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CONGRESSO DA CERVEJA POA

Cervejas High Gravity:


Produção e Manejo –
Rodrigo Veronese
Autor:Pedro ParanhosPublicado em:06/05/2020

Na segunda palestra do III Congresso da Cerveja de Porto Alegre,


Rodrigo Veronese traz dicas valiosas sobre a produção e manejo de
cervejas High Gravity, a baseando-se em sua formação técnica na
Alemanha e experiência com as premiadas cervejas da Cervejaria
Leopoldina.

Rodrigo Veronese é mestre cervejeiro da Cervejaria Leopoldina.

Sobre a Cervejaria Leopoldina


Antes de ir direto ao assunto, apresento um breve histórico sobre a
Cervejaria Leopolina.

A Leopoldina faz parte da Famiglia Valduga Co., uma empresa familiar


localizada no Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves/RS. Fundada por
imigrantes italianos em 1875, hoje é um grupo composto por seis
marcas:

 Casa Valduga (vinhos)


 Ponto Nero (espumantes)
 Domno (importadora)
 Casa Madeira (delicatessen)
 Vinotage (cosméticos à base de uva)
 Leopoldina (cervejaria)

O que une todas estas marcas é o foco em produtos da mais alta


qualidade.

A Leopoldina está localizada em Garibaldi/RS, ainda no Vale dos


Vinhedos, e a fábrica em si é relativamente pequena, com capacidade
para 70 mil litros / mês. É uma planta bastante automatizada, o que
facilita o fluxo de produção e reduz a necessidade de pessoal.

Uma das grandes vantagens de se ter uma cervejaria dentro de uma


vinícola é poder aproveitar a cadeia de distribuição já existente. A outra é
a possibilidade de aproveitar a estrutura e as técnicas já empregadas na
produção dos vinhos, como os laboratórios para controle de qualidade e
o know-how no uso de barris de madeira.
Cervejas High Gravity
As cervejas High Gravity, em geral, são aquelas nas quais o mosto é
produzido com uma concentração de extrato original mais elevado do
que o “normal” ou do que o esperado para o estilo em questão.

Uma cervejaria pode optar pela produção de cervejas High Gravity com
dois intuitos:

 Otimizar a produção, produzindo uma cerveja inicialmente mais


concentrada e que depois será diluída; ou
 Produzir cervejas intensas, com teor alcoólico elevado, com mais
corpo, cervejas extremas e de guarda em geral.

Na Leopoldina trabalhamos apenas com a segunda opção, mas aqui


iremos abordar os aspectos práticos e técnicos de ambas.

Cervejas High Gravity para otimizar a produção


A produção High Gravity para otimizar a produção é aplicada,
principalmente, pelas grandes cervejarias, embora seja uma
possibilidade também para as microcervejarias.

Podemos tomar como exemplo a produção de uma cerveja Pilsen.


Digamos que a densidade final desejada seja de 10 °P. Neste caso,
poderíamos produzir um mosto de 15 °P, que após a fermentação seria
diluído com água gaseificada para então se chegar à densidade final da
cerveja.

Por que produzir desta forma? Quais são as vantagens?

A principal vantagem é que a produção será muito mais barata, pois se


obtém um volume maior de cerveja pronta a cada brassagem. Com a
produção High Gravity é possível, por exemplo, obter-se em apenas um
turno de produção, um volume final de cerveja que normalmente exigiria
dois turnos.

A densidade do mosto não influencia muito no trabalho e nos custos


operacionais da brassagem de uma cerveja, então a cervejaria pode
produzir 5 mil litros de mosto mais concentrado, fermentá-lo, e depois
diluir o lote para obter 10 ou 15 mil litros de cerveja. Vale destacar que a
lavagem dos grãos (lauter) pode demorar um pouco mais do que o
normal, por exemplo uma hora, porém o ganho em outros aspectos da
produção compensa facilmente este tempo adicional.
Com isso, reduz-se o consumo de energia, a mão-de-obra necessária e a
utilização da planta, balanceia-se os picos de sazonalidade fábrica, e
tem-se a possibilidade de adiar investimentos em estrutura que poderiam
ser necessários.

Uma curiosidade interessante é que a Lei da Pureza Alemã permite esta


técnica.

OK, e quais são as desvantagens?

A principal desvantagem é a necessidade de investimento em estrutura


adicional. É preciso ter equipamentos para gaseificar a água de diluição
e dosá-la em linha, pois a dosagem é algo muito difícil de se fazer
manualmente.

A propagação da levedura também é mais complicada, pois estamos


lidando com um mosto mais concentrado e portanto a cerveja será
fermentada até um teor alcoólico mais elevado. Ainda sobre a
fermentação, é possível que haja uma maior formação de ésteres.

Além disso, a diluição da cerveja traz outros efeitos sensoriais como a


diminuição do amargor, pior retenção de espuma, e mudanças no sabor
da cerveja.

Aspectos importantes sobre a água de diluição


 Deve ter o mesmo padrão de potabilidade e qualidade que a água
de brassagem;
 Deve ter obrigatoriamente menos de 0,05 mg/L de oxigênio
dissolvido (<5 ppb);
 Deve estar em temperatura de 0 a 3 °C;
 Pode ser adicionada antes da filtragem, mas geralmente é
adicionada depois.

Cervejas High Gravity com foco no sensorial


Nós vimos como a produção High Gravity pode reduzir os custos em uma
cervejaria. Mas no caso da Leopoldina, nós aplicamos técnicas High
Gravity com o objetivo de criar cervejas especiais, intensas e complexas,
com grande potencial de guarda, e que eventualmente passarão por
barricas de madeira ou mesmo pelo método champenoise.

Ao contrário do que vimos anteriormente, aqui as técnicas High Gravity


são usadas com foco no resultado sensorial. Muitas destas técnicas são
complexas, difíceis de se empregar, e as receitas são pensadas para
cervejas que evoluirão ao longo do tempo – 5, 8, 10 anos, e por aí vai.

Técnicas High Gravity


Confira abaixo as principais técnicas High Gravity que usamos na
cervejaria Leopoldina.

Estas técnicas mudam completamente a maneira com que trabalhamos


na fábrica. No Brasil, as fábricas são desenhadas para produzir cervejas
com proporções relativamente baixas de malte em suas receitas, como
Pilsners e IPAs. Portanto, algumas técnicas são empregadas para
contornar essas limitações dos equipamentos.

Double Mash
Uma das técnicas que mais usamos em cervejas High Gravity na
Leopoldina é a Double Mash, ou mostura dupla. Ela consiste em usar o
escoamento da lavagem dos grãos (sparge) da primeira brassagem,
como “água de brassagem” da segunda mostura do mesmo lote.

Esta é uma técnica importante quando há limitações no equipamento.


Por exemplo, um equipamento projetado para produzir 2.500 L de mosto
comportará facilmente 400 ou 500 kg de malte, mas terá sérias
dificuldades com 1.000 kg. Uma carga tão grande de maltes aumenta
muito o tempo da lavagem dos grãos, além de causar entupimentos. Por
isso usamos a técnica Double Mash.
Apesar de ter rendimento relativamente baixo – menos de 50%, sendo
que o normal para nós é entre 75 e 80% –, o rendimento da Double Mash
ainda é melhor do que teríamos em uma única brassagem com uma
carga tão pesada de maltes. E facilita muito o nosso trabalho.

Fervuras longas
Na Leopoldina, nós fazemos fervuras mais longas em conjunto com a
Double Mash.

Após a primeira mostura, passamos o mosto para a tina de fervura, onde


já ocorrerá alguma evaporação. Enquanto isso, o escoamento da
lavagem dos grãos será usado para a segunda mostura. Após juntar o
escoamento desta segunda mostura à tina de fervura, fervemos por duas
a quatro horas, dependendo da receita. Para comparação, a fervura
padrão geralmente dura em torno de uma hora.

A fervura mais longa promove a concentração do mosto pela


evaporação, e também carameliza o mosto, o que pode trazer sabores
desejáveis à cerveja, dependendo do estilo. O grau de caramelização
será influenciado pela duração da fervura e a configuração do
equipamento. Se o aquecimento da tina for indireto, como no nosso caso,
será preciso ferver por mais tempo para se obter um determinado grau
de caramelização, comparando-se a uma tina com aquecimento direto.
Porém, como a duração da fervura na tina com aquecimento indireto será
mais longa, a evaporação também será maior. É importante levar esses
fatores em consideração ao definir a duração da fervura na receita.

Mostos ricos em dextrinas


A proporção de dextrinas também é uma variável importante a se
considerar em receitas de cerveja High Gravity com foco no sensorial.

Isso porque as dextrinas são açúcares não fermentáveis. Como as


cervejas High Gravity geralmente passam por longas maturações ou
fermentações adicionais em barris ou garrafas, as dextrinas garantirão
que, mesmo após três ou quatro anos, aquela cerveja ainda terá um
corpo residual suficiente para equilibrar o paladar.

Para produzir mostos ricos em dextrinas, fazemos mosturas não muito


longas – de 40 a 60 minutos –, porém em temperaturas mais altas, em
torno de 69 a 70 °C.
Além disso, também podemos agregar extratos de malte durante a
fervura. Geralmente, em cervejas High Gravity, é mais interessante
adicionar extratos do que açúcares puros, porque os extratos vieram de
um processo de mostura e portanto contêm açúcares residuais – como
as dextrinas – que contribuirão para o corpo da cerveja. Já os açúcares
puros são completamente fermentáveis, então eles elevarão o teor
alcoólico da cerveja mas não contribuirão para o corpo. Um ponto
importante a se considerar sobre os extratos é que eles vêm em
diferentes cores, e poderão interferir na cor da sua cerveja.

Na Leopoldina, por ser parte de uma vinícola, também temos trabalhado


cada vez mais com adições de mosto de uva. Um ponto importante sobre
o mosto de uva é que ele é quase totalmente fermentável, portanto se
comporta de forma semelhante aos açúcares puros, reduzindo o corpo
da cerveja e elevando o teor alcoólico, mas também contribui com seus
sabores únicos.

De modo geral, quanto maior for o corpo da cerveja, mais longa poderá
ser a sua maturação em barril. Mas é claro que, assim como em toda
regra, aqui também há exceções, como as Sours envelhecidas em barril,
por exemplo.

Algumas cervejas High Gravity da


Leopoldina
Old Strong Ale
A Leopoldina Old Strong Ale é uma cerveja escura, com dez meses de
maturação em barricas de carvalho e segunda fermentação dentro da
própria garrafa. Por estar acondicionada em uma garrafa de espumante,
seu sabor único e equilibrado é mantido em perfeita harmonia,
preservando toda sua originalidade. Assim como os grandes vinhos, este
rótulo melhora com o tempo!

ABV: 11% | IBU: 30 | EBC: 35


Belgian Tripel
O estilo Tripel foi criado e desenvolvido inicialmente por monges na
Bélgica. A Leopoldina Belgian Tripel é uma releitura que respeita as
características do estilo original, porém possui o toque da expertise
enológica: ela passa 45 dias em barricas de carvalho francês, sendo
refermentada em garrafa com leveduras tradicionalmente usadas em
espumantes.

ABV: 9% | IBU: 30 | EBC: 11


Belgian Quadrupel
Refermentada em garrafa e maturada por 10 meses em barricas de
carvalho – antes usadas no envelhecimento do Brandy XX anos da Casa
Valduga – a Leopoldina Belgian Quadrupel é complexa e potente. Com
diferentes camadas aromáticas, o amadeirado aparece de forma
integrada ao sabor, evidenciando notas de malte e caramelo, permeadas
por sutis nuances de ésteres aromáticos. É encorpada e densa no
paladar, com amplo volume de boca e delicado amargor final.

ABV: 11% | IBU: 30 | EBC: 35


Russian Imperial Stout
Criado originalmente na Inglaterra, o estilo Stout caiu no gosto dos
Czares Russos devido ao seu teor alcoólico elevado, perfeito para baixas
temperaturas. A Leopoldina Russian Imperal Stout une as características
originais do estilo, com camadas aromáticas distintas que criam um
perfeito equilíbrio entre o amargor do lúpulo e o dulçor do malte. No
paladar, mostra-se densa e aveludada, com notas frutadas que abrem
caminho aromas adocicados de toffee, caramelo e chocolate.

ABV: 9% | IBU: 60 | EBC: 90

Conclusão
As cervejarias podem produzir cervejas High Gravity por dois motivos:
baratear a produção; ou criar cervejas especiais, intensas, e com
potencial de guarda.
Estes dois motivos são diametralmente opostos, pois ao contrário de
baratear a produção, as cervejas High Gravity com foco no sensorial
quase sempre terão uma produção muito mais cara e complicada do que
cervejas comuns.

Além da quantidade maior de insumos e os processos adicionais, as


cervejas High Gravity especiais demoram muito mais para ficarem
prontas, pois elas são “duras”, precisam de tempo para suavizar seus
sabores. Na Leopoldina, algumas delas passam por seis meses de
maturação a -1 °C.

Por isso, é importante entender que a produção de cervejas High Gravity


não é nenhum bicho de sete cabeças, mas demanda um cuidado
especial pois envolve um grande investimento não apenas de matérias-
primas, mas também de tempo. E nenhuma cervejaria pode se dar ao
luxo de desperdiçá-los.

Finalizo com um convite para quem quiser visitar a nossa fábrica e


conhecer nossas cervejas. As portas estão sempre abertas. Um brinde!

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