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Aula 4: Transferência de Massa Gás-Líquido

Prof. Gabriel de Castro Fonseca (DQBIO/UFSJ)


Projeto de Biorreatores

Contextualização

Qual é a importância da A disciplina de Cinética e Cálculo de Biorreatores exa-


transferência de massa mina o comportamento de reatores ideais, assumindo
em bioprocessos? condições de mistura perfeita ou um escoamento
pistonado ideal.

Em Projeto de Biorreatores examinamos com mais


detalhes condições mais realistas de operação de
biorreatores. Há muitas situações onde gradientes
de concentração não podem ser ignorados, como por
exemplo processos com enzimas ou células imobiliza-
das ou em suspensão.

A imobilização de biocatalisadores consiste em


encapsulá-los em um gel ou uma superfície e é útil para
facilitar a sua separação do caldo fermentado, o que é
importante, por exemplo, quando as enzimas são caras
e precisam ser reaproveitadas. A imobilização de célu-
las pode ser intencional ou elas podem se sedimentar
naturalmente, formando suspensões aquosas.

Outro exemplo muito importante envolve os pro-


cessos aeróbios. O tratamento de águas residuárias
e a produção de antibióticos, vacinas, enzimas, vita-
minas, fermentos/inóculos e proteínas recombinantes
(hormônios de crescimento, insulina, etc.) em sua
maioria só acontecem na presença de oxigênio.

O oxigênio, contudo, tem solubilidade muito baixa


em água, o que pode ser ilustrado pela equação
estequiométrica de oxidação da glicose:

C6 H12 O6 + 6O2 −−−→ 6CO2 + 6H2 O (1)

Enquanto a solubilidade da glicose é da ordem de


centenas de gramas por litro, a solubilidade do oxigênio
é de aproximadamente 7 mg/L a 1 atm e 35 °C. E seis
moléculas de oxigênio são necessárias para cada mo-
lécula de glicose. Em termos mássicos, considerando
que o peso molecular da glicose é de 180 g/mol e o de
seis oxigênios é de 6 × 32 = 192 g/6 mol, nessecita-se
1,14 g de O2 para cada grama do açúcar.

Podemos concluir que o cultivo de células aeróbias


ou aeróbias facultativas requer o suprimento de
grandes quantidades de oxigênio para o meio. O
dimensionamento adequado de um sistema de aeração
(ou de qualquer tipo de reator heterogêneo) requer a
compreensão dos mecanismos do transporte de massa.

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Figura 1: Gradente de concentração de um componente A indu-
zido transferênca de massa através da área a.[1]

Mecanismos de
Transferência de Massa

Como ocorre a transfe- Como vimos na última aula, um fluido se mistura em um


rência de massa? reator por três mecanismos: distribuição, dispersão e
difusão. Esses dois primeiros são duas facetas do fenô-
meno da convecção acontecendo em duas escalas, a do
tanque e a dos redemoinhos no escoamento turbulento.
A difusão é um fenômeno que ocorre no nível molecular.

Difusão

O que é difusão? Difusão é o fenômeno natural pelo qual um gradiente


de concentração no espaço decresce espontanea-
mente. O mecanismo da difusão se baseia apenas no
movimento aleatório das partículas em uma solução.
Se cada partícula tem uma probabilidade igual de estar
em qualquer ponto do espaço, espera-se que diferenças
de concentração em uma amostra desapareçam com o
tempo.

Por exemplo, considere um sistema com dois com-


ponentes A e B e a concentração de A inicialmente é
não uniforme, variando entre CA1 e CA2 em função da
distância y. O espaço pode ser dividido por uma área a,
conforme mostrado na Figura 1. Como há maior quan-
tidade de A do lado direito da figura e o seu movimento
é aleatório, haverá mais A atravessando a área a da
direita para a esquerda do que da esquerda para a
direita até que as quantidades molares de substância
se igualem em ambos os lados.

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Como se quantifica a di- Em sistemas com uma única fase, a taxa de transferên-
fusão? cia de massa devida à difusão pode ser descrita pela Lei
de Fick da Difusão,
NA dC
JA = = −DAB A (2)
a dy

Onde JA , [NT−1 L−2 ], é o fluxo molar do componente


A, NA , [NL−3 T−1 ], é a taxa de transferência molar,
a, [L−1 ] é a área de contato por unidade de volume,
DAB , [L2 T−1 ], é o coeficiente de difusão binária de A
através da mistura binária A + B, CA , [NL−3 ], é a con-
centração do componente A e y, [L], é uma distância
ao longo da qual existe variação de concentração.

Qual é o papel da difusão A agitação mecânica em um tanque provoca o apare-


nos bioprocessos? cimento de correntes de fluido que transportam mate-
rial ao longo do equipamento e a turbulência do esco-
amento produz redemoinhos que aumentam a intensi-
dade da mistura. A mistura causada pela turbulência,
no entanto, só ocorre até a dimensão de tamanho dos
menores redemoinhos. Essa dimensão pode ser esti-
mada pela escala de comprimento de Kolmogorov, dada
por
!1
ν3 4
λ= (3)

onde λ é a dimensão característica dos menores re-
µ
demoinhos, ν = ρ é a viscosidade cinemática do fluido
(razão entre viscosidade dinâmica e densidade) e  é
a taxa local de dissipação de energia turbulenta por
unidade de massa do líquido, cujo valor varia com a
intensidade da turbulência. Para fluidos pouco viscosos
em um biorreator, essa dimensão tipicamente está na
ordem de 30 a 100 µm, o que apesar ser uma distância
pequena, ainda é maior que o tamanho de células
bacterianas. A mistura em dimensões abaixo da escala
de Kolmogorov depende exclusivamente da difusão.

Outra situação na qual a difusão é importante são


as biorreações em fase sólida, que podem ocorrer
quando as células se encontram aglomeradas em
flocos e filmes ou quando células e enzimas são imo-
bilizadas em partículas sólidas. Nesses casos, o único
mecanismo de transporte entre o substrato e a célula e
entre o produto e o fluido é a difusão molecular.

A transferência de massa entre gases e líquidos


ou entre líquidos imiscíveis também depende da di-
fusão. Quando duas fases diferentes entram em
contato, a velocidade dos fluidos nas proximidades da
interface se reduz significativamente e a difusão se
torna importante para o transporte entre as fases. Essa
região próxima à interface é chamada camada limite
da transferência de massa ou película estagnada.

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Convecção

Qual é a relação entre A transferência de massa por convecção é aquela que


convecção e difusão? ocorre na presença de movimento em uma massa de
fluido. Esse movimento ocorre na escala das correntes
de fluido e dos redemoinhos resultantes do escoamento
turbulento, que como vimos, é maior do que a escala
de células individuais. A convecção tem grande impor-
tância, porém, em processos interfaciais, uma vez que
afeta a espessura da película estagnada que envolve
bolhas de ar e partículas sólidas com biocatalisadores
imobilizados, cujas dimensões são superiores à escala
de Kolmogorov.

A espessura da película estagnada δ é definida como


a região próxima à interface entre duas fases onde a
velocidade do escoamento de um fluido é desacelerada
por ação da viscosidade até um valor menor ou igual a
99 % da sua velocidade a uma distância muito grande
da interface. Ou seja, u(y) ≤ 0, 99ub para 0 ≤ y ≤ δ, onde
u é a velocidade do fluido, ub é a velocidade do seio do
fluido e y é uma distância medida a partir da interface.

Se a película estagnada afeta o gradiente de concen-


tração da mesma maneira que afeta o de velocidade e
se sua espessura for muito menor que a dimensão da
interface (o que no escoamento turbulento geralmente
é verdade), pode-se considerar que as propriedades
do fluido variam de forma aproximadamente linear ao
longo de sua espessura. Ou seja, da Equação (2),

CAb − CAi
NA = DAB a
δ
NA = kc a(CAb − CAi ) (4)

Onde CAb é a concentração de A no seio do fluido e CAi


na interface. A constante kc = DδAB é o coeficiente con-
vectivo de transferência de massa, que depende da ve-
locidade do fluido, da geometria do sistema e de propri-
edades do fluido e costuma ser medido experimental-
mente ou estimado a partir de correlações disponíveis
na literatura. Para o escoamento ao redor de uma es-
fera, por exemplo, vale a correlação de Frössling

Sh = 2 + 0, 6Re1/2 Sc1/3 (5)


kc dp
Onde Sh = DAB é o número de Sherwood (dp é o diâmetro
u d
da partícula esférica), Re = bν p é o número de Reynolds
µ
e Sc = Dν é o número de Schmidt (ν = ρ é a viscosidade
AB
cinemática), todos números adimensionais. Observe a
velocidade do fluido afeta Re, que por sua vez afeta Sh
e consequentemente kc . Em última análise, convecção
e difusão são o mesmo fenômeno, mas com influência
da velocidade sobre o transporte.

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Transferência de massa gás-líquido

Como funciona a difusão Há três situações comuns de transferência de massa


gás-líquido? entre diferentes fases nos bioprocessos: transferência
de massa líquido-líquido (solventes imiscíveis), sólido-
líquido e gás-líquido. O primeiro caso é mais comum em
processos de separação do que biorreatores e não será
discutido. O segundo caso será discutido em detalhes
numa aula futura, quando forem discutidas as reações
heterogêneas. No restante desta aula, vamos focar na
transferência de massa gás-líquido, que é importante
para reatores aerados.

A difusão de oxigênio através de uma bolha de ar


suspensa em um meio aquoso até a reação aeróbia em
um microrganismo (Figura 2) ocorre em oito etapas:
1. difusão através de uma película estagnada entre
o seio da bolha e a interface entre a bolha e a so-
lução.

2. resistência imposta pela interface gás-líquido.


3. difusão através de uma película estagnada de lí-
quido ao redor da bolha.
4. convecção do oxigênio no seio do fluido até pelí-
cula estagnada entre o líquido e o microrganismo.
5. difusão através da película estagnada em volta da
célula.
6. resistência imposta pela membrana celular.

7. difusão do oxigênio pelo citoplasma.


8. velocidade da reação de consumo de oxigênio
A resistência imposta pela primeira etapa é desprezível,
devido à intensa movimentação de moléculas de gases.
A resistência oferecida pela interface gás-líquido tam-
bém costuma ser desprezível, a menos que a solução
contenha substâncias capazes de aderir à interface,
como alguns antiespumantes químicos. A taxa de
transferência de oxigênio da bolha para a solução é
limitada pela difusão através da película de líquido es-
tagnado, o que costuma ser a etapa de transporte que
impõem maior resistência à transferência de massa.

A convecção do oxigênio no seio do fluido é uma


função da agitação no tanque. Em relação ao con-
sumo de oxigênio pela célula, a pequena dimensão
do microrganismo, entre cem e mil vezes menor do
que as bolhas, torna a difusão através de sua pelí-
cula estagnada desprezível. A membrana também
não oferece resistência ao oxigênio. A difusão pelo
citoplasma é desprezível em células procarióticas mais
simples. A etapa limitante, portanto, costuma ser a
própria velocidade da respiração celular ou a difusão
do oxigênio pela película estagnada.

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Figura 2: Transferência de oxigênio da bolha de ar até a célula.

pelíc
ula e
st agna
da

bolha
de ar
1 3 4 6
+
×
2 5 7 8

Célula

Como se calcula o fluxo A difusão molecular do oxigênio ocorre através da pelí-


de transferência de oxigê- cula estagnada que envolvem a bolha de ar. Aplicando
nio? a Equação (4), o fluxo de massa do oxigênio pode ser
escrito como:
NG = kG a (CG − CGi ) (6)
onde CG é a concentração de gás no seio da bolha
e CGi é a concentração na interface. A constante kG
é o coeficiente que representa a permeabilidade da
película à transferência de massa.

Analogamente, pode-se escrever o fluxo de massa


de oxigênio através da película estagnada líquida como

NL = kL a (CLi − CL ) (7)

Como a quantidade de oxigênio que atravessa a pelí-


cula líquida é a mesma que atravessou a película ga-
sosa, pode-se dizer que os fluxos molares de oxigênio
através das duas películas são iguais.

NO2 = NG = NL (8)
NO2 = kG a(CG − CGi ) = kL a(CLi − CL ) (9)

Resumo

Transferência de oxigênio A transferência de oxigênio de uma bolha de ar até a cé-


lula enfrenta uma série de resistências, geralmente, as
etapas limitantes são a transferência de oxigênio atra-
vés da película estagnada líquida e a reação na célula.

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Como se calcula o fluxo A Equação (9) é de pouca utilidade porque não se pode
de transferência de oxigê- medir os valores das concentrações interfaciais de oxi-
nio? gênio (CGi e CLi ). Por isso, em seus lugares utiliza-se
a concentração de oxigênio na fase gasosa que esta-
ria em equilíbrio com a concentração de oxigênio obser-
vado na fase líquida (CG∗ ) e a concentração de oxigênio
na fase líquida que estaria em equilíbrio com a concen-
tração de oxigênio observado na fase vapor (CL∗ ). Essa
aproximação é válida somente para soluções muito di-
luídas, o que felizmente é o caso, já que o oxigênio é
pouco solúvel em água.

NO2 = kG a(CG − CG∗ ) = kL a(CL∗ − CL ) (10)

A equação contendo as concentrações de oxigênio na


fase líquida tem mais utilidade em projeto de biorreato-
res.
dCO2
NO2 = = kL a(CL∗ − CL ) (11)
dt
onde a é área total da interface gás-líquido dividida
pelo volume total de líquido. Para uma única bolha
esférica a = d6 , se d é o diâmetro da bolha e se não há
substâncias adsorvidas à bolha que possam prejudicar
a transferência de oxigênio. A forma das bolhas pode
também ser deformada pela agitação.

Como a área interfacial é de difícil mensuração,


principalmente pela grande quantidade de bolhas dis-
persas no biorreatores, esse parâmetro não é medido
diretamente, mas agrupado ao parâmetro kL em um
coeficiente volumétrico de transferência de oxigênio, o
kL a, que é determinado experimentalmente medindo-se
a oxidação de um composto químico em solução.

Apesar da sua simplicidade, a Equação (11) é muito


importante, pois permite compreender todas as formas
de que se dispõe para o controle da concentração de
oxigênio dissolvido em uma solução. Deseja-se aumen-
tar o valor do kL a o máximo possível, o que pode ser
atingido, por exemplo, aumentando a pressão absoluta
do gás, o que aumenta o valor da concentração de
oxigênio de exilíbrio na fase líquida (CL∗ ); aumentando a
agitação no tanque, o que reduz o tamanho das bolhas,
ao mesmo tempo aumentando a razão área/volume (a)
reduzindo a espessura das películas estagnadas em
torno das bolhas (aumenta kL ). Agitação e aeração em
biorreatores será o tema da próxima aula.

Resumo

Fluxo molar de oxigênio O oxigênio se difunde do interior de bolhas de ar até


uma solução líquida e daí é transportado por convec-
ção até as células. As etapas limitantes desse processo
costumam ser a difusão pela película estagnada de lí-
quido e a reação aeróbia em si.

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Respiração microbiana

Como a transferência de Células em culturas aeróbicas recebem oxigênio dissol-


massa afeta a respiração vido no líquido por difusão. A taxa de transferência de
celular? oxigênio tem importância fundamental, principalmente
para altas concentrações celulares, quando seu cresci-
mento será provavelmente limitado pela disponibilidade
de oxigênio.

A taxa de consumo de oxigênio pelas células de-


termina a taxa de transferência que deve ser atingida
no biorreator. Essa taxa de consumo depende de vários
fatores, sendo os principais a espécie da célula, etapa
do crescimento celular (latência, exponencial, etc.) e
fonte de carbono no meio.

A taxa de consumo de oxigênio e a taxa específica


de consumo costumam ser representadas respectiva-
mente por
QO2 = qO2 CX (12)
A demanda inerente de oxigênio do organismo (qO2 )
depende primeiramente da natureza bioquímica da
célula e dos nutrientes no ambiente. Ela não depende
da concentração de oxigênio no meio, a menos que a
concentração do gás caia abaixo de uma valor crítico
CL < Ccrit . Isso significa que, para que o oxigênio não
seja um fator limitante para o metabolismo celular,
deve-se almejar que a concentração de oxigênio em
qualquer ponto do fermentador seja superior a Ccrit
(geralmente situado entre 0,3 e 0,7 mg/L).

Abaixo de Ccrit , é comum relacionar a demanda


inerente de oxigênio à concentração do gás em solução
por uma cinética do tipo Monod (qO2 é análogo e tem
mesma unidade que µ).

qmax CL
qO2 = (13)
KO2 + CL

onde qmax é constante e equivale a qO2 quando


CL > Ccrit . KO2 é uma constante de saturação e está
relacionada com quanto o consumo de O2 perde velo-
cidade quando sua concentração diminui.

No estado estacionário o consumo de oxigênio deve


equivaler à sua taxa de transferência

kL a(CL∗ − CL ) = qO2 CX (14)

Bibliografia
[1] P.M. Doran. (2013). Bioprocess Engineering Principles. Academic Press. 2a ed., Capítulo 10.
[2] H.S. Fogler. (2004). Elementos de Engenharia das Reações Químicas, 4a ed. Capítulos 11.

[3] W. Schmidell et al. (2001). Biotecnologia Industrial. Volume 2 - Engenharia Bioquímica. Edgard
Blücher, 1a ed., Capítulo 14.

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