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tratado
de direito
comercial
Estabelecimento Empresarial
Propriedade Industrial
Direito da Concorrência

2015

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Editor~
Saraiva ISBN 978·85·02·63457·2 obro completo
ISBN 978·85·02·62946·2 volume 6 SUMÁRIO
Rua Henrique Schaumann, 270, Cerqueira César - São Paulo - SP
CEP 05413·909 Dodos Internocionois de Cotologoção no Publicoção (CIP)
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De 2~ a 6~, das 8:30 os 19:30 Tratado de direito comercial, volume 6 :
estabelecimento ~empresarial, propriedade industrial e
www.editorasaraiva.com.brjcontato direito da concorrência I Fábio Ulhoa Coelho. _ São
Paulo: Saraiva. 2015.

Vários autores.
Direção editorial Luiz Roberto Curia I, Direito comercial 2. Direito comercial _ Brasil 3.
Gerência editorial Thaís de Camargo Rodrigues Estabelecimento empresarial_ Brasil 4. Registro de
Editoria de conteúdo Eveline Goncalves Oenardi propriedade - Brasil I. Coelho, Fábio Ulhoa.

Assistência editorial Bruna Gime;ez Boani 15·02484


CDU.347.7(81)
VOLUME 6
Coordenação geral C/arissa Boraschi Maria índice poro cotólogo sistemótico:
Preparação de originais Maria Izabel Barreiros Bitencourt Bressan e 1. Brasil: Direito comercial ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL,
347.7(81)
Ana Cristina Garcia (coords.)
Projeto gráfico, arte e diagramação Mônica Landi PROPRIEDADE INDUSTRIAL E DIREITO DA
Revisão de provas Amélia Kassis Ward e CONCORRÊNCIA
Ana Beatriz Fraga Moreira (coords.) Data de fechamento da edição: 25-5-2015
Ivone Rufino Calabria
Maria de Lourdes Appas Dúvidas? Apresentação ................................................................................................. . 7
Serviços editoriais Elaine Cristina da Silva Acesse wvvw.editorasaraiva.com.br/direito
Kelli Priscila Pinto
Tatiana dos Santos Romão
Parte 19
Capo Andrea Vilela de Almeida Nenhuma parte ?esta publicação poderá ser reproduzida
por qualquer melO ou forma sem a prévia autorização da
Editora Saraiva.
Estabelecimento empresarial e seus contratos
Produção gráfico Marli Rampim A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na
Impressão Pral Editora Gráfica Lei n. 9.610/98 e punido pelo art. 184 do Código Penal. Capítulo 19.1 A natureza jurídica do estabelecimento comercial
Acabamento Prol Editora Gráfica /140.367.001.001 I Oscar Barreto Filho ...................................................................... . 13
Capítulo 19.2 Estabelecimento empresarial no Código Civil
Paula Castello Miguel. .................................................................. . 37
Capítulo 19.3 Comércio Eletrônico
Maria Eugênia Finkelstein .........................................................\ .. . 61
Capítulo 19.4 Trespasse
Ivo "Waisberg................................................................................. . 84
Capítulo 19.5 Sucessão no trespasse
SUPERIOR TRIBUNAl OE JUSTIÇA Fdbio Ulhoa Coelho ..................................................................... . 98
BIBLIOTECA M. OSCAR SARAIVA Capítulo 19.6 Locação empresarial
Pedro Henrique Laranjeira Barbosa ............................................. .. 116
DATA
Capítulo 22.1

o SISTEMA BRASILEIRO DE DEFESA


DA CONCORRÊNCIA

Vinícius Marques de Carvalho*

1. INTRODUÇÃO

A Lei n. 12.529/2011 estabelece no art. 1Q como sua finalidade a pre-


venção e a repressão às infrações contra a ordem econômica orientada pelos
princípios constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência,
função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso
do poder econômico.
Como aponta Comparato, "a Constituição, com efeito, declara que a
ordem econômica deva assentar-se, conjuntamente, na livre-iniciativa e na
valorização do trabalho humano. E assinala que o objetivo global e último
dessa ordenação consiste em 'assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social' (art. 170, caput). É em função desse objetivo último
de realização da justiça social que devem ser compreendidos e harmonizados
os demais princípios expressos no art. 170, a par da livre concorrência, a saber,
especificamente, a função social da propriedade, a defesa do consumidor, a
redução das desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno emprego e o
tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pe-
queno porte"!.

* Doutor em Direito Comparado pela Universidade Paris I (Pantheón-Sorbonne). Dou-


tor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Professor da Faculdade de
Direito da USP. Presidente do Conselho administrativo de Defesa Econômica - CADE.
Regime constitucional de controle de preços no mercado. Revista de Direito Público,
v. 97, 1991, p. 19.
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São esses os princípios que fundamentam as regras de repressão ao abuso J á os concorrentes/produtores, pelo lado da oferta, conseguem ter informação
do poder econômico contidas na Lei n. 12.529/2011. Nesse momento, cabe a respeito: de quanto e como devem produzir para ganhar mais lucros; de quais
discutir como alguns deles interagem e permitem conceber um sistema concor- são os bens necessários à competição; se há ou não condutas exclusionárias
rencial razoavelmente integrado. praticadas contra a sua empresa; além, obviamente, de como acessar o poder
político institucional para se defender deste tipo de ameaça.
O princípio que organiza todo esse sistema é o da liberdade de concor-
rência. De um lado, liberdade pode ser associada à possibilidade de autodeter- A relação entre liberdade de concorrência e desenvolvimento nacional
minação, ou, como sugere Eros Grau, trata-se da sensibilidade e acessibilidade pressupõe, por sua vez, garantir que todos os cidadãos sejam capazes de expres-
a alternativas de conduta e de resultado. Pois não se pode entender como livre sar suas preferências econômicas. É, portanto, imprescindível eliminar a exclu-
são do processo econômico. Em segundo lugar, é necessário garantir os meios
aquele que nem ao menos sabe de sua possibilidade de reivindicar alternativas
para a transmissão dessas preferências econômicas, eliminando valores ou
de conduta e de comportamento; e não se pode chamar livre, também, aquele
instituições que impeçam a transmissão de preferências econômicas. Trata-se
ao qual tal acesso é sonegad0 2 • Por sua vez, a noção de concorrência abriga a
aqui de associar, claramente, o conceito de desenvolvimento econômico com
ideia de luta, de competição em busca de vantagens, geralmente econômicas.
um processo de conhecimento que acarreta inclusão social, vinculando-se à
No entanto, importante ressaltar, que a concorrência não é um fenômeno ideia de democracia econômica.
uniforme e a-histórico. A sua intensidade depende de uma série de fatores
Além disso, a efetividade da associação entre concorrência e desenvolvi-
culturais, econômicos, políticos e sociais. "A livre concorrência de que fala a
mento depende também do acoplamento entre as diversas políticas públicas
atual Constituição como um dos princípios da ordem econômica (art. 170,
que lidam com o tema do poder econômico e com a construção de instituições
IV) não é a do mercado concorrencial do século XIX de estrutura ato mística e
capazes de aplicar com vigor e rapidez e lei concorrencial, como veremos mais
fluida. Trata-se, modernamente, de um processo comportamental competitivo
à frente.
que admite gradações tanto de pluralidade quanto de fluidez. É este elemento
É claro que tais finalidades dependem também da articulação da liber-
comportamental - a competitividade - que define a livre concorrência. A
dade de concorrência com outros princípios da ordem econômica na sua
competitividade exige, por sua vez, descentralização de coordenação como base
aplicação em casos concretos. No caso, por exemplo, da livre-iniciativa nota-
da formação dos preços, o que supõe livre-iniciativa e apropriação privada dos
-se que se trata de um conceito complementar ao de livre concorrência, mas
bens de produção"3.
essencialmente distintos. Como aponta Miguel Reale: "a primeira não é senão
Tem-se, assim, que a liberdade de concorrência, indiretamente, favorece a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distri-
o interesse do consumidor, que pode ter acesso a bens e serviços diversos, com buição das riquezas, assegurando não apenas a livre escolha das profissões e
melhor qualidade e preço; o interesse das empresas concorrentes, que podem das atividades econômicas, mas também a autônoma eleição dos processos ou
exercer sua liberdade negocial e crescer com base em seus méritos e ganhos de meios julgados mais adequados à consecução dos fins visados. Liberdade de
eficiência produtiva; e o interesse da nação pelo desenvolvimento do país. fins e de meios informa o princípio de livre iniciativa, conferindo-lhe um
Com essa perspectiva, o princípio concorrencial afeta os consumidores, valor primordial, como resulta da interpretação conjugada dos citados artigos
pelo lado da demanda, que passam a conhecer: os seus próprios gostos, as suas lQ e 170. Já o conceito de livre concorrência tem caráter instrumental, signi-
possibilidades de compras, a existência de condutas ou de estruturas que lhe ficando o princípio econômico segundo o qual a fixação dos preços das mer-
retirem bem-estar e os seus direitos e garantias a respeito do processo compe- cadorias e serviços não deve resultar de atos co gentes da autoridade adminis-
titivo, incluindo o acesso às estruturas institucionais protetivas da concorrência. trativa, mas sim do livre jogo das forças em disputa de clientela na economia
de mercado"4.

Ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 9. ed., 2004, p. 185.
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A economia e o controle do Estado. Jornal O O plano Collor II e a intervenção do Estado na ordem econômica. In: REALE,
Estado de São Paulo, edição de 4-6-1989. Miguel. Temas de direito positivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 249-262.
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Nesse contexto, os princípios se limitam mutuamente, muito embora a confere ao centro decisório nacional e mais distante essa racionalidade fica da
liberdade de iniciativa econômica privada, no contexto de uma Constituição soma das racionalidades individuais. Por outro lado, quanto maior a concen-
preocupada com a realização da justiça social (o fim condiciona os meios), não tração de poder econômico, maior o espaço influência dos agentes na raciona-
possa significar mais do que liberdade de desenvolvimento da empresa no lidade macroeconômica, mais próxima ela se torna da soma das racionalidades
quadro estabelecido pelo Poder Público, e, portanto, possibilidade de gozar das microeconômicas.
facilidades, e necessidade de submeter-se às limitações postas por ele5• Enfim, o poder econômico concentrado pode limitar a capacidade de o
Do mesmo modo, em relação à função social da propriedade na discipli- Estado ordenar variáveis macroeconômicas, e de formular e implementar um
na concorrencial, devemos ter em conta que "ela ganha substancialidade pre- conjunto coerente de diretrizes chamado política econômica.
cisamente quando aplicada à propriedade dos bens de produção, ou seja, na Tomando como ponto de partida esse diagnóstico, o Estado pode dimen-
disciplina jurídica da propriedade de tais bens, implementada sob compromis- sionar políticas públicas que tenham por objetivo: (i) regular os agentes deten-
so com a sua destinação. A propriedade sobre a qual em cmaior intensidade tores de poder econômico, controlando variáveis como preços, quantidades,
refletem os efeitos do princípio é justamente a propriedade dinâmica, dos bens entrada e saída do mercado; (ii) estabelecer a participação do Estado na pro-
de produção. Na verdade, ao nos referirmos à função social dos bens de pro- dução econômica por meio de empresas estatais de modo a compensar ou
dução em dinamismo, estamos a aludir à função social da empresà'6. equilibrar as relações de poder (poder compensatório) ou ainda criar novos
Após algumas referências aos princípios e finalidades constitucionais da mercados; e, por fim (iii) atuar no controle do abuso do poder econômico,
defesa da concorrência, trataremos agora do principal fenômeno social com o preservando a liberdade de concorrência, através do direito antitruste.
qual a Lei n. 12.529/2011 interage, buscando controlar os efeitos nocivos do Nesse último caso, estamos diante de uma disciplina de controle, não se
seu abuso. Trata-se do poder econômico. configurando como criadora de utilidade públicaS. Por não estabelecer uma
Quando o Estado interfere nos padrões institucionais da alocação de re- prestação positiva e se dedicar à imposição de uma restrição ou determinar uma
cursos econômicos de algum modo ele está intervindo no processo de trans- abstenção do particular, ela se assemelha à forma de ação do poder de polícia.
formação da liberdade formal de iniciativa em liberdade material que caracte- Trata-se, assim, de uma intervenção corretiva e não tipicamente organizativa
riza o poder na esfera econômica. Como aponta Celso Furtad0 7, o poder ou criativa/planejadora. Difere das chamadas políticas regulatórias, nas quais
econômico revela-se pela capacidade de o agente influenciar e modificar o meio muitas vezes o Estado define níveis de qualidade, quantidade e preço. A flexi-
em que atua, apresentando no seu comportamento um fator volitivo criador bilidade está nas "válvulas de escape" em que se apoia o ordenamento jurídico,
de novo contexto. O comportamento de quem não tem poder é meramente e que permitem um acoplamento das regras jurídicas às operações ou ações
adaptativo, já a faculdade de transformar o contexto em que atua eleva o agen- sujeitas ao controle concorrencial.
te à posição de elemento motor do sistema econômico. A empresa com eleva- Essas válvulas de escape, em geral, dizem respeito a situações em que se
do poder econômico planifica setorialmente uma parte da atividade de um pode justificar a diminuição da intensidade da concorrência em determinados
sistema econômico. mercados quando da realização de um ato de concentração ou na análise de
Em tese, quanto mais atomizado o poder econômico, mais espaço para uma conduta que pode ser vista a princípio como anticompetitiva. As principais
uma ação coordenada macroeconômica, na medida em que maior poder se justificativas estão associadas a conceitos econômicos como o de eficiência, por
exemplo.
Ocorre que "eficiêncià' não é um termo unívoco. Do ponto de vista alo-
SILVA, José Manso da. Comentdrio contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros,
2005, p. 711.
cativo, por exemplo, é possível adotar uma série de interpretações a respeito do
GRAU, Eros Roberto. Elementos de direito econômico. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 1981, p. 128.
Criatividade e dependência na civilização industrial. São Paulo: Companhia das Letras, Sobre o tema ver SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as estruturas.
2008, p. 36 e s. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 297.
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que são eficiências necessárias à aprovação de uma operação de concentração Nesse contexto, o mercado, enquanto instituição social, passou a ser
econômica. Dentre os modelos que podem ser utilizados para justificar as efi- entrecortado por uma série de objetivos de políticas públicas. Seus atores esta-
ciências alocativas, podemos citar: (i) modelo baseado em preços, em que o riam subordinados a estratégias de ação pública que dificilmente consideravam
preço não pode aumentar após a operação; (ii) modelo baseado na satisfação do os ditames da livre-iniciativa e da busca do equilíbrio. Ao contrário, a própria
consumidor, em que o excedente, ou bem-estar, do consumidor não deve dimi- expansão da ideia de desenvolvimento foi absorvida no debate econômico pelo
nuir após a operação, por mais que se admita o aumento de preço (sendo esta
aperfeiçoamento de processos de desequilíbrio. Estes eram gerados pela inova-
elevação de preços compensada, por exemplo, com o aumento da qualidade dos
ção técnica promovida por setores econômicos estimulados por políticas in-
produtos ofertados); (iii) modelo baseado na satisfação geral da sociedade, em que
dustriais ou por choques de expansão na oferta de bens e serviços que desen-
excedente, ou bem-estar, social total posterior à operação deve ser maior ou igual
cadeavam uma onda de investimentos e direcionavam a expansão econômica.
que o anterior. Por outro lado, neste modelo, admite-se a majoração de preços
ea diminuição do bem-estar dos consumidores em prol do aumento do bem- Durante o auge da economia de mercado autorregulada, esta era tomada
-estar dos produtores; e (iv) modelo de satisfação ponderada, em que se conside- como sinônimo de uma luta "pacífica" em que a competição entre a multiplicidade
ra o bem-estar dos produtores e dos consumidores após a fusão, mas com pesos de atores ensejaria ações cuja racionalidade conduziria ao equilíbrio, à eficdcia e
diferenciados, geralmente dando maior relevância à satisfação dos consumidores. à filicidade coletiva. Segundo essa perspectiva, o sistema econômico se reproduziria
Todos os princípios jurídicos e econômicos, mencionados aqui, se entre- de acordo com um movimento pendular, retornando sempre a um ponto ótimo, de
laçam na aplicação da lei concorrencial e conformam a política de defesa da equilíbrio, demarcando o início e o fim de uma duração reversível, perfeitamente
concorrência de um país. Por isso, a busca por identificar as finalidades dessa reprodutível, por modelos extremamente flrmalizados lO •
política pública exige não apenas o exercício dogmático de interpretação de Vê-se que o problema da atuação do Estado era visto como um não pro-
princípios e regras, mas também, senão essencialmente, o estudo das dimensões blema. O papel do Estado na constituição do bem-estar social era proporcional
histórica e institucional que influenciam e compõem esse quadro normativo. ao seu distanciamento das questões relacionadas à organização da vida econô-
mica. Como afirma John Kenneth Galbraith ll , "suprimir a importância do
2. FINALIDADE DA DEFESA DA CONCORRÊNCIA: PERSPECTIVA
exercício do poder privado e especialmente a possibilidade de seu abuso, era
HISTÓRICA
privar de quase toda justificação o exercício da autoridade do governo sobre a
economià'.
Se, para a economia clássica, o mercado apresentava-se como um proces-
so de interação entre sujeitos privados regulado pelo pressuposto da concor- Embora se destinem quase exclusivamente a um estudo da economia
rência perfeita, com o aperfeiçoamento dos mecanismos de intervenção do americana, suas análises podem, em alguns aspectos, assumir um caráter gene-
Estado, que caminhou pari passu com o movimento de concentração do capi- ralizante. Para Galbraith, a causa das transformações na postura do Estado em
tal, o mercado perde seu caráter de instituição livre. Tais mecanismos envolvem face da organização econômica e do mercado deriva da decadência de uma
tanto medidas de cunho generalizante e global para o desenvolvimento do teoria do capitalismo. Tratava-se do sistema de economia clássica construído
mercado como ações específicas de bem-estar social para a obtenção de deter- em fins do século XVIII e durante o século XIX, principalmente na Inglaterra.
minados resultados. Como afirma Fábio Konder Comparato, em estudo pio- Na economia estruturada com base nesse sistema, todos os estímulos incitavam
neiro sobre o direito econômico no Brasil, "a ação do Poder Público com vistas ao emprego de homens, capital e recursos naturais para produzir com a máxi-
à expansão procura atingir as próprias estruturas do sistema econômico, no ma eficiência o que a população mais desejava. O pressuposto básico para al-
sentido do seu aperfeiçoamento, ou mesmo de sua transformação, como é o
cançar os melhores níveis de eficiência fundava-se na inexistência ou irrelevân-
caso notadamente em países subdesenvolvidos"9.
cia do poder econômico privado. Restaria ao Estado o papel "insignificante"

o indispensável direito econômico. In: COMPARATO, Fábio Konder. Ensaios e 10 FlORI, José Luis. Voa da coruja. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 46 e 47.
pareceres de direito. empresarial. São Paulo: Forense, 1978, p. 464. 11 GALBRAlTH, John Kenneth. Capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1964, p. 38-39.
370 Tratado de Direito Comercial + Volume 6 Vinícius Marques de Carvalho 37l

de garantir esse requisito. Diz-se insignificante porque, apesar de conter um o Sherman Act proibia contratos e combinações que restringissem o co-
componente normativo, o caráter pouco ameaçador do poder econômico era mércio e também as tentativas de monopolização de setores econômicos. Com
visto como regra geral, decorrência automática do ambiente concorrencial que base nessas regras, algumas decisões importantes foram tomadas pela Suprema
prevalecia na vida econômica. Dessa forma, como havia uma coincidência, para Corte ainda nos primeiros anos de vigência da lei, entre elas a divisão da Stan-
a teoria clássica, entre o pressuposto fático e normativo, não eram exigidas dard Oil em trinta e quatro empresas e o desmantelamento daAmerican Tobac-
maiores intervenções do Estado. co. Sem contar a decisão no caso Dr. Miles vs. Park & Sons, em 1911, que
Todo o contexto descrito acima insinua que a intensificação da atuação do tornou a conduta de fixação de preço de revenda um ilícito condenável per se.
Estado na órbita econômica esteve associada ao questionamento não apenas A aplicação da lei concorrencial nos EUA durante o século XX esteve
teórico, mas acentuadamente prático, do que Galbraith convencionou chamar sujeita às mudanças de orientação da atuação do Estado na economia. Após
de modelo baseado na concorrência. No âmbito da economia real, observou-se esse início precursor, nota-se uma retração no período entre 1915 e 1936,
um processo de concentração e internacionalização do capital que aumentou as decorrente de dois fatores: (i) o estímulo a uma cultura associativista entre
formas assimétricas de desenvolvimento do capitalismo. Um número cada vez Estado e setor privado reinante durante a li! Guerra; (ii) e a Crise de 1929, que
menor de grandes companhias passou a responder por uma parte substancial de gerou a promulgação do National Industry Recovery Act, instrumento franca-
toda a atividade industrial. A força desse processo era tanta que se verificou uma mente inibidor da concorrência.
reviravolta na teoria econômica: a concentração de capital, que deveria ser ex- De 1936 a 1972 a política de defesa da concorrência atingiu seu auge em
ceção, virou regra ou, pelo menos, tendência do desenvolvimento capitalista. termos de intervenção econômica, usando como instrumental de análise a
Como atesta José Luis Fiori, "o inquestionável movimento real do capital que, teoria estruturalista, fundada pela Escola de Harvard, que praticamente iden-
concentrando-se e centralizando as decisões por meio de movimentos cíclicos ticava a existência de poder de mercado como condicionante primordial para
periódicos, oligopoliza a estrutura produtiva de forma crescente, altera as regras a presença de efeitos anticompetitivos. A Escola de Harvard encontrava-se em
de competição e amplia a intervenção estatal na economia"l2. sintonia com as primeiras intervenções do direito concorrencial norte-ameri-
Como exemplo da criação de condições institucionais específicas tenden- cano, que elegiam o poder econômico como empecilho para o desenvolvimen-
tes a moldar o comportamento individual e de intervenção do Estado nos padrões to do próprio sistema capitalista. Conferia-se ênfase à análise estrutural do
de acumulação econômica podemos citar a própria experiência norte-america- mercado. O comportamento das empresas era visto como uma resultante da
na durante o surgimento e depois na aplicação da legislação concorrencial. estrutura do mercado em que ela estivesse inserida. Ou seja, a existência de um
O Sherman Act foi produto de debates políticos intensos sobre as melho- poder econômico pronunciado exigia da autoridade antitruste uma atuação
res formas de controlar a aceleração da concentração econômica principalmen- rigorosa em defesa da concorrência. Como afirma Calixto Salomão Filho, para
te nos setores de telecomunicações e ferrovias, no final do século XIX, promo- a escola estruturalista "em uma indústria concentrada, as firmas estão protegi-
vida pelas grandes corporações econômicas e disciplinadas por meio de um das da competição por barreiras à entrada, consistentes em economias de esca-
instrumento contratual chamado trust. Por meio desse instrumento viabilizava- la, exigências maiores de capital, know-how escasso e diferenciação dos
-se a dissociação, já aqui mencionada, entre detenção da riqueza e controle produtos"l3. Nessa estrutura, em que há poucos vendedores no mercado, há
sobre ela. Tal processo era visto como ameaçador do desenvolvimento econô- uma diminuição dos custos e das dificuldades de atuação em conjunto, o que
mico e até político da nação, como o próprio Senador Sherman afirmou: "Nós proporciona acordos tácitos ou explícitos entre as empresas com objetivos de
temos falado apenas das razões econômicas que proíbem o monopólio; mas há redução da produção e aumento de preços.
outras, baseadas na crença de que grandes indústrias são inerentemente inde- De 1973 a 1991, o elevado nível de ativismo antitruste atraiu muitas
sejáveis, à parte os resultados econômicos". Além disso, "a concentração exces- críticas e fez emergir uma reação que, do ponto de vista teórico, lastreou-se na
siva de poder econômico gera pressões políticas antidemocráticas". chamada Escola de Chicago, para quem a eficiência produtiva era ovalor a ser

12 13 Direito concorrencial: as estruturas. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 18.


FlORI, José Luis. Voo ... , cit., p. 48.
372 Tratado de Direito Comercial + Volume 6 Vinícius Marques de Carvalho 373

buscado pelo sistema econômico, pois é ela que levava ao interesse público, A Lei n. 4.137 separou a proteção da concorrência da proteção da eco-
entendido como bem-estar do consumidor 14 • A concorrência transformava-se nomia popular e do abastecimento, realizada pela Lei n. 1.521 e pelas normas
em valor subjacente e instrumental, facilmente colocado em segundo plano. Nas que criaram a Superintendência Nacional de Abastecimento - Sunab, as Leis
situações em que não havia esta coincidência entre os dois valores - eficiência e Delegadas n. 4 e 5. No tocante ao controle de estruturas, a Lei n. 4.137 previa
concorrência - é a primeira que deveria prevalecer, pois causaria uma redução que deveriam ser submetidos à aprovação do CADE os atos, ajustes, acordos e
de custos a ser repassada aos preços. Para essa perspectiva, o processo competi- convenções entre empresas que tivessem por efeito a diminuição do grau de
tivo é considerado como motor da eficiência, na medida em que o domínio do concorrência no mercado.
mercado é um resultado da superioridade em eficiência, invertendo-se a causa-
Em razão das dificuldades causadas pela redação da Lei n. 4.137, que
lidade estrutura-conduta-desempenho defendida pela Escola de Harvard.
adotou uma definição bastante restritiva das infrações, bem como pelos fatos
Nota-se que o período de ascensão dessa abordagem coincide com o de que a atuação do CADE durante o seu período de vigência se caracterizou
momento em que os EUA se viam mais vulneráveis à concarrência de empre-
par surtos de atividade intermitentes e de que liminares e sentenças judiciais
sas internacionais, prinicipalmente japonesas, que passavam a dominar o
limitaram ou anularam a efetividade das decisões tomadas pelo órgão, em que
mercado interno americano. Tal circunstância foi decisiva para garantir vigar
pese os avanços trazidos pela lei para a defesa da concorrência, esta não conse-
à estratégia de impulsionar grandes concentrações visando assegurar ganhos de
guiu produzir um efetivo controle do abuso do poder econômico.
escala e maior eficiência produtiva.
Após a Constituição Federal de 1988, o Governo Collor, dando segui-
2.1. CENÁRIO BRASILEIRO mento à sua tentativa de implementar a abertura de mercado e a liberalização
da economia nacional, sentiu a necessidade de um instrumento normativo que
No caso brasileiro, a análise sobre a organização histórica da intervenção
pudesse reprimir os abusos de poder econômico em um mercado que deveria,
do Estado na organização das relações econômicas se reflete na história legis-
a partir de então, se autorregular. Com essa finalidade foi adotada a Lei n.
lativa referente ao papel desempenhado pela defesa da concorrência nesse
processo. 8.158, de 1991, que criou a Secretaria Nacional de Direito Econômico - SNDE
com o propósito de apurar e propor as medidas cabíveis para corrigir o com-
Adotando como pano de fundo a análise da história legislativa empreen-
portamento de empresas que pudesse afetar, direta ou indiretamente, os me-
dida par Paula Forgioni 15 , notamos que esse debate tomou corpo no Brasil
canismos de formação de preços, a livre concorrência, a liberdade de iniciativa
durante a vigência da Constituição de 1946. Nesse período foram aprovadas a
ou os princípios constitucionais da ordem econômica.
Lei n. 1.521, de 1951, que atualizava os dispositivos então vigentes relativos
aos crimes contra a economia popular, incluindo algumas disposições que se Com o auxílio da SNDE, a atuação do CADE ganhou nova importância,
relacionam à defesa da concorrência, como a vedação da prática de preços com a adoção de decisões técnicas em casos de grande repercussão. Esse movi-
predatórios e o acordo entre empresas com o objetivo de dificultar ou impedir mento seria prejudicado, no entanto, com o enfoque dado ao combate aos
a concorrência, e a Lei n. 4.137, de 1962, que regulamentou o art. 148 da "lucros abusivos" das empresas a partir de 1992.
Constituição e criou o Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CAD E. Sobreveio, em 1994, a Lei n. 8.884, que transformou o CADE em au-
tarquia federal, dotando-o de orçamento próprio, implementou o Sistema
Brasileiro de Defesa da Concorrência - SBDC, caracterizado pela atuação
14
Essa associação entre eficiência produtiva e bem-estar do consumidor é considerada
coardenada da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da
uma das maiores fragilidades da Escola de Chicago, na medida em que se parte do
pressuposto de que há uma transferência automática aos preços da redução de custos Fazenda - SEAE/MF, da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da
proporcionada pelos ganhos de eficiência, como se ela fosse Ínsita à racionalidade do Justiça - SDE/MJ e do CADE, consolidou e modernizou a definição das in-
monopolista. Para uma crítica detalhada ver SALoMÃo FILHO, Calixto. Direito
concorrencial: as estruturas, cit., p. 19 e s.
frações à ordem econômica e aumentou a importância da atuação da análise
15
Para um aprofundamento sobre o tema ver FORGIONI, Paula A. Os fondamentos do de atos de concentração econômica, dotando os órgãos com ferramentas mais
antitruste. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, Capo 2. eficazes para sua atuação.
374 Tratado de Direito Comercial • Volume 6 Vinícius Marques de Carvalho 375

3. O NOVO SBDC COMO UM DESENHO INSTITUCIONAV 6 MAIS Nesse sentido, é útil ter em mente que a opção por um dado desenho
EFICIENTE PARA A IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA BRASILEIRA institucional costuma ser o resultado de escolhas entre as diferentes formas de
DE DEFESA DA CONCORRÊNCIA concretizar e harmonizar três grandes objetivos fundamentais: promover o
adequado e eficiente cumprimento da função pública, controlar o exercício da
A Lei n. 12.529 é o resultado de um longo debate legislativo que se iniciou atividade estatal em vista do respeito aos direitos e garantias individuais e legi-
formalmente em 2004 com a apresentação do Projeto de Lei n. 3.937/2004. timar a atuação estatal em face das necessidades de interferência dos individuos
A nova lei, que entrou em vigor em 30 de maio de 2012, revogando assim a no desempenho da autoridade.
Lei n. 8.884/1994, é um marco histórico e decisivo para o aprimoramento da Embora tenham igual importância para a conformação de um bom dese-
política brasileira de defesa da concorrência. nho institucional, nem sempre é fácil harmonizar a consecução desses três ob-
São introduzidas profundas alterações no Sistema Brasileiro de Defesa da jetivos. Como é de se esperar de um processo de escolha, por vezes a opção
Concorrência (SBDC) tal como o conhecemos hoje. Tais alterações são abran- entre uma ou outra forma (e medida) de concretização desses objetivos envolve
gentes, e envolvem não só a mudança no desenho institucional do SBDC, a tentativa de conciliação de interesses contrapostos. O novo desenho institu-
como também modificações substanciais nas suas principais áreas de atuação: cional do SBDC não foge a essa regra, como demonstram as várias modificações
a análise de estruturas, a análise de condutas e o exercício da advocacia da pelas quais passou ao longo do processo que culminou com a sua conformação.
concorrência. O fato é que, conforme se verá, o desenho institucional do SBDC é um
Conforme se pretende demonstrar, essas modificações inauguram uma exemplo de resultado bem sucedido desse processo de escolhas. Os debates
nova fase na implementação da política de defesa da concorrência brasileira. em torno do projeto contaram com a participação de toda uma geração de
Primeiro, porque a Lei n. 12.529/2011 consolida avanços no que tange advogados, economistas, agentes públicos, professores, pesquisadores e em-
à implementação dessa política no âmbito do SBDC propriamente dito. Aqui, presários, e o resultado, extremamente positivo, é um reflexo coeso dessa
trata-se tanto dos avanços que se deram na esfera institucional, como no que pluralidade de visões.
diz respeito a questões de direito material que eram objeto de discussões fre-
quentes no regime da Lei n. 8.884/94. 3.1. AS MUDANÇAS ESTRUTURAIS
Segundo, mas não menos importante, porque a nova lei abre novos ca- A) Consolidação das fUnções de investigação e decisão no Conselho Adminis-
minhos para que a política brasileira de defesa da concorrência seja cada vez trativo de Deftsa Econômica ("CADE" ou "Conselho")
mais pensada para além da esfera exclusivamente administrativa, com uma A nova lei promove uma completa alteração da estrutura dos órgãos do
maior coordenação entre a repressão às infrações contra a ordem econômica governo responsáveis pela proteção e defesa da concorrência no Pais. Pelo novo
na esfera penal e, o que ainda é mais incipiente no Brasil, também na esfera sistema, as funções de investigação de casos de conduta, instrução de atos de
civil. A esse tema dedicamos a parte final do texto. concentração e decisão final passam a ser unificadas em uma só autarquia in-
Não é difícil perceber que a nova lei introduz avanços institucionais re- dependente, o CADE. Essa reestruturação procura sanar as deficiências do
levantes no SBDC. As mudanças são claras e significativas. Contudo, também sistema atual em que há sobreposição de tarefas entre três agências distintas: a
é preciso reconhecer que a tarefa de avaliar um novo desenho institucional não Secretaria de Direito Econômico ("SDE") e a Secretaria de Acompanhamento
é fácil. Ela pressupõe, antes de tudo, alguma reflexão sobre as finalidades das Econômico ("Seae") - ambos órgãos encarregados da instrução e da análise
instituições enquanto instrumentos para o exercício da função pública. preliminar dos casos -, e o CADE, autarquia encarregada da decisão final.
Ainda que o SBDC tenha, nos últimos anos, conseguido avanços com
uma melhor divisão de tarefas - a SDE, órgão do Ministério da Justiça, tem se
16 Fala-se, aqui, em desenho institucional não apenas no seu aspecto estático, i.e. como encarregado principalmente da investigação de casos de conduta, e a Seae,
a opção por uma determinada estrutura administrativa, mas também tendo em vista
seu aspecto dinâmico, i.e. abarcando a escolha do regime processual que rege e dis-
órgão do Ministério da Fazenda, atua principalmente na instrução de atos de
ciplina sua atuação. concentração e advocacia da concorrência - a consolidação de funções em uma
,I
1

376 Tratado de Direito Comercial + Volume 6


Vinícius Marques de Carvalho 377
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só agência garante a tramitação mais ágil de processos, eliminação da sobrepo- rintendência-Geral (com atribuição para instruir os atos de concentração e os
sição de tarefas e maior especialização de áreas técnicas.
processos administrativos para apuração de condutas), e um Departamento
Com a entrada em vigor da nova lei, a Seae passará a ser responsável de Estudos Econômicos (responsável pela elaboração de estudos e pareceres
primordialmente pelas ações de advocacia da concorrência, e o Departamento econômicos, zelando pelo rigor e atualização técnica e científica das decisões
de Proteção e Defesa Econômica da SDE fará parte do corpo técnico do CADE. do CADE).
Nessa nova configuração, o CADE se consolida como a única agência respon-
A duas, porque os procedimentos para análise dos casos, tanto em se
sável pela análise de fusões e aquisições, pelas investigações nos casos de repres-
tratando de atos de concentração como de condutas anticompetitivas, também
são às infrações contra a ordem econômica e pelo julgamento dos casos.
estabelecem de forma clara a separação de funções entre o Tribunal e a Supe-
A tendência, com isso, é que o CADE passe a funcionar de forma mais rintendência, inclusive com relação ao momento em que cada um intervém no
eficiente l ?, mas a nova estrutura também pode gerar alguma discussão. processo. A participação da Superintendência na aplicação de sanções pela
Uma delas diz respeito à necessidade de se garantir a separação do exer- prática de condutasanticompetitivas e na imposição de restrições/reprovação
cício das funções de instrução e julgamento no âmbito do próprio CADE, de de atos de concentração se encerra com o oferecimento de impugnação a atos
forma a não levantar questionamentos quanto ao respeito às garantias do de- de concentração que entender nocivos à concorrência, e a elaboração de rela-
vido processo legal. Embora não haja comprovação empírica de que o exercício tório circunstanciado opinando pela configuração da infração nos casos de
de ambas as funções por um mesmo órgão traria de fato prejuízos à qualidade investigação de condutas. Só então cabe ao Tribunal decidir, após analisar o
da decisão final l8 , potenciais críticos do novo regime poderiam argumentar caso e ouvir novamente as partes envolvidas 19 •
que, sendo também encarregado ativamente da apuração dos fatos, o CADE
Assim, ao contrário do que ocorre na Comissão Europeia (foco das críti-
tenderia a assumir postura parcial na análise dos casos.
cas à combinação das funções investigativas e decisórias em uma mesma agên-
Pressupondo que o argumento procede, em princípio não há motivos cia) 20, o exercício das funções de investigação e de decisão já foi desenhado de
para crer que essa parcialidade será um resultado da nova estrutura. O regime forma claramente separada pelo legislador brasileiro, ainda que tais funções
estabelecido pela nova lei já estabelece e favorece essa separação funcional. sejam atribuídas a um só ente da administração pública.
A uma, porque a nova estrutura do CADE já traça as linhas gerais dessa Cabe ao CADE, portanto, apenas adotar práticas que respeitem essa se-
separação funcional. Pela nova lei, o CADE passa a ser composto de um Tri- paração no dia a dia da aplicação da lei.
bunal Administrativo de Defesa Econômica (integrado por um presidente e
B) A importância do Departamento de Estudos Econômicos
seis conselheiros e encarregado de julgar os atos de concentração e processos
administrativos para apuração de infração à ordem econômica), uma Supe- No direito da concorrência as normas jurídicas visam atingir objetivos
econômicos, o que exige do julgador um zelo cada vez maior com a fundamen-
tação econômica de suas decisões.
Para que essa tendência se concretize, contudo, fundamental será o aumento do
17

quadro de pessoal do CADE. ° primeiro passo para tanto já foi dado. pela lei, com
a previsão da criação de 200 novos cargos de gestores a serem preenchidos de forma
19 Ainda com relação à imparcialidade das decisões, outro fator de destaque positivo é
gradual, tendo em vista as previsões orçamentárias. Apenas como comparação, no
a consolidação da autonomia do CADE, fundamental para a adequada implementa-
atual desenho institucional do SBDC, considerados os três órgãos que o compõem
ção da política brasileira de defesa da concorrência, com a ampliação do mandato dos
- CADE, SDE e Seae - atuam menos de 60 técnicos. A ampliação de quadros,
Conselheiros do Tribunal dos atuais dois anos (renováveis) para quatro anos (não
quando materializada, será possivelmente o maior salto evolutivo do SBDC propi-
renováveis) .
ciado pela nova lei.
20 Na Europa, a mesma equipe do DG Competition que investiga os casos é encarrega-
18 Há inclusive, no âmbito do judiciário, corrente que defende a ideia de que os próprios
da da redação da decisão final, que será depois adotada por maioria de votos ~a
magistrados assumam uma postura mais ativa na instrução dos processos da es~er.a
Comissão por sugestão do Comissário da Concorrência (WILS, Wouter. The combl-
jurisdicional (CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelleg~llll; nation of the investigative and prosecutorial function and the adjudicative function
DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo: Malhelros,
in the EC antitrust enforcement: a legal and economic analysis. World Competition,
2001, p. 64 e s.).
v. 27, Issue 2, jun. 2004).
378 Tratado de Direito Comercial • Volume 6 Vinícius Marques de Carvalho 379

Como aponta Camila Pires Alves 21 , a influência entre as dimensões jurí- tratégia empresarial ilícita. Sem essa avaliação mais pormenorizada, os governos
dica e econômica certamente não se dá em uma direção unívoca. Se a aplicação podem estar inclinados a aplicar restrições no mercado que irão prejudicar os
dos conceitos e princípios econômicos ocorre num contexto jurídico-institu- consumidores;
cional, a seleção de quais desses princípios e dos métodos desta ciência serão (ii) cada vez que um estudo de mercado é concluído e suas recomendações
incorporados na lei e na prática antitruste também será feita no âmbito da são aplicadas é maior a probabilidade de aumento do bem-estar dos consumi-
própria lei e da jurisprudência a esta associada, conforme os limites impostos dores e da eficiência econômica;
pelas condições institucionais e pelos agentes que atuam na sua aplicação. (iii) sempre que práticas anti competitivas ou ineficiências são substantivas,
Como consequência desse fenômeno, o uso de evidência econômica na profundamente enraizadas e apoiadas pelos beneficiários, pode levar muito
solução de casos anti truste tem se expandido de forma crescente nas principais tempo para sua identificação, mas, mesmo assim, os estudos se justificam.
jurisdições no mundo. Esse movimento é percebido no que concerne tanto à C) A consolidação do papel da Procuradoria do CADE ("ProCADE")
resolução de questões referentes a condutas anticompetitivas, quanto ao con-
A lei mantém Uma Procuradoria Federal Especializada junto ao CADE
trole de fusões. O uso de evidência inclui a apresentação de fatos econômicos
com atribuição consultiva e de defesa judicial da autarquia. Contudo, à dife-
que substanciem alegações com respeito: (i) à demonstração e cálculo para
rença do sistema da Lei n. 8.884/94, a nova lei abre a possibilidade de partici-
ressarcimento de danos; (ii) à identificação de mercado relevante e poder de
pação mais ativa da ProCADE na instrução dos processos tendo.em visAta ~s
mercado; e (iii) à avaliação de efeitos competitivos de condutas e fusões, entre
necessidades agora não só do Tribunal, mas também da SupenntendenCla
outros aspectos22 •
Geral. Nesses termos, além da representação judicial e extrajudicial do CADE,
É nesse contexto que a estruturação de um Departamento de Estudos da apuração da liquidez dos créditos para inscrição em dívida ativa, da promo-
Econômicos apresenta-se como uma das inovações institucionais mais impor- ção de acordos judiciais (competências já previstas na Lei n. 8.884194): a
tantes da Lei n. 12.529/2011. Além das tarefas citadas acima, o DEE poderá ProCADE também passa a ter competência expressa para tomar med1das JU-
contribuir para que o CADE siga o exemplo de outras jurisdições e passe a se diciais para a obtenção de documentos para a instrução de processos adminis-
dedicar a estudar mercados específicos com o objetivo de identificar possíveis trativos e de propor ação cautelar de busca e apreensão.
condutas anticompetitivas.
A função da ProCADE na consultoria e assessoria jurídica do Conselho
Além disso, os estudos de mercado são um bom mecanismo para aproxi- também ganha contornos mais marcantes e, em consonância com essa função,
mar a política concorrencial e do consumidor, na medida em que podem a competência para emitir pareceres nos processos de competência do CADE
acomodar uma perspectiva mais ampla do que apenas organizar fundamentos passa a ser exercida apenas mediante solicitação.
para se iniciar uma investigação, viabilizando recomendações na área de defe-
D) Seae
sa do consumidor.
Como mencionamos acima, a Secretaria de Acompanhamento Econômi-
Por fim, segundo estudo da OCDP3, os estudos de mercado podem
co, do Ministério da Fazenda, permanece como órgão integrante do SBDC,
ainda ser vantajosos como estratégia da autoridade antitruste porque:
passando a ser responsável pela coordenação das atividades relativas à intersec-
(i) desempenham uma função importante para a sociedade por refutar ção entre regulação e defesa da concorrência, concentrando-se nas discussões
alegações de conduta anticompetitiva quando, por exemplo, os preços sobem de marcos regulatórios ex ante e podendo se manifestar em qualquer caso de
como um resultado de rupturas de abastecimento e não por causa de uma es- concentração econômica ou conduta anticompetitiva. A Seae passará a opinar
sobre as normas enviadas pelas agências reguladoras para consulta pública,
elaborará estudos avaliando a situação concorrencial de setores específicos da
21
Métodos quantitativos na avaliação dos efeitos de fosões e aquisições: uma análise econô- atividade econômica, poderá propor a revisão de normativos que afetem a livre
mica e jurídico-institucional. Tese de Doutorado. Instituto de Economia da Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro. 2010, p. 59. concorrência. Para o cumprimento de suas atribuições, poderá requisitar in-
22
Ibidem, p. 7I. formações e documentos de quaisquer pessoas, órgãos, autoridades e entidades,
23
OECD. Policy Roundtables. Market Studies. Competition Comittee. 2008, p. 6 e s. públicas ou privadas, mantendo o sigilo legal quando for o caso e celebrar
380 Tratado de Direito Comercial + Volume 6 Vinícius Marques de Carvalho 381
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acordos e convênios com órgãos ou entidades públicas ou privadas, federais, A) A modernização do sistema brasileiro de análise de atos de concentração
estaduais, municipais, do Distrito Federal e dos Territórios para avaliar e/ou O primeiro deles é, sem dúvida, a modernização do sistema brasileiro de
sugerir medidas relacionadas à promoção da concorrência. análise de atos de concentração.
Conforme tem sido destacado nas análises da nova lei, aLei n. 12.529/2011
3.2. AS MUDANÇAS NOS PROCEDIMENTOS24 QUE EMBASAM A ATU-
AÇÃO DO SBDC faz profundas alterações no controle de estruturas, com a introdução do siste-
ma de análise prévia de atos de concentração, há muito recomendado pelas
Sabe-se que o processo deve ser concebido de forma a prestar-se ao ade- melhores práticas internacionais. O Brasil era um dos únicos países do mundo
quado cumprimento da função pública que deve instrumentalizar. em que, somente após a realização da concentração econômica, as empresas
No Estado de Direito, a atuação dos agentes estatais, pautada pelo prin- estavam obrigadas a pedir a aprovação ao CADE. Tal procedimento, realizado
cípio da legalidade, está sempre vinculada à consecução de determinado(s) a posteriori, era não só ineficiente do ponto de vista econômico como ineficaz
objetivo(s) de interesse público. A própria razão do agir estatal encontra-se da na proteção e defesa.do interesse público.
busca desses objetivos. Nesse contexto, os procedimentos administrativos são Com a entrada em vigor da nova lei, as operações só poderão ser consu-
a expressão de um fenômeno complexo por meio do qual o direito procura madas após a aprovação do CADE, e o fechamento da operação antes de sua
instrumentalizar - e consequentemente legitimar - a formação dessa "vontade aprovação sujeitará as partes a multas que variam de R$ 60 mil a R$ 60 milhões.
estatal" 25 tendo em vista a consecução das finalidades legais atribuídas ao Poder Na ausência de manifestação do CADE dentro do prazo legalmente estipulado
Público e o respeito aos direitos e garantias individuais. para tanto, as operações serão consideradas automaticamente aprovadas. Em-
As alterações promovidas pela Lei n. 12.529/2011 nessa seara revelam bora o veto ao art. 64 da lei necessário para corrigir uma distorção que po-
essa desejada preocupação com os resultados dos processos administrativos no deria levar o descumprimento de qualquer prazo processual intermediário a
âmbito do CADE e dão mais condições para o adequado e eficiente provimen- acarretar a aprovação automática de atos de concentração - tenha retirado a
to da atuação estatal. menção expressa a essa consequência, ela se mantém pela própria lógica do
sistema de notificação prévia em que as possibilidades de prorrogação de prazo
Essa preocupação com os resultados revela-se não apenas na busca direta
são expressamente limitadas e os prazos se suspendem apenas na situação de
da eficiência, pela racionalização e simplificação de algumas etapas dos proce-
ausência de quórum no Tribunal.
dimentos, mas também pelo cuidado em garantir a permeabilidade dos proce-
dimentos do CADE a atores com visões não raro contrapostas acerca do mérito Assim, de acordo com a nova lei, uma vez notificado o ato, o CADE terá
dos casos sendo analisados. Essa permeabilidade, que já faz parte da cultura do o prazo de duzentos e quarenta dias para analisar a operação, prazo este que
SBDe, além de contribuir para a qualidade do conteúdo da decisão é ínsita à poderá ser prorrogado apenas por mais sessenta dias, a pedido das partes en-
noção de devido processo legal, que também permeia as ações do Conselho. volvidas, ou por noventa dias, mediante decisão fundamentada do Tribunal
Administrativo. Findo esse prazo sem decisão final do CADE, a operação será
São vários os pontos que merecem destaque nesse sentido.
tida como automaticamente aprovada. Para as operações simples, que são a
grande maioria dos atos notificados, deverá ser regulamentado um procedi-
24 mento sumário bem mais célere de análise, a exemplo do que já acontece hoje.
Nesse texto, não se faz distinção entre os termos processo e procedimento. O proce-
dimento e a relação jurídica a ele inerente são apenas duas facetas de um único e A combinação da atuação administrativa célere e de qualidade está na
mesmo fenômeno: o processo. essência desse sistema. Obtém-se assim uma atuação estatal eficiente, que
25
Como se sabe, os agentes estatais atuam no exercício de um poder-dever, isto é,
exercem função pública. A ideia é resumida de forma bastante clara por Carlos Ari
também se presta a assegurar o respeito aos direitos e garantias individuais ao
Sundfeld: "Pois bem, a soma dessas duas características das atividades estatais, cons- contribuir para a aplicação correta do direito material e a satisfação dos legíti-
tituírem função (exercício de dever-poder para atingimento de uma finalidade) e mos interesses envolvidos na decisão estatal.
resultarem em atos unilaterais que invadem a esfera jurídica dos indivíduos, provoca
a necessidade de uma regulação do processo formativo da vontade estatal" (A impor- Nesse sentido, vale ressaltar que as ineficiências do sistema anterior são
tância do procedimento administrativo. Revista de Direito Público, n. 84, p. 66-67). eliminadas sem prejuízo da manutenção de um sistema de "checks and balances",
382 Tratado de Direito Comercial • Volume 6 Vinícius Marques de Carvalho 383

que era um dos seus pontos fortes. É dizer, pela nova lei, a visão da adminis- Ao invés da competência genérica para oficiar nos processos sujeitos à
tração pública sobre os casos é consolidada por meio de processos que sempre aprovação do CADE, caberá ao representante do MPF no CADE emitir parecer,
envolvem a avaliação de fatos e argumentos por instâncias e pessoas diferentes, de ofício ou a requerimento do Conselheiro Relator, nos processos administra-
na linha do que recomendam as melhores práticas internacionais. tivos para a imposição de sanções administrativas por infração à concorrência.
Nos casos de aprovação de atos de concentração pela Superintendência
3.3. O NOVO DIREITO DA CONCORRÊNCIA BRASILEIRO: AVANÇOS
Geral, essa característica geral dos procedimentos do novo CADE é ainda mais
EM MATÉRIAS SUBSTANCIAIS
marcante. Diante da possibilidade de avo cação pelo Tribunal ou impugnação
de terceiros interessados, o que se criou de fato foi uma segunda instância Em termos materiais, a nova lei introduz inovações importantes tanto na
análise de estruturas como no controle de condutas.
administrativa para a revisão de decisões em casos de estruturas.
A) Análise de estruturas
B) Avanços nos procedimentos para andlises de condutas,
Em primeiro lt-l-gar nunca é demais realçar a importância do controle
A análise das condutas também foi objeto de avanços procedimentais
estrutural para a garantia de mercados competitivos e eficientes. De acordo
significativos, sendo possível identificar um conjunto de medidas com impac-
com Michael Porter26 , podemos ressaltar pelo menos quatro motivos para a
tos positivos na atuação do CADE.
análise preventiva de fusões e aquisições:
Em primeiro lugar, merece destaque a criação do Procedimento Prepara-
(i) Fusões levantam questões quase inevitáveis para a saúde da concorrên-
tório. Esse procedimento supre uma lacuna do regime atual ao regulamentar a
cia através da remoção de concorrentes independentes do mercado. A questão
apuração de casos em que não é clara a competência do CADE. Resolve-se,
não é se existe um risco para a competição, mas o quanto. Este risco decorre
assim, um problema de realidade de formas. Instada a se manifestar sobre de- da diminuição potencial de pressão competitiva entre as empresas na indústria,
terminada denúncia, a administração não mais precisará instaurar procedimen- a redução potencial na escolha de produtos e variedade, e a redução na proba-
to para apuração de infração à ordem econômica sem que esteja, de fato, esta- bilidade de inovação, devido à diminuição no número de abordagens diferen-
belecido tratar-se o fato de matéria de sua competência. tes sobre o binômio produto/processo de desenvolvimento.
O sistema de "checks and balances" destacado positivamente na análise de (ii) Uma fusão não requer skill, foresight, and industry, apenas capacidade
atos de concentração também funciona aqui, com a possibilidade de avocação financeira. Ela não exige nova estratégia, e não acarreta melhora automática na
pelo Tribunal dos procedimentos preparatórios e inquéritos administrativos produtividade. Por outro lado, a introdução de um novo produto, mudando
um modelo de distribuição, ou a construção de uma nova fábrica, são muito
arquivados pela Superintendência Geral.
mais propensos a aumentar a produtividade. A sociedade, então, deve preferir
No que tange ao processo administrativo para imposição de sanções por ações independentes das empresas (crescimento endógeno) e não fusões.
infração à ordem econômica propriamente dito, há também novas regras que (iii) A evidência empírica é majoritária no sentido de que as fusões têm
aumentam a eficiência e a celeridade do procedimento. Um bom exemplo uma baixa taxa de sucesso. Uma ampla série de estudos revela que a maioria
disso é a determinação da especificação de provas já quando da apresentação fusões não atendem às expectativas, e a maioria dos lucros são capturados pelo
da defesa e não mais no prazo de quarenta e cinco dias depois da apresentação. vendedor, e não pelo comprador.
Também é positiva a redução dos formalismos com relação à notificação, (iv) A literatura sobre estratégia empresarial sugere que aquisições peque-
que passa a ser feita, na via postal, por qualquer meio que assegure a certeza da nas e focadas são mais susceptíveis a melhorar a produtividade do que as fusões
entre os líderes. Quando uma grande empresa compra uma pequena empresa
ciência do interessado e não exclusivamente com aviso de recebimento em
e a integra à sua estratégia, grandes ganhos de produtividade são possíveis.
nome próprio.
Fusões entre as grandes empresas parecem raramente assegurar tais benefícios,
Outro ponto positivo, ainda com relação à análise das condutas, diz e ainda eliminam os principais concorrentes de um mercado.
respeito ao papel Ministério Público Federal (MP F). A nova lei abre espaço
para uma maior racionalização dessa participação ao dar ênfase aos processos
envolvendo a investigação de condutas anticoncorrenciais. 26
Op. cit., p. 939.
384 Tratado de Direito Comercial • Volume 6 Vinícius Marques de Carvalho 385

a) Novos parâmetros de notificação sição de ações por meio de oferta pública, há ainda a previsão de regulamen-
Os critérios para a notificação de atos de concentração ficam mais obje- tação posterior.
tivos com a exclusão do critério de participação no mercado relevante, em linha c) Mudanças nas exigências para autorização
com as melhores práticas internacionais. De acordo com os novos critérios, A nova lei também introduz melhorias no dispositivo que autoriza a
passam a ser de notificação obrigatória no Brasil os atos de concentração em aprovação de atos de concentração que "impliquem eliminação da concorrên-
que: (i) uma parte da operação tenha registrado faturamento bruto de pelo cia em parte substancial de mercado relevante, que possam criar ou reforçar
menos R$ 750 milhões no País no último ano fiscal; e (ii) a outra tenha fatu- uma posição dominante ou que possam resultar na dominação de mercado
ramento mínimo de R$ 75 milhões no mesmo período27 • relevante de bens ou serviços" em determinadas circunstâncias. Pelo novo re-
Essa inclusão do critério de faturamento mínimo para o segundo parti- gime, a aprovação é possível se cumulada ou alternativamente tais atos acarre-
cipante da operação é um fator positivo que também merece destaque. Ela visa tarem "aumento da produtividade, a melhoria da qualidade de bens ou serviços
a afastar a obrigação de notificação de operações irrelevantes do ponto de vista ou ainda o aumento da eficiência e do desenvolvimento econômico", desde que
concorrencial que, na ausência desse segundo filtro, vinham sendo submetidas parte dos beneficios seja repassada aos consumidores. Elimina-se, assim, a exigên-
para aprovação do CADE em função apenas do faturamento de um dos grupos cia, de difícil aplicação prática, de que a distribuição dos benefícios fosse feita
econômicos envolvidos. de forma equitativa com os consumidores.
Vale notar ainda que nos termos da nova lei os critérios de notificação Além disso, exclui-se a possibilidade de o CADE autorizar a realização de
podem ser adequados por portaria interministerial dos Ministros de Estado da ato contrário à concorrência por motivo preponderante de economia nacional
Fazenda e da Justiça. e do bem comum, alvo de críticas no sistema anterior28 •
b) Definição de ato de concentração B) O controle de condutas
A definição de ato de concentração na nova lei também é mais objetiva. a) Novos critérios para a aplicação de multas
Ao invés da linguagem aberta que tratava da notificação de "atos sob qualquer As multas, que no sistema atual variavam de 1% a 30% do valor do fa-
forma manifestados que possam prejudicar a livre concorrência", e determina- turamento bruto da empresa, passam a ser de 0,1% a 20% do faturamento
va a notificação de "qualquer forma de concentração econômica", agora temos bruto registrado pela empresa, grupo ou conglomerado no ramo de atividade
uma lista das hipóteses em que se considera realizado um ato de concentração. afetado pela conduta anticompetitiva no ano anterior ao início das investigações.
Essa opção aumenta a segurança jurídica em torno do tipo de ato a ser notifi-
Embora a alteração do critério do faturamento bruto por outro que su-
cado, mas também cria desafios para a jurisprudência do novo CADE ao limi-
postamente aproximasse o cálculo da multa do escopo da infração tenha vindo
tar, por exemplo, a margem de interpretação sobre a desnecessidade da notifi-
ao encontro de uma demanda dos próprios agentes econômicos e da comuni-
cação de operações que, embora a princípio se enquadrem na definição geral
dade jurídica (a crítica era a de que não fazia sentido aplicar a multa sobre o
de ato de concentração da lei, dificilmente representam algum interesse para o
direito da concorrência, como, por exemplo, as aquisições a título exclusivo de
investimento, reorganizações societárias e aquisição de participação minoritária. 28 o ponto é discutível, mas foge ao escopo desse texto. Sobre as críticas, ver, por
A única exceção à obrigação de notificar expressamente prevista na lei exemplo: José Franceschini: ''A finalidade da legislação de defesa da concorrência,
portanto, é unívoca, qual seja, a defesa e viabilização do princípio maior da livre
diz respeito aos contratos associativos, consórcios ou joint ventures criados
concorrência (art. 170, inciso IV), não podendo, portanto, ser utilizada pelo Estado
com o propósito específico de participação em licitações públicas. Para os para alcançar objetivos diversos" (Introdução ao direito da concorrência. Revista de
atos de concentração realizados com o propósito específico de participação Direito Econômico, n. 21, 1988, p. 81). Calixto Salomão Filho, ao referir-se especifi-
em leilões, licitações (os demais atos de concentração) e operações de aqui- camente à disposição do art. 54, § 2Q , também critica: "Com essa fórmula atribui-se
ao CADE competência para decidir sobre a política industrial brasileira ... ". O autor
segue criticando: " ... competência essa muito pouco compatível com seus objetivos,
sua composição e sua desejada independência do Poder Executivo" (Direito concor-
27
Portaria Interministerial MJ/MF n. 994, de 30 de maio de 2012. rencia!: as estruturas, cit., p. 44).
386 Tratado de Direito Comercial + Volume 6 Vinícius Marques de Carvalho 387

faturamento do grupo quando, por exemplo, apenas uma das suas empresas 8.137/9029 e manteve a regra de competência atualmente vigente 3o • Até 2010
tinha cometido infração em dado mercado específico), a redação final da lei contabilizou-se que 250 pessoas, entre donos e diretores de empresas, res-
nesse ponto tem sido alvo de críticas. O motivo seria a insegurança jurídica pondiam a processos por formação de cartel, sendo que ao menos 29 exe-
gerada pela adoção do conceito de "ramo de atividade" como novo parâmetro cutivos já haviam sido condenados em decisão final- de primeiro ou segun-
para aferir o faturamento, tendo em vista não se tratar de um conceito técnico do grau - por crime de cartel, a penas que superaram os cinco anos previs-
do ponto de vista concorrencial. Em resposta a essas críticas, o CADE estabe- tos na lei específica, em vista de aplicação de agravantes previstas no Códi-
leceu uma rotina em torno da aplicação desse conceito por meio da Resolução go Penal.
n. 3, de 29 de maio de 2012. Outros países também reconhecem a importância da persecução criminal
Para as pessoas físicas, os critérios também foram alterados: de 10% a para o combate efetivo a cartéis. Nos Estados Unidos, por exemplo, um admi-
50% da multa aplicável à empresa, a multa passa a variar de 1% a 20% da nistrador pode ser condenado a até dez anos de prisão e ao pagamento de
multa aplicada. A mudança é grande, principalmente tendo em vista a altera- multa de até US$ 1 milhão. A pena média aplicada para cartéis nos Estados
ção na base de cálculo, que fica muito mais razoável com a consideração da Unidos é de trinta e um meses de prisão, sendo que desde 2000 mais de 150
multa efetivamente aplicada à empresa. Já a multa aplicável a associações, executivos já cumpriram pena no país por prática de cartel, inclusive executivos
consultorias e outras pessoas físicas envolvidas aumentou e pode chegar até 2 estrangeiros.
bilhões de reais. Paralelamente, no eixo civil, aposta-se em um salto de qualidade que pode
No caso das sanções não pecumanas, merece destaque a inclusão da advir do estímulo à cultura da reparação de danos causados por cartéis. Essas
proibição de exercer o comércio em nome próprio ou representando pessoa ações privadas de ressarcimento permitem que pessoas prejudicadas por cartéis
jurídica pelo prazo de até cinco anos, e da previsão de recomendação aos órgãos sejam ressarcidas pelos prejuízos sofridos, via ação reparatória de iniciativa do
competentes para que seja determinada licença compulsória de propriedade Ministério Público, de entidades de defesa do consumidor ou dos próprios
intelectual quando a infração estiver relacionada ao uso desse direito. consumidores (Lei n. 12.529/2011, art. 47)31.
b) Avanços no programa de leniência Segundo John Connor32 , a presença de um esquema institucional e legal
A nova lei também introduz alterações positivas no programa de leniên- que propicie ações privadas de reparação de danos por prejuízos advindos de
cia com destaque para a ampliação das hipóteses de concessão de leniência aos cartel é determinante como fator dissuasório da conduta. Além disso, citam-se
crimes previstos em outros estatutos criminais, como é o caso das fraudes em como pontos favoráveis dessas ações o fato de a recuperação de danos ser um
licitações e a formação de quadrilha. A regra atual que proíbe a concessão de avanço em termos de justiça distributiva; de ser um sistema bem estruturado
leniência ao "líder" do cartel, de pouca aplicação tendo em vista as dificuldades pode aumentar o número dos casos de ilícitos detectados; e de tratar-se de mais
de caracterizar essa situação de liderança na prática, foi excluída. uma forma de promoção da cultura da concorrência.
c) Persecução civil e criminal de cartéis
O combate a cartéis no Brasil deve incrementar, cada vez mais, seus re-
sultados, e sensibilizar um maior contingente da sociedade, e para isso é preci- 29
Lei n. 8.137/90, art. 4Q.
so garantir ações estruturantes em três eixos: administrativo, criminal e civil. 30
Veto ao art. 120 da Lei n. 12.529/201l.
31
Para a persecução dos cartéis no eixo administrativo, o incremento de "Art. 47. Os prejudicados, por si ou pelos legitimados referidos no art. 82 da Lei n.
8.078, de 11 de setembro de 1990, poderão ingressar em juízo para, em defesa de seus
resultados é possível por meio da intensificação das investigações, da melhoria interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a cessação de práticas que
da gestão dos processos e da detecção dos setores mais propícios à prática do constituam infração da ordem econ6mica, bem como o recebimento de indenização
conluio. por perdas e danos sofridos, independentemente do inquérito ou processo adminis-
trativo, que não será suspenso em virtude do ajuizamento de ação."
No eixo criminal, cumpre pontuar que a Lei n. 12.529/2011 alterou 32
Global antitrust prosecutions of modem intemational cartels. Journal of Industry,
a tipificação dos crimes contra a ordem econômica previstos na Lei n. Competition and Trade, 4:3, 239-267, 2004, p. 24-25.
388 Tratado de Direito Comercial • Volume 6

De outro lado, pode-se ponderar que as ações de reparação envolvem um


aumento dos custos envolvidos nos processos (cálculo de danos), e alguns Capítulo 22.2
riscos, como o de conflitos entre decisões administrativas e judiciais, de impac-
tos negativos no programa de leniência, de impactos negativos na concorrência
causado por decisões erradas, de maior número de casos de sham litigation e,
CONTROLE DE CONDUTAS NO
por fim, de maior judicialização das discussões antitrustes.
DIREITO ECONÔMICO
Incentivos para buscar reparação variam em função da percepção dos
CONCORRENCIAL BRASILEIRO
riscos envolvidos, dos custos da ação e do valor do dano (expectativa de valor
a ser reparado). De todo modo, para que surja efetivamente no Brasil um sis-
tema de reparação de danos é necessário enfrentar várias questões como: qual
Alessandro Octaviani*
o grau de vinculação entre as decisões na esfera pública e nas ações privadas?
A decisão da autoridade antitruste inverte o ônus da prova no processo civil?
Ações no Judiciário devem ser suspensas enquanto se aguarda decisão da auto-
ridade antitruste? Decisão final no Judiciário sobre danos vincula decisão da
autoridade antitruste? Em que circunstâncias decisão administrativa deve ser
considerada? Apenas decisões versando sobre o mesmo caso podem ter efeitos 1. A TÉCNICA DE CONTROLE DE CONDUTAS: FUNÇÃO, ESTRU-
na ação civil (mesmas partes e mesmos fatos), ou também é possível conferir TURA, PROCESSO E IMAGINAÇÃO INSTITUCIONAL
efeitos vinculantes a decisões sobre casos similares? É possível assegurar ao le-
niente o estabelecimento de recompensas positivas explícitas (i.e. desconto na No presente capítulo, tratarei de pontos básicos referentes ao controle
multa) e de recompensas negativas (i.e. afastamento da responsabilidade soli- de condutas no direito econômico da concorrência brasileiro. Para tanto,
dária)? O desconto deve ser fixado em lei ou deve ser estabelecido caso a caso? analisarei a técnica do controle de condutas reguladas pelo direito econômico
Qual é o método mais adequado para estimar o dano causado: cálculo do so- concorrencial brasileiro a partir de três perguntas básicas, que permitirão
brepreço, cálculo dos lucros cessantes (acessa danos causados na cadeia produ- descrever de maneira adequada o regime jurídico investigado: (i) qual a fonção
tiva) ou cálculo do deadweight loss (overall output reduction e prejuízo a poten- que tal regulação de condutas concorrenciais cumpre?; (ii) a. como está juri-
ciais negócios)? dicamente estruturada tal regulação? e b. qual tem sido a dinâmica de eficácia
social de tais regras, é dizer, o processo de sua aplicação e aceitação?; e (iii) para
onde deve ir tal conjunto de regras, se pretendemos melhorar a qualidade de
tal regulação, ou seja, quais devem ser nossas propostas de imaginação
institucional1 1

* Doutor em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da USP. Mestre em Ciência


Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Professor
Doutor de Direito Econômico na Faculdade de Direito da USP e do Programa de
Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ex-Conselheiro do CADE
(2011-2014).
Para uma visão geral sobre os temas tratados adiante, ver: POLANYI, Karl. A
grande transformação: as origens de nossa época. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier,
2012, SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial: as condutas. São Paulo:
Malheiros, 2007; O CTAVIANI , Alessandro. Estudos, pareceres e votos. São Paulo:
Singular, 2014.

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