidades locais, as demais igrejas privilegiam sionário dos discípulos (Mt 28,18-20). O problem a é como fazer a her­
a com unidade local, com igualdade plena entre seus membros. m enêutica desses textos e a sua aplicação para a comunidade cristã,
Contudo, verificam-se, na atualidade, m udanças na eclesiologia porque existem com preensões diferentes da autoridade nas igrejas.
evangélica e anglicana. E m esm o afirmando ser na Igreja o elem ento Para os católicos, o prim ado da autoridade encontra-se no papa como
invisível mais essencial que o visível, um a vez que a razão de ser da o sucessor direto de Pedro, na ordem tem poral e teológica, como prin­
cípio visível e perpétuo fundam ento da unidade dos demais bispos e da
dúvida nenhuma, a Igreja de Deus existe” (CALVINO, J. Istituzione delia Religione multidão dos fiéis em Cristo. O papa é o “vigário de Cristo” e, portanto,
Cristiana. Torino: UTET, 1983, livro IV, cap. 1, n. 9). pastor da Igreja. Como tal, ele goza do primado sobre os demais bispos,
24 KRISCHKE, E. M. A posição histórica e doutrinária da Comunhão Anglicana. In:
KRISCHKE, E. M. (Ed.). A Igreja episcopal..., cit., p. 23. Ver também: ALTMANN, 25 BRAKEMEIER, G. Testemunho da fé em tempos difíceis. São Leopoldo: Sinodal,
W. Lutero e libertação, p. 126. 1990, p. 35.

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porque é em m odo particular o sucessor de Pedro. Ele é tam bém infa­ vel questionar essa pretensão sem cair no relativismo na consideração
lível nas proclam ações ex cathedra, isto é, com um ato definitivo, sobre dos elem entos constitutivos da com unidade eclesial? Voltaremos a esse
doutrina de fé e m oral.26 tem a m ais adiante, um a vez que o objetivo nesta seção é apenas situar
Para as demais igrejas, porém , estes m esm os textos bíblicos não a questão como um desafio para as relações intereclesiais.
indicam nenhum a autoridade superior a Pedro em relação aos demais
apóstolos, pois tam bém ele é enviado em missão, em pé de igualdade 1.3 As implicações pastorais
com os outros discípulos (At 8,14). Não é ele quem dirige o “primeiro A tradição ortodoxa, que apenas num tem po mais recente se insta­
Concílio” em Jerusalém (At 15,6-29) e foi, inclusive, repreendido no seu lou no Brasil, não participou das contendas entre católicos, evangélicos
com portam ento (G1 2,11-14). Para estas igrejas, as palavras “pedra”, e anglicanos porque, por um lado, no período da sua instalação no país,
“chave”, “ligar-desligar” seriam metáforas, imagens que vão além do tais contendas já não mais tinham a m esm a intensidade que nos tem ­
sentido m aterial dos term os, e quando Jesus diz a Pedro para “con­ pos da instalação dessas igrejas. Por outro lado, pelo pequeno número
firmar os irm ãos” (Lc 22,32) e “apascentar as ovelhas” (Jo 21,16-18), de fiéis na ortodoxia e a tendência etnocêntrica, o que contribuiu para
não estaria se referindo a nenhum a instituição da sua autoridade, mas am enizar os conflitos com as outras igrejas.
apenas lhe conferindo um ministério pessoal. Assim, questionam a es­ Mas as m issões protestantes fazem o catolicismo perceber que,
tabilidade estrutural da Igreja Católica, afirmando que o Segundo Tes­ no espaço por séculos considerado “naturalm ente” seu, cresce sempre
tam ento apresenta um a variedade nas formas organizativas da Igreja mais a m anifestação de outras expressões da fé cristã. E não poucas
de Cristo e que se deve respeitar a unidade na diversidade de todos vezes essas m anifestações com petem com as suas propostas. Histori­
os m em bros do Corpo de Cristo (IC or 12,11-21), sendo fundamental camente, ele tem buscado combatê-las de vários m odos: pelo amparo
a igualdade na dignidade dos fiéis sob o único M estre (Mt 23,9), que na legislação civil, pela divulgação do que considera erro nas igrejas
concede a todos, pelo Batismo, o exercício do m esm o sacerdócio (lP d protestantes, pelo afastam ento no trato social, pela hostilidade aos seus
2,4-9; Ap 1,6). O poder e a autoridade estão na fé de toda a comunidade costumes, ritos e tem plos etc. É o esforço católico pela defesa do espa­
eclesial, e não concentrados num ministério específico. ço religioso contra as tentativas dos seguidores da Reforma que visam
As posições são contrastantes. A questão da autoridade na Igre­ conquistar esse espaço. Além da dim ensão doutrinal, com o visto, esse
ja é algo essencial, pois trata da legitimidade para orientar e definir conflito é tam bém pastoral, m anifestando-se em quatro principais ele­
situações controversas sobre a fé cristã. A superação das tensões exi­ mentos: na consciência missionária, nas estratégias de evangelização,
ge um a herm enêutica da autoridade que, de um lado, apresente um na form ação das comunidades e no proselitismo, que desenvolveremos
possível denom inador comum para as igrejas; e, de outro lado, admita a seguir.
formas diferentes no exercício da autoridade nas diferentes tradições.
E impensável um m odelo único de autoridade na Igreja, pois não se 1.3.1 A consciência missionária
trata de valorizar a autoridade por si mesma, m as de considerá-la como Em seus projetos de missão na América Latina, tanto a tradição
instrum ento para a unidade na comunidade cristã. Pode ela ser consi­ católica quanto, mais tarde, a tradição a protestante buscaram eliminar
derada com o depositária da unção divina? O que isso significa? É possí­ o que consideravam negativo no com portam ento religioso de cristãos e
não cristãos. A partir do corpo doutrinal da própria tradição eclesial, es­
26 CONC. VAT. I. Const. Dogm. Pastor aeternus. In: HEINRICH, Dezinger | (DH),
Enchiridion Symbolorum. Bolonha: EDB, 1996, n. 3052. 3074; CONC. VAT II tabeleceram critérios para a leitura da fé nas outras tradições religiosas,
LG. 18.22. negando radicalm ente os elem entos que extrapolassem as fronteiras do

42 43
cristianismo tal com o concebido em sua tradição. Tais elem entos eram dade. No início do movim ento ecum ênico questionou-se o fato de
considerados superstições que fundam entavam um com portam ento que as igrejas pregavam um Cristo luterano, outro m etodista, outro
pagão, seja quando encontrados nas com unidades cristãs de outra Igre­ católico romano, outro presbiteriano e assim por diante.
ja ou nos meios religiosos não cristãos. Por essa razão, em am bos os b) Como deve acontecer o encontro do Evangelho com as manifes­
cam pos eles precisavam ser eliminados. tações religiosas que não apresentam os princípios cristãos como
Ao m esm o tem po que a missão das igrejas buscava desenvolver seus fundam entos? A partir do m om ento que as ciências da reli­
um processo de “purificação” ou extinção do m undo religioso situa­ gião e a teologia das religiões oferecem contribuições significativas
do além das fronteiras cristãs, criava-se um intenso conflito tam bém para o conhecim ento da dim ensão religiosa do ser hum ano e dos
dentro do cristianismo. Esse conflito assumia m otivações sem elhantes povos, não mais se pode tratar os diferentes credos como supersti­
àquelas presentes no desencontro do cristianismo com as outras reli­ ção ou paganismo. O desafio consiste, basicam ente, em fazer com
que a consciência m issionária das igrejas desenvolva o respeito
giões. Mais do que questionar um princípio teológico-doutrinal ou um a
que essas m anifestações m erecem , de um lado; e, de outro lado,
tendência espiritual que um considerava herético no outro, buscava-se,
em encontrar as formas adequadas para o anúncio do Evangelho,
na verdade, um a eliminação recíproca, tal como se pretendia com as
de m odo que o encontro dessas m anifestações religiosas com a fé
religiões indígenas e os cultos afros. A sociedade tem registrado na sua
cristã não aconteça através de choques que impossibilitem a sinto­
história os conflitos que daí surgiram nas relações intereclesiais.
nia das riquezas que um e outro possuem .
A dimensão pública desses conflitos está desaparecendo nos tem ­
c) Como o conteúdo do kerygma relaciona-se com a sociedade? O
pos atuais entre as igrejas históricas. Mas eles se expressam fortem ente
Evangelho apresenta valores que não são estranhos aos valores
nas relações do pentecostalism o com o catolicismo e as religiões não
sociais. Pelo contrário, é a sintonia intrínseca entre eles que impele
cristãs. Entre as igrejas do CONIC não mais se constata o confronto po­
os cristãos ao testem unho público da fé. Mas isso não significa que
lêmico outrora característico das relações entre católicos e protestan­ todos na sociedade assum em explicitamente a fé cristã. Na relação
tes. Contudo, os conflitos deixaram sequelas na relação entre as igrejas, com a sociedade, as igrejas precisam superar o desejo de querer
de m odo que a manifestação da consciência missionária apresenta hoje cristianizá-la em m assa sem que isso signifique, porém , abandonar
enorm es desafios a serem superados pelo diálogo ecumênico. Tais de­ o anúncio do Evangelho, o que lhes com pete pela vocação m is­
safios se dão em duas principais direções: na explicitação do conteúdo sionária. Fazer com que toda a sociedade assum a características
da fé cristã e nas suas mediações. cristãs não é apenas fantasioso como tam bém revela, de um lado,
1) A explicitação do kerygma: as igrejas apresentam -se como missio­ o saudosismo da cristandade e, de outro lado, o desprezo, m esm o
nárias à m edida que assum em a consciência de existir para proclam ar a que inconsciente, por outras m anifestações religiosas.
Boa-Nova do Reino de Deus, visando à congregação dos que aderirem O fato é que no interior do pluralismo eclesial a consciência mis­
a essa m ensagem num a comunidade que viva existencialm ente o con­ sionária de um a Igreja não poucas vezes apresenta elem entos de con­
teúdo do anúncio. Daqui surgem três questionamentos: flito com as outras igrejas, com as outras religiões e com a sociedade.
a) O que fazer para que o Evangelho, tal como pregado por um a Igre­ No centro desses conflitos está o m odo como acontece a manifestação
ja, tenha plausibilidade de ser aceito por todo o m undo cristão? Há dessa consciência, com estratégias e m otivações que por vezes tendem
que questionar se, quando as igrejas pronunciam palavras como a confundir evangelização e proselitismo, ou manifestar-se sim plesm en­
Evangelho, Reino, Jesus Cristo, estão se referindo à m esm a reali­ te com o conquista e defesa do espaço sagrado.

44 45
2) A segunda direção dos desafios que se constatam na manifes­ isso buscava-se im plantar um cristianismo verdadeiro , da Reforma.
tação da consciência missionária das igrejas diz respeito aos meios do Por outro lado, a Igreja Católica não tinha condições de com preender
processo de evangelização. Aqui se apresenta a questão da m ediação positivam ente a contribuição evangelizadora das outras igrejas. Um
eclesial do anúncio. O conteúdo do kerygma não é totalm ente imune ao agravante da questão é o fato de projetos missionários protestantes
contato com as mediações. E não poucas vezes constata-se um a confu­ com binarem o sentim ento expansionista com motivos teológicos e fa­
são entre a Igreja que anuncia e o Evangelho que é anunciado. Quando tos políticos, o que significava que, no final, a extensão do poder com
meio e fim se confundem, obstaculiza-se a apresentação do kerygma na influências nacionais e a propagação da fé eram dois lados da m esm a
sua integridade. Muitos acabam trocando o fim pelos meios; outros não m oeda.27 Por outro lado, o catolicismo sem pre se julgou no direito de
reconhecem nem um nem outro. E outros, ainda, rejeitam o objeto do defender o espaço religioso adquirido, reforçando suas bases catequéti-
anúncio porque negam a legitimidade dos meios. cas, devocionais e institucionais.
Atualmente, as comunidades cristãs nas diferentes igrejas formam
Esse problem a é consequência da carência de com unhão entre
um cam po religioso próprio, que assum e contornos físicos e espirituais
as igrejas nas formas como se expressa historicam ente o conteúdo do
específicos. O catolicismo precisa aprender a dividir o espaço religioso
Evangelho. Essa carência faz com que as igrejas utilizem estratégias de
com aqueles que por muito tem po ele com batia a todo custo. Já não
evangelização que não raram ente conduzem a um a distorção do signi­
mais responde com as estratégias apologéticas do passado, m as tam ­
ficado da experiência que acontece no espaço religioso de domínio de
bém não tem claro até onde e com o estabelecer o diálogo e a coope­
outra Igreja ou religião. Esse significado é distorcido pelo fato de que
ração com os agentes de missão das outras igrejas. Em alguns setores
há um a diferença de costum es entre quem faz a experiência e quem
das igrejas, a sociedade é com preendida como um cam po de missão
a interpreta. A consequência é o risco de afirmar a ação missionária
comum. Outros buscam delimitar as fronteiras da ação de cada Igreja.
como oposição ao m undo religioso diferente. E evangelização é, então,
Elementos comuns existem no processo de evangelização em todas as
com preendida com o simples abandono de um m odo de vida e de va­
igrejas. Mas esses elem entos não são ainda suficientes para amenizar
lores próprios para a aquisição de outros, sendo isso considerado con­
as tensões surgidas no confronto da consciência m issionária em cada
versão. Simultaneamente, subestimam-se os valores culturais expressos
Igreja. O que se deve questionar é se é realm ente possível delimitar as
pela m anifestação de fé que extrapola o próprio am biente religioso, o
fronteiras da m issão de um a determ inada Igreja, um a vez que todas
que m ostra que no bojo do conflito religioso m anifesta-se tam bém um elas expressam um a com preensão universal da fé cristã. Mas a univer­
conflito cultural, razão pela qual, na base das divisões entre os cristãos, salidade da fé que implica extrapolar os limites institucionais da missão,
fatores socioculturais se m esclam com os motivos realm ente religiosos. em nada legitima a penetração desrespeitosa por parte de um a Igreja
O que aqui está em risco é o direito à liberdade religiosa, o qual, se nos espaços missionários de outras, visando cooptar seus fiéis. A mis­
form alm ente ninguém questiona, na prática é frequentem ente negado. são não mais pode se m anifestar com o conquista e defesa do espaço
Portanto, na falta de um a suficiente distinção entre religioso e não religioso. Missão não combina com proselitismo.
religioso, evangelização e inculturação, Evangelho e mediações, no en­
contro dos diferentes universos religiosos esses tendem a eliminar-se
reciprocamente. Concretam ente, isso pode ser constatado na motiva­ 27 CESAR, A. W. Protestantismo e imperialismo na América Latina. Petrópolis: Vozes,
1967. A origem dessa tendência é a ideologia do “Destino Manifesto” do protes­
ção inicial das m issões protestantes no Brasil e no continente, que se tantismo norte-americano do século XIX (MENDONÇA, A. G. O celeste porvir...,
ancorava na afirmação de um fracasso católico na evangelização. Por cit., p. 60).

46 47
Urge, portanto, refletir a missão cristã com o responsabilidade co­ num érica entre ministros e fiéis, o que tam bém dificulta o atendim ento
m um das igrejas, o que muito contribuirá para o enriquecim ento das pessoal e a consequente diminuição da participação nas celebrações e
relações ecumênicas entre elas. Aqui o desafio para com preender que adm inistração dos sacramentos.
a pregação do kerygma está além do simples depósito de verdades cris­ Com relação às demais igrejas, a ação evangelizadora m ostra-se
tãs em ambientes considerados descristianizados. Não se trata, antes, mais simples e direta por meio das famílias da comunidade, visita às
de explicitar o conteúdo cristão do Reino que já se encontra nesses pessoas enfermas, lendo a Bíblia e explicando-lhes os princípios funda­
ambientes, desenvolvendo o espírito da liberdade para que o Evange­ m entais da sua fé. Nas igrejas aqui estudadas, o pouco núm ero de fiéis
lho possa ser assimilado e vivido nas formas m ais condizentes com os e a simplicidade das estruturas comunitárias perm item um tratam ento
diferentes contextos? Só assim, com um a evangelização inculturada, mais pessoal dos problemas. Com isso, a estratégia de evangelização
pode-se impedir que aconteça um processo de desnaturalização da vida dessas igrejas contribui para atingir de um m odo direto e simultâneo
religiosa que se vive com naturalidade nesses meios. o indivíduo e seu meio. Essa característica, com as variações ocorri­
das pela institucionalização das comunidades, é comum no processo
1.3.2 As estratégias da missão
de evangelização das igrejas evangélicas e do anglicanismo no Brasil.
Por estratégia da missão com preende-se todo o complexo de ações,
2) As obras sociais - As igrejas preocupam -se tam bém com obras
palavras, ideias, com portam entos e meios que visam à veiculação da
sociais que buscam contribuir para satisfazer as necessidades prim á­
m ensagem do Evangelho. Ao m esm o tem po que são constatadas es­
rias das pessoas. Na Igreja Católica, os pioneiros foram os jesuítas, so­
tratégias com uns a todas as igrejas, observa-se tam bém um a grande
bretudo na educação. Atualmente, muitos orfanatos, asilos, hospitais e
diferença no m odo com o elas são aplicadas, diferença essa que está na
escolas encontram -se na direção de congregações religiosas católicas.
base de muitos conflitos intereclesiais.
Bispos e padres, m esm o quando não assum em diretam ente a respon­
1) A abordagem direta - O processo de evangelização nas igrejas
sabilidade por tais obras, estão, de qualquer modo, orientando a sua
desperta a sensibilidade do agente de pastoral para o conhecim ento e
criação e m anutenção. Essa preocupação verifica-se tam bém nas ou­
o atendim ento pessoal dos fiéis. Não raras vezes ele percorre as famí­
tras igrejas, desde os seus primeiros tempos, com o m ostra a ação do
lias da sua comunidade. O padre ou pastor é conhecido por todos nas
m etodista Hugh Clarence Tucker (1857-1956), construtor do primeiro
redondezas e, sobretudo no meio rural, tam bém conhece a todos. Esse
centro social protestante organizado do Brasil.28
fato contribui positivam ente para um a abordagem direta dos problemas
Dois elem entos podem ser considerados comuns nas obras sociais
espirituais dos seus eclesianos.
das diferentes igrejas: a) a preocupação pelo bem -estar da popula­
É principalmente nas comunidades evangélicas e anglicanas que
ção, inicialmente com caráter assistencialista e atualm ente am parada
isso é passível de verificação. Nas com unidades católicas a ação pasto­
por um a nova com preensão da fé com o comprom isso tam bém com a
ral é mais complexa e estruturada do que nas dem ais igrejas, a pastoral
vida justa na sociedade;29 b) as obras sociais não são vistas de modo
itinerante está sendo sem pre mais abandonada. Na paróquia, o padre
dedica-se à administração dos sacram entos e à organização estrutural
28 Trata-se do Hospital dos Estrangeiros, depois Hospital Evangélico, construído
da comunidade, de m odo que o atendim ento pastoral passou a prio­ quando Tucker, trabalhando no Rio de Janeiro, fez contatos com o dr. Oswaldo
rizar o coletivo. Consequentem ente, muitos ministros distanciaram-se Cruz para unirem os esforços contra a febre amarela (REILY, D. A. História Docu­
mental..., cit., p. 316, nota n. 168).
dos fiéis, abandonando as práticas de contato direto com as pessoas
29 Exemplo disso é o “Credo Social Metodista” e as “pastorais sociais” da Igreja
no processo de evangelização. Esse fato tem como raiz a desproporção Católica.

48 49
independente da evangelização e só têm sentido na m edida em que cacionais, no conjunto das obras sociais, com o espaço de cooperação
constituem um a expressão de ação pastoral. Nesse aspecto as igrejas entre as igrejas, até m esm o porque alunos e professores já não fazem
discutem. Por um lado, não poucas vezes se constata a m escla da ação distinção confessional na hora de optar por um a escola ou universidade.
caritativa com o interesse pela proliferação do núm ero de fiéis. Isso di­
ficulta as relações intereclesiais. Felizmente, por outro lado, verifica-se
1.3.3 A formação de comunidades
tam bém que atualm ente a cooperação em muitas iniciativas de ação A ação evangelizadora das igrejas visa à form ação de comunida­
social é um fator que impulsiona a aproximação de cristãos pertencen­ des pelo ensino, a vivência e a celebração da fé. As igrejas diferem no
tes às diferentes igrejas. m odo de conceber a organização da vida comunitária, m as não no seu
3) A educação - Das obras sociais, a educação m erece destaque. objetivo. Todas se em penham por fazer da comunidade um verdadeiro
Por muito tempo, a educação foi considerada com o um im portante ele­ espaço da vivência do Evangelho, expressando-o por tradições e cos­
m ento de divulgação das convicções de fé. Enquanto no meio rural a tum es que sustentam o núcleo comunitário da Igreja local. Formam-se
evangelização se endereçava sobretudo às pessoas simples e pobres, na grupos para o estudo bíblico, a reza do terço e práticas devocionais, que
cidade ela buscava atingir tam bém as classes m édias e a elite. E para aos poucos assum em várias funções, com o espaço de leitura e com en­
isso eram im portantes as escolas e universidades. Nos primeiros tem ­ tário da Bíblia, a realização do culto ou da missa, o ensino da fé pelas
pos, o conflito se dava em term os de antiliberalismo (católico romano) escolas dominicais e a catequese, a administração dos sacram entos, o
e liberalismo (protestante). As escolas protestantes apresentavam-se treinam ento de lideranças, elem entos da vida cotidiana de congregação
como inovadoras, dialogando com a cultura da época e usando m éto­ local protestante ou paróquia católica.
dos educacionais m odernos.30 Assim, a grande disposição das igrejas A form ação das com unidades representa a instalação e expansão
em investir na educação assum e um conflito ideológico, tornando a de um a denom inação cristã. Os evangélicos e os anglicanos dirigiram-
educação um instrum ento indispensável para difundir costum es católi­ -se, inicialmente, para onde não havia a presença do padre católico e,
cos católica e /o u protestantes. Visa-se form ar um a elite que, se não fos­ sobretudo, para locais com carência de doutrinação religiosa substan­
se confessional, pelo m enos recebia influência dos valores e princípios cial. Suas com unidades eram, por isso, consideradas “um a alternativa
da Igreja que m antinha a instituição educacional. Por isso era im portan­ ao catolicism o”.31 No passado, situavam-se principalm ente nas áreas
te evangelizar as famílias que tinham seus filhos nessas instituições, o rurais de colonização do café (protestantism o missionário) e nas colô­
que favorecia tam bém a escolha dos candidatos ao pastorado. nias agrícolas (protestantismo de imigração). Nas cidades, a form ação
Atualmente, verifica-se, de um lado, que as igrejas perderam muito das comunidades seguiu as transform ações da sociedade brasileira com
da sua força evangelizadora através das escolas e universidades, m an­ a migração cam po/cidade.
tendo-as, fundam entalmente, com o instituições civis. De outro lado, di­ As diferenças entre as igrejas na form ação das com unidades m ani­
m inuem sensivelm ente as contendas notórias nas estratégias de evan­ festam-se basicam ente em três elementos:
gelização com o a educação. É possível então repensar os projetos edu- 1) A relação laicidade-hierarquia - As comunidades protestantes
têm caráter mais leigo do que as com unidades católicas. Irm anados
30 D. A. Reily cita a ação da Associação Escolar Britânica e Estrangeira, fundada na fé procedente do único Batismo, acreditam que onde estiverem al-
por Joseph Lancaster (1778-1838), que contribuiu para a oficialização no Brasil,
em 1827, do método de “ensino mútuo”, um sistema de educação popular que
consistia na instrução de monitores que, por sua vez, ensinavam outras pessoas 31 PRIEN, H. J. La Historia dei Cristianismo en América Latina. Salamanca: Sígueme,
(História documental..., cit., p. 71). 1985, p. 406.

50 51
guns, ou m esm o um a só família, ali está a Igreja do Senhor. Principal­ sas comunidades (tratando-se do protestantism o histórico) possibilita
m ente nos primeiros tempos, o protestantism o era quase totalm ente m aior simplificação das estruturas, em contraste com a complexidade
dirigido por leigos que substituíam os pastores até m esm o em atribui­ estrutural das com unidades católicas; c) a mobilidade das estruturas
ções exclusivas destes últimos: “Os próprios cristãos organizam suas comunitárias no protestantism o e no anglicanismo, em contraste com
comunidades, sem muitas formalidades, às vezes em forma de cultos certa rigidez/im obilismo estrutural nas com unidades católicas.
domésticos, depois construindo igrejas e capelas, elaborando seus es­ Essas diferenças expressam mais do que simples opções na orga­
tatutos, elegendo as diretorias”.32 Daqui o caráter em inentem ente leigo nização prática das comunidades. São concepções teológicas e pasto­
das com unidades protestantes, que muitas vezes surgem e se propagam rais que por elas se manifestam, não poucas vezes, em oposição um as
independentem ente da presença do agente oficial da religião. Agentes
às outras. Exemplo disso é a doutrina católica da hierarquia, que não
de missão que possuem o ministério ordenado vão na esteira, oficiali­
encontra sintonia na concepção funcional das instituições eclesiásticas
zando e institucionalizando o trabalho anterior. Esta realidade funda­
no protestantismo. Explica-se assim por que nestas igrejas suas com u­
m enta-se na teologia do sacerdócio comum dos fiéis, fundam ental para
nidades possuem um caráter mais secular do que no catolicismo, de
as relações entre laicato e hierarquia eclesiástica no protestantismo:
m odo que as m udanças circunstanciais da Igreja ou da sociedade po­
“Não há diferença de qualidade entre a função diretiva e os demais
dem influenciar mais diretam ente nas m udanças internas da comunida­
‘ministérios específicos’, com o tam pouco há em relação ao sacerdócio
de cristã. Além disso, a criação e a m udança das estruturas eclesiais no
geral. Lideranças leigas e obreiros terão que se aperfeiçoar no exercício
protestantism o dependem apenas das decisões dos participantes dos
‘qualitativo’ de direção, de poder com o serviço à com unidade”.33
Sínodos, Presbitérios e Concílios das igrejas em cada país, o que nem
As com unidades católicas têm outras características. M esmo que
sem pre é possível às comunidades católicas. A simplificação e mobili­
sem pre tenham existido as lideranças leigas, com o no catolicismo po­
dade estrutural das com unidades protestantes têm com o pano de fundo
pular e nas Comunidades Eclesiais de Base, as com unidades depen­
teológico a concepção da presença de Deus não ligado a um espaço (o
dem, na sua estrutura eclesial e pastoral, do ministério ordenado. Essa
que diferencia do tem plo e sacrário católicos), e isso favorece a expan­
diferença indica divergências eclesiológicas com o desafios para as rela­
são das comunidades, sendo o nom adismo protestante mais expressivo
ções interconfessionais.
do que o católico, o que lhe possibilita m aior flexibilidade do que as
2) As estruturas das comunidades - Todas as igrejas têm estruturas
estruturas das comunidades católicas.
que garantem a sua estabilidade. Mas existem diferenças no m odo de
Assim, o diálogo ecumênico precisa encontrar respostas para as
concebê-las e na sua organização, o que se explica por três principais
questões oriundas sobre a form a de se conceber e estruturar a com u­
fatores: a) a prioridade dada às Escrituras nas com unidades evangélicas
e anglicanas leva-as a considerar as estruturas a partir do ponto de vista nidade cristã, de m odo que seja possível um consenso sobre quais são
das circunstâncias e da eficiência;34 b) o pequeno núm ero de fiéis nes­ as estruturas e instituições essenciais para a concretização da Igreja de
Jesus Cristo na história.
32 FISCHER, J. Comunidades, Sínodos, Igreja Nacional: o povo evangélico de 1824
a 1986. In: MULLER, T. L. (Ed.). Simpósio de História da Igreja. São Leopoldo: 3) Tensões na relação comunidade/instituição - Do que foi dito aci­
Sinodal, 1986, p. 13. ma, percebem -se elem entos de diferenciação nas com unidades dos
33 IECLB. Às portas do Novo Milênio, p. 22; idem. Manual para Presbíteros e Presbíte­
fiéis das várias igrejas. Mas há tam bém fatores de aproximação. Dentre
ras. São Leopoldo: Sinodal, 1998, v. 12.
34 CONSELHO DIRETOR DA IECLB. A função das estruturas na Igreja. In: Boletim esses, está o fato de que as comunidades de todas as tradições ecle­
Informativo, v. 51, p. 35-36, 1977. siais tendem sempre a se institucionalizar e a se tornar dependentes

52 53
do reconhecim ento oficial, o que gera certa tensão entre comunidade e 1.3.4 0 proselitismo
instituição. Tanto a com unidade dos fiéis como a instituição afirmam os
O proselitismo é um dos elem entos mais conflitivos do pluralismo
m esm os símbolos da fé, em bora a relação entre essas afirmações não
eclesial, expressando-se basicam ente pelo modo agressivo como agen­
seja pacífica. A tensão manifesta-se na herm enêutica dos símbolos da
tes de pastoral de um a Igreja relacionam-se com fiéis de outra Igreja. O
fé cristã: nem sem pre a comunidade dos fiéis os interpreta no mesmo
objetivo é a cooptação de fiéis para a própria tradição eclesial, utilizan­
horizonte de significado proposto pela hierarquia instituída. Esta tende
do para isso estratégias variadas, que vão desde a abordagem direta até
a com preender a significação dos símbolos da fé com base na tradição.
ações camufladas por interesses alheios à missão. Visa à “conversão”
Nas comunidades, pressupõe-se que a com preensão da fé se encontra
dos cristãos de outra tradição eclesial, o que acontece por um processo
na vivência, segundo as circunstâncias do presente. A tensão aum en­
de substituição dos princípios de fé e procedim entos religiosos, con­
ta quando representantes da instituição fortalecem dogm aticam ente a
cluindo com a sua passagem para a Igreja do evangelizador. Aqui o
sua posição e as com unidades expressam dificuldades para a recepção
proselitismo fundam enta-se num a consciência missionária que se tota­
das orientações das lideranças eclesiásticas. Aqui vem os a tensão entre
liza num sistema próprio, julgando-se autossuficiente na interpretação e
“dogmatismo e tolerância”.35 É im portante que do lado das lideranças
transm issão das verdades do Evangelho e fechando-se ao diálogo com
instituídas exista a incorporação das novas possibilidades da vivência
o m undo exterior. Busca dar convicções sólidas para a vocação mis­
da fé propostas pelas experiências das comunidades. E que estas per­
sionária, fazendo com que convicção e fanatismo se misturem. Conse­
cebam que acatar as orientações institucionais enriquece o horizonte
quentem ente, a ação missionária se fundam enta na convicção de que
herm enêutico da fé e fortalece a comunhão.
existem erros na fé de outra Igreja, o que faz com que ela não se possa
A relação entre comunidade e instituição é tensa em todas as igre­ apresentar como legítima via de salvação para seus fiéis.
jas, de m odo que esse desafio pode ser considerado comum a todas. À
Isso é constatável em algumas tradições eclesiais, sobretudo no
primeira vista, poder-se-ia pensar que evangélicos e anglicanos, por te­
período da instalação do protestantism o missionário no Brasil, de modo
rem m aior flexibilidade estrutural, poderiam ter tam bém m aior possibi­
que as peculiaridades de algumas comunidades protestantes, suas dife­
lidade de am enizar a tensão entre esses dois poios da vida eclesial. Mas
renças em relação às origens, o seu m étodo de evangelização, têm a ver
na verdade não é isso o que acontece. Constata-se que a multiplicação
com a m aneira como elas enfrentaram e contornaram o catolicismo,
das denom inações protestantes tem origem exatam ente nos conflitos
por vezes, através da ação proselitista.36 Com um a conotação em inen­
entre com unidade e instituição. Por isso, na relação entre esses elem en­
tem ente espiritual, algumas igrejas fazem da polêm ica com a doutrina
tos, não se deve colocar em confronto as diferentes igrejas, com o se
de outra igreja um a m arca da sua configuração institucional, com um a
um a fosse m odelo de comunidade e a outra se afirmasse apenas na
m entalidade e espírito polêmicos.
instituição. M esmo as tradições eclesiais de estruturas mais simples se
Felizmente, o caráter proselitista vai se atenuando com o tem po e
institucionalizaram. O que se espera é que o am adurecim ento do diálo­
se atualm ente ainda não desapareceu de todo, já não é mais um elem en­
go ecumênico ajude as igrejas a enfrentarem juntas o desafio de formar
to essencial da ação pastoral, pelo m enos nas igrejas participantes do
comunidades que saibam viver o Evangelho num verdadeiro espírito
CONIC. Diversos fatores contribuíram para isso, como: as motivações
fraterno, dando serenidade às relações entre com unidade e instituição.
atuais da evangelização não são as m esm as que as igrejas possuíam
no século XIX; a renovação do catolicismo no Concílio Vaticano II; as

35 ALVES, R. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: Paulus, 1982, p. 47 36 MENDONÇA, A. G. O celeste porvir, p. 245.

54 55
m udanças ocorridas no interior das igrejas protestantes lhes possibili­ O intenso crescimento, a efem eridade e a itinerância dos grupos
taram m aior estabilidade estrutural e doutrinal, com relativização da pentecostais dificultam um levantam ento preciso de todas as deno­
preocupação com o núm ero de fiéis; a abertura para as questões sociais m inações pentecostais. Estudiosos as distinguem em três categorias:
exercitou as igrejas no diálogo tanto com m odos diferentes de conceber o pentecostalismo clássico, pelo fato de estarem diretam ente ligadas às
a sociedade, quanto com outras igrejas que tam bém estão sensíveis às características do “movim ento de santidade” norte-am ericano, repre­
situações sociais de dificuldade pelas quais passa o povo brasileiro; o sentado sobretudo pela Congregação Cristã do Brasil (1909), e a As­
ideal ecumênico, assumido por essas igrejas. sembleia de Deus (1911), entre outros; movimentos de cura divina, um
Por esses fatores, o proselitismo atualm ente encontra expressão tipo de “abrasileiram ento” do pentecostalism o (por exemplo, a Igreja
basicam ente em segm entos do protestantism o fúndam entalista e pen- do Evangelho Quadrangular - 1954, e a Igreja Evangélica Pentecostal
tecostal. Aqui, ele assum e as características do protestantism o missio­ o Brasil para Cristo - 1955); o neopentecostalismo, enquanto os dois pri­
nário do século XIX, obrigando tam bém o protestantism o histórico a meiros grupos nascem no interior do protestantism o histórico, este é já
assumir posturas de autodefesa. Certam ente as igrejas inseridas no um a dissidência interna nas denom inações pentecostais. Não apresenta
m ovim ento ecumênico esforçam-se por eliminar de vez toda tendência as m esm as características das precedentes, seguindo um a linha de cura
proselitista. Isso abre novos horizontes para as relações interconfessio- divina com forte insistência no exorcismo e na teologia da prosperida­
nais, num espírito de convivência que evita polêm icas históricas e une de, característica expressiva, entre outros, na Igreja Universal do Reino
as igrejas em projetos de missão que possibilitam o testem unho comum de Deus (1980) e Igreja do Poder Mundial de Deus (1998).
do Evangelho. Não existe ainda pleno consenso sobre os elem entos que caracteri­
zam o pentecostalism o brasileiro. Mas pode-se verificar traços comuns
2 Outros desafios ecumênicos em três principais horizontes:
1) Pastoral - Prioriza-se o relacionam ento pessoal prim ado pela
2.1 0 pentecostalismo
fraternidade, amizade e apoio em situações existenciais difíceis. As
M esmo que o pentecostalism o não seja objeto direto desta re­ celebrações são fortem ente emotivas, com um a pregação centrada na
flexão sobre o ecumenism o no Brasil, faz-se m ister um a abordagem Bíblia e um a herm enêutica acentuadam ente fúndamentalista. O pente­
desse fenômeno, em função de sua influência significativa no universo costalismo clássico e os movim entos de cura divina concentram a sua
religioso brasileiro e de suas relações com as igrejas aqui estudadas. pregação na conversão e no rigorismo ético, enquanto o neopentecos­
Historicamente, o pentecostalism o tem suas origens no movim ento de talismo destaca-se pela prática de curas através de exorcismos e pelo
santidade iniciado no m etodism o norte-am ericano do século XIX, que emprego dos meios de comunicação. A dem asiada atenção ao dinheiro
priorizava o falar em línguas como um a espécie de “terceira bênção” em troca de benefícios espirituais ou físicos é um a m arca comum do
além da santificação, isto é, o Batismo no Espírito Santo. Em relação às último grupo. A prática do proselitismo é um a característica expressiva
confissões históricas, ele é considerado um m ovim ento de separação da m aioria das atuais denom inações pentecostais, o que se expressa
do cristianismo tradicional.37 nos cultos, no uso da mídia, na abordagem direta às pessoas em praça
pública, ou pelas visitas às famílias, aos enfermos, aos prisioneiros, com
37 Por essa tendência à separação, os pentecostais são também designados “sei­ a distribuição de m aterial religioso e endereços dos lugares de culto.
tas”. Numa tentativa de favorecer o diálogo, a Igreja Católica busca substituir o
termo “seita” por “novos movimentos religiosos” (CNBB. Comunicado Mensal, n. 2) Teológico - Nas comunidades pentecostais em geral existe um a
386, p. 46, 1985). relativização do valor dado pelas igrejas históricas a um corpo orgâni-

56 57
co e sistemático de doutrinas; sua grande m aioria possui um conjunto ritos, práticas éticas, “encontram -se sem ligação com as instituições e
simples e flexível de princípios da fé. O centro é a fé no Cristo salvador. sem raiz em grupos praticantes. Não mais expressam, portanto, a vida
Essa fé que se manifesta, basicamente: na crença da proximidade do das comunidades de fé. São blocos errantes de sentido, desenraizados
retorno de Cristo; na realização das prom essas contidas nas Escrituras, e à m ercê do indivíduo”.39O fervor religioso destes atrai m em bros das
como um a vida próspera e feliz; nas curas que acontecem através da igrejas tradicionais e os conquista para outras filiações. A ação prose-
imposição das mãos, ou da unção com óleos bentos; na celebração da litista se configura como um a verdadeira batalha espiritual, na qual as
Ceia com o recordação da Ceia de Cristo com os apóstolos. O Espírito arm as de conquista são os bens oferecidos, não sem um preço econô­
Santo é presente em cada indivíduo e atua, sobretudo, nos cultos. Exis­ mico e exigências a serem cumpridas rigorosamente. Forma um m erca­
te forte separação entre o m undo do presente e o m undo do futuro, do religioso em busca de clientes no espírito liberal, criando um clima
que é esperado com ânsia, como superação do presente. A salvação é de concorrência que intensifica conflitos supostam ente ultrapassados
apenas da alm a e se realiza plenam ente no outro mundo. Existe ainda no m undo cristão. Não poucos vivem num a contínua m igração entre as
um considerável vazio eclesiológico, devido ao fato de que as denom i­ diferentes congregações pentecostais, o que provoca o relativismo con­
nações visam mais ao atendim ento do indivíduo do que à formação de fessional e até m esm o o mais com pleto indiferentismo. Desse modo,
comunidades. Em síntese, a m arca principal está no fundamentalismo, as já frágeis relações entre as igrejas históricas se desestabilizam ainda
no cristomonismo, no pneum atocentrism o e no milenarismo.38 mais, em prejuízo da fraternidade eclesial e da credibilidade do teste­
3) Sociológico - O pentecostalism o é expressão do protestantism o m unho comum da fé.
popular, contando atualm ente em torno de 25 milhões de adeptos, o Diante disso, as igrejas integrantes do CONIC em anam orientações
que perfaz cerca de 75% dos evangélicos no Brasil, com um a taxa de para o com portam ento de seus fiéis e m inistros/as, nas quais podem
crescim ento estim ada em 14% ao ano em todas as cam adas sociais. O ser observados elem entos comuns, com o a rejeição do proselitismo,
fato de ter, inicialmente, atingido principalmente as cam adas sociais a condenação do uso do sentim ento religioso das pessoas, do abuso
m ais em pobrecidas do país o caracterizou, por um tempo, como “a re­ dos símbolos cristãos tradicionais, da confusão causada entre religião
ligião dos pobres”. As denom inações pentecostais penetraram hoje em e econom ia.40 Essa sintonia perm ite constatar que o pentecostalismo,
todos os extratos sociais, sobretudo onde se expressam propostas so­ na form a como se m anifesta sobretudo nos grupos de caráter neopen-
ciais conservadoras em relação à moral e à política. tecostal, é considerado um desafio às igrejas integradas no movim en­
Por esses fatores, o pentecostalism o apresenta-se hoje como um to ecumênico no Brasil. Por isso, o CONIC tem procurado aproximar
dos maiores desafios para as relações ecum ênicas no Brasil. As igrejas seus com ponentes num a com preensão e orientação acerca de certas
tradicionais sentem -se am eaçadas, perdendo m em bros e espaços para expressões da fé pentecostal de m odo que, ao m esm o tem po que o pen­
os m ovim entos religiosos de cunho pentecostal, que pregam teologias tecostalism o é visto como um desafio à m ensagem proclamada, pode
do sucesso na vida, da felicidade e da prosperidade econômica. As ser tam bém um fator de aproxim ação num a prática pastoral comum.
confissões históricas têm suas tradições e estruturas questionadas pela
novidade e flexibilidade da organização dos grupos pentecostais. Os 39 MIRANDA, M. F. de. Um catolicismo desafiado. São Paulo: Paulus, 1996, p. 93.
símbolos cristãos tradicionais, como as Escrituras Sagradas, doutrinas, 40 CNBB. A Igreja e os novos grupos religiosos. São Paulo: Paulus, 1993, p. 20-23.
Estudos da CNBB, 68; CONSELHO DIRETOR DA IECLB. Missão e proselitismo:
38 GALINDO, F. El Protestantismo Fundamentalista: una experiencia ambigua para uma palavra orientadora da IECLB. In: Boletim Informativo, n. 136, 1994. Anexo
América Latina. Navarra: Editorial Verbo Divino, 1992, p. 164; WOLFF, E. O Es­ 1; IGREJA METODISTA. Relatório do Conselho Episcopal ao XVI Concílio Ge­
pírito Santo e as seitas. In: Encontros teológicos, n. 18, p. 36-41, 1994. ral. 1997, item 2.16.

58 59
Por outro lado, o m ovim ento pentecostal não pode ser visto como Constata-se que no Brasil prioriza-se a análise sociológica do pen­
um problem a a ser resolvido. Ele precisa ser com preendido com o um a tecostalismo. Teologicamente, a leitura da fé pentecostal é fragm entá­
expressão possível da fé cristã e da Igreja. A pentecostalidade é um ele­ ria, o que dificulta a orientação do diálogo. Das três categorias pen­
m ento característico da Igreja desde as suas origens apostólicas (At 2) tecostais descritas, atualm ente é o neopentecostalism o que apresenta
e, de alguma forma, precisa se m anifestar nas instituições, teologias, es- mais desafios para o diálogo ecumênico no Brasil. Esse fato parece ser
piritualidades, missão e carismas das tradições eclesiais. As m anifesta­ agravado pela criação da Aliança Evangélica Brasileira (2010) - con-
ções são diferentes em cada tradição, m as todas precisam entender que tinuadora da Associação Evangélica Brasileira, AEvB - , reunindo um
o ser da Igreja tem natureza pentecostal. A questão está em como viver significativo núm ero de denom inações de natureza pentecostal com
esse elem ento da vida cristã e eclesial sem adotar práticas caracterís­ posturas antiecumênicas. Por tudo isso, as iniciativas de diálogo com
ticas de setores do m ovim ento pentecostal atual que não favorecem o o pentecostalism o são ainda tímidas, e as dificuldades intensificam-se
diálogo na fé, com o o fundamentalismo, o proselitism o e o exclusivis­ pelo fato de que poucas denom inações pentecostais estão dispostas a
mo. A chave é entender que, tal como o Espírito Santo é criador de re­ dialogar, sobretudo com a Igreja católica.
lação, da diferença e da comunhão, o m ovim ento ecumênico se fortale­
cerá quando nele se integrarem tam bém as com unidades pentecostais,
2.2 A diversidade religiosa
que muito têm a contribuir para a com preensão da unidade da Igreja. O Brasil atual apresenta-se com o um a sociedade religiosamente
plural. Junto às confissões cristãs históricas e ao pentecostalism o es­
Para poder dialogar com o m ovimento pentecostal é preciso com ­
tão, de um lado, as expressões de fé mais antigas, como as religiões
preender as suas causas, as quais se apresentam , basicamente, de duas
primitivas dos povos indígenas e africanos, o judaísmo, o islamismo, o
naturezas: a) internas às igrejas: o espaço não atingido pela ação pastoral
budism o e outras. De outro lado, estão os m ovim entos religiosos m o­
destas é ocupado pelos pentecostais. Trata-se tanto do espaço geográ­
dernos, como o espiritismo, a Nova Era e outras de matriz oriental,
fico quanto espiritual, ou seja, as necessidades espirituais deixadas sem
como a Seicho-no-Iê. Nesse contexto, o cristianismo convive com di­
respostas; b) externas às igrejas: a situação sociocultural da sociedade,
versas cosmovisões sagradas, num a multiplicidade de orientações de
como o empobrecim ento, que marginaliza as pessoas, as quais encon­
sentido, muitas vezes concorrentes entre si, onde “Deus”, “experiência
tram um a form a de sociabilidade nos grupos pentecostais; a crise cul­
religiosa”, “m ística”, “salvação”, significam experiências e conteúdos
tural, o vazio espiritual e o relativismo religioso são tam bém elem entos
que estão na raiz do pentecostalism o, por conduzirem à busca de novas bem diversos.
experiências espirituais.41 São, sobretudo, as expressões religiosas m odernas as que mais flo­
rescem no país, fato esse que parece estar intrinsecam ente vinculado
41 Entre os anos 1986 e 1987, o CON1C encomendou ao Instituto de Estudos da com o horizonte cultural da sociedade atual. Algumas características
Religião - 1SER, um estudo sobre a situação religiosa no Brasil atual. Os traba­
desse horizonte favorecem o emergir de novos m ovim entos religiosos,
lhos foram publicados na série Sinais dos Tempos, sob a edição de LANDIM,
L. Igrejas e seitas no Brasil, idem. Tradições religiosas no Brasil. Petrópolis: ISER, como: 1) a crise da razão e do conhecim ento objetivo, com o perigo do
1989; idem. Diversidade religiosa no Brasil. Petrópolis: ISER, 1990. Além disso, o niilismo metafísico e a consequente fragilidade e instabilidade dos cos­
CONIC promoveu seminários sobre o pentecostalismo, com o “Saúde e salva­
ção”, realizado entre os dias 14 e 16 de agosto de 1992. Em Notícias do CONIC,
tumes. Em contrapartida, valoriza-se o simbólico, a experiência, a intui­
n. 14, p. 10,1992; Pentecostalismo no Brasil: desafios e perspectivas ecumênicas. ção, a mística, a em oção religiosa; 2) o individualismo, que produz um a
Noticias do CONIC, n. 20, p. 20, 1995; Inculturação e sincretismo. Notícias do
CONIC, n. 19, p. 4, 1995. Na relação católicos/pentecostais de nível internacio­ do CPPUC, Evangelização, proselitismo e testemunho comum. São Paulo: Paulinas,
nal, concluiu-se a quarta fase do diálogo, iniciado em 1972, com o documento 1999.

60 61
releitura individualista e sincretista das tradições religiosas, favorecen­ Desse modo, parecem ser as razões sociológicas as que apresen­
do para que a fé seja relida na perspectiva da subjetividade e da afetivi- tam , até o momento, explicações mais plausíveis do m osaico religioso
dade, resultando, assim, num a “atom ização dos sistem as religiosos”.42 brasileiro, faltando ainda leituras teológicas apuradas desse fenômeno.
Constata-se um a separação entre o ato pessoal de crer e o conteúdo da Além das causas já apresentadas, pode-se considerar ainda a mobilida­
crença, pois nem todo “crer” está voltado para um a tradição religiosa; de da sociedade, o intercâm bio cultural, o em pobrecim ento e o desen-
3) a cultura fragmentada, que provoca o fim das cosmovisões sagradas. raizam ento em razão do processo migratório, de m odo que a prolifera­
Em contrapartida, o caráter sincrético do novo universo religioso ção dos credos religiosos não deixa de ser sintom a de um a profunda
apresenta um a visão orgânica da realidade, um encantam ento da natu­ crise hum ana e social, em que qualquer oferta de salvação, por mais
reza e a superação dos dualismos como corpo e espírito, aquém e além. problem ática que seja, achará sua clientela. Unido a fatores culturais, o
Em alguns estudiosos, observa-se a tendência a ater-se nos elem en­ pluralismo religioso aparece como um despertar de culturas reprimidas
tos com uns das diversas religiões, nivelando suas expressões e dando do passado, como as dos povos indígenas e affodescendentes.
por certo que indiquem a m esm a realidade. A religião passou a ser um As igrejas envolvidas no movim ento ecumênico no Brasil confron-
“objeto” que pode ser analisado e interpretado nas mais variadas pers­ tam -se com essa realidade e estudam o pluralismo religioso brasileiro
pectivas, num a espécie de hom ogeneização das doutrinas e práticas re­ abrindo caminhos de diálogo. Em sua XV Assembleia Ordinária realiza­
ligiosas, um “vale-tudo sem ântico que foge ao controle institucional”.43 da nos dias 08 a 10 de m arço de 2013, o CONIC redigiu um docum ento
no qual as igrejas-membro se com prom eteram a fortalecer o diálogo in­
42 MIRANDA, M. F de. Um catolicismo desafiado, p. 93.
ter-religioso no Brasil.44 O tem a apresenta um a complexidade peculiar
43 Ibidem, p. 94. O magistério da Igreja Católica Romana tem se posicionado, re­
centemente, contra essa tendência (CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA por três principais razões: a) pelo fato de os teólogos não terem ainda
FE. Dominus iesus dichiarazione circa 1’unicità e 1’universalità salvifica di Gesü encontrado sintonia quanto aos critérios epistemológicos da leitura do
Cristo e delia Chiesa. Roma: Libreria Editrice Vaticana, 2000). Esta Declaração
teme que tal atitude, quando encontrada nos cristãos católicos romanos, con­
pluralismo religioso; b) pelo fato de a teologia da religião desenvolvida
duza a um indiferentismo e relativismo da fé cristã no confronto com as outras no Brasil seguir os princípios do diálogo realizado em outros continen­
religiões (n. 4). Por isso, adverte para a necessidade de afirmar a “unicidade tes, onde a presença das religiões asiáticas e orientais é mais expressiva
e universalidade salvifica de Jesus Cristo e da Igreja”. Embora as afirmações
doutrinais da Declaração pareçam ser apenas uma retomada de afirmações pre­ do que aqui. Assim, os teólogos brasileiros não encontraram ainda o
cedentes do magistério católico romano, o m odo com o reinterpreta algumas m odo de incorporar na reflexão teológica os elem entos que caracte­
afirmações do Concílio Vaticano II (ex. on . 16, ao afirmar que fora das estruturas
rizam as religiões dos povos indígenas e affodescendentes com o seus
visíveis da Igreja Católica Romana existem somente “elementos de Igreja”) e a
sua linguagem ao tratar das outras igrejas e religiões podem tender a uma po­ interlocutores mais diretos45; c) pelo fato de nessas expressões religio­
sição de fechamento do diálogo ecumênico e inter-religioso na Igreja Católica. sas o diálogo exigir um m étodo diferente daquele que é aplicado com o
As reações a esse documento assumem uma posição crítica, seja da parte de
fiéis católicos romanos, seja da parte de membros das outras igrejas e religiões.
A título de exemplo: Carta da secretária-geral da IPU, Elinete V. Paes, para o
secretário executivo do CONIC, datada de Vitória 0 6 /0 9 /2 0 0 0 . Dossiê Dominus Igreja Católica. Dossiê Dominus Iesus, n. 39. O “Dossiê” aqui citado é uma coleção
Iesus, n. 5; Declaração do Colégio Episcopal da Igreja Metodista sobre recentes de documentos fornecidos por MILESI, R. Dossiê Dominus Iesus. reações, posicio­
documentos publicados pelo Vaticano, Rio de Janeiro, 0 6 /0 9 /2 0 0 0 . Dossiê Do­ namentos, imprensa. Brasília, 2000. Arquivados na Secretaria Geral da CNBB,
minus Iesus, n. 4; Pronunciamento da Diretoria do CONIC referente à Declaração com data de 2 6 /0 9 /2 0 0 0 , SG n. 0740/00.
Dominus Iesus, 0 5 /0 9 /2 0 0 0 . Dossiê Dominus Iesus, n. 3; Dominus Iesus. declaração 44 CONIC. Mensagem da XV Assembleia. Disponível em: <https://www.conic.org.
do Conselho Latino-Americano de Igrejas - CLAI. Dossiê Dominus Iesus, n. 8; Pro­ br/portal/files/mensagem_final_assembl_xv.pdf>.
nunciamento de d. Ivo Lorscheider: Agência de Notícias Estado, 0 7 /0 9 /2 0 0 0 . 45 WOLFF, E. Elementos socioteológicos do diálogo do cristianismo com as reli­
Dossiê Dominus Iesus, n. 38; Nota da CNBB sobre o compromisso ecumênico da giões indígenas no Brasil. In: Encontros Teológicos, n. 31, p. 155-172, 2002.

62 63
pentecostalism o, no qual é possível constatar a existência de elem entos Cristo com o se os cristãos form assem na história da hum anidade um
da fé cristã. bloco paralelo e em oposição às religiões. É im portante que o caminho
Isso tudo faz com que o diálogo assum a diversas direções. Duas ecumênico, realizado na perspectiva cristã, esteja sem pre relacionado
são as principais tendências: alguns defendem a superação do “ecum e­ com o diálogo inter-religioso, como disposição para autêntica parceria,
nismo cristão” por um “m acroecum enism o”. Numa perspectiva teocên- sem nivelação precipitada das diferenças que são peculiares aos cris­
trica, tendem a afirmar que todas as religiões podem conviver harm o­ tãos e aos não cristãos. Isso favorece a abertura de todas as pessoas
niosam ente, de m odo que as diferentes formas de fazer a experiência “àquele suprem o e inefável mistério que envolve nossas existências
de Deus e de explicitá-la não são empecilhos para o reconhecim ento de donde nos originamos e para o qual cam inham os” (NA 1).
um a realidade comum como conteúdo central da fé nas diferentes tra­
2.3 Implicações sociais
dições religiosas. Outros visam salvar o “específico cristão”, buscando
A sociedade é form ada por um a diversidade de povos, raças, cul­
o diálogo com as demais expressões de fé como um m odo de favorecer
turas e classes sociais que dificultam com preendê-la como um todo
o conhecim ento e respeito mútuos, em vista da construção da socie­
único, com conflitos que não poucas vezes desintegram o complexo so­
dade e da defesa da vida. Aqui prevalece o cristocentrismo, aceitando,
cial. Essa realidade influencia tam bém as igrejas e os cristãos, causando
por um lado, a existência de valores autênticos nas religiões não cristãs,
dificuldades para o diálogo ecumênico. Assim, os esforços ecumênicos
m as não reconhecendo nelas um a autonom ia salvífica que coloque em
precisam superar tam bém os desafios oriundos dos conflitos sociais,
risco a afirmação da unicidade e universalidade da salvação em Cristo
que possuem quatro principais dimensões:
(At 4,12; lT m 2,3-5). Do lado protestante, percebe-se m aior dificulda­
1) Conflito político-ideológico - O meio social é cenário de constan­
de para que seus teólogos se abram ao diálogo com as expressões de
tes tensões e conflitos entre diferentes concepções sobre como deve
fé não cristãs, primitivas ou m odernas. O desafio com um às igrejas é,
ser organizado. Esses conflitos acom panham a história dos países la­
por um lado, respeitar a liberdade religiosa, sem negar por princípio o
tino-americanos desde os tem pos da colonização, quando os povos
reconhecim ento da possibilidade de que o Espírito de Cristo possa agir europeus se afirmavam superiores aos indígenas e africanos escravos.
nas vivências religiosas não cristãs. Por outro lado, nem toda expressão Na atualidade, o conflito assum e novas proporções, seja devido às in­
religiosa pode ser legitimada como autêntica expressão de fé em Deus. fluências culturais e políticas oriundas do exterior, seja pela pressão
Discernir os critérios para o reconhecim ento da autenticidade da ex­ das classes sociais mais favorecidas. Isso produz um jogo de forças que
pressão religiosa de um a tradição é um constante desafio para o diálogo acarreta a divisão na sociedade, criando distanciam entos e inimizades
inter-religioso. tam bém entre os cristãos.
O fato é que, para um cristão, o diálogo não pode levar ao relati- 2) Conflito econômico - Os conflitos sociais causam divisões na po­
vismo da sua fé. Há verdades que a partir de Jesus Cristo não podem pulação entre cam adas de favorecidos e desfavorecidos pelas institui­
ser renunciadas e que são constitutivas da unicidade e universalidade ções sociais e econômicas. Trata-se de um fenôm eno mundial, em que
salvífica que Ele propõe. Pelo fato de católicos, ortodoxos, evangélicos os sistemas econômicos concorrem entre si num ritmo desenfreado. No
e anglicanos com ungarem nesse princípio, pode-se com preender a di­ Brasil, o sistema econôm ico procura “adaptar-se” às leis do m ercado
versidade religiosa como um desafio comum às igrejas. Contudo, o plu­ internacional, adotando critérios técnicos de produção das multinacio­
ralismo como um desafio não é um problem a a ser eliminado, m as com ­ nais as quais exigem que o trabalho e os trabalhadores sejam reciclados
preendido e acolhido. Não se deve buscar a unidade visível da Igreja de em função das novas exigências da econom ia globalizante. O resultado

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é o aum ento do desemprego, a queda do poder aquisitivo do salário e o tro segm ento da população viveu tam anha desestruturação psicológica
increm ento da concentração de renda e da riqueza, ao lado do cresci­ e social com o o grupo negro feminino. No Brasil contem porâneo, as
m ento da m assa dos excluídos do m ercado de trabalho e da vida social, mulheres negras form am o m aior contingente da população favelada e
form ando a “população da rua”. As cam adas mais inferiores da popula­ das mal rem uneradas dom ésticas e operárias urbanas ou cam ponesas
ção são as que mais sofrem as consequências negativas da competição [...] Sofrem um a tríplice discriminação: enquanto mulheres, enquanto
desigual, que aum enta a divisão entre classes sociais, m ostrando o ca­ pobres e enquanto negras”.46 As m utações nas condições de trabalho
ráter alarm ante de dominação-subordinação. vêm contribuindo para que elas possam concorrer com os hom ens na
3) Conflito étnico - A sociedade não é isenta de conflitos que sur­ corrida para obter m elhores posições profissionais, m as a divisão do
trabalho só excepcionalm ente dá às mulheres um papel preponderante.
gem tam bém da configuração étnica da população, form ada sobretudo
por índios, negros e brancos. O problem a tem origem na colonização Nessa situação torna-se difícil delinear o problem a de como chegar
do século XVI, quando os europeus se afirmaram como superiores em a plasm ar a unidade do Povo de Deus no interior de um a sociedade di­

relação aos povos autóctones não apenas religiosa, cultural, política e vidida. As igrejas são interpeladas por essa realidade, sobretudo quan­
do se considera que ela tem provocado e provoca o sofrimento injusto
econom icam ente, m as tam bém racialmente. O questionam ento sobre a
e a m orte de m em bros do Povo de Deus. A questão que aparece é: o
hum anidade dos povos indígenas legitimou o uso deles como simples
que essa situação tem a ver com a vida dos cristãos e o Evangelho? Em
instrum entos de trabalho. Mais tarde, o m esm o processo aconteceu
que m edida isso diz respeito ao diálogo ecumênico? O desafio está em
com os africanos que vieram ao Brasil para trabalhar como escravos
construir relações em duas principais direções: no sentido interecle-
nos projetos de colonização. Cerca de 100 milhões de africanos foram
sial e no sentido igrejas-sociedade. As duas direções convergem para
escravizados e m ortos para atender ao sistem a escravocrata das Améri­
um a única realidade da unidade buscada. Aqui, a discussão não é tanto
cas, com base na dúvida teológica quanto à existência da alma dos po­
sobre a necessidade de trabalhar pela unidade, m as sim sobre como in­
vos africanos. Atualmente, a segregação racial aparece de modo mais
corporar a relação com a sociedade no processo da busca da unidade.
camuflado do que no período da colonização. Mas ela é real e aconte­
Consequentem ente, o problem a da unidade dos cristãos na Igreja una e
ce pela aplicação rígida e sistem ática de m edidas discriminatórias. O
única de Jesus Cristo exige enfrentar os desafios oriundos tam bém dos
passado escravista gravou no inconsciente coletivo a falsa convicção
fatores sociais que estão na raiz da divisão cristã. Afinal, “é neste m un­
da inferioridade do negro, criando um preconceito que se manifesta
do dividido ideológica e politicam ente que som os cham ados à unidade
de diferentes formas. Consciente ou inconscientem ente, as tendências
e a testem unhar a seu favor dentro da vida da Igreja”.47
do racismo expandem -se e influenciam o com portam ento de toda a
Foi aqui constatado que os desafios para o ecum enism o apresen-
sociedade.
tam -se em dois principais horizontes: no interior do pluralismo eclesial
4) Conflito de gênero- A divisão social no Brasil se manifesta tam bém e no interior da sociedade, sendo que nesta, além das questões sociais,
na relação entre hom ens e mulheres. Apesar da igualdade formal obtida o diálogo precisa contem plar tam bém as questões oriundas do pluralis­
na legislação, de fato, as mulheres vivem no Brasil as consequências da mo religioso. Tais desafios são de natureza teológica, pastoral e social.
cultura familiar e social m arcada pelo sexismo e patriarcalismo. Além Evidentemente, não é nossa pretensão apresentar a totalidade dos de-
de serem consideradas inferiores aos hom ens pela sua condição sexual,
46 CNBB. Manual da Campanha da Fraternidade 1988. São Paulo: Paulinas, 1988, p. 22.
elas sofrem um a espécie de subclassificação e discriminação pela cor 47 SANTANA, J. de. Ecumenismo e libertação. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 30; CONIC.
e pela classe social. Na história da sociedade brasileira, “nenhum ou­ Campanha da Fraternidade 2000 - Ecumênica. São Paulo: Salesianas, 2000, p. 56-57.

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safios para o diálogo ecumênico local. Mas crem os serem os elem entos
aqui considerados os mais pertinentes. Nos capítulos seguintes, vere­ A história do ecumenismo no Brasil
mos com o tais questões estão sendo trabalhadas pelos participantes do
diálogo, bem com o indicações de possíveis caminhos a serem percor­
ridos para isso.

Introdução
Como visto no primeiro capítulo, o pluralismo confessional é um ele­
m ento constitutivo da configuração do cristianismo no Brasil e também
expressão da divisão existente entre os cristãos. Separadas, as igrejas
correm o risco de apresentarem apenas facetas ou vultos fragmentados
de Cristo, de modo que a existência da diversidade confessional nem
sempre significa expressão legítima da pluralidade dos caminhos salví-
ficos como manifestações das riquezas doadas pelo Espírito para o en­
contro com o Deus de Jesus Cristo. A divisão provoca nos cristãos sérias
dificuldades para o reconhecimento do verdadeiro Cristo no qual devem
crer. O movimento ecumênico sentiu esse desafio desde seu início:

Os missionários das diversas confissões exigiam dos convertidos que parti­


cipassem das celebrações dos seus respectivos grupos religiosos; aí o Evan­
gelho universal se fragmentava: havia um Cristo católico-romano, um Cristo
anglicano, um Cristo presbiteriano, um Cristo metodista, um Cristo luterano
etc. Isso escandalizou [...] Em consequência, surgiu a convicção de que, a
partir das exigências da missão da Igreja [...] a unidade tinha que prevalecer
entre os cristãos.1

A consciência dos obstáculos para a vivência da fé desperta as


confissões cristãs para a superação de toda diversidade que seja sinô­
nimo de divisão, de m odo que as consequências negativas do pluralis­
mo eclesial justificam todo em penho pela restauração da unidade. A
história dos esforços pela unidade é o resultado da percepção sobre
quanto a divisão dos cristãos obstaculiza o testem unho do Evangelho.
Essa experiência de perceber e de indignar-se com a fragm entação da
Igreja de Cristo e do próprio m undo “som ente se pode atribuir ao mo-

1 SANTANA, J. de; BARROS, M. Ecumenismo. CESEP - Curso de Verão ano IV. São
Paulo: Paulus, 1990, p. 100.

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