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Aula 3: Agitação e Mistura em Biorreatores

Prof. Gabriel de Castro Fonseca (DQBIO/UFSJ)


Projeto de Biorreatores

Contextualização

Qual é a importância da Mistura é o estado de homogeneidade de um sistema.


mistura em biorreatores? Um fluido perfeitamente misturado não tem gradientes
de temperatura, concentração ou outras propriedades.
Se deixado em repouso por tempo suficiente, um fluido
tende a se misturar naturalmente, mas esse processo
pode ser acelerado através da operação de agitação.

No contexto de biorreatores, a agitação é importante


para

(i) distribuição de componentes solúveis no meio;


(ii) dispersão de bolhas de ar através do líquido;
(iii) manutenção de partículas sólidas, como células,
em suspensão;

(iv) dispersão de líquidos imiscíveis para formação de


uma emulsão ou suspensão de pequenas gotas;
(v) controle da temperatura do líquido.
Para criar o ambiente ótimo para a fermentação, os
biorreatores devem dar às células acesso a todos os
substratos, inclusive oxigênio, no caso de culturas
aeróbicas. Sem boas condições de mistura, pode haver
zonas onde os nutrientes se esgotam ou se encontram
em excesso e inibem a atividade celular.

Pode-se concluir que a agitação é uma das opera-


ções mais importantes em um biorreator e a sua
efetividade depende muito das condições reológicas do
fluido.

Há diferentes métodos para misturar o conteúdo


de um biorreator. Nesta aula vamos nos concentrar na
técnica mais comum empregada industrialmente, que é
a agitação mecânica usando um impelidor.

Resumo

Mistura A mistura é o processo de homogeneização das propri-


edades de um fluido, eliminando gradientes de tempe-
ratura, concentração, etc.

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Figura 2: Esquema de tan-
Figura 1: Configuração típica que agitado com indicação de
de um tanque agitado.[1] dimensões.[2]

Equipamento de agitação

Como ocorre a agitação O biorreator mais comum na indústria é o tanque agi-


mecânica em biorreato- tado, seja em operação contínua ou seja em batelada.
res?
Esses tanques têm forma cilíndrica e, sempre que
possível, sua base tem cantos arredondados, em vez
de ângulos retos onde poderia-se formar regiões com
fluido estagnado (Figuras 1 e 2).

A agitação é promovida por um equipamento de-


nominado impelidor, montado sobre um suporte ligado
a um motor e posicionado no eixo de simetria do tanque.
É preciso haver boa vedação na área onde o eixo atra-
vessa o topo do biorreator para evitar contaminações.
Para fermentações envolvendo fluidos newtonianos,
normalmente o diâmetro do impelidor vale um terço do
diâmetro do tanque (Di = 13 DT ) e a altura de líquido é
igual ao diâmetro do tanque (HL = DT ).

A rotação do impelidor faz com que o fluido se


movimente em um padrão de circulação regular em
torno do eixo do cilindro, mas a rotação pura e simples
não propicia boas condições de mistura entre fluidos
a diferentes alturas no tanque. Além disso, a rotação
a altas velocidades pode provocar o aparecimento de
vórtices (curvatura da superfície do fluido formando
uma cavidade cônica), que aumentam o desgaste do
eixo e da vedação.

Para prevenir esses problemas, os reatores são


projetados com chicanas, placas metálicas verticais
montadas contra a parede do tanque que impõem um
obstáculo ao movimento do fluido e contribuem para
melhorar a mistura. Geralmente se usa quatro chicanas
igualmente espaçadas e com comprimento da ordem
1
de um décimo do diâmetro do tanque (WB = 10 DT ).
Alternativamente, para fluidos muito viscosos, as chi-
canas podem ser montadas mais afastados (distância
1
de ≈ 50 DT ) da parede do tanque, o que ajuda a prevenir
sedimentação e o aparecimento de regiões estagnadas
próximas à parede do tanque (Figura 3).

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Figura 3: Arranjos de chicanas: (a) ligados à parede para líquidos
de baixa viscosidade, (b) longe da parede para viscosidade mode-
rada e (c) em ângulo para altas viscosidades.[1]

Figura 4: Designs de impelidores: âncora, hélice ou propulsor ma-


rinho, disco de placas planas ou turbina de Rushton (acima), remo,
âncora de portão e hélice parafuso (abaixo).[1]

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Figura 5: Padrões de escoamento produzidos por impelidor em
tanque com chicanas. (a) visão lateral e (b) visão inferior.[1]

Como ocorre a agitação Há vários designs possíveis para impelidores e uma al-
mecânica em biorreato- guns deles estão mostrados na Figura 4. A seleção do
res? tipo de impelidor está relacionada com viscosidade do
líquido e sua sensibilidade a cisalhamento mecânico. A
placa de pás planas (turbina de Rushton) e a hélice são
as mais usadas por serem apropriadas para uma ampla
faixa de viscosidades, de baixas a moderadas. Para al-
tas viscosidades, a turbina de âncora portão ou hélice
parafuso seria preferível.

Qual é o mecanismo físico Como mostra a Figura 5, o padrão de escoamento pro-


da mistura em um tanque vocado pela agitação forma grandes loops de circula-
agitado? ção, correntes com velocidade suficiente para transpor-
tar material através do tanque. Esse processo é co-
nhecido como distribuição ou macromistura. A mistura
também ocorre em menor escala na forma de disper-
são e difusão. A diferença entre elas é que a dispersão
ocorre na escala dos redemoinhos provocados pela tur-
bulência e a difusão ocorre em escala molecular.

Resumo

Equipamentos para agita- A agitação em biorreatores de tanque depende de um


ção eixo rotatório ligado a um motor em uma extremidade
e a um impelidor em outra. Esse eixo deve ser vedado
para provocar contaminação e chicanas são posiciona-
das nas paredes do reator para melhorar as condições
de mistura e transferência de potência.

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Dimensionamento da agitação

Em que consiste “dimen- Dimensionar um tanque agitado consiste em especifi-


sionar” um sistema de car a potência necessária para atingir boas condições
mistura? de mistura dado que o volume e as proporções geomé-
tricas entre as dimensões do biorreator sejam conheci-
das. Consiste também em relacionar essa potência com
variáveis como a frequência de rotação do impelidor e
propriedades do fluido.

Líquidos newtonianos

Como dimensionar o bi- Fluidos newtonianos são aqueles para os quais existe
orreator quando o líquido uma relação linear entre a tensão cisalhante sobre um
é newtoniano? meio e a razão de cisalhamento resultante (gradiente
de velocidade causado), γ̇ = dvdy . A constante de pro-
porcionalidade entre essas duas grandezas é a viscosi-
dade.
τ = µγ̇ (1)
A medição da potência transmitida a um fluido new-
toniano por um sistema de agitação (que é diferente
da potência total requerida pelo sistema, devido a
perdas de energia) pode ser efetuada por exemplo, por
dinanômetros ou sensores/transmissores de pressão
do tipo strain-gauge.

A capacidade de transmissão de potência do impe-


lidor para o líquido depende de uma grande quantidade
de variáveis de projeto (tipo e diâmetro do impelidor,
frequência de rotação), geométricas (diâmetro do
tanque, altura da coluna líquida, existência de chicanas
e sua largura, ver Figura 2) e propriedades do fluido
(densidade e viscosidade do líquido).

As características geométricas do tanque e a vis-


cosidade do líquido costumam ser agrupadas em um
coeficiente adimensional chamado número de potência
(NP ). A potência transmitida ao líquido (P ) então é
calculada como:

P = NP ω3 Di5 ρ (2)

onde ω é a frequência de agitação (rotações por uni-


dade de tempo), Di é o diâmetro do impelidor e ρ é a
densidade do fluido. NP , por sua vez, é uma função de
!
HL DT WB
NP = f Re, Fr, , , ,··· (3)
Di Di Di

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Figura 6: Número de potência em função do Número de Reynolds
para impelidores tipo disco de pás planas e tipo hélice para o tan-
que agitado com dimensões padrão.

Como dimensionar o bi- ωD 2 ρ ωD 2


onde Re = µi é o número de Reynolds, Fr = g i
orreator para um líquido
newtoniano? é o número de Froude (relação entre inércia e peso
do fluido), HL é a altura da coluna de líquido, DT é o
diâmetro total do tanque , WB é a largura da chicana.

O cálculo do número de potência seria extrema-


mente complexo, de maneira que é determinado por
CFD* ou experimentalmente para uma dada geometria
do tanque. Na Figura 6 pode-se observar um ajuste
empírico do valor de NP em função de Re para um
tanque agitado com geometria fixa (o padrão HL = DT ,
Di = D3T , WB = D10T , etc.) para dois tipos de impelidores.

Pode-se dividir a figura em três regiões: uma re-


gião laminar (Re < 10), uma região de transição e uma
região turbulenta (Re > 104 ). O valor do número de
potência na região laminar pode ser aproximado por

k1
NP = =⇒ P = k1 ω2 Di3 µ (4)
Re
e na região turbulenta como

NP = k2 =⇒ P = k2 ω3 Di5 ρ (5)

onde k1 e k2 são constantes adimensionais. Pode-se


observar que na região turbulenta k2 ≈ 6 para a turbina
de pás e k2 ≈ 0, 5 para a hélice.

* Computational Fluid Dinamics ou “fluidodinâmica computacio-


nal” é um conjunto de técnicas numéricas que envolve a modelagem
da geometria tridimensional de um sistema de escoamento e a resolu-
ção dos balanços de massa, energia e momento que o descrevem em
um número muito grande de pontos. Apesar de ser uma ferramenta
poderosa que permite uma compreensão muito mais profunda do sis-
tema do que os métodos que estudamos aqui, CFD exige bastante es-
forço computacional e o hardware necessário para aplicá-la pode ter
um custo proibitivo para pequenas e médias empresas.

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Qual a influência da aera- A presença de bolhas de ar suspensas no líquido em
ção na potência? decorrência da aeração tem o efeito de reduzir a den-
sidade aparente do fluido, provocando uma redução
na potência que se consegue transferir ao líquido, em
relação ao líquido não aerado.

A hidrodinâmica do fluido gaseificado não é plena-


mente compreendida, de maneira o cálculo da potência
requerida por um sistema com aeração só pode ser
realizado através equações empíricas com aplicação
limitada. Um exemplo é a relação
 2 0,45
 P0 ωDi3 
Pg = 0, 706 ×  0,56  (6)
Q

onde Pg é a potência do fluido gaseificado, P0 seria a po-


tênca transferida para o mesmo fluido sem gaseificação
e Q é a vazão de gás fornecida. Todas as variáveis de-
vem estar no Sistema Internacional de Unidades para
haver compatibilidade dimensional com a constante de
proporcionalidade.

Líquidos não-newtonianos

Como dimensionar o rea- Fluidos não newtonianos são aqueles para os quais não
tor para um líquido não é possível estabelecer uma relação linear entre a ten-
newtoniano? são de cisalhamento sobre o meio e o gradiente de velo-
cidade por ela provocado. Para fluidos pseudoplásticos,
muito frequentes em bioprocessos,

τ = K γ̇ n (7)

onde K é o chamado índice de consistência, com


dimensão [ML−1 Tn−2 ], e n é o índice de comportamento
do fluido. Quando 0 < n < 1, o fluido é chamado pseu-
doplástico, n > 1 é dilatante. Quando n = 1, o fluido é
newtoniano e K equivale à viscosidade.

Em fluidos não newtonianos não é possível definir


uma viscosidade propriamente, mas pode-se utilizar
o conceito de “viscosidade aparente”, que pode ser
utilizado para o cálculo do número de Reynolds.

τ =µap γ̇ (8)
n−1
onde, µap = K γ̇ (9)

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Como dimensionar o rea- Para tanques agitados com fluidos pseudoplásticos a
tor quando o fluido é não- razão de cisalhamento em um fluido não-newtoniano
newtoniano? costuma ser aproximada por

γ̇ = kωi (10)

Onde k é uma constante que depende do tipo de impe-


lidor, valendo em torno de 10 para impelidores de disco
com pás planas, por exemplo. Assim, para uma con-
dição de agitação e a aeração em estado estacioná-
rio, pode-se utilizar um número de Reynolds modificado
para o cálculo do número de potência.

µap = K(kωi )n−1 (11)


ω2−n Di2 ρ
Re = (12)
Kk n−1
A relação entre o número de potência e o número
de Reynolds aparente para fluidos não-newtonianos
é similar à relação que existe no caso dos fluidos
newtonianos (Figura 6) e as equações utilizadas para
cálculo da potência com e sem aeração, Equações (2)
e (6), permanecem válidas.

Em reatores com disco de pás planas, para núme-


ros de Reynolds abaixo de 10 e acima de 200, a
transferência de potência para fluidos newtonianos e
pseudoplásticos com viscosidade aparente semelhante
é essencialmente a mesma. Na região intermediária, os
pseudoplásticos costumam transferir menos potência.

Resumo

Dimensionamento de sis- O dimensionamento de reatores de tanque agitados


temas de mistura depende da reologia do fluido. Para fluidos não-
newtonianos é preciso encontrar um valor aparente
para a viscosidade que permita o cálculo do número de
Reynolds. Esse adimensional pode ser relacionado com
o número de potência, que por sua vez permite calcular
a potência transferida para o fluido.

Bibliografia
[1] P.M. Doran. (2013). Bioprocess Engineering Principles. Academic Press. 2a ed., Capítulos 7 e 8.
[2] W. Schmidell et al. (2001). Biotecnologia Industrial. Volume 2 - Engenharia Bioquímica. Edgard
Blücher, 1a ed., Capítulo 14.

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