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8/10/22, 4:29 PM DMA e direito da concorrência na UE: o futuro chegou?

REGULAÇÃO

Digital Markets Act e direito da concorrência na UE: o futuro


chegou?
Parlamento Europeu aprovou lei que estabelece regras para grandes plataformas digitais

VICTOR OLIVEIRA FERNANDES

Crédito: Unsplash

Na última terça-feira, 5 de julho, o Parlamento Europeu aprovou a proposta do chamado


Digital Markets Act (DMA)[1], lei que estabelece regras para grandes plataformas com o
objetivo de tornar os mercados digitais mais contestáveis e justos. Em linhas gerais, o
instrumento define obrigações para um determinado grupo de agentes econômicos,
nomeados de gatekeepers. A lista dessas obrigações é bastante extensa, mas vale a pena
citar alguns exemplos como a proibição de combinar dados coletados em um mercado
principal com aqueles coletados por qualquer outro serviço prestados pela própria
empresa ou por terceiros (artigo 5, nº 2), o dever geral de interoperabilidade efetiva (artigo
6, nº 4 e 7) e a vedação à autopreferência de serviços do mesmo grupo econômico (artigo
6, nº 5).

Mesmo antes da aprovação do DMA, discutia-se como se daria a convivência da nova lei
com o regime do Direito Concorrencial europeu. Sempre se soube que a criação do DMA
foi movida por um certo desencantamento com os resultados lentos das intervenções
antitruste nos mercados digitais. Porém, nunca ficou claro se os princípios do Direito
Concorrencial seriam ou não aplicáveis à interpretação do novo diploma.

Uma resposta inconclusiva foi dada pelo Considerando nº 10 da lei aprovada, o qual
dispõe que “o DMA visa a complementar o enforcement da lei de defesa da concorrência” e
“ele deve ser aplicado sem prejuízo da incidência dos arts. 101 e 102 do Tratado de
Funcionamento da União Europeia” (traduções livres). Evidenciou-se, porém, que essa
incidência dos arts. 101 e 102 do TFUE “não deve afetar a imposição das obrigações aos
gatekeepers e a sua aplicação uniforme e efetiva no mercado interno europeu” (traduções
livres).

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Embora algumas vozes influentes do debate acadêmico há certo tempo sustentem que o
DMA perseguirá os mesmos objetivos do Direito da Concorrência, ainda que sem a
prevalência do critério do consumer welfare[2], há muitas razões para se crer que a nova lei
modificou a natureza de remédios que, embora inicialmente pensados para o regime
antitruste, agora protegem outros bens jurídicos[3]. As possibilidades de distanciamento
entre os objetivos do DMA e do TFUE colocam a nova lei numa “posição epistemológica
particular” (tradução livre)[4].

Esse debate não é meramente teórico. Quando as obrigações do novo DMA começarem a
valer a partir de 2024, a Comissão Europeia terá que esclarecer quais padrões de ilicitude
serão utilizados. É nesse momento que se questionará quanto do Direito Concorrencial
cabe dentro do DMA.

Mesmo que ainda seja cedo, o texto aprovado pelo Parlamento Europeu na semana
passada parece ter tentado, ao máximo, fugir das porosidades do Direito da Concorrência.
Isso fica particularmente claro em dois dos seus pilares: (i) o processo de designação de
gatekeeper e (ii) o conteúdo das suas obrigações.

A uma primeira vista, a designação do gatekeeper do artigo 3, nº 1, poderia ser aproximada


à lógica antitruste de posição dominante. Se esse fosse o desejo da nova lei, porém, o
DMA deveria ter conferido às empresas a possibilidade de refutar seu enquadramento
como gatekeeper, demonstrando que as condições reais de concorrência em um dado
mercado não lhes permitiriam agir como “importante gateway para transações entre
grupos de consumidores”, nos termos do artigo 3, nº 1, “b”.

O texto aprovado não caminhou nesse sentido. Ele presume a posição de gatekeeper a
partir de critérios quantitativos de faturamento ou de valor de mercado das empresas
(artigo 3, nº 2). Mesmo que o agente econômico tente refutar tal presunção, o
Considerando nº 23 definiu que a Comissão Europeia deverá considerar nessa fase
“apenas aqueles elementos diretamente relacionados aos critérios quantitativos” (tradução
livre) — tais como os valores de faturamento, número de usuários e a relevância do serviço
principal da plataforma nas suas vendas totais. Assim, as condições reais de concorrência
no mercado parecem ter sido tratadas como pouco relevantes para o enquadramento
normativo[5].

O segundo ponto de significativo rompimento com a lógica do Direito Concorrencial


moderno tem a ver com o desenho das obrigações regulatórias dos artigos 5º e 6º. O DMA
preferiu um regime ex ante de regras detalhadas e exaurientes à adoção de standards de
ilicitude típico da tradição antitruste. Isso aconteceu principalmente em relação às
obrigações listadas no artigo 5º do DMA, que serão autoaplicáveis e de maneira uniforme
para todos os serviços abrangidos pelo novo regime, isto é, independentemente das
especificidades de cada mercado ou dos efeitos econômicos esperados.

A escolha do modelo de regras exaurientes, a propósito, foi bastante criticada durante a


elaboração legislativa. Muitos acadêmicos alertaram que essa estratégia dificilmente será

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compatível com as transformações dos mercados digitais[6]. Nesse ponto, o DMA se


distanciou até mesmo da recente proposta de regulação concorrencial que está sendo
discutida do Reino Unido, que prevê princípios gerais de proibições às plataformas[7].

De todo modo, para fugir do risco de ver a lista de obrigações se tornar rapidamente
obsoleta, o DMA contemplou uma importante válvula de escape. O artigo 6 conferiu à
Comissão Europeia a discricionariedade de impor deveres adicionais aos gatekeepers, a
serem especificados em um processo dialógico com os agentes regulados, definido no
artigo 8.

Não está claro, porém, se o enforcement dessas obrigações adicionais será mais ou
menos rígido. Diversos autores aduzem que, ao menos em relação às obrigações mais
genéricas da lei, a Comissão deveria estar aberta a defesas baseadas na demonstração
em justificativas pró-competitivas[8]. Novamente, porém, o texto aprovado pelo Parlamento
sinalizou no sentido oposto, ao prever, no final do Considerando nº 23 que “quaisquer
justificativas econômicas que envolvam definição de mercado ou que busquem
demonstrar eficiências derivadas de um tipo específico de comportamento da empresa
devem ser descartadas, uma vez que não são relevantes para a designação como
gatekeeper” (traduções livres).

Em um balanço, o esforço de afastamento da lógica antitruste se deve a um diagnóstico


que restou muito claro no Relatório de Impacto Regulatório antecedente à proposta do
DMA. Nesse documento, firmou-se a crença de que “as normas existentes do Direito
Concorrencial europeu não são conceitualmente adequadas para lidar com as falhas de
mercado resultantes dos comportamentos dos gatekeeper” (tradução livre)[9].

Em alguma medida, tal desencantamento é de fato compreensível. Ao menos sob uma


abordagem “mais econômica”, a intervenção antitruste pode incorrer em ônus probatórios
excessivamente elevados para a demonstração de efeitos anticompetitivos, que ainda
devem ser seguidos da apreciação de eficiências. Não há dúvida de que, nos mercados
digitais, assim como em alguns outros setores específicos, o Direito Concorrencial parece
precisar hoje de uma dose de adrenalina.

Mas, mesmo diante desse diagnóstico, a melhor opção em termos de política pública é
necessariamente alterar o norte da intervenção estatal para um regime de regulação de
comando e controle? Não há dúvidas de que algumas obrigações previstas no DMA de
fato contribuem significativamente para ampliar a contestabilidade nos mercados digitais,
mas sua aplicação como regras per se podem gerar riscos não triviais de falsos positivos.

O que veremos nos próximos anos é a Comissão Europeia enfrentando o trade-off entre,
de um lado, a certeza e a precisão típica de um regime de intervenção regulatória, e do
outro, a flexibilidade e a resolutividade do Direito Concorrencial[10]. Ainda que o texto
aprovado na semana passada tenha tentado mover o pêndulo para o regime regulatório ex
ante, não há dúvidas de que, principalmente nas investigações de mercado e nas
fiscalizações em concreto, a autoridade se confrontada com argumentos baseados na

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teoria econômica que eventualmente demandarão apreciações caso a caso. O futuro


chegou, mas com as incertezas que lhe são inerentes.

[1] O texto final aprovado está disponível no link: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-

9-2022-0270_EN.html.

[2]  SCHWEITZER, H. The Art to Make Gatekeeper Positions Contestable and the Challenge to Know

What is Fair: A Discussion of the Digital Markets Act Proposal. Zeitschrift für europäisches Privatrecht, v.
3, n. 1, p. 503–544, 2021. (“EU competition law and the DMA essentially share the same aims, although
the latter should be read as an effort to recalibrate the goals of EU competition policy: away from the
protection of consumer welfare”).

[3] KERBER, W. Taming tech giants with a per se rules approach? The Digital Markets Act from the “rules

vs. standard” perspective. Concurrences Law Review, v. 3, n. 1, p. 28–34, 2021. p. 30.

[4] LAROUCHE, P.; DE STREEL, A. The European Digital Markets Act: A Revolution Grounded on

Traditions. Journal of European Competition Law and Practice, v. 12, n. 7, p. 542–560, 2021. p. 559–560.

[5] GERADIN, D. The leaked “final” version of the Digital Markets Act: A summary in ten points. The

Platform Law Blog.

[6] CENTRE ON REGULATION IN EUROPE (CERRE). The European Proposal for a Digital Markets Act – a

first assessment, 2021,  p. 21.

[7] CAPPAI, M.; COLANGELO, G. Taming digital gatekeepers: the ‘more regulatory approach’ to antitrust

law. Computer Law and Security Review, v. 41, n. 1, p. 1–17, 2021. p. 11.

[8] CENTRE ON REGULATION IN EUROPE (CERRE). The European Proposal for a Digital Markets Act – a

first assessment, 2021, p. 22.

[9] UNIÃO EUROPÉIA. COMISSÃO EUROPEIA. Commission Staff Working Document – Impact

Assessment Report – Proposal for The Digital Markets Act. Bruxelas, 2020, pp. 33-34.

[10] AKMAN, P. Regulating Competition in Digital Platform Markets: A Critical Assessment of the

Framework and Approach of the EU Digital Markets Act. European Law Review, v. 47, n. 1, p. 85–115,
2022, pp. 114-115.

VICTOR OLIVEIRA FERNANDES – Conselheiro do Tribunal Administrativo do Conselho Administrativo de Defesa


Econômica (Cade). Professor de Direito Econômico e de Direito da Concorrência nos cursos de graduação e pós-
graduação latu e strictu sensu do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Doutor em

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Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (FDUSP). Autor do livro “Direito da Concorrência das Plataformas
Digitais: entre abuso de poder econômico e inovação” (Thompson Reuters, 2022)

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