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CAPÍTULO XXVI

CÍNICOS E CÉTICOS
RUSSELL, Bertrand, História da filosofia ocidental, 1957, pp. 211-214

(...)
Quatro escolas de filosofia foram fundadas no tempo de Alexandre. As duas mais famosas
– a dos estóicos e a dos epicuristas – serão objeto de capítulos posteriores; no presente
capítulo, trataremos dos cínicos e dos céticos.
A primeira dessas escolas se deriva, através de seu fundador Diógenes, de Antístenes, um
discípulo de Sócrates, cerca de vinte anos mais velho que Platão. Antístenes era um tipo
notável, sob certos aspectos um tanto semelhante a Tolstoi. Até depois da morte de
Sócrates, viveu no círculo aristocrático de seus condiscípulos, não revelando qualquer
sinal de heterodoxia. Mas algum motivo – a derrota de Atenas, ou a morte de Sócrates,
ou o seu desagrado pelas cavilações filosóficas – fez com que ele, já não muito jovem,
passasse a desprezar as coisas que anteriormente apreciara. Não queria saber de outra
coisa senão da simples bondade. Associou-se aos trabalhadores, e vestia-se como eles.
Entregou-se a prédicas ao ar livre, num estilo que as pessoas incultas podiam
compreender. Reputou inútil toda a filosofia refinada; aquilo que se podia conhecer, podia
ser conhecido pelo homem simples. Acreditava na “volta à natureza”, tendo levado muito
longe tal crença. Não devia haver governo, nem propriedade privada, nem casamento,
nem religião estabelecida. Seus adeptos, senão ele, condenavam a escravidão. Não era
exatamente um asceta, mas desdenhava o luxo e a busca de todos os prazeres artificiais
dos sentidos. “Fui mais louco que voluptuoso”, diz ele. {96}
A fama de Antístenes foi ultrapassada pela de seu discípulo Diógenes, “um jovem de
Sinope, no Euxino, com quem ele (Antístenes) não se simpatizara à primeira vista; era
filho de um cambista de má reputação, que fora enviado à prisão por falsificar moedas.
Antístenes mandou o rapaz embora, mas este não lhe deu atenção; bateu-lhe com seu
bastão, mas o outro nem sequer se moveu: Queria “sabedoria”, e viu que Antístenes podia
dar-lha. Seu objetivo na vida era fazer o que o pai havia feito: “falsificar a moeda”, mas
numa escala muito maior. Falsificaria toda a moeda corrente do mundo. “Todas as
cunhagens convencionais eram falsas. Os homens cunhados como generais e reis; as
coisas, cunhadas como honra e sabedoria e felicidade e riquezas; tudo era metal vil com
inscrições mentirosas”. {97}
Resolveu viver como um cão e, por isso, foi chamado “cínico”, que significa “canino”.
Rejeitou todas as convenções, quer fossem de religião, de maneiras, de trajos, de
habitação, de alimentação ou de decência. Contam-nos que vivia num tonel, mas Gilbert
Murray nos assegura que isto é um erro: tratava-se de um grande cântaro, dos que eram
usados, nos tempos primitivos, para os enterros. {98} Como um faquir indiano, vivia
mendigando. Proclamava a sua irmandade não só com toda a raça humana, mas também
com os animais. Era um homem em torno do qual se amontoavam histórias, mesmo no
tempo em que viveu. Toda a gente sabe como Alexandre o visitou, perguntando-lhe se
desejava algum favor; “desejo somente que não me tires o sol”, respondeu.
A doutrina de Diógenes não era, de modo algum, o que hoje chamaríamos “cínica”, mas
precisamente o contrário. Sentia ardente paixão pela “virtude”, em comparação com a
qual considerava sem importância os bens terrenos. Procurava a virtude e a liberdade
moral na libertação do desejo: sê indiferente aos bens que a fortuna tem para oferecer, e
estarás livre do medo. A este respeito, sua doutrina, como veremos, foi adotada pelos
estóicos, mas não o seguiram na parte referente à rejeição das amenidades da civilização.
Considerava que Prometeu foi justamente castigado por trazer ao homem as artes que
produziram a complicação e a artificialidade da vida moderna. Nisto, parece-se aos
taoístas, a Rousseau e a Tolstoi, mas era mais coerente que eles.
Sua doutrina, embora ele fosse contemporâneo de Aristóteles, pertence, por sua tempera,
à época helenística. Aristóteles é o último filósofo grego que enfrenta o mundo
alegremente; depois dele, todos os outros praticaram, desta ou daquela forma, uma
filosofia de fuga. O mundo é mau; aprendamos a tornar-nos independentes dele. Os bens
externos são precários; são dons da fortuna, e não a recompensa de nossos próprios
esforços. Somente os bens subjetivos – a virtude, ou o contentamento pela resignação –
são seguros e, portanto, terão valor para o homem sensato. Pessoalmente, Diógenes era
um homem cheio de vigor, mas sua doutrina, como todas as da época helenística, era de
molde a seduzir o homem cansado, em quem as decepções houvessem destruído o
entusiasmo natural. E não foi, certamente, uma doutrina calculada para promover a arte,
a ciência e a estadística, ou qualquer atividade útil, exceto a de protestar contra o poder
do mal.
É interessante observar-se em que se transformou a doutrina cínica, ao popularizar-se. Na
primeira parte do terceiro século antes de Cristo, os cínicos estavam na moda,
principalmente em Alexandria. Publicaram pequenos sermões assinalando quão fácil é a
gente viver sem posses materiais, quão feliz se pode ser com alimentos simples, e de que
maneira pode a gente aquecer-se no inverno sem roupas dispendiosas (o que poderia ser
verdade no Egito!), e como era tolice sentir-se afeto pelo seu próprio país ou lamentar a
morte dos filhos ou amigos. “Porque meu filho ou minha esposa morreram — diz Teles,
que era um destes cínicos populares — há alguma razão para que eu não cuide de mim
mesmo, que ainda vivo, ou que deixe de zelar pela minha propriedade?” {99} Neste
ponto, é difícil sentir-se simpatia pela vida simples, que se tornou demasiado simples.
Fica-se a imaginar quais eram os indivíduos que apreciavam tais sermões. Era o rico, que
desejava pensar nos sofrimentos dos pobres como se fossem imaginários? Ou era o pobre,
que estava procurando desprezar o homem de negócios bem-sucedido? Ou eram os
bajuladores, que desejavam convencer a si mesmos de que não tinha importância a
caridade que aceitavam? Diz Teles a um rico: “Tu dás liberalmente e eu tomo
corajosamente de ti, sem rastejar, resmungar ou rebaixar-me”. {100} Uma doutrina muito
conveniente, sem dúvida. O cinismo popular não ensinava a abstinência das coisas boas
do mundo, mas apenas uma certa indiferença diante delas. No caso do que toma
emprestado, isto poderia adquirir a forma de diminuir a obrigação para com o que
empresta. Pode ver-se, aqui, a maneira pela qual a palavra “cínico” adquiriu o seu
significado cotidiano.
O que havia de melhor na doutrina dos cínicos passou para o estoicismo, que era uma
filosofia muito mais completa e escorreita.

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