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Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 13, n. 28, p. 313-344, jul./dez. 2007
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O presente artigo teve sua origem em uma pesquisa,1 cujo objetivo foi
investigar uma faceta do consumo de mídia contemporâneo, especialmente
associado ao uso da tecnologia digital. Para realizá-la escolhi trabalhar2 com
fansites de séries norte-americanas de TV, criados e administrados por fãs
brasileiros, ou seja, um público basicamente composto por jovens.
O resultado da investigação demonstrou que, além de jovens, em sua maioria
proveniente dos segmentos ABC, com boa taxa de escolaridade, especialmen-
te envolvidos com as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC),3 os
participantes desses fansites vêm promovendo mudanças significativas no con-
sumo de mídia no Brasil. Em 2006, o confronto entre a Polícia Federal, a Asso-
ciação de Defesa da Propriedade Intelectual (Adepi) e o fórum Lost Brasil
deixou evidente que esses jovens estavam dispostos a mudar os paradigmas de
transmissão televisual no Brasil. Diante desse cenário, duas questões se impu-
seram: quais os motivos para essa mudança? O que a tornou possível?
A primeira pergunta nos remete a uma mudança tecnológica que vem
permitindo a um segmento brasileiro de consumidores de mídia obter autono-
mia e um aumento de autoridade frente às empresas de comunicação de mas-
sa, tais como emissoras de TV aberta, imprensa, rádio, etc. De fato, meus
informantes, em sua maioria, não assistem mais à TV aberta,4 são assinantes
dos serviços de TV por assinatura, onde preferem assistir a séries norte-ame-
ricanas, além de possuírem acesso à Internet banda larga (muitos estão
conectados 24 horas por dia). Assim sendo, três aspectos fundamentais cha-
maram logo minha atenção quando comecei a freqüentar os fansites:
1
Pesquisa realizada durante o 1 o semestre de 2006, financiada pelo CAEPM/ESPM/SP sobre
Intermidialidades Contemporâneas. Gostaria de agradecer aos professores Luiz Piratininga e Lívia
Barbosa pelo apoio recebido. Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada na 25a Reunião
Brasileira de Antropologia, Goiânia, junho de 2006.
2
Durante todo o período de realização da pesquisa participei como membro assíduo de quatro
fansites. Esta atividade implicava entre outras coisas: postar diariamente, participando das discus-
sões, contribuir com informações e material para o site, fazer fanarts, enfim realizar todas as
atividades que um membro deve fazer.
3
De acordo com as pesquisas divulgadas pelo PNAD e CGI (comitê gestor da Internet no Brasil),
dentre os 32,1 milhões de pessoas que acessaram a rede em 2005, a média de idade dos internautas
do Brasil é de 28,1 anos. Segundo a pesquisa, os internautas tinham em média 10,7 anos de estudo
e um rendimento médio mensal domiciliar per capita de R$ 1.000. Além disso, metade dos internautas
utilizou a rede no domicílio em que morava e 39,7% em seu local de trabalho. (Fontes: http://
www.cgi.br).
4
Pelo menos não com a mesma regularidade e freqüência. Alguns informantes admitiram assistir vez
por outra, por ordem de importância: telejornais (57%); novelas (34%) e minisséries (17%).
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Segundo Mattelart (1994, p. 30), “com efeito, as primeiras projeções públicas na América Latina
efetuaram-se, em 1896, no Rio de Janeiro, Montevidéu, Buenos Aires, Cidade do México, Santiago
do Chile e Cidade de Guatemala”. No Brasil as projeções aconteceram nos dois sistemas: Edison e
Lumière.
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clubes no Brasil seja posterior e esteja relacionado aos artistas de rádio brasi-
leiros (cantores de rádio), sempre existiram publicações que se encarregaram
de divulgar notícias e reportagens sobre os astros de Hollywood entre nós. Na
década de 1950, com a chegada da TV e por conta das séries americanas,6 o
público brasileiro não só se mostrou igualmente receptivo a essas produções
como interessado no material divulgado sobre elas. O que importa destacar é
que tanto pela via do cinema, quanto do rádio e da televisão, o público brasileiro
sempre se mostrou interessado em consumir a cultura de massas norte-ameri-
cana, mantendo-se atualizado e informado sobre ela, o que para muitos críticos
constitui uma forte evidência de americanização.
Chegamos assim ao momento presente. De acordo com o relatório da
ABTA (2006),7 a TV por assinatura no Brasil teve um grande crescimento e
expansão nos últimos anos, notadamente a partir de 2004, quando se verificou
um boom em todo o país na procura por esses serviços. De acordo com o
relatório, a justificativa para esse crescimento e expansão a partir de 2004
deveu-se à qualidade da programação que teria atraído majoritariamente os
públicos AB, descontentes e entediados com a programação da TV aberta.
O fato de me incluir nesse público que substituiu a TV aberta pela TV por
assinatura foi importante, pois em parte sabia e concordava que a migração da
TV aberta para a TV por assinatura estava relacionada à qualidade da progra-
mação, mas sabia também que havia um dado novo nessa programação que
passou a atrair mais o telespectador brasileiro, especialmente os mais jovens: o
aumento da oferta de séries americanas na grade de programação dos canais
por assinatura. Assim, em minha percepção, o aumento de público a partir de
2004 esteve ligado fundamentalmente ao aumento da oferta que gerou um inte-
resse maior pelas séries norte-americanas por parte do público jovem AB bra-
sileiro, descontente com a programação da TV aberta. São elas que efetiva-
6
As séries americanas não são uma novidade na televisão brasileira. Elas fazem parte da grade de
programação das emissoras desde o começo da televisão brasileira, na década de 1950. O que
aconteceu é que quando as emissoras brasileiras passaram a produzir sua própria programação, os
“enlatados”, como eram chamadas essas séries, foram sendo substituídos pelos produtos nacionais.
O sucesso recente das séries tem relação com as TVs pagas que não investem em programação
própria e importam as séries americanas. Ao mesmo tempo, as séries vivem um grande momento
de renovação criativa no próprio país de origem, o que faz da sua exportação um negócio bastante
lucrativo.
7
Associação Brasileira de Televisão por Assinatura.
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A partir de 2005 algumas redes de emissoras abertas passaram a adquirir também os direitos de
transmissão dessas séries no Brasil. Considero que essa decisão foi tomada em função da perda de
audiência desse público jovem que migrou para a TV paga. Ela só reforça as minhas observações de
que o formato vem se impondo novamente no gosto desse público porque ele está descontente com
a programação nacional. Até a TV Globo cedeu à tendência tendo adquirido os direitos de transmis-
são de Lost.
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Trend setters pode ser traduzido por lançadores de tendências. Do Dicionário Houaiss: lançar, ser o
iniciador de, por em voga (ex.: l. uma moda); introduzir (um novo produto) no mercado; promover
(outrem ou a si mesmo), divulgando as qualidades e méritos (alheios ou próprios); introduzir,
apresentar; disseminar, semear, gerar. Early adopters, pode ser traduzido por consumidores iniciais.
Aqueles que primeiro aderem a uma tendência lançada pelos trend setters.
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Não é que não houvesse fansites antes do Orkut. Eles já existiam em grande número na forma de
listas de discussão e alguns sites criados pelos próprios fãs. O problema é que o Orkut, através da sua
linguagem acessível, viabilizou e multiplicou as comunidades virtuais em torno das séries, deu uma
enorme visibilidade a elas diante de um público jovem e ávido por novidades.
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leiros assistir em seu próprio PC ao último episódio de sua série favorita, com
direito à legenda traduzida para um bom português brasileiro, sem erros.
Temos, então, não apenas um exemplo do aumento da autoridade dos
consumidores e fãs, mas de uma mudança imposta por eles, através dos seus
usos da Internet, em relação à cultura e ao sistema de transmissão tradicional.
Em 2006, essa mudança foi de tal ordem que realmente passou a incomodar as
emissoras. Sentindo-se ameaçadas, elas decidiram entrar através da Adepi com
uma queixa na Polícia Federal contra as operações dos fansites brasileiros.
Pelo fato de ser o maior fansite (na ocasião já eram mais de cem mil
membros), ser o mais importante e o mais influente, o proprietário e administra-
dor do Lost Brasil foi publicamente ameaçado e obrigado a fechar o site até
que eliminasse todos os arquivos de legendas armazenados, além dos tutoriais
sobre as baixações. A ordem era que, doravante, os fansites brasileiros não fizes-
sem mais nenhuma alusão ao assunto ou postassem e divulgassem legendas.
Imediatamente o exemplo foi seguido pelos demais proprietários e admi-
nistradores de fansites que retiraram do ar todas as legendas de séries, bem
como eliminaram todas as instruções e tutoriais relativos à operação de baixação
de episódios – como fazer, que tipo de programa usar, como configurá-lo, etc.
Entretanto, a situação não era tão simples assim. Na verdade, tanto emis-
soras quanto autoridades avaliaram mal o problema e a extensão dele. Funda-
mentalmente, uma mudança de cultura já havia sido feita e a reação dos fãs foi
imediata diante das medidas repressivas. Sem dúvida, em um primeiro momen-
to, a grande maioria dos fansites acatou a ordem de retirada das legendas para
evitar que seus proprietários fossem presos, entretanto, isso não impediu que
imediatamente grupos de fãs se organizassem em sites de relacionamento es-
trangeiros (Orkut, Livejournal, Myspace, Sapo) onde criaram novas comunida-
des com o intuito de continuarem a instruir os interessados a baixarem episódi-
os e divulgarem as legendas que continuaram a ser feitas e “linkadas” nesses
sites estrangeiros e acessadas.
O importante a ser dito é que as medidas repressivas em vez de inibirem
a prática acabaram servindo como estímulo para os fãs, em sua maioria jovens,
continuarem baixando, “upando” arquivos de episódios e fazendo legendas. O
resultado é que vários grupos novos surgiram e passou a haver uma organiza-
ção maior e mais profissional dessas práticas. Como muitas medidas repressi-
vas mal conduzidas, sem o devido conhecimento do que está de fato ocorrendo,
essa apenas tornou mais evidente para a maioria dos fãs e do público em geral
o quanto o modelo de negócio da televisão no Brasil precisa ser repensado.
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Caso recente da modelo brasileira Daniela Cicarelli, cujo processo contra o YouTube causou uma
onda de protestos contra ela. Diante da possibilidade do YouTube não poder mais ser acessado pelos
usuários brasileiros por conta de um processo movido pela modelo e o namorado, de uma hora para
outra, ela tornou-se objeto de inúmeras comunidades odiosas no Orkut, páginas, blogs, tendo
recebido até ameaças de boicote ao programa e à emissora de TV MTV, onde atua como apresen-
tadora. Ao mesmo tempo, um vendaval de informações postadas em vários blogs, fóruns e e-mails
ensinava a todos os interessados as medidas de como fazer para burlarem a medida de proteção ao
acesso ao site imposta pelo juiz. Tal rebuliço provocou a imediata retirada da pena de suspensão do
YouTube, bem como manifestações de desculpas e justificativas por parte da modelo e da MTV (que
a essa altura foi involuntariamente envolvida na confusão).
12
Como as “Dedicadas” (18%) ou mesmo os “Boa Gente” (18%), as “Mulheres Atuais” (16%), os
“Bem Informados” (16%), os “Ligados” (15%) e, finalmente os “Absolutos” (4%), estes últimos
mais qualificados e exigentes que os demais.
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É importante dizer que nos EUA as séries são produzidas e transmitidas pela TV aberta. No Brasil
não, elas são transmitidas pelos canais pagos. Existem vários canais especializados em séries: Sony,
AXN, Fox, Universal, TNT, Warner Bross, HBO, etc.
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Mas quem é esse telespectador que passa horas a fio diante do computa-
dor escrevendo sobre sua série e personagens preferidos, ou então, pesquisando,
buscando e recolhendo informações de outros sites, ou ainda escrevendo epi-
sódios inteiros da série ou manipulando imagens? Evidentemente esse “quem”
e o “como” levantaram e trouxeram várias questões etnográficas importantes,
pois há algo nessas séries e na forma de sua emissão que facilita esse tipo de
comportamento. Para começar, temos a questão do perfil socioeconômico do
público que elas atraem. De acordo com a minha experiência e baseada no
relatório da ABTA, trata-se de um público AB, com uma elevada taxa de esco-
laridade em relação à média nacional brasileira, que tem acesso a todas as
inovações tecnológicas na área de comunicação, o que implica diferenças gran-
des em relação ao domínio da escrita, manejo de softwares para buscar, captar
e manipular as imagens das séries que não são assistidas apenas através da
TV, mas também e cada vez mais baixadas diretamente da Internet para serem
assistidas no computador. Tudo isso significa dizer acesso a uma tecnologia
mais sofisticada.
Tendo em vista todas essas considerações, temos claramente que o uso
da Internet banda larga constitui um divisor de águas importante porque, de
fato, ela vem promovendo uma mudança radical no padrão de transmissão
televisual tradicional até então controlado pela mídia de massa. Assim, quem
tem acesso à tecnologia e conhecimento para desfrutar dela, encontra-se em
outro patamar na condição de audiência, inclusive não dependendo mais da
transmissão via TV tradicional. O resultado desse impacto, embora ainda res-
trito a um público pequeno, já é significativo em suas repercussões na própria
mídia (ver Arima; Costa, 2007),14 na medida em que claramente temos agora
uma hierarquização da cultura de massas no Brasil, criando mais diferenças
entre os consumidores e os conteúdos informacionais veiculados pela mídia de
massa e as demais.
Assim sendo, do ponto de vista dos informantes investigados, eles se in-
cluem no topo dessa hierarquia. A maioria fez uma trajetória semelhante, ou
seja, migrou da TV aberta para a TV por assinatura, por estar descontente com
a programação da primeira. Todos admitiram que essa insatisfação os levou a
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Hackers em Série, matéria sobre a atividade dos fãs das séries. O termo usado para designar esses fãs
foi o de hackers.
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Uso a expressão “tocados” no mesmo sentido de Bernadete Beserra (2005) no livro Brasileiros nos
Estados Unidos. Hollywood e Outros Sonhos, ao se referir ao fato de que antes mesmo de sair do
Brasil e emigrar para os EUA, os imigrantes brasileiros entrevistados por ela haviam sido “tocados”
de muitas formas pela cultura norte-americana, ou seja, já se sentiam atraídos pela sociedade norte-
americana em função do contato que tinham com seus produtos culturais. De fato, no caso dos
telespectadores das séries, muitos jovens encontram-se nesse processo de encantamento e sedução
descrito pela autora. Alguns deles confessaram que gostariam de sair do Brasil e viver nos EUA.
Outros se encontram naquelas faixas igualmente descritas pela autora, nas quais viver nos EUA ou
no Brasil não faz a menor diferença, já que se encontram em um patamar bem diferente da
hierarquia social em termos de condições socioeconômicas, oportunidades, etc.
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Arquivos e coleções
Um fansite é uma página feita por fãs e, em sua grande maioria, os fãs
são colecionadores. Portanto, boa parte das atividades de um fansite está vol-
tada para a tarefa de arquivamento e colecionamento de tudo o que se refere
à(s) série(s) televisiva(s) pela(s) qual(is) os membros se interessam. No entan-
to, devido à Internet, as formas de arquivamento obedecem a outras lógicas, no
caso, a lógica digital. Isso significa dizer que antes de arquivar a informação no
fansite, ela deve ser buscada ou recuperada na grande massa de informações
que circula na rede. Portanto, diferentemente da lógica documentária normal, na
maior parte das vezes, a informação não chega até o fã, mas é ele quem toma a
iniciativa de buscá-la numa atividade de pesquisa incessante que precede todas
as demais. Nesse sentido, um fansite pressupõe fãs internautas, que passam boa
parte do tempo buscando informações na rede sobre os assuntos que interessam.
No que se refere ao mapa e a estrutura interna, os fansites podem variar
um pouco de um para outro, dependendo muito do tipo da linguagem utilizada.
Assim sendo, com poucas variações, os fansites possuem uma geografia muito
semelhante, desde tópicos com informações gerais sobre a série – ficha técni-
ca sobre a produção, ficha técnica dos atores, biografia das personagens e
resumo dos episódios; tópicos contendo notícias e reportagens veiculadas na
mídia norte-americana sobre a série. Essas notícias são traduzidas e postadas
para serem comentadas e discutidas pelos membros. Este é considerado um
dos principais serviços prestado pelos fansites, a saber, manter o fã brasileiro
sempre atualizado com as últimas discussões ou matérias veiculadas pela mídia
norte-americana; em seguida, temos os tópicos de discussão para cada episó-
dio separadamente, organizado de acordo com as respectivas temporadas; tó-
picos de bate-papo nos quais se discute um pouco de tudo, variedades, inclusive
as outras séries, ou mesmo outros programas de TV, incluindo-se os tópicos
para a discussão dos spoilers.
Em seguida, e essa é uma parte não menos relevante, temos os tópicos
para a postagem das fanarts, especialmente a parte relacionada às fanfics, o
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álbum contendo as fotos postadas pelos fãs, de atores ou de cenas dos episódi-
os, os wallpapers feitos ou postados pelos fãs; e um tópico à parte para os
vídeos feitos ou postados pelos fãs. Depois das discussões sobre os episódios,
do noticiário sobre a série e tudo a ela relacionado, a parte relativa às fanarts
é aquela que mais demanda atenção e interesse por parte dos fãs. É bem
verdade que nem todos se consideram aptos a produzirem fanarts, mas os que
fazem têm a chance de mostrar seu talento para serem apreciados pelos de-
mais membros dos fansites.
Assim sendo, um fansite não deixa de ser uma biblioteca digital, um ban-
co de dados onde se encontram organizados muitas informações, arquivos e
objetos digitais que necessariamente não estão armazenados naquele site, mas
podem ser acessados através dele, a partir dos links disponibilizados.
Dependendo do perfil (etário, gênero, escolar, atividade profissional) dos
administradores e membros do fansite e do maior ou menor conhecimento a
respeito dos usos da lógica digital, essas informações arquivadas podem ser
muitas e variadas. Elas dizem respeito a todo tipo de informação ou notícia
publicada em sites americanos ou nacionais (jornais e revistas on line), infor-
mações e notícias contidas nos portais das emissoras de TV, ou em outros
fansites americanos, europeus e brasileiros das séries em questão, Wikipédia,
blogs americanos e nacionais de discussão sobre programas de TV, etc. En-
fim, o objetivo dos administradores e freqüentadores passa a ser a coleta e o
arquivamento seletivo e sistemático de todo o tipo de informação relativa às
séries, ou que de alguma forma dizem respeito a elas. Essa atividade documen-
tal e de arquivamento de informações, notícias e imagens é uma atividade in-
cessante considerada fundamental para a própria identidade de fã, pois é aque-
la que o distingue do público em geral. Ser um arquivo vivo e um colecionador
sobre as séries e seus ídolos torna-se um capital fundamental para que ele
possa se apresentar, participar ativamente de um fansite e ser respeitado como
fã, um apreciador, enfim, ser considerado um especialista.
É essa posição de buscador de informações, daquele que tem acesso a
fontes pouco conhecidas é que permite a alguns fansites inverterem a relação
de poder em relação à mídia tradicional, transformando-se em fonte de consul-
ta dela ou mesmo concorrendo diretamente com ela em relação ao acesso às
informações importantes e inéditas sobre as séries. Um exemplo disso são os
spoilers, isto é, as informações colhidas diretamente dos roteiros e scripts,
relacionados aos episódios que ainda não foram transmitidos, sequer produzi-
dos (gravados), mas que vazam para a rede através dos grupos de discussão
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Mais uma vez, devo esclarecer que os dados aqui apresentados são frutos de minha observação
participante.
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A esse respeito, consulte-se, por exemplo o site http://www.fanfiction.net.
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No Brasil, revistas como O Cruzeiro, Amiga, Fatos & Fotos sempre estiveram voltadas para o culto
das estrelas (Hollywood) e artistas de televisão. No momento atual, revistas como Caras e Quem
continuam cumprindo esta função de reportarem visualmente a vida das celebridades.
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sódios e a temporada na qual eles se encaixam, tem relação com o que está
sendo dito sobre a série nas discussões do grupo e de maneira geral.
Do ponto de vista das intervenções visuais, é preciso dizer que todas elas
merecem destaque e atenção, embora cada uma tenha papéis e funções dife-
rentes no contexto dos fansites. No caso dos icons, ou ícones, eles são utiliza-
dos pelos fãs como avatares, substituindo os próprios fãs no ambiente virtual,
sendo, portanto, uma representação do fã através de uma imagem pequena,
algumas vezes minúscula, escolhida e trabalhada com essa finalidade. O icon
ou avatar é a forma como o fã se apropria da série ou de uma personagem dela
para se apresentar através dela. São usados em todos os fóruns e comunidades
como o Orkut.
Os banners ou assinaturas são usados em e-mails e nos próprios fóruns
como assinatura abaixo das postagens. O banner é também uma representa-
ção do fã, mas é explicitamente um statement, ou seja, uma declaração que ele
faz visualmente sobre a série, uma determinada situação ou personagem com a
qual ele se identifica. Tanto avatares como assinaturas costumam mudar bas-
tante e, dependendo do fã, ela pode ser substituída semanalmente ou até mais
vezes. Já os wallpapers são feitos para serem usados como screen savers
(protetores de tela), papéis de parede, com objetivos mais decorativos, embora
contenham também exegeses e declarações do fã sobre a série/personagens.
Quanto aos fanvideos, eles são feitos também como um resultado das
exegeses, como resultado das manipulações diretas dos episódios. Eles são
hospedados geralmente no YouTube, depois “linkados” nos fansites para futu-
ros comentários e discussões entre o grupo. De todas as formas de fanarts o
fanvideo pode ser considerado o mais difícil tecnicamente porque supõe o
acesso e o conhecimento do uso de programas de edição de vídeo. Um fanvideo
para ser apreciado tem de apresentar uma boa edição das cenas e seqüências
selecionadas, além de uma boa trilha sonora, geralmente escolhida a dedo pelo
fã. A exegese do fã está, portanto na seleção das seqüências, na ordem
estabelecida, nos cortes, edição e recursos utilizados. De todos os fanarts de
manipulação visual, os fanvideos exigem para sua apreciação que a platéia
seja realmente fã ou apreciadora da série em questão, pois além de serem
frutos da manipulação de cenas e episódios que devem ser conhecidos de to-
dos, ou seja, um exercício coletivo de bricolage e de edição, eles dizem respei-
to às discussões e questões que estão sendo debatidas em torno dos rumos que
a série e determinadas personagens estão tomando. Assim para que se assista
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Shipper, carregador. É um termo dado para um certo tipo de fã, aquele que se incumbe de divulgar
também alguns personagens em especial, ou certos relacionamentos entre eles. GSR é o nome dado
ao romance entre Grissom e Sara; Yo!Bling ao romance de Warrick Brown e Catherine Willows.
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Essa tendência é perceptível sobretudo entre os intervalos de uma temporada e outra. Enquanto
aguardam e especulam o que vai acontecer na próxima temporada, os fãs se divertem lendo as
fanfictions. Entretanto, independente disso, e conforme a série, elas circulam o tempo todo, e para
os aficionados no gênero existe sempre uma boa indicação.
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Artigo postado no fansite americano CSI Files, traduzido e postado no CSI Brasil em 28/06/2006.
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Conclusão
O fato de admitir que os fansites e as fanarts enquanto objetivações de
uma forma de consumo – o consumo da experiência – pode ser aproximado da
evasão, ou mesmo de um certo tipo de bovarismo, não significa a adoção de
uma perspectiva crítica que o desqualifica a priori. A realidade é mais comple-
xa porque ela não é isso ou aquilo. Junto com a evasão em seu sentido mais
escapista, há mudanças fundamentais e irreversíveis que estão ocorrendo e
estão sendo protagonizadas por esse segmento de público.
Como foi dito, fansites são sites construídos por e para fãs. O objetivo é
a troca e o compartilhamento de informações relacionadas às personagens,
artistas, séries de TV, filmes ou qualquer outro bem que se deseje compartilhar
em conjunto. Portanto, é um espaço onde predominantemente prevalece a lógi-
ca do compartilhamento de informações e experiências baseados na dádiva.
Apesar disso, as tentativas de se impor uma lógica de mercado nesses sites
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têm sido freqüentes. Existem fansites que aderiram a ela e funcionam como
pontos de venda de vários produtos associados às séries, mas existem outros
em que essas tentativas fracassaram por serem consideradas invasivas e ina-
dequadas pelos membros, portanto, ostensivamente rejeitadas. Entre uma e
outra situação, temos uma solução intermediária que vem dando certo: em tro-
ca da inclusão de seus banners nos fansites, de forma discreta, sem atrapa-
lhar a navegação deles e a sua dinâmica interna, sites de compra financiam as
despesas de pagamento da hospedagem do fansite.
De qualquer forma, a lógica prevalecente é o controle dos fãs de todo o
conteúdo postado, muitas vezes gratuitamente. Se existem fãs do tipo que só
usa o fansite para tirar informações, sem contribuir com nada que possa ser do
interesse de todos, ele não será impedido de acessar, mas será ignorado. Quan-
to mais ele posta e contribui com conteúdos próprios ou mesmo informações
obtidas em outras fontes sobre assuntos de interesse geral, relativos à série ou
não, mais ele ganha pontos, reconhecimento e respeito entre os demais fãs.
Para muitos fãs, ser identificado apenas como um apreciador da série não é
suficiente. É preciso buscar e fazer coisas, em seguida trocá-las, compartilhá-
las no fansite.
De toda a forma, como tentei mostrar, de acordo com a lógica prevale-
cente nos fansites, a identidade de fã pressupõe muitas atividades, inúmeras
habilidades e interesses envolvendo a série em questão, o que me leva a dizer
que as conclusões não são definitivas e os desdobramentos dessa pesquisa
podem ser vários.
De imediato, a pesquisa sugere uma continuidade em relação ao tema da
vida digital. Um grande número de fãs de séries americanas possui também
uma “vida digital” e não se limita apenas a participar dos fansites de suas
séries preferidas. Para essas pessoas, estar conectado é fazer parte da realida-
de e, nesses termos, a participação em fansites faz parte de uma agenda ou de
um circuito que pode começar na chamada vida real – quando se assiste às
séries pela televisão – e continuar na vida digital – quando se participa de
fansites. De toda forma, estamos falando da criação de novas redes de socia-
bilidade associadas a novos contextos de reinvenção de identidades.
Para meus informantes, além das redes de sociabilidade tradicionais exis-
tem as formas de sociabilidades digitais criadas em torno do consumo de bens
culturais como séries de TV, filmes, HQ, jogos, etc. Assim, uma forma de exis-
tir passa a ser também estar conectado e participar da rede, com vistas à troca
de experiências singularizadas sobre esses bens. É importante ressaltar que,
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das e vividas pelas personagens das séries, ou ainda por alguns de seus atores
na arena pública. De alguma forma, os fansites estão envolvidos com aquilo
que Beserra (2005) denominou de “reinvenção de identidades” e Gruzinski
(2006) denomina de “guerras de imagens”. Nas atuais circunstâncias, entendo
que o hábito de assistir séries americanas, discuti-las, comentá-las, traduzir
artigos publicados na mídia americana, traduzir legendas e postá-las correndo-
se riscos, além de produzir fanarts, não só é um modo de aquisição de capital
simbólico na forma de adquirir-se uma maior familiaridade com a cultura norte-
americana, com a língua inglesa, mas uma inequívoca demonstração de que os
conteúdos nacionais produzidos e transmitidos pela televisão brasileira não sa-
tisfazem mais a um determinado segmento de público brasileiro.
Assim, seja através das carreiras e profissões, atividades e interesses
vividos pelas personagens das séries, seja pelo tipo de engajamento que alguns
atores dessas séries possuem em relação a causas e movimentos sociais, o fato
é que essas identidades encontram bastante ressonância nos membros dos
fansites – especialmente entre os mais jovens – muitos desses igualmente
participantes ou simpatizantes de movimentos sociais, como os movimentos
ambientalistas. No caso de CSI, por exemplo, a atriz Jorja Fox que desempe-
nha o papel da perita Sara Sidle é assumidamente uma militante do Peta.22 O
site oficial da atriz que pode ser acessado pelos fãs é uma demonstração cabal
desse novo tipo de papel que as celebridades ou artistas vêm assumindo no
mundo contemporâneo, especialmente no que se refere às novas posturas éti-
cas e políticas, quando se colocam à disposição de movimentos sociais, muitas
deles voltados para a repolitização do consumo, caso do Peta.
Referências
22
Peta (People for the Ethical Treatment for Animals) é bastante conhecido nos EUA, além de
reunir um grupo grande de participantes do mundo das celebridades. Ele começa a se fazer presente
também no Brasil, notadamente entre os teens envolvidos com as causas ambientalistas.
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Recebido em 26/02/2007
Aprovado em 12/07/2007
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 13, n. 28, p. 313-344, jul./dez. 2007