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SOBRE OS GANHOS DA LEITURA.

OU SOBRE O GANHO DE FOCO, EMPATIA, CULTURA E INTELIGÊNCIA.

ÂNGELA PETRUCCI VASCONCELOS, AGOSTO DE 2019

Eu faço parte da única geração que fez, no seu período produtivo de exercício de uma
profissão, a utilização extensiva de técnicas de comunicação como a oralidade e a escrita e, somente
em um momento posterior, da informática.
A geração anterior trabalhou e se aposentou sem ter de usar a tecnologia informática e a
geração posterior1 já ingressou no mundo do estudo tendo algum contato com a informática, o qual
foi se expandindo através dos anos.
Minha geração parece, portanto, ser excelente testemunha do uso destas três técnicas de
comunicação e do modo como elas moldam nosso modo de pensar e compreender. Especialmente,
pode testemunhar os incontáveis ganhos e as perdas trazidas pela tecnologia da informática, se
comparada, principalmente, com a tecnologia da escrita (leitura), que acompanhou toda nossa
formação e início do exercício profissional2.
Neste ponto quero esclarecer os conceitos das técnicas de comunicação a que me refiro e
brevemente comentar como elas moldam o nosso modo de pensar, segundo LEVY(1994).
Entendo que não podemos prescindir, atualmente, de nenhuma destas três técnicas. Se
utilizadas, cada uma, com uma finalidade específica, todas possuem seu valor. Entretanto, argumento
sobre a superioridade da escrita (leitura) na busca de conhecimento mais aprofundado e no
desenvolvimento de nossas capacidades emocionais e intelectuais.
A tese de LEVY(1994) é que as tecnologias de comunicação condicionam as evoluções
culturais, o modo de aprendermos e pensarmos.
Numa sociedade que utiliza somente a tecnologia de comunicação chamada oralidade
primária, o arcabouço cultural é guardado na memória dos indivíduos e transmitido através da
palavra. O conhecimento é transmitido através de histórias, mitos e atuações de gestos de habilidades
técnicas. LEVY (1994).
Estas sociedades existiram antes do advento da escrita e ainda existem em algumas tribos que
não fazem uso da tecnologia da escrita.
As sociedades primitivas, baseadas na comunicação oral, não tinham como prioridade a
inovação. O mais importante era transmitir o que se conhecia às gerações futuras. A inteligência se
identificava com a memória. (id., 1994)
O comunicador oral das sociedades não letradas adapta sua narrativa às circunstâncias e ao
interesses e conhecimentos do receptor da mensagem. “A transmissão oral era sempre,
simultaneamente, uma tradução, uma adaptação e uma traição” (LEVY, 2004, p. 89)

1
Entendo a geração anterior como aqueles nascidos na década de 40 e 50. A minha geração, como aqueles nascidos na década de 60 e 70. A geração
posterior, nascidos na década de 80, 90.
2
Note que as tecnologias de comunicação coexistem. Não se abandonou, hoje, a oralidade primária, por exemplo. Ainda transmitimos
conhecimentos em família, entre amigos. Aprendemos contando, imitando e fazendo. Nós igualmente lemos livros, artigos, revistas e ao mesmo
tempo utilizamos (bastante) a internet.
A comunicação oral está, como vemos, sempre sujeita à memória humana. Sujeita, portanto,
a distorções, diferentes interpretações e adaptações.
Perceba, então, que, ao ministrar uma aula, a narrativa de um professor, o conteúdo por ele
“transmitido”, estará sujeito à sua interpretação do que julga mais importante e do que julga mais
apropriado ao público que ensina.
Aqui, devemos nos questionar, como estudantes. Será que aquilo que o professor explicou é o
suficiente para eu compreender o conteúdo? Será que, no afã de não aprofundar demasiadamente o
conhecimento, adaptando-o ao nível do seu público, não foram perdidos conceitos importantes que
me ajudariam a entender a matéria?
A tecnologia que na maior parte das sociedades veio depois, a escrita, elimina a mediação
humana que modifica o conteúdo na transmissão da mensagem de acordo com o contexto. Uma
mensagem escrita não está, portanto, sujeita a distorções e adaptações. Ela é imutável. Ela busca a
transmissão de uma verdade. (LEVY, 2004).
Abordarei, um pouco adiante, os principais e importantes ganhos que esta tecnologia trás para
a formação da nossa mente e aquisição do conhecimento.
A tecnologia de comunicação posterior à escrita, a informática, especificamente os
hipertextos3 proporcionados pela internet, oferecem a informação em rede. Não possuem uma
organização hierárquica e linear, como um texto. O usuário pode escolher quais informações
consultar e em que ordem o fará.
Neste sentido CARR (2011) escreveu uma obra sobre o impacto da internet sobre nosso
pensamento. Ele pertence à minha geração, aquela que só conheceu a internet e a informática depois
de já ter exercido por alguns anos a sua profissão. Uma geração que estudou e produziu, portanto,
somente através dos meios impressos, através da escrita, antes da Internet.

No primeiro capítulo de sua obra ele dá o tom de sua reflexão ao espantar-se:


Eu costumava mergulhar em um livro ou um artigo extenso. Minha mente era capturada pelas
reviravoltas da narrativa ou as mudanças do argumento, e eu passava horas percorrendo longos trechos
de prosa. Agora, raramente isto acontece. [...] Quer eu esteja on-line quer não, a minha mente agora
espera receber informação do modo como a net a distribui: um fluxo de partículas em movimento
veloz.
(p. 17-19)

Obviamente não podemos supor que este escritor, de fato, perdeu a capacidade de leitura
aprofundada e, consequentemente, de escrita. Se assim fosse, não teria conseguido escrever esta e
outras boas obras sobre o assunto. Devemos relativizar esta sua narrativa entendendo-a numa linha
dramática.
Se este tipo de condicionamento da informática acontece mesmo aos mais velhos, que
longamente utilizaram a escrita/leitura, eu suponho que quanto mais jovem se teve acesso ao mundo

3
“Hipertexto é o termo que remete a um texto ao qual se agregam outros conjuntos de informação na forma de blocos de textos, palavras, imagens
ou sons, cujo acesso se dá através de referências específicas, no meio digital denominadas hiperligações. Estas hiperligações ocorrem na forma de
termos destacados no corpo de texto principal, ícones gráficos ou imagens e têm a função de interconectar os diversos conjuntos de informação,
oferecendo acesso sob demanda às informações que estendem ou complementam o texto principal. ” (HIPERTEXTO)

2
da informática e internet, tanto mais propensos estamos a buscar um tipo de aprendizado superficial:
que deseja informação rápida, não linear, não aprofundada e não necessariamente interconectada.4
A informática trouxe perdas e ganhos inegáveis.
Não é possível mais se viver em um mundo sem Internet e sem a tecnologia digital. Elas tornaram
possível o mundo tal como o temos hoje, no extraordinário grau de evolução que atingimos em tão pouco
tempo.
Falando apenas de informação, o Google, por exemplo, coleta rapidamente conhecimento que estaria
espalhado pelo mundo e ao qual dificilmente teríamos acesso. Os vídeos disponibilizados no YouTube,
quando de razoável qualidade, nos ensinam rapidamente assuntos práticos e teóricos.
Assim, não vejo muita necessidade, aqui, de exaltar todos os ganhos da World Wide Web. Ela veio
para ficar e crescer. E sua utilidade e poder de sedução são inquestionáveis.
Entretanto, como professora, vejo- e muito- a necessidade de abordar os ganhos da tecnologia da
escrita. Da leitura, portanto. Percebo que esta tecnologia pouco tem sido utilizada pela maioria dos
estudantes, que não estão se beneficiando deste poderoso recurso para aumentar muitas de suas habilidades
emocionais e intelectuais.
Quando preparava um grupo de estudos sobre “como estudar melhor”, conversei com um aluno que
havia se saído mal em minha disciplina e em outras, já procurando entender o porquê. Ao aconselhá-lo a
procurar, antes de tudo, um bom livro de qualquer disciplina em que estivesse com dificuldade, ele respondeu:
_ Professora, eu nunca li um livro. Argumentou, também, que “seria pior”, porque pouco do texto entenderia.
Neste momento, o meu espanto rapidamente se transformou em uma ideia. Aí está uma grande “pista”
para identificar um dos problemas do aluno que não sabe estudar. E, possivelmente, um grande caminho para
superá-los.
O “bom estudante”, ou o “aluno que sabe estudar”, entre outras condutas e habilidades, tem
autonomia, pensa, tem foco, assume a responsabilidade sobre sua aprendizagem, pesquisa, sintetiza e
relaciona.
Ora, que outra tecnologia, senão a escrita (leitura), desenvolve o raciocínio, o foco e a interpretação
de um modo tão profundo? Em que ela difere das outras tecnologias, neste sentido?
Pense em aprender um assunto através de uma aula, palestra ou mesmo de um vídeo (tecnologia da
oralidade). Usualmente você não deve interromper o palestrante nem pausar ou retroceder o vídeo. Ora, se um
detalhe lhe escapou ou se você não memorizou ou anotou coisas importantes, parte do aprendizado se perdeu.
Ainda, conforme comentei acima, a narrativa oral de alguém seleciona e adapta o conteúdo ao público que
está assistindo, o que pode suprimir conteúdos importantes para você aumentar sua compreensão.
Pense, agora, em aprender um assunto pesquisando e navegando por páginas na web. É possível que
você encontre bom material. É possível que você aprenda um procedimento simples, como uma receita de
comida ou a instalação de um componente elétrico de um carro. Pode ser que aprenda até uma operação de
Cálculo ou um conceito pontual de Geometria Descritiva. Neste caso, além da informática, estará fazendo uso
simultaneamente da escrita, mesmo que fragmentada em algumas páginas e abordada de modo superficial,
como usual na www.
Possivelmente você conseguirá aprender algo para o qual já tem alguma base. Mas dificilmente
conseguirá se aprofundar no assunto. Pode ser que você não precise, para a instância daquela disciplina e de
suas provas, se aprofundar. Até aí, sem problemas, então. A internet será útil e conveniente. Mas dificilmente
terá aprendido aquele conteúdo em profundidade.
Agora, imagine que você não consegue entender os conteúdos de uma disciplina, nem ouvindo o
professor, nem consultando os monitores e colegas, nem consultando a Internet, nem rezando para todos os
seus guias espirituais!

4
Para quem desejar se aprofundar nas consequências das informações online para o nosso pensamento, sugiro a leitura desta obra de CARR (2011).

3
Meu conselho é: procure um bom livro. As páginas de um livro são mágicas. Um bom livro é um
“servo muito sábio”. Ele segue uma ordem lógica de exposição dos conteúdos e entra em detalhes
importantes. Ele aborda os assuntos em profundidade. Frequentemente possui figuras, gráficos ou símbolos
que lhe ajudarão no entendimento.
O livro está à sua disposição para muitas idas e vindas, sem pressa. Submete-se a ser sublinhado,
anotado. Não existe livro sério, muito bom em determinado assunto, que não tenha sido exaustivamente
editado pelo próprio autor, que almeja a sua perfeição, e que não tenha sido revisado por outros autores.
Assim, dificilmente conterá erros ou discrepâncias lógicas. Um bom livro é um professor excelente.
A leitura aumenta sua cultura e conhecimento aprofundado de um assunto. Isto parece ser um fato
bastante conhecido. Entretanto, existe um ganho tão importante quanto este: ler faz você ficar mais
inteligente.
O ato da leitura ativa e exercita a percepção, o foco, a memória e o raciocínio. Segundo BERNAL
(2017), utiliza muitas áreas importantes do cérebro, ligadas à memória, raciocínio, interpretação, capacidades
analíticas, resolução de problemas, tomada de decisões e até mesmo as emoções.
Outro ganho importante mencionado por este autor é que a literatura de ficção, que explora
sentimentos e personalidades alheias, “faz com que aquele que lê melhore sua empatia e sua compreensão dos
outros, algo de que estamos muito necessitados. ”
Se você ainda não tem o hábito de ler, pense que dificilmente você conseguirá um bom desempenho
profissional sem consultar livros da área específica onde irá atuar futuramente.
A Universidade ensina muitos assuntos e, pelo tempo reduzido das disciplinas, dificilmente do modo
complexo como necessitará um profissional. Mas esta é a sua função: fornecer o conhecimento básico e dar as
diretrizes. O profissional, posteriormente, terá de se aprofundar no estudo do seu ramo de atuação, seja
trabalhando de modo autônomo, numa empresa ou prestando um concurso para técnico ou professor.
É sabido que o maior estímulo à leitura, para uma criança, vem de um lar onde os pais efetivamente
leem, além de uma tendência inata. Nem todos tiveram estas condições. Mas a leitura é um hábito que pode
ser desenvolvido, assim como outros. Jamais é tarde para se aprender a gostar de ler, muito menos na faixa
etária da maior parte do estudante universitário, ao redor dos vinte anos.
Procure o tipo de literatura que lhe agrade, não importa se não “parece adulta ou erudita”. Comece
com livros pequenos, “fáceis”. Existem edições de bolso, mais acessíveis, e existem bibliotecas públicas, que
emprestam livros gratuitamente. Existem amigos que podem lhe emprestar livros.
Leia um pouco por dia. Leia duas páginas antes de dormir. Leia no banheiro...
Ler é prazeroso e relaxante. E fará você mais inteligente, com certeza.

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Referências Bibliográficas

BERNAL, Ignacio Morgado. Razões científicas para ler mais do que lemos. 2017. Site "El País", Brasil.
Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/11/cultura/1484155657_662258.html>. 17 jan. 2017.
Acesso em: 23 jul. 2019.

CARR, Nicholas. A geração superficial: o que a Internet está fazendo com os nossos cérebros. Rio de
Janeiro: Agir, 2011.

HIPERTEXTO. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2019. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Hipertexto&oldid=54898414>. Acesso em: 21 abr. 2019.

4
LÉVY, Pierre. As tecnologias da Inteligência – O futuro do pensamento na era da informática. São Paulo.
Editora 34. Tradução de Carlos Irineu da Costa. 2004

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