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Fólio Digital,
Rio de Janeiro, 2011.
“Ao pensar nestas tradições, tive em mente alguns dos doces da minha infância que
eram servidos em pequenos rituais da hospitalidade doméstica, como, por exemplo,
durante os lanches da tarde ou após o almoço e também os que eram servidos às
visitas. Havia ainda doces que eram compartilhados entre vizinhos e, certamente,
dentre os mais importantes estavam os oferecidos em ocasiões festivas. Numa
visada rápida acerca desse passado, noto que a maioria daqueles doces tinha em
comum o fato de serem feitos em caldas de açúcar - geleias, compotas, goiabadas,
marmeladas, frutas cristalizadas, frutas em caldas, balas carameladas, pés de
moleque, pudins e outros - e, a partir dessa constatação, me permito, desde esta
primeira fase da introdução ao meu estudo, particularizar a doçaria brasileira por
esta tradição, isto é, a dos doces preparados em caldas de açúcar. Se ao longo
desta apresentação evidenciarei mais a fundo esta particularidade dos nossos
doces, no momento estou voltada para pensar sobre as nossas tradições doceiras e
percebo sem muita dificuldade que elas vêm desaparecendo com o passar de
algumas décadas. No seu lugar, encontramos novas tendências, como as
preparações já prontas e industrializadas, nascidas com a modernidade alimentar e
que competem com a nossa doçaria antiga, lembrando que ela demandava o tempo
da casa, hoje rarefeito” (p. 21)
“Guiada por essas informações, encontrei estudos sobre a difusão do alfenim (como
vimos, do persa panid e do árabe fanid, um doce feito na tradição das caldas de
açúcar), onde são destacados os laços entre as artes da doçaria praticadas na
Península Ibérica (também na Itália e na Fran com aquelas da Antiguidade. De
acordo com Alberto Vieira: tradicional em alguns países, a confecção de alfenim
está documentada em Portugal desde os sécs. XV e XVI e sabe-se da sua presença
em festas e romarias populares. Há uma longa tradição desta arte da doçaria, que
acompanha o processo de expansão da cana-de-açúcar do Mediterrâneo para o
Atlântico, tendo a ilha da Madeira sido um espaço-chave da sua divulgação para
outras ilhas atlânticas, bem como para as Américas Central e do Sul” (p.24 e 25)
[…] aqui, o ato de comer doces pode representar, como ocorre em alguns meios
sociais e para determinados grupos, uma imagem associada ao descuido com o
corpo, chegando até mesmo a ser um modo de discriminação de indivíduos, classes
e comunidades, conforme examinaremos nos próximos subitens deste capítulo. p28
“[…] mas, neste trabalho, a demonização contemporânea do uso do açúcar tem
para nós, brasileiros, uma relevância adicional. No Brasil, ela terá impacto na
desvalorização de uma prática atrelada à nossa identidade e formas de estar juntos
e praticar a hospitalidade, dentre outras características e qualidades inerentes à
nossa cultura que correm um sério risco de serem desqualificadas pelos discursos e
narrativas que vêm construindo representações negativas do açúcar” (p.28-29)
“[…] o chocolate passa incólume pela passarela da alta confeitaria e das artes com
os doces. Tornando-se um alimento psicossocialmente valorizado e qualificado, até
porque o chocolate se associa às heranças das nobrezas e elites pré-colombianas
da Mesoamérica, também foi mais fácil à historiografia dos doces anglo-americanos
assimilá-lo no lugar da doçaria exótica dos povos pobres e escravizados […] tendo
tudo isso em vista, podemos analisar os maquinários do século XIX e destacar,
então, a sua ideologia envolta pela subjetividade de progresso. As máquinas
seduzem, elas captam o olhar dos novos consumidores para os produtos finais que
irrompem em cena como num passe de mágica. Aliás, essas máquinas
representarão novas tendências: uma é a do progressivo afastamento do
consumidor das origens dos produtos alimentícios, contribuindo, com isso, para a
materialização de imaginários simbólicos que associaram os doces a uma certa
utopia da aplicação e das ciências aplicadas à fabricação e manipulação dos
alimentos, uma ideologia que estará doravante associada também às empresas que
fabricam alimentos processados e ultraprocessados” (p.39)
“[…] Porém, à medida que esses produtos se tornaram amplamente dispo. níveis
para todos os segmentos de consumo, percebe-se que provocaram novas formas
de resistência. Isto é, o acesso democrático aos bens de consumo registra um
incômodo por parte das elites, que buscam meios de se diferenciar através dos seus
códigos de consumo, do consumo das massas. Talvez possamos nos referir às
diferentes razões - morais, éticas, médicas, econômicas, estéticas, ecológicas etc. -
que norteiam as alegações contemporâneas para a "recusa aos doces" e nos
parecem desconexas entre si, tendo, na verdade, um eixo comum: a resistência das
elites a consumir as mesmas coisas que todos os outros consomem numa
sociedade do consumo das massas. Numa visão ampla, essas alegações podem
ser observadas no seu argumento de fundo comum, onde estão reunidas as
representações negativas associadas aos açúcares. Neste sentido, proponho
pensar nessas resistências consoante o conceito de elite do sociólogo Pierre
Bourdieu. De acordo com Frédéric Lebaron, é Bourdieu: [...] que aventa a hipótese,
inovadora, do papel da "cultura" enquanto conjunto de disposições interiorizadas -
um patrimônio, a um só tempo, linguístico e comportamental - que facilitam não só o
"sucesso escolar", mas a adoção de estilos de vida específicos, propícios a
contribuir para a permanência das desigualdades sociais. [...] As"elites" ou "grupos
dominantes" são definidos por Bourdieu em termos relacionais, ou seja, a partir de
sua dotação relativa, mais elevada, em diferentes espécies de capital: econômico,
cultural, social e simbólico. Assim, as elites sociais são apreendidas de maneira
multidimensional, levando-se em consideração a diversidade de recursos que as
caracterizam” (p.45)
“[…] A artificialidade aplicada à produção dos açúcares genéricos não é para nossa
análise, um efeito positivo da modernidade alimentar, não porque agora e
recentemente se descobre que esses alimentos não são bons para saúde, mas
porque ela se deu em razão dos abusos e violências psicossocial, econômicas,
culturais e históricas que foram muito extensas e profundas. Esses abusos e
violências são a contraface da modernidade, esvaziando as histórias e memórias de
milhares de pessoas, transformando os seus símbolos, as suas tradições profundas,
as suas lutas por sobrevivência em meras mercadorias, em quinquilharias, em
discursos elitistas, sujeitos com diferentes tipos de capital que não querem ser
vistos ou confundidos com as contrafaces da modernidade. Esse movimento destrói
as artes da doçaria e a sua importância para todas as culturas e identidades que
continuam sendo invisibilizadas no processo de construção de modernidades” (p.46)
“[...] por outro lado, os doces típicos de C&D aparecem em Açúcar, obra de Gilberto
Freyre de 1932," classificados como "doces de criança", "doces de comer com a
mão" ou "doces de comer ao longo do dia", feitos com receitas e produtos da terra
(coco, amendoim, abóbora), em oposição aos "doces finos", às sobremesas de
depois das refeições, geralmente feitas com receitas francesas e comidas por
adultos com pratos e talheres. São "doces secos', isto é, que não melam e que por
isso podem ser vendidos e comidos nas ruas, por não sujarem as mãos, ao
contrário de compotas e outras iguarias que precisam ser consumidas em
recipientes e que por isso tenderiam a ser consumidas nas casas. E, por fim, são
"doces do tabuleiro das baianas", as tias negras que em várias cidades - e,
notadamente, como bem-documentado, no Rio de Janeiro, antiga capital do país -
tinham, num passado relativamente recente, seus pontos em lugares nevrálgicos da
cidade, marcados por intensa sociabilidade, com importante papel na vida política,
social e cultural” (p.87)