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O delineamento de pesquisa qualitativa*

Jean-Pierre Des lauriers


Mick.le Vrisit

Em várias disciplinas, o processo da pesquisa científica é nitidamente o mesmo


e os pesquisadores aplicam, no conjunto, os mesmos princípios de ação. No entanto, se
muitos argumentam que quantitativos e qualitativos seguem caminho semelhante, o
debate nem por isso está encerrado entre os pesquisadores: quantitativos e qualitativos
procedem da mesma maneira? Ou, em outras palavras, existe um delineamento de
pesquisa próprio à pesquisa qualitativa?
Quando a pesquisa qualitativa retornou com força, no final dos anos .1960, mas,
principalmente, na metade dos anos 1970, seus partidários pretendiam que ela
apresentasse características particulares; na opinião de seus promotores mais zelosos,
a pesquisa qualitativa recorria a técnicas que a diferenciavam, radicalmente, da
pesquisa quantitativa. Nesse período, era comum opor os bons "qualitativos" aos
menos bons "quantitativos". Entretanto, passado esse período de defesa, após os
pesquisadores qualitativos terem realizado "alguns trabalhos relevantes, pareceu que
o procedimento geral de pesquisa que eles seguiam era sensivelmente o mesmo que
aquele percorrido pelos outros pesquisadores; o pesquisador se propõe uma questão e
colhe informações para responde-la, ele trata• os dados, analisa-os e tenta demonstrar
como eles permitem responder ao seu problema inicial. De fato, num delineamento
de pesquisa qualitativa, encontram-se os elementos comuns a todo projeto de
pesquisa.
Essa nuança não deve permitir pensar que tudo é. do semelhante ao mesmo.
Efetivamente, a pesquisa qualitativa instaurou uma tradição própria, que evolui e
confere uma coloração particular ao seu delineamento; se a lógica de base é
semelhante ern toda pesquisa, o delineamento de pesquisa qualitativa tem aspectos e
um desenvolvimento que o distinguem. É bem verdade que as semelhanças
possibilitam que os pesquisadores qualitativos estabeleçam um diálogo com os outros

* Este capitulo se baseia em um texto de M. Kérisit; La


construction de l'objet de recherche en sciences mtines et la recherche qualitative, Universidade do
Québec em Hull, 1992, 53p. (preparado no âmbito do projeto especial do Conselho Quebequense da
Pesquisa Social, sobre a Pesquisa Qualitativa).
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pesquisadores, e também que as particularidades da pesquisa qualitativa ilustrem
sua contribuição ao desenvolvimento metodológico nas ciências sociais.
Este artigo apresenta as diferentes etapas do processo de pesquisa qualitativa e
fornece ulna visão da totalidade daquilo que um delineamento de pesquisa
qualitativa deve canter. Todavia, é preciso especificar que a própria pesquisa
qualitativa se divide em várias correntes, cada uma tendo uma perspectiva própria,
as quais não serão aqui examinadas, uma vez que se dará prioridade ao
procedimento geral em pesquisa qualitativa, no qual diferentes correntes, sem
dúvida, poderão se reconhecer.
Também nos interessaremos pelos diferentes elementos do delineamento de
pesquisa qualitativa, desde a construção do objeto, passando pela coleta de dados,
até a redação do relatório. No entanto, a lógica da apresentação não é a da ação;
neste CASO, e por necessidade de causa, a apresentação dos diferentes elementos
da pesquisa qualitativa seguira uma ordem linear que nem sempre é a encontrada
na própria prática da pesquisa.

O delineamento de pesquisa qualitativa


Como ocorre frequentemente nas ciências sociais, ninguém se entende quanto
aos termos, a tal ponto que "delineamento:', "design", "plano de pesquisa",
"protocolo de pesquisa", "projeto de pesquisa", e "modelo operatório", acabam
designando a mesma coisa, quase com poucas nuanças. De uma forma geral, esses
termos se referem ao documento no qual o pesquisador apresenta a pesquisa que
ele pretende realizar e o modo corno ele procedera:
O plano de pesquisa consiste na organização das condições de coleta e
análise de dados, de modo a ter-se garantia, ao mesmo tempo, de sua
pertinência em função dos objetivos da pesquisa e da parcimônia dos
meios. O que significa dizer que os planos de pesquisa variam segundo os
objetivos desta mesma pesquisa (SELLTIZ; WR1GHTSMAN; COOK,
1977: 90).

Pode-se dar uma interpretação mais ampla ao termo delineamento de


pesquisa; além do aspecto metodológico, ele pode também compreender o
problema de pesquisa, a problemática que o inspirou, a estratégia de pesquisa e
sua pertinência (CONTANDRIOPOULOS et al., 1990: 15).
Vários fatores influem na escolha e elaboração do delineamento de pesquisa. A
pesquisa pode visar à exploração, à descrição, ou à verificação; ela pode ser realizada
em um meio que se presta à experimentação, ou, ao contrário, em um local que
pesquisador não, pode controlar, O delineamento variara, portanto, não apenas em
função do objetivo da pesquisa, mas também segundo as possibilidades e os limites
nos quais esta se desenvolve. Nesse sentido, podem-se distinguir cinco delineamentos
principais, utilizados nas ciências sociais: o escudo de caso, a comparação multi-

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caso, a experimentação no campo, a experimentação em laboratório e a simulação por
computador (LESSARI; HEBERT; GOYETTE; BOUTIN, 1990, 163).
O delineamento de pesquisa também varia conforme a interação dos dados e da
análise, como o ilustra o esquema seguinte1:
Dados
Quantitativos Qualitativos
Quantitativa I II
Análise
Qualitativa III IV

A primeira célula indica que os dados quantitativos são analisados de modo


quantitativo. Ë o caso das sondagens com questões fechadas, em que as respostas são
submetidas ao tratamento estatístico. Na segunda, os dados qualitativos são analisados
por meio de uma aparelhagem destinada a quantificação dos dados; pensamos, aqui,
na análise automática do discurso. A terceira célula poderia ser aquela da análise
crítica dos dados sobre os rendimentos, por exemplo, como auxílio de um quadro de
analise qualitativo, o pesquisador reinterpreta os dados fornecidos pela Statistique
Canadá, relacionando a questão da renda a do poder. Por fim, na quarta célula, o
pesquisador analisa dados qualitativos de modo qualitativo.
E nesse quarto caso que se situa a maioria dos delineamentos de pesquisa
qualitativa. Coin efeito, ainda que muitos tenham demonstrado a possibilidade de
fazer uma analise estatística dos dados resultantes; por exemplo, da observação
participante, a maioria dos pesquisadores qualitativos descartou esta possibilidade e
continua tratando os dados qualitativos de modo qualitativo. Certamente, há diferenças
entre a análise progressiva dos casos da indução analítica, a comparação de grupos da
teorização enraizada (grounded theory), o aprofundamento de um caso da abordagem
biográfica ou do estudo de caso, porém todos esses procedimentos têm em comum
uma estratégia semelhante.
Os temas privilegiados a pesquisa qualitativa
A pesquisa qualitativa não convém a todos os ternas de pesquisa possíveis. Dito
isto Marshall e Rossman enfatizam a utilidade e a superioridade metodologia da
pesquisa qualitativa em determinadas situações, notadamente quando:
 a pesquisa não pode ser realizada de modo experimental, por razões práticas;

1 Este esquema me foi sugerido, há alguns anos, por Richard I efrançois, da Universidade de Sher
brooke.
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 a pesquisa tem por objetivo aprofundar processos ou fenômenos
complexos;
 a pesquisa comporta variáveis pertinentes, que não tenham ainda sido
delimitadas;
 a pesquisa pretende explorar em que momento e onde os políticos, o bom-
senso popular e a prática malogram;
 a pesquisa se retere a sociedades desconhecidas ou estruturas inovadoras;
 a pesquisa se refere aos processos organizacionais, suas ligações
informais e não estruturadas;
 a pesquisa se refere aos objetivos organizacionais reais, por oposição
àqueles que são pretendidos (MARSHALL & ROSSMAN,. 1989: 46).
Em resumo, e para além dos argumentos de ordem metodológica, parece
que a pesquisa qualitativa se aplica melhor a certos e tipos e temas de
pesquisa. Examinaremos alguns deles, nos parágrafos seguintes.

As pesquisas descritivas e exploratórias

A pesquisa qualitativa tem sido, inúmeras vezes, utilizada para descrever


urna situação social circunscrita (pesquisa descritiva), ou para explorar
determinadas questões (pesquisa exploratória), que, dificilmente, o pesquisador
que recorre a métodos quantitativos consegue abordar. Efetivamente, por seu
caráter exemplar e fugaz, vários fenômenos sociais resistem à mensuração.
Uma pesquisa qualitativa de natureza exploratória possibilita familiarizar-se
com as pessoas e suas preocupações. Ela também pode servir para determinar
os impasses e os bloqueios, capazes de entravar um projeto de pesquisa em
grande escala. Uma pesquisa descritiva colocará a questão dos mecanismos e
dos atores (o "como" e o "o quê" dos fenômenos); por meio da precisão dos
detalhes, ela fornecerá informações contextuais que poderão servir de base para
pesquisas explicativas mais desenvolvidas. Entretanto, ela é, a maior parte do
tempo, completa em si mesma, e não tem obrigatoriamente necessidade de ser
continuada por outros pesquisadores, por meio de outras técnicas.

O estudo do cotidiano e do ordinário

O objetivo de uma pesquisa qualitativa pode ser o de dar conta das


preocupações dos atores sociais, tais quais elas são vividas no cotidiano. A
ênfase recai sobre “toda a proximidade social, isto é, todos os lugares e
momentos em que a relação social toma forma em sua concretude, e não mais o
que se poderia chamar de o social construído” (SOULET, 1987b: 14). O objeto
de pesquisa se refere, então, “história social dos objetos mais ordinários da
existência ordinária: [...] todas essas coisas tornadas tão comuns, portanto, tão
evidentes, que ninguém presta atenção elas, a estrutura de um tribunal, o espaço
de um museu, o acidente de trabalho, a cabine de voto...” (BOURDIEU &
WACQUANT, 1992: 209).
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O cotidiano da sala de aula, o da cultura organizacional de uma empresa,
o do trabalho das mulheres ou dos homens, por exemplo, são os objetos
privilegiados de uma abordagem qualitativa: Esse cotidiano constitui as
"construções múltiplas e efêmeras da vida de todos os dias, ou seja, a
exuberância da vida cotidiana, cujo aspecto heterogêneo não se deixa reduzir
pela lógica formalizada do dever-ser" (SOUEET, 1987b: 16). Graças a seus
instrumentos, como a história de vida, a observação participante, ou a análise
de conteúdo, a pesquisa qualitativa permite mais particularmente estudar
esses momentos privilegiados, dos quais emerge o sentido de um fenômeno
social.
O estudo do. Transitório
O pesquisador localiza no tempo e no espaço os momentos em que as
estratégias dos atores se evidenciam conjuntamente, e também retine as
perspectivas até então manifestadas enquanto intenções individuais. Desde
então, não são mais apenas as regularidades que retêm a atenção, mas as crises
que se estabelecem como indícios reveladores do momento em que a ordem
social antiga não existe mais, e em que se opera a mudança social. Os
fenômenos da marginalidade, da mudança, do inédito, da transição, não podem
ser explicados pela regularidade, já que eles assinalam uma ruptura com as
normas dominantes, se eles têm como pano de fundo a estrutura social de onde
nascem, é geralmente impossível retirar uma ampla amostragem de caso, em
razão da própria natureza da variável que torna impossível um recenseamento
da população. Dai a importância de três elementos que surgem constantemente
nos estudos qualitativos: o contexto, a história (ou a diacronia) e a mudança
social.
O estudo do sentido da ação
A pesquisa científica recusa se deixar levar pelo senso comum proposto
pelos atores sociais, e também recusa reduzir-se a uma ficção teórica que
aniquilaria o vivido desses atores. A construção teórica pode, contudo, ser o
fato do individuo-pesquisador, ou levar à contribuição os sujeitos da pesquisa,
como é o caso na pesquisa-ação e na pesquisa feminista. Um dos objetos
privilegiados da pesquisa qualitativa é, portanto, o sentido que adquirem a ação
da sociedade na vida e os comportamentos dos indivíduos, assim como o
sentido da ação individual quando ela se traduz em ação coletiva.
Afirmar que a pesquisa qualitativa privilegia o vivido dos atores sociais
não significa, todavia, que ela se reduziria a uma descrição minuciosa de ações
ou de fenômenos observáveis. Nisso, pode-se dizer que o objeto por excelência
da pesquisa qualitativa é a ação interpretada, simultaneamente, pelo
pesquisador e pelos sujeitos da pesquisa; de onde a importância da linguagem
e das conceituações que devem dar conta tanto do objeto "vivido", como do
objeto "analisado". 131
A avaliação das políticas
Há alguns anos, os pesquisadores descobriram as virtudes da abordagem
qualitativa na pesquisa avaliativa; os trabalhos de Patton (1980 1982; 1986; 1987)
fizeram escola e deram uma opção de escolha à abordagem qualitativa. Do
mesmo modo, redescobriam-se as vantagens da pesquisa qualitativa aplicada à
análise das políticas sociais ou organizacionais. Certamente esse campo é
bastante diversificado e abrange uma variedade de práticas; contudo, á medida
que os trabalhos se acumulam, delimita-se melhor o que caracteriza a pesquisa
qualitativa sobre as políticas sociais. Corno o assinala Majchrzak:
Ainda que a pesquisa sobre as políticas possa apresentar diversas facetas,
globalmente varias particularidades a diferenciam dos outros tipos de pesquisa:
 ela tem um objeto multidimensional;
 ela é de orientação empírico-indutiva;
 ela se reporta ao futuro, bem como ao passado;
 ela é sensível aos utilizadores dos resultados; '
 ela reconhece explicitamente os valores que veicula (MAJCHRZAK, 1984:
18).
As características da pesquisa qualitativa fazem com que ela traga uma
contribuição substancial à pesquisa sobre as políticas sociais. Assinalemos, nesse
sentido, sua proximidade ao campo no qual se tomam as decisões e onde se
vivenciam as repercussões regionais, familiares e individuais das políticas sociais
globais; sua capacidade de considerar os diferentes aspectos de um caso
particular e relacioná-los ao contexto geral; sua capacidade de formular
proposições ligadas à ação e à prática. Essas vantagens fazem com que a pesquisa
qualitativa seja cada vez mais utilizada, quando se trata de analisar as políticas
sociais e avaliar seus efeitos concretos.
O objeto de pesquisa
O objeto de pesquisa é, geralmente, definido como uma lacuna que é
preciso preencher: “Um problema de pesquisa se concebe como uma separação
consciente, que se quer superar, entre o que nós sabemos, julgado insatisfatório, e
o que nos desejamos saber, julgado desejável” (CHEVRIER, 1993: 50). Ele se
insere, portanto, numa problemática do avanço dos conhecimentos: o pesquisador
escolhe seu objeto em função das faltas que ele detecta no corpus constituído das
ciências sociais. No início, portanto, antes que o pesquisador passe à construção
propriamente dita de seu objeto de pesquisa, uma questão se impõe ao seu
espírito. Ela pode ser geral ou precisa, mais simples no início e mais complexa
depois, mas ela não tem a precisão que envolverá o objeto de pesquisa, no final.
Em certos casos, a questão permanece tal como foi proposta inicialmente, o
pesquisador explorando uma ou outra de suas facetas; em outros casos, a questão
será totalmente transformada, no decorrer do processo. O certo é que em todos os
tipos de pesquisa, mas

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principalmente na pesquisa qualitativa, o objeto de pesquisa é, ao mesmo
tempo, um ponto de partida e um ponto de chegada.
A tradição da pesquisa qualitativa frequentemente insistiu no caráter pessoal
dos trabalhos. O envolvimento do pesquisador em seu objeto é, portanto, emocional
e constituiria o ponto de partida. Assim, segundo Marshall e Rossman (1989: 21), o
objeto escolhido deve ser um objeto de preocupação ou de curiosidade. É, então,
importante que a questão epistemológica da relação com o outro se insira na
psicologia individual do pesquisador ou em seu pertencimento a um grupo social ao
qual ele se vincula, ou que ele rejeita. O pesquisador construiria, portanto, seu objeto
a partir de uma rede de interesses que orientam sua escolha. Nessa via, Silverman
escreve:
Eu suspeito que as primeiras etapas da pesquisa se distanciam dema-
siado da lógica e da cronologia, como o atestam as comunicações
cientificas. A maior parte da pesquisa está ligada ao acaso e a
circunstâncias concernentes ao próprio pesquisador, no contexto
econômico, social e político, no qual ele atua (SILVERMAN, 1985:
4).
Essa perspectiva deve ser nuançada. Efetivamente, o projeto de pesquisa quali-
tativa não se elabora somente no silêncio do escritório do pesquisador, ou na excitação
do procedimento de campo; ele também se constrói nas agencias do Estado —
sobretudo quando da instalação de programas de pesquisa, ou da apresentação de
pedidos de subvenção de pesquisa (SOULET, 1987a: 57). Comparando as estratégias
de pesquisas conduzidas pelos praticantes da ação social e aquelas dos centros
universitários, Soulet mostra que o objeto de pesquisa é construído diferentemente por
uns e outros. Para os primeiros, “a realização de um processo de pesquisa [...] pressupõe
como condição mínima o respeito à realidade. O objeto de pesquisa é, neste sentido,
assimilado ao objeto-problema e se assemelha a um dado empírico que convém
descrever tão fielmente quanto possível” (p. 56). O objeto se apresenta, então, sob o
ângulo da investigação profissional. Ao contrário, “os centros universitários e,
sobretudo, as associações de pesquisa particularizam o objeto como um espaço de
trabalho. Ambos reconhecem nele o momento em que se representa a sua identidade em
relação à imposição, real ou imaginária, que o comanditário faz considerar” (p. 56).
Haveria, portanto, dois modos de conceber e de construir o objeto de pesquisa:
para uns, é preciso conhecer para modificar; para outros, é preciso conhecer para
conhecer melhor. A pesquisa qualitativa pode superar essa divergência, associando-
se aos praticantes da ação social e aos membros dos movimentos sociais. Na tradição
da pesquisa-ação, por exemplo, os praticantes estão estreitamente associados aos
projetos de pesquisa, quando não são eles próprios que os iniciam' em suas
instituições. Esse ponto de vista é ainda mais evidente na pesquisa feminista, que,
alias, geralmente se calca na pesquisa qualitativa. Para Smith (1987), uma sociologia
verdadeiramente feminista não transformaria os sujeitos que ela pesquisa em
“objetos”, mas conservaria, em seus procedimentos analíticos, a presença do
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sujeito como ator. Não importa que o objeto de pesquisa derive de um interesse
pessoal do pesquisador, ou que ele resulte de acidentes biográficos, ou que ele
provenha de um movimento crítico que tenta encontrar seu lugar num embate social
ou político, ou ainda, que ele se situe na junção de interesses das redes (políticas,
econômicas e sociais) que envolvem o pesquisador, esse objeto será, primordialmente,
um objeto negociado, que depende, ao mesmo tempo, de circunstâncias particulares e
de fatores estruturais.

A revisão bibliográfica e a construção de um objeto

A construção do objeto de pesquisa na pesquisa qualitativa é, muito


frequentemente, considerada como um dos critérios básicos de sua originalidade, não
pelo tato de que a pesquisa qualitativa proceda de modo radicalmente diferente do das
outras metodologias de pesquisa, mas sim, porque a ênfase recai sobre aspectos que
lhe são particulares. Assim, o objeto da pesquisa qualitativa se constrói
progressivamente, em ligação com o campo, a partir da interação dos dados coletados
com a análise que deles é extraída, e não somente à luz da literatura sobre o assunto,
diferentemente de uma abordagem que seria hipotético-dedutivo. De fato, a revisão
bibliográfica na pesquisa qualitativa não visa tanto à operacionalização dos conceitos
que possibilitam dar início à pesquisa (GRINNELL & WILLIAMS, 1990), como à
delimitação progressiva do objeto.
É possível construir um objeto de pesquisa de forma puramente empírica,
baseando-se unicamente nos dados do campo? A resposta é usualmente negativa: é
preciso ler o que os outros escreveram antes de nós; de certa forma, subir sobre seus
ombros para conseguir ver mais alem, um pouco como o pretendiam fazer os
modernos românticos, em sua disputa contra os clássicos antigos. Essa prática se
funda sobre uma concepção do conhecimento considerado como cumulativo, segundo
a qual o progresso de um serve de ponto de partida para o outro. Seguindo uma tal
perspectiva, o pesquisador se dedica geralmente a fazer uma pesquisa bibliográfica
revisada e exaustiva. No âmbito de uma abordagem hipotético-dedutiva, trata-se,
então, de produzir um modelo teórico, e em seguida, uma hipótese, verificando seu
fundamento segundo variáveis definidas, tudo isso antes que se inicie a investigação.
Nesse contexto, a revisão bibliográfica é a modalidade por excelência da construção
do objeto. Uma outra opção constitui em ler o menos possível, e, às vezes,
absolutamente nada. Nessa estratégia mais aberta e influenciada pela antropologia é
preciso colocar-se à escuta, com atenção ao campo, questionando-se total e
primordialmente sobre os dados dos quais emergirá o objeto de pesquisa.
Ainda que as práticas variem muito, indo da ausência de revisão bibliográfica à
revisão mais minuciosa, os pesquisadores qualitativos adotaram uma posição
estratégica. Em primeiro lugar, é preciso ler para se informar; ninguém sofre de ex
cesso de saber. Quanto mais o pesquisador tiver um conhecimento aprofundado sobre
seu tema, mais ele estará apto a construir seu objeto e a delimitar uma amostra
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pertinente Entretanto, a pesquisa qualitativa confere à revisão um matiz que lhe é
próprio; o pesquisador qualitativo hesita em nela confiar total e cegamente, pois a
experiência prova que a literatura científica pode permanecer surpreendentemente
muda sobre assuntos, contudo, evidentes. Desse ponto de vista, a revisão bibliográfica,
longe de contribuir para eliminar os vieses, pode, ao contrário, reforçá-los: um
pesquisador muito dependente da literatura torna-se dependente dos outros
pesquisadores e pode chegar aos mesmos impasses.
Essa é a razão pela qual os pesquisadores qualitativos adotaram uma atitude
flexível sobre essa questão. Em primeiro lugar, a maioria deles faz uma revisão da
literatura científica pertinente: é preciso ler o que se escreveu sobre o tema e sondar os
domínios teóricos que podem esclarecer a questão. Em seguida, eles se empenham em
adquirir os conhecimentos topológicos; conhecer a história do meio social pesquisado,
sua estrutura, sua ideologia. Por fim, eles realizam algumas entrevistas com os
informantes a par da questão; ir a campo possibilita ao pesquisador adquirir um
conhecimento mais próximo sobre seu tema e também dar uma orientação mais precisa
A sua pesquisa. Por exemplo, a velhice é vivida diferentemente, conforme o sexo: os
pesquisadores que se contentam com os dados gerais correm o risco de passar à
margem do problema. Assim, algumas entrevistas no campo permitem explicitar
diferenças que a literatura sequer menciona. Em resumo, se é importante conhecer, não
é necessário conhecer tudo. Como o recomenda um veterano da pesquisa qualitativa:
“Utilizem a revisão bibliográfica, mas não se tomem dependentes dela” (BECKER,
1986: 149).
Como a pesquisa qualitativa se ancora na dialética das representações, ações e
interpretações dos atores sociais em relação ao seu meio, será usual que o pesquisador
se refira a textos que não pertencem ao corpus científico próprio ao seu domínio de
investigação. Dado que uma pesquisa qualitativa requer um contato direto com o
fenômeno pesquisado, seu objeto se constrói não apenas a partir de um corpus, por
vezes restrito, de relatórios de pesquisas cujos resultados são verificados e
confirmados, mas também a partir de um conjunto de textos que tecem como urna teia
de ressonâncias em torno do objeto. Realizar uma pesquisa qualitativa sobre
determinadas problemáticas dos guetos negros das grandes cidades americanas, sem
conhecer os romances de Toni Morrison2, significa privar-se de uma fonte de
informação, lacuna esta que impede um conhecimento intimo de seu tema — o que
constitui a marcada Pesquisa qualitativa.
A teoria e os postulados na pesquisa qualitativa
Desde o inicio, é preciso definir o que se entende por teoria. De um lado, há o
que Silverman (1985: 5) denomina urna teoria em grande escala (large-scale theory),

2. Mulher das Letra, americana, e Premio Nobel de Literatura (1993).


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que dá conta de fenômenos sociais, econômicos e políticos, permeando uma sociedade
determinada; esse gênero de teoria se confunde com uma explicação do mundo, e
mesmo, uma filosofia. De outro lado, existe uma teoria dita de alcance restrito
(middle-range theory), que se pode definir como “um conjunto de postulados
logicamente interligados, compreendendo um maior ou menos número de fatos
observados, e formando uma rede de generalizações, da qual podem se derivar
explicações para um certo número de fenômenos sociais” (GiNGRÁS, 1993: 115).
Os partidários da pesquisa qualitativa formularam urna Crítica severa em
relação à grande teoria: este gênero de explicação seria muito amplo para ser
verificado empiricamente, bem como muito distante das situações particulares para ser
de alguma utilidade aos pesquisadores qualitativos. Ao ser possível decompor essa
teoria em partes verificáveis, prossegue-se dando prioridade à totalidade, de modo que
as pesquisas subsequentes correm o risco de ser somente valorizações do modelo
teórico, Para contrabalançar essa tendência, a pesquisa qualitativa põe ênfase nos
atores e no contato direto com o campo de pesquisa; paralelamente, ela recorre,
sobretudo, à teoria de alcance restrito. Isso não significa que a pesquisa qualitativa
recuse, de imediato, a grande teoria e a macrossociologia, nem que ela seja insensível
às dimensões estruturais; ao contrário, ela possibilita mostrar como as marcas da
estrutura social se encontram nas situações mais circunscritas e mais particulares. No
entanto, a pesquisa qualitativa não visa, usualmente, A elaboração de uma teoria de
grande envergadura para explicar a estrutura social.
A teoria antecedente
É possível empreender uma pesquisa sem nenhum a priori teórico e baseando-
se unicamente na indução para produzir a teoria? Ainda que pesquisadores
qualitativos atribuam uma menor importância As. noções teóricas para apoiar suas
pesquisas, autores como Deutscher (1984) colocam ajusto título a impossibilidade de
o pesquisador abstrair de seus conhecimentos anteriores e das teorias precedentes que
informam suas leituras; por seu próprio ofício, o pesquisador não pode fazer tabula
rasa de seu passado. Contudo, esses pesquisadores qualitativos fazem um uso
particular da teoria. Em geral, na corrente da teoria emergente, eles se interessam mais
pela exploração e construção de novas teorias, do que por sua verificação; o campo de
pesquisa os atrai mais do que a teoria construída. Ora, aos olhos de vários membros da
comunidade cientifica, essa atitude atesta um viés antiteórico. Se uma tal asserção
pode ter um certo fundamento, ela não corresponde, certamente, à opinião geral dos
pesquisadores qualitativos, que reconhecem, de imediato, o amparo teórico de
qualquer pesquisa, mesmo qualitativa. O fato é que não se deve confundir a crítica da
teoria preestabelecida com a recusa de qualquer teoria que possa orientar a pesquisa
Desse ponto de vista, Strauss e Corbin fazem coro com a tendência geral em pesquisa
qualitativa; quando eles escrevem:
O pesquisador se refere a diversos documentos, antes de realizar a pesquisa,
tanto para ter uma ideia, quanta para basear seus trabalhos.
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Os textos são também úteis durante a pesquisa, auxiliando-a a progredir. Em
resumo, ao longo de toda a pesquisa, é preciso continuar revisando o
conjunto da documentação (e não somente dos trabalhos técnicos) e alternar
leitura e análise dos dados. O pesquisador consulta, portanto, todos os tipos
de documentos em cada uma das etapas da pesquisa. No entanto, deve-se
lembrar que as categorias e suas, relações devem ser constantemente
confrontadas aos dados. Assim, é possível recorrer a todos os textos
considerados pertinentes, com a condição de não se tornar cativo de nenhum
deles (STRAUSS & CORBIN, 1990: 56).

Em resumo, a pesquisa qualitativa geralmente evita tomar como ponto de partida


uma teoria simplificadora, da qual a realidade se tornaria escrava: a teoria vista como um
mapa marítimo, e não como uma via férrea. Logo, ninguém se surpreenderá que a base
teórica da pesquisa qualitativa nem sempre tenha o refinamento formal da pesquisa
hipotético-dedutiva, ainda que os questionamentos teóricos possam ser igualmente
fundamentais.
A formulação de postulados

Os pesquisadores qualitativos utilizam os postulados do mesmo modo que utilizam


a teoria; ou seja, como um ponto de partida, e não como um ponto de chegada.
Tradicionalmente, o pesquisador inicia seu trabalho, ampliando seus conceitos e
formulando suas hipóteses, ele privilegia as hipóteses causais, que explicarão a variação
das variáveis delimitadas pelo quadro teórico. Finda essa operação, o pesquisador vai a
campo, para verificar seus pressupostos. Na pesquisa qualitativa, trata-se de postulados,
mais do que de relações de causa e efeito. Deve-se dizer que é raro que as proposições
iniciais sejam formuladas tão claramente quanto na pesquisa quantitativa ou experimental:
muito geralmente, elas são, primeiro, enunciadas na perspectiva das questões iniciais, e
mesmo das intuições a verificar; porém, elas podem ser formuladas, de modo preciso,
antes do começo da pesquisa.
Os postulados na pesquisa qualitativa não são hipóteses da mesma ordem que
aquelas emitidas numa pesquisa de tipo hipotético-dedutivo, e que orquestram a
operacionalização do procedimento de pesquisa. Assim como a teoria se elabora
progressivamente, as questões se tornam precisas, e os postulados tomam forma medida
que os dados são analisados; na pesquisa qualitativa, o postulado não provém apenas do
conhecimento teórico do pesquisador, mas também e, sobretudo, de sua sensibilidade aos
dados que colhe, e de seu conhecimento íntimo do meio que pesquisa. A. medida que
progride o trabalho simultâneo de coleta de informações e de analise, o objeto de pesquisa
vai se especificando e as questões se tornam. ais seletivas: o funil se restringe e possibilita-
se ao pesquisador formular uma explicação provisória que será gradualmente
consolidada. Seus postulados se tornarão simultaneamente, exclusivos (eliminando os
elementos de informação que
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não fazem parte de uma mesma categoria) e inclusivos (englobando todos os elementos de
informação que devem fazer parte de uma categoria determinada) assim como mais detalhados.
E comum que os postulados mais interessantes apareçam mais tarde, durante a coleta dos
dados, com a condição de que o pesquisador trabalhe seus dados, manipule-os, conheça-os,
analise-os, e combine trabalho prático de coleta-tratamento-analise dos dados e reflexão teórica.
Se o postulado não tem necessariamente a mesma precisão na pesquisa qualitativa, como
no modelo hipotético-dedutivo, isso não significa que todas as proposições sejam válidas: pode-
se distinguir uma boa proposição de uma ruim, por sua capacidade de organizar os dados e de
explicar a situação pesquisada (BECKER, 1970: 23). Um bom postulado “caminha”: ele é
eficaz, dá conta das informações, e possibilita compreender e agir. Ele ganha espaço,
gradualmente, na teoria produzida.
Nem todas as pesquisas qualitativas visam verificar postulados, mesmo que elas se
proponham questões iniciais: muito frequentemente, seu objetivo consiste em reconstituir o
desenvolvimento dos processos sociais, ou em descrever a totalidade de um meio social e seus
componentes. Pode até ocorrer que questões gerais sirvam de postulados; consequentemente, o
delineamento de pesquisa conterá proposições sem a precisão habitual — a qual, aliás, não é
sempre necessária (sobre isso, é bom lembrar que, em geral, os conhecimentos úteis têm sido
produzidos nas ciências sociais, ainda que os pesquisadores tivessem por objetivo último apenas
compreender e explicar um fenômeno determinado, e não predizê-lo). Em contrapartida,
quando a pesquisa qualitativa tem a finalidade de verificar uma teoria, ela pode, então,
apresentar hipóteses de tão grande precisão, quanto as que caracterizam o modelo hipotético-
dedutivo.
A amostra

Contrariamente ao que certos pesquisadores pensam, a pesquisa qualitativa também


recorre à amostra, que será, mais frequentemente, de tipo não probabilístico. Essa amostra não
se constitui ao acaso, mas sim em função de características precisas, que o pesquisado pretende
analisar. Vários tipos de amostras são possíveis, tais coma: a amostra acidental, a intencional, a
por cotas, a típica, a de voluntários, ou a amostra em “cascata”, também chamada de “bola de
neve” (MAYER & OUELLET, 1991: 386). Patton (1980: 105) acrescenta a amostra de casos
desviantes, típicos, críticos, politicamente importantes, ou tão simplesmente as mais acessíveis.
A amostragem não probabilística, ou teórica, não é uma estratégia à qual se recorre
quando não se pode estabelecer a probabilidade. Ao contrário, inúmeros fenômenos não podem
ser pesquisados de outra maneira, sendo a amostra teórica, em geral, a única apropriada. Nas
pesquisas realizadas no meio natural, tratando de temas tais como os que foram mencionados
no inicio do presente artigo, certos fenômenos só podem ser compreendidos por uma analise
acurada, conforme
138
permitem o estudo de caso, a monografia, a observação participante, a história de vida.
Nesses casos, a amostra não probabilística continua sendo a mais eficaz, senão a única
possível. Por outro lado, a amostragem teórica tem a sua lógica específica e suas
próprias finalidades.
Se a regularidade e a dimensão da amostra probabilística nos possibilitam
conhecer aspectos gerais da realidade social, o caráter exemplar e único da amostra não
probabilística nos dá acesso a um conhecimento detalhado e circunstancial da vida
social. É, pois, em relação aos resultados que ela acarreta, bem como a sua pertinência,
que a amostra não probabilística se justifica.

A coleta dos dados


Na tradição da pesquisa qualitativa, Zelditch (1969: 9) propõe dois grandes
critérios para julgar a validade dos instrumentos de coleta de dados. O primeiro se refere
à capacidade dos instrumentos de trazer as informações desejadas. A maior parte do
tempo, os pesquisadores qualitativos escolhem os instrumentos que lhes fornecerão o
máximo de informações sobre o tema de pesquisa. O outro critério é a eficácia dos
instrumentos; sua utilização é rentável, no que se refere ao tempo requerido, ao custo, e
à acessibilidade permitida e possível?
Marshall e Rossman (1989: 75) acrescentam um terceiro critério, o da ética.
Como a pesquisa qualitativa se faz no campo de pesquisa, é necessário respeitar as
características do meio social. Um levantamento bibliográfico sobre a temática da
negociação na pesquisa qualitativa revela que, muito frequentemente, o pesquisador se
preocupa, desde o início, com a tomada de contato e com a gestão dos papéis, no campo de
pesquisa A resistência das pessoas ou dos grupos que serão pesquisados, a escolha dos
informantes, as reações psicológicas a determinadas situações e os papéis que pode
desempenhar o pesquisador no campo, são percebidos como muitas das realidades com as quais
é preciso compor. Essa negociação in situ faz parte das estratégias de pesquisa que possibilitam
uma coleta de dados mais ampla, mais honesta, mais aprofundada. Ora, a referida negociação se
articula a uma questão de ética, será. que o pesquisador tem o direito de intervir no campo? No
caso de uma observação participante, será que ele deve tornar parte de todos os atos, mesmo
repreensíveis, do grupo social no qual ele vive? É moral que o pesquisador dissimule o
verdadeiro motivo de sua presença? Quais são os limites da confidência na coleta de relatos de
vida? Os meios utilizados respeitam a vida privada das pessoas e dos grupos pesquisados? Eles
podem medir as consequências de sua Participação na pesquisa? O próprio pesquisador esta em
posição de avaliar os riscos que os participantes podem correr; e o que ele faz para eliminá-los?
Por exemplo, a publicação de um relatório de pesquisa extremamente rigoroso, sobre um grupo
comunitário que se encontra numa situação difícil, arrisca desestabilizar este grupo, e
mesmo minar seu moral, e imobilizá-lo. Em uma perspectiva de mudança social, será que
isso vale a pena?
139
Essa implicação do pesquisador no vivido das pessoas, graças às quais ele
obtém um conhecimento, adquire um valor epistemológico na medida em que o
saber do pesquisador e o saber do grupo no qual ele é absorvido fecundam-se
mutuamente. Há, assim, reciprocidade de um saber que se constrói no interior de
uma prática de ofício, e não de modo artificial. Marshall e Rossman recomendam
que o pesquisador, que deve seu saber aos sujeitos que ele pesquisou, invente
formas de recompensar os atores sociais que lhe permitiram estender seus
conhecimentos: “O pesquisador é devedor do meio social e precisa encontrar
maneiras de agradecer a ele: consagrar-lhe tempo, fazer comentários, convidar as
pessoas para um café, cumprimentá-las, ajudá-las, ou comunicar-lhes qualquer traço
de avaliação adequada” (MARSHALL & ROSSMAN, 1989: 69).
Geralmente, para a coleta das informações, a pesquisa qualitativa recorre à
observação participante e à entrevista. Estas técnicas básicas se completam com o
questionário, a fotografia, os documentos audiovisuais (filme, vídeo), a observação
dos lugares públicos, a história de vida, a análise de conteúdo. Desejando vivamente
recolher o máximo de informações pertinentes, os pesquisadores combinam,
usualmente várias dessas técnicas.
A análise dos dados
A etapa da análise consiste em encontrar um sentido para os dados coletados
e em demonstrar como eles respondem ao problema de pesquisa que o pesquisador
formulou progressivamente. Por isso, a análise ocupa um lugar de primeiro plano
em toda pesquisa, mas, principalmente, na pesquisa qualitativa. Pode-se mesmo
dizer que a renovação que a pesquisa qualitativa conheceu no decorrer dos últimos
anos se deve aos progressos realizados na análise dos dados, a qual constituía o
ponto fraco do procedimento qualitativo. Nesse sentido, a teorização enraizada
(GLASER & STRAUSS, 1967: GLASER, 1978) exerceu, certamente, uma larga in-
fluência. Brevemente resumida, a abordagem qualitativa da análise seria caracteri-
zada pela elaboração de uma teoria baseada sobre um processo de indução e sobre a
abertura aos dados. Uma vez definido o campo de pesquisa, o pesquisador organiza
seus dados com a ajuda de um quadro descritivo e interpretativo bastante amplo, à
luz de conceitos topológicos apoiados sobre elementos estruturais e processos
específicos ao fenômeno pesquisado. •
O delineamento de pesquisa qualitativa não pode prever com precisão os re-
sultados que a análise qualitativa produzirá; entretanto, espera-se encontrar, em um
delineamento de pesquisa, uma descrição do procedimento de análise que o
pesquisador pretende seguir. Se o problema de pesquisa baliza a coleta de dados e
os resultados possíveis, ocorre que categorias surpreendentes se imponham e que o
objeto de pesquisa se transforme radicalmente, durante as etapas de coleta dos
dados e de análise. Nesse caso, “o problema central poderá ser reformulado durante

140
a pesquisa, se ele não mais corresponder à realidade observada” (CHEVRIER, 1993:
69).
A Revisão bibliográfica e a análise
Dada a importância das interpretações na pesquisa qualitativa, a revisão
bibliográfica leva o pesquisador a escolher uma fundamentação teórica. Durante as
etapas de coleta e analise de dados, a leitura facilitará o desenvolvimento do processo
analítico:
A revisão bibliográfica [...] ajuda a formular uma explicação tanto durante a
coleta dos dados, como em sua análise, permitindo esclarecer e avaliar os dados,
assim como estabelecer as ligações entre ós dados, em diferentes momentos. A
medida que progride a teorização enraizada, a revisão bibliográfica fornece as
construções teóricas, categorias e propriedades que servem para organizar os
dados e descobrir novas relações entre a teoria e o mundo real (MARSHALL &
ROSSMAN, 1989: 41).

A leitura de obras teóricas fornece os conceitos e as metáforas graças aos quais


pode-se interpretar um dado opaco. O uso de metáforas retiradas dos textos científicos,
da literatura, ou do meio social, é, sem dúvida, um dos procedimentos mais "secretos"
e mais fecundos que podem auxiliar o pesquisador a realizar a contento uma análise,
bem como a construir seu objeto de pesquisa. A imagem, a comparação implícita, a
analogia, determinam esse momento de intuição que faz com que o objeto mude
repentinamente de lugar, ou apareça sob um outro enfoque. Geralmente passando
desapercebido no relatório de pesquisa, ou no artigo científico, o raciocínio analógico e
metafórico permite estabelecer relações entre os conceitos e entre os casos particulares.
Assim sendo, a revisão bibliográfica nas ciências sociais qualitativas não pode evitar
uma reflexão sobre a natureza sociopolítica das Metáforas empregadas, principalmente
sobre o seu conteúdo sexista. Como o aponta Harding: “Os historiadores da ciência
chamaram nossa atenção para a presença persistente de metáforas sexistas no
pensamento oficial e oficioso dos cientistas, desde a emergência da ciência moderna
até os nossos dias” (HARDING, 1986: 233).
A revisão bibliográfica também revela homologias estruturais entre campos de
pesquisa diferentes. Bourdieu oferece uma opção de escolha ao pensamento
homológico na análise:
Este modo de pensamento se realiza de forma inteiramente lógica, no e pelo
recurso ao método comparativo, que permite pensar, de modo relacional, um
caso particular constituído em caso particular do possível, apoiando-se nas
homologias estruturais entre os campos diferentes (o campo do poder
universitário e o campo do poder religioso, .por meio da homologia das relações
professor/intelectual e bispo/teólogo), ou dos diferentes estados do mesmo
campo (o campo religioso da Idade Média e hoje) (BOURDIEU &
WACQLIANT, 1992: 205).

141
Uma revisão bibliográfica na pesquisa qualitativa não se limitará, portanto, a um
campo de conhecimentos particular, mas será gradualmente ampliada em outros
domínios, fecundando o primeiro. Esse procedimento exige do pesquisador não apenas
um aprofundamento de seu campo de investigação, mas também um conhecimento dos
campos conexos. A passagem do caso particular ao caso geral, tanto definido sob a
relação.de métodos comparativos, ou em função de um conhecimento dos contextos,
requer que os dados colhidos' sejam contextualizados no interior de um conjunto
teórico mais amplo. A questão da interpretação dos campos disciplinares constitui uma
dimensão essencial em uma reflexão sobre a pesquisa qualitativa.
Em última análise, a revisão bibliográfica desempenha, na análise qualitativa, um
papel, ao mesmo tempo, estratégico e teórico.
A teoria produzida
Geralmente, o objetivo da análise dos dados é produzir uma teoria. Contudo,
nem todas as pesquisas tem suficiente envergadura para produzir uma teoria; além
disso, a maioria se contenta em propor conceitos que, diga-se de passagem, confirmam
o valor de um trabalho teórico. Desse ponto de vista, a análise qualitativa pode se
articular em torno de conceitos já definidos na literatura científica e que o pesquisador
considera para as necessidades de sua pesquisa. Contudo, a maior parte do tempo, o
pesquisador qualitativo formula novos conceitos, ou atribui um sentido novo aos
antigos, ou toma conceitos de seus informantes, inclusive em linguagem corrente.
Como um dos traços característicos da pesquisa qualitativa consiste em vincular-se à
interpretação que os atores sociais fazem dos fenômenos que se inscrevem em seu
meio, aspecto particularmente critico para a antropologia cultural, decorrem daí
resultados em que os conceitos específicos dos sujeitos da pesquisa se combinam aos
do pesquisador. No entanto, nem todos esses conceitos apresentam o mesmo grau de
abstração, do mesmo modo que eles não aparecem na análise, no mesmo momento. A
esse respeito, Geertz retoma uma definição proposta pelo psicanalista Heinz Kohut,
que distingue entre os conceitos extraídos da experiência imediata (experience-near
concepts), e aqueles que estão mais distantes dela (experience-distance concepts),
Um conceito extraído da experiência é, grosso modo, um conceito que um
indivíduo - um paciente, um sujeito, ou, no caso da pesquisa, informante -
utiliza, ele mesmo, espontânea e naturalmente, para definir o que ele ou seus
pares veem, sentem, pensam, imaginam, etc.; um conceito que ele pode
compreender rapidamente, quando outros o utilizam. Um conceito distante da
experiência é um conceito que os diferentes especialistas - um psicanalista, um
pesquisador, um etnógrafo, ou mesmo um padre, ou um ideólogo - empregam
num sentido do científico, filosófico, ou prático (GEERTZ, 1983: 57).

142
Esses dois tipos de conceitos representam, de certa forma, os dois polos da
compreensão. Num caso, o conceito é de tal modo imbricado na vida do informante e
em sua situação particular, que ele é, por vezes, incompreensível fora de seu texto Na
outra extremidade, o conceito bastante geral e se aplica a tantas situações diferentes, que
ele não pode explicar convenientemente a situação concreta pesquisada. Geertz descreve
bem esse dilema: “O confinamento aos conceitos extraídos da experiência deixa o
pesquisador imerso no imediato e afundado no cotidiano. O conceito distante da
experiência deixa-o enredado nas abstrações sufocado no jargão” (GEERTZ, 1983: 57),
A tarefa do pesquisador qualitativo consiste assim, em interpretar os conceitos
provenientes do campo de pesquisa, para dar-lhes uma forma que se inscreve, ela
própria, na tradição científica. Este paciente trabalho de construção passa pelo
estabelecimento da relação entre o detalhe cotidiano, e mesmo banal, e a estrutura
global que lhe confere um sentido.
Entre esses dois polos se situa o conceito operatório (sensitizing concept),
proposto por Blumer (1954). Trata-se aqui de uma espécie de categoria provisória,
indicando em qual direção olhar, sem fixar definitivamente o real. Também denominado
“conceito local” (GLASER & STRAUSS, 1967: 45), ele possibilita ao pesquisador
formar categorias provisórias, durante a coleta dos dados. Situado entre o senso comum
e o trabalho científico, esse conceito permite classificar os dados e torná-los inteligíveis.
Todavia, é preciso evitar fazer um mau uso desse género .de conceito, conforme Blumer
o indicava cautelosamente:
O maior defeito no emprego desse conceito operatório, e também o mais
difundido, é de considerá-lo como adquirido, e de se contentar com o elemento de
plausibilidade que ele apresenta. Nessas circunstâncias, esse conceito não é mais
do que um vago estereótipo, tornando-se meramente um meio para ordenar ou
organizar os dados empíricos (BLUMER, 1954: 9).

Por sua vez, Patton (1980: 306-309) recomenda a utilização de “tipologias


indígenas” e de tipologias construídas pelo pesquisador-analista. Assim, um estudo
semântico da linguagem dos participantes da pesquisa permite revelar uma semiologia
do discurso “indígena”. Paralelamente, o pesquisador verifica distinções feitas pelos
atores sociais, que não encobrem as categorias cientificas. Da comparação entre as duas,
resultaria a significação dos fenômenos, criando uma ponte entre a interpretação dos
sujeitos sobre um fenômeno e a interpretação que dele constrói pesquisador-observador.
A tradição na qual se insere o pesquisador e também a sua prática de trabalho teórico
deveriam possibilitar-lhe ir além dos conceitos de seus informantes; desse modo, ele
poderia reinterpretar sua experiência e situá-la num contexto que lhe confere uma outra
dimensão. Todavia, como o pesquisador não tem o monopólio da criação do
conhecimento, ocorre frequentemente que ele seja incapaz de levar sua analise mais
adiante do que seus interlocutores podem fazê-lo. Não é nenhum drama: a democracia
também é isso.

143
Para concluir essa parte sobre a análise dos dados e a. teoria produzida,
digamos que a pesquisa qualitativa ficou muito mais próxima da teoria de alcance
restrito. Primeiramente, como o havíamos visto, o pesquisador se refere a esse tipo
de teoria para esclarecer o seu problema de pesquisa: de um lado, ela orienta o
terna que o pesquisador escolheu dentro de uma problemática que delimitará as
fronteiras do objeto; e, de outro lado, ela confere à definição de objeto uma filiação
disciplinar ou teórica, permitindo que o pesquisador exponha seus preconceitos
quanto ao seu objeto (MARSHALL & ROSSMAN, 1989: 33). No fim, a teoria
produzida resulta da confrontação dos dados empíricos com uma diversidade de
campos teóricos. Esta teoria propõe, então, categorias analíticas e um esquema
explicativo das inter-relações dos fatos observados, além de permitir conceituar
novamente o campo de investigação, deslocando as fronteiras do objeto.
O relatório
A produção do conhecimento passa pela redação de um texto, que todos
aqueles que se interessam pela problemática explorada poderão consultar. Essa
etapa da transformação do conhecido para alguns (os pesquisadores) em conhecido
para todos tem também uma importância decisiva. Esse momento da preparação do
relatório de pesquisa é, atualmente, objeto de vivos debates nas disciplinas
tradicionalmente mais inclinadas a adotar uma metodologia qualitativa, em
particular a antropologia.
A fim de proteger-se da possível reprovação por subversão da verdade,
graças ao trabalho de reconstrução, os pesquisadores usualmente adotam uma
estratégia de transparência na redação do relatório, tal como a descrevem Marshall
e Rossman (1989: 148):
 a coleta dos dados e os métodos empregados são explicitados;
 os dados são utilizados para documentar as construções teóricas;
 os resultados negativos são expostos e levados em consideração;
 os vieses são examinados, incluindo os interesses pessoais, profissionais,
políticos, bem como os vieses teóricos e as suposições;
 as estratégias de coleta dos dados e de análise são reveladas;
 as decisões tornadas no campo, e que influíram nas estratégias de
pesquisa ou no objeto de pesquisa, são documentadas;
 as hipóteses contrárias são apresentadas e analisadas'
 o caráter confidencial das informações é preservado;
 a sinceridade dos participantes e estabelecida;
 a significação teórica e a generalização dos resultados são explicitadas.

144
O relatório deve permitir que outros pesquisadores retomem a pesquisa, de
modo a detectar suas falhas, ou reconsiderar os resultados obtidos; além de dever
possibilitar uma reconstrução do objeto pelo leitor, conforme sua leitura.
Paralelamente, o pesquisador aposta que sua argumentação convencerá o leitor.
Para Soulet (1987a: 44), “a racionalização do processo de produção da pesquisa
estrutura o documento, a ponto de tornar a maioria das partes enumeradas
inevitável”. Introdução e conclusão são justamente os momentos mais importantes
dessa racionalização do processo de produção da pesquisa. Se, como o vimos, a
construção do objeto se faz progressivamente, as convenções do texto, por outro
lado, impõem ao pesquisador apresentar, desde o início, um objeto já construído,
sobreposto de escolhas teóricas e metodológicas, que foram feitas no decorrer da
pesquisa, sem terem sido previstas.
A introdução propõe uma lógica reconstituída da pesquisa e requer, por
vezes, longos desenvolvimentos que, de certa forma, dão o tom e a justificativa da
pesquisa (SOULET, 1987a: 44). Do mesmo modo, a conclusão, assim como as
seções sobre a metodologia empregada, o levantamento bibliográfico, a formulação
de postulados e a análise dos dados, seguida de uma interpretação dos resultados,
encerram momentos constitutivos de urna pesquisa qualitativa, dissociando-os
conforme modalidades e uma lógica convencionais. A cronologia do processo
subvertida por uma lógica de formulação, cujo objetivo seria expor a problemática
pesquisada. A preocupação com a clareza e a objetividade domina, então, a
formulação, separada da abundância do real e das contradições percebidas, ou
reais, do campo de pesquisa.
Essa prática de redação da pesquisa foi, entretanto, questionada: para alguns,
o referido relatório não da realmente conta do verdadeiro desenvolvimento da
pesquisa, dos problemas encontrados, do papel do pesquisador e de suas emoções e
hesitações, da prática de seu oficio, que são muitas das formas de entrada na
análise e no texto. Esse tipo de relatório oculta o trabalho de criação e reconstrução
da realidade. A estratégia de transparência na formulação dos resultados e também
do desenvolvimento da pesquisa eliminaria as zonas escuras, em que se ocultam, ao
mesmo tempo, o mito, a ideologia, o poder e o desejo (do pesquisador, ou do
leitor). Se a pesquisa for realmente baseada no cotidiano e na experiência das
relações sociais, o objeto de pesquisa da abordagem qualitativa jamais será neutro.
A explicitação desse circuito das interpretações é fundamental para o projeto
qualitativo. Expor as práticas sociais segundo uma linguagem ou uma retórica que
pressupõe que se possa descrever objetivamente a realidade de um grupo social é,
para Barthes, “dissimular uma realidade, que, mesmo sendo aquela na qual se vive,
não o é menos historicamente determinada” (BARTHES, 1959: 11), É fazer crer
que a palavra se cola à coisa, e que o produto formulado se constitui como real.
Esse realismo dominante nas ciências sociais (mainstream realism, segundo a
denominação de Rabinow [1986]), nega a intervenção do autor no texto; a
realidade dada e a conclusão do relatório de pesquisa dá um desfecho que encerra a
aventura
145
da pesquisa. Esse realismo dominante foi novamente questionado, na pesquisa
qualitativa, pela antropologia certamente mais tocada pelos acasos da linguagem,
em virtude do desenraizamento que ela se impõe, mas também pelo feminismo
(particularmente a obra de LAURENT1S, 1987), pela crítica pôs-estruturalista e
pós-moderna, Há alguns anos, a pesquisa de tipo etnográfica, principalmente na
antropologia, vem tendendo a abolir as fronteiras entre produção científica e
produção artística. O etnólogo se torna autor, e não fotógrafo:
Num paradigma discursivo, mais do que visual, as metáforas dominantes na
etnografia se distanciam do olho que observa e se deslocam para a expressão
do gesto e da palavra. A voz do redator domina e situa a análise e o objetivo;
renuncia-se ao distanciamento crítico (CLIFFQRD, 1986: 12).

Um relatório desse tipo é, geralmente, mais próximo do ensaio humanista do


que do artigo científico (DENZIN, 1989: 134). A presença do autor é aí diretamente
expressada, com a ajuda do “eu” ou da anedota. Esse relatório valoriza um estilo
próprio ao autor que vê seu trabalho de redação como um trabalho de criação
literária (BECKER, 1986: 105). Em tal prática da pesquisa, a redação do objeto é
colocada no centro de sua construção. Não é mais somente questão de fazer ver o
fenômeno social como se ai estivéssemos, mas sim, de descrever a relação do
pesquisador com o ator social pesquisado; seja por uma exposição do diálogo que se
estabelece entre eles, seja por uma escrita que se aproxima do romance ou da
poesia. Uma tal concepção acarreta um grande número de obras que tomam por
objeto uma reflexão histórica sobre o modo como os etnógrafos do passado
formaram nossa visão do exótica, ou: do Outro (FABIAN, 1983; MARCUS &
FISCHER, 1986). Esse retorno sobre si e sua disciplina é, em nossa opinião, uma
das características mais evidentes da mudança do objeto na antropologia
contemporânea.
Essa “observação do observador”, através de uma reformulação do projeto
etnográfico, é fortemente criticada por Bourdieu, que considera esse procedimento
corno suicida:
[Trata-se, primordialmente, de um] modismo entre alguns antropólogos
americanos que, tendo aparentemente esgotado os charmes do trabalho de
“campo”, põem-se a falar mais de si mesmos, do que de seu objeto de estudo.
Quando ela se torna um fim em si mesmo, essa espécie de denúncia
falsamente radical da escrita etnográfica como “poética e política” [...] abre
caminho para uma forma de relativismo niilista muito pouco velado, que, eu
receio [...], situa-se no exato oposto de uma ciência social verdadeiramente
reflexiva (BOURDIEU & WACQUANT, 1992: 52).

As, posições estão, portanto, definidas. Cabe também observar que a maioria
dos relatórios; na abordagem qualitativa, conforma-se ao modelo convencional
descrito precedentemente, com tudo o que isso comporta de reformulação a
posteriori do objeto de pesquisa, e, portanto, de reconstrução. No entento, o debate
está longe de estar encerrado.
146
A especificidade do delineamento de pesquisa qualitativa
A pesquisa qualitativa teria uma forma própria de elaborar um delineamento
de pesquisa? Eis que voltamos à questão do início, à qual é preciso agora responder
Digamos que o delineamento de pesquisa qualitativa se articula em torno de
axiomas, postulados, e de uma prática, que fazem com que a pesquisa qualitativa
possa pretender ocupar um lugar que lhe é próprio, bem como produzir resultados
que somente ela consegue produzir. Até estão alguns elementos que podem ser
apresentados como sendo especificidades da pesquisa qualitativa, eles foram exa-
minados ao longo de todo o texto, mas nós os retomamos, aqui, para resumir nosso
ponto de vista.
A natureza dos dados
Um dos aspectos da pesquisa qualitativa consiste em analisar os dados qualita-
tivos. Estes dados se apresentam como resistentes à conformação estatística. São os
dados da experiência, as representações, as definições da situação, as opiniões, as
palavras, o sentido da ação e dos fenômenos. Ainda que eles escapem à
padronização estabelecida, e ainda assim importante que as ciências sociais possam
analisá-los, já que eles descrevem uma grande parte da vida social,negligenciá-los é
privar-se de um conhecimento essencial.
O contato com o campo
Uma outra característica da pesquisa qualitativa é o contato com o campo.
Essa renovação tem sua origem na insatisfação experimentada por muitos pes-
quisadores frente aos limites de uma ciência social baseando-se exclusivamente nos
métodos experimentais e adotando a epistemologia correspondente como base de
conhecimento do real. O histórico da evolução da abordagem qualitativa
(LAPERRIÈRE, 1982; PIRES, 1982; KURTZ, 1984: HAMMERSLEY, 1989) nos
ensina que a antropologia já havia explicitado os métodos de observação de campo;
além disso, a Escola de Chicago, dos anos 1920, havia igualmente estabelecido os
princípios de uma abordagem que privilegiava o contato direto com os grupos
sociais que o sociólogo se dispunha a pesquisar. A corrente contemporânea da
pesquisa qualitativa reata com essa posição, concedendo maior espaço ao campo de
pesquisa, aos autores, aos movimentos sociais. Essa articulação pesquisador-meio-
praticantes concilia, geralmente, a prática dos pesquisadores com o que ela comporta
de contradições, e de disputas de poder ou de influência. No entanto, o
reconhecimento dos cidadãos como fonte de conhecimentos e depositários de um
poder tem repercussões no desenvolvimento de uma pesquisa qualitativa.
A bem dizer, apenas o contato com o campo não basta para caracterizar a
pesquisa qualitativa. Efetivamente; muitas pesquisas empíricas se valem desse
procedimento.

147
De sua parte, a pesquisa qualitativa enfatiza o campo, não apenas como reservatório
de dados, mas também como uma fonte de novas questões. O pesquisador
qualitativo não vai a campo somente para encontrar respostas para suas perguntas,
mas também para descobrir questões, surpreendentes sob alguns aspectos, mas,
geralmente, mais pertinentes e mais,adequadas do que aquelas que ele se colocava
no início. Além disso, a própria logística da abordagem qualitativa (campo de
pesquisa, observação participante, entrevistas não dirigidas, relatos de vida) obriga o
pesquisador a um contato direto com o vivido e as representações das pessoas que
ele pesquisa.
O caráter repetitivo do processo de pesquisa qualitativa
A flexibilidade das regras concernentes à realização do projeto é uma das
particularidades da pesquisa qualitativa. Enquanto a abordagem hipotético-dedutiva
coloca como primordial a definição do objeto de pesquisa, e o delineamento, se
constitui como um instrumental técnico para delimitá-lo, a pesquisa qualitativa
apresenta um caráter repetitivo e retroativo: nele se encontra a simultaneidade da
coleta dos dados, da analise (codificação e categorização, conceituação) e da elabo-
ração do problema de pesquisa, que alguns denominaram como modelo de adapta-
ção continua. Essa retroação não é a característica enraizada da pesquisa qualitativa
e a observação seguinte descreve bem a experiência usual dos pesquisadores:
“Segundo a experiência dos especialistas em ciências sociais, estamos raramente, ou
nunca, diante de uma série de procedimentos automaticamente consecutivos, no
decorrer dos quais uma etapa da pesquisa deveria estar inteiramente terminada antes
que a seguinte se iniciasse” (SELLTIZ; WRIGHTSMAN; COOK, 1977:13) No
entanto, a particularidade da pesquisa qualitativa é a de que ela se liga a esse caráter
retroativo e repetitivo do processo de pesquisa e o inclui em sua metodologia.
Para empregar uma analogia, a pesquisa tradicional se assemelharia à música
europeia, em que o compositor apresenta um tema sobre o qual ele tece, ao inventar
variações melódicas. A pesquisa qualitativa se compararia preferencialmente ao
jazz, em que o músico, a partir de uma linha melódica comportando um conjunto de
acordes determinados, lança-se numa improvisação trazendo seu toque pessoal.
Certamente, o músico não pode se permitir tudo, pois ele permanece, de qualquer
modo, limitado pelos acordes que apoiam seu tema, mas ele dispõe, entretanto, de
uma grande margem de manobra. O delineamento de pesquisa tanto, a parte escrita
da pesquisa, sabre a qual o pesquisador qualitativo se baseará, a semelhança do
músico de jazz, que se infunde dos acordes do tema. No entanto, paralelamente,
haverá espaço para acomodações e improvisação.
A revisão bibliográfica
Na pesquisa qualitativa, a revisão bibliográfica não se limita à etapa inicial,
mas desempenha um papel importante ao.longo de toda a pesquisa. O pesquisador

148
continuara suas leituras, em função do movimento de seu objeto, e explorará este ou
aquele caminho, para, ao mesmo tempo, delimitar categorias provisórias de e
atribuir-se pistas de interpretação. A definição progressiva do objeto de pesquisa,
bem como a simultaneidade da coleta dos dados e da análise, levam o pesquisador
qualitativo a redigir, usualmente, a problemática de sua pesquisa no final! Assim
sendo, a revisão bibliográfica evolui ao longo de toda a pesquisa.
Para o pesquisador qualitativo, a revisão bibliográfica permanece sendo um
instrumento ao qual ele não pretende se subordinar: sem negligenciá-lo, nem ignorar
suas vantagens, o pesquisador qualitativo recorre a ele para construir seu objeto e
elucidar a análise .dos dados, tentando manter um equilíbrio entre o trabalho
empírico e o trabalho teórico.
A construção progressiva do objeto de pesquisa
O objeto de pesquisa se elabora a medida que a coleta dos dados e a análise se
realizam. Na pesquisa qualitativa, a construção do objeto de pesquisa se faz pro-
gressivamente, o pesquisador focalizando sua atenção no objeto e delimitando gra-
dualmente os contornos de seu problema. Isso porque o pesquisador qualitativo
tenderá a construir seu objeto em contato com o campo e com os dados que ele co-
letará. De modo mais geral, o pesquisador se colocará, primeiramente, questões
gerais que ele transformará em objeto mais específico, à medida que ele avançar em
seus trabalhos. O processo da coleta dos dados e da análise obriga o pesquisador a
vasculhar sistematicamente o campo de investigação para construir seu objeto. Esse
movimento de vai e vem ritma a cronologia do ato de pesquisa e constitui uma das
principais características da pesquisa qualitativa.
Os postulados
Numa abordagem hipotético-dedutiva, a ênfase recai sobre a necessidade de
formular uma hipótese que será preciso testar. O objeto e o problema de pesquisa
são, portanto, elaborados desde o início, a partir de um corpus preexistente de
pesquisas que se deve examinar, para aí encontrar lacunas. Para empregar uma
metáfora, a construção do objeto de pesquisa é, assim, vista como uma pedra que,
colocada em bom lugar, fortificará o delineamento. Ocorre o inverso para a pesquisa
qualitativa: em primeiro lugar, as hipóteses são geralmente substituídas por
postulados indicando mais uma tendência do que uma relação de causa e efeito; em
segundo lugar, os postulados são abertos, menos predeterminados, e podem surgir a
qualquer momento da pesquisa, os mais interessantes aparecendo, aliás, durante o
processo.
Conclusão
A proximidade entre os atores sociais e o pesquisador, na pesquisa
qualitativa, acarretou a possibilidade de considerar estes mesmos atores como
objetos definidos
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por um conjunto de propriedades.que o pesquisador pode fazer variar a vontade.
Ao buscar descrever o “jogo da vida real” (ERICKSON, 1986: 163), sob uma
perspectiva holística e interpretativa, o pesquisador qualitativo busca o real em
função de uma problemática relacional que se insere em um contexto determinado.
Segundo Poupart, “nesse tipo de pesquisa, o campo de estudo não é pré-
estruturado, nem operacionalizado de antemão. O pesquisador deve se render às
condições particulares do campo e estar atento às dimensões que possam se
revelar pertinentes” (POUPART, 1981: 46).
Contudo, a pesquisa qualitativa não se constrói unicamente a partir do que
é dado, como o pretende um empirismo radical: autores (SILVERMAN, 1985;
SOLUET, 1987a; GUBRIUM & SILVERMAN, 1989) mostraram que a
construção do objeto era, de fato, uma escolha política. Essa dimensão política da
pesquisa, qualitativa ou quantitativa coloca a questão do papel do pesquisador no
mundo social e reconsidera a distinção fato-valor, ciência-ideologia, teoria-prática.
Partindo das análises de Foucault sobre as relações entre o saber e o poder;
Gubrium e Silverman (1989) afirmam que toda pesquisa e, antes de tudo, uma
prática discursiva que baseia poder e saber em locais apropriados, nos quais as
disciplinas (científicas) se confundem com a disciplina (moral). A construção do
objeto não recai sobre uma realidade do mundo social problematizado por seus
atores (seja qual for a posição que eles ocupem), nem sobre uma intenção
individual do pesquisador, ou de um grupo de pesquisadores, mas sim, sobre um
conjunto de práticas discursivas, que, “ainda que não sejam nem verdadeiras, nem
falsas, em si mesmas, produzem um efeito de verdade” (p. 8). Essas problemáticas
são sustentadas, mais especialmente, por dois ramos da pesquisa nas ciências
sociais, que adotam mais frequentemente (porém nem sempre) uma abordagem
qualitativa: a pesquisa-ação e a pesquisa feminista.
A abordagem qualitativa nas ciências sociais compõe seus objetos num
nível local, por uma espécie de bricolagem criadora, segundo a expressão de Lévi-
Strauss. O objeto da pesquisa é construído tanto a partir dos dados “colhidos,
explorados, traduzidos e reconstituídos” (MORVAN, 1989: 95), que o pesquisador
trata por meio de um instrumento metodológico e teórico, quanto a partir de
campos disciplinares que se constituem sociologicamente (o reconhecimento das
disciplinas e questão de poder), através de uma corporação de ofício em
negociação com os pares, com o mundo social ao qual a pesquisa se refere, e com
as instituições que possibilitam a sua prática. Desde então, os enfoques de uma
reflexão sobre a preparação do delineamento de pesquisa qualitativa não passam
mais unicamente pelo polo metodológico, mas também por um polo político, que
define a das escolhas do objeto e das técnicas, e que avalia as repercussões que
tais escolhas determinam sobre todos os atores da pesquisa.

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