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O manuscrito de Felipe Guamán Poma de Ayala e o território intelectual do Peru

colonial (1598-1616)1
Vinicius Soares de Lima2
Resumo
Neste trabalho, será apresentada uma análise da obra El Primer Nueva Corónica y Buen
Gobierno (1616), de Felipe Guamán Poma de Ayala, orientada por alguns postulados teóricos
da história dos livros como apresentada por Robert Darnton. Em primeiro lugar, serão
apresentadas as características físicas do manuscrito de Guaman Poma e como essas
características se relacionam com o contexto colonial em que o autor viva. Em seguida, serão
apresentadas as principais leituras que o autor fez para compor sua obra, de modo a lançar luz
sobre as relações de cultura e poder que perfaziam a circulação de livros e ideias no Peru
Colonial. Como resultado, esperamos traçar um perfil de Guaman Poma como leitor de obras
europeias e como líder indígena que se apropriou da cultura cristã para agir no mundo
colonial.
Palavras-chave: Guaman Poma, Rolena Adorno, história dos livros, Peru colonial.

Abstract

In the present work, we shall present an analysis of the book El Primer Nueva Corónica y
Buen Gobierno (1616), by Felipe Guamán Poma de Ayala, based upon some theoretical
postulates of the history of books as presented by Robert Darnton. Firstly, we shall discuss the
physical characteristics of Guaman Poma’s manuscript, and how these characteristics relate
to the colonial context in which the author lived. Then, we shall proceed to map the readings
that the author has made to compose his work, in order to shed light upon the relations of
culture and power that existed in the circulation of books and ideas in Colonial Peru. As a
result, we hope to create a profile of Guaman Poma as a reader of European books and as an
indigenous man who took possession of the Christian culture to act in the colonial world.
Key words: Guaman Poma, Rolena Adorno, history of books, colonial Peru.

Apresentação
Neste trabalho, faremos uma análise da obra El Primer Nueva Corónica y Buen
Gobierno3, do cronista andino Felipe Guamán Poma de Ayala, de modo a compreender como
as características físicas desse documento podem dialogar com o ambiente intelectual do vice-
reino peruano, especialmente na região de Huamanga, onde o autor passou a maior parte de
sua vida. O período que escolhemos como recorte temporal vai do ano em que o cronista
provavelmente começou a redigir sua crônica até o ano em que datou sua carta ao rei Felipe
III de Espanha (1578-1621), que faz parte do mesmo manuscrito. Esperamos, com essa
1
A opção por tratar essa obra em termos de um manuscrito e não de uma crônica tem como objetivo pensar as
particularidades formais da criação de Guamán Poma e como essas particularidades se relacionam com a posição
do autor no mundo colonial enquanto liderança nativa e leitor de obras europeias. Para uma análise mais detida
da obra pensada como parte do gênero da crônica, ver: LIMA, Vinicius Soares de. Os Curacas nas crônicas de
Felipe Guamán Poma de Ayala e Inca Garcilaso de la Vega. São Paulo: Editora Dialética, 2021.
2
Doutorando em história na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
3
AYALA, Felipe Guaman Poma de. Nueva Corónica y Buen Gobierno. Madri: Historia-16, 1987. Abaixo, nos
referiremos a esta obra pela contração Nueva Crónica.
análise, lançar luz sobre as escolhas das quais Guaman Poma dispunha como autor e de que
forma as condições materiais de produção determinaram seu trabalho.
O cronista Guaman Poma nasceu em Huamanga entre as décadas de 1530 e 1550. Na
carta supracitada, o autor atribuiu a si a idade de oitenta anos. Em suas palavras, ele descendia
das elites locais e se considerava um príncipe. Descendente de indígenas por mãe e pai, o
cronista recebeu o sobrenome “Ayala” de seu pai, que teria adotado o nome como honraria
após salvar um capitão espanhol chamado Luís Ávalos de Ayala em batalha. Em sua vida
adulta, o autor esteve a serviço dos espanhóis. Esse serviço está documentado na própria
crônica e em algumas fontes diversas, e incluiu tarefas como a assistência de um protector de
naturales – uma espécie de defensor público dos indígenas – e a atuação como interprete nas
campanhas de extirpações de idolatrias que ganharam força no vice-reino a partir de 1570.
Além disso, o autor se envolveu em uma complexa batalha jurídica por terras que considerava
herança de sua família, contra curacas da etnia Chachapoya que haviam recebido as mesmas
terras dos espanhóis. O processo terminou em 1600, com a derrota e condenação do cronista
por falsificação que, a partir de então, começou a escrever sua crônica4.
Com o diálogo entre o manuscrito desse autor e as ideias que circulavam em seu
tempo, esperamos contribuir com a historiografia atual no sentido de reforçar as novas formas
de interpretação da Nueva Crónica5 em dois aspectos. Em primeiro lugar, buscaremos
entender de que maneira a obra do autor dialoga com um hipotético impressor, e a partir de
quais convenções de impressão do período esse diálogo pode ter sido feito. Em seguida, com
apoio teórico da história cultural e da história dos livros, pensaremos Guaman Poma não
enquanto autor, mas enquanto leitor, para compreender de que forma ele se relacionava com
as obras impressas das quais dispunha e de que maneira o acesso do autor a essas obras pode
nos ajudar a entender a sociedade colonial do período.

O manuscrito: a devoção de Guaman Poma com sua obra

Para o historiador francês Robert Darnton, o historiador interessado em livros precisa


trabalhar com uma concepção de literatura que vá além do “l’homme e l’oeuvre” – isto é –
não levar em conta apenas os grandes escritores e grandes livros, mas sim os homens e
mulheres em todas as atividades que tenham contato com as palavras. Para o historiador, isso

4
LIMA, Vinicius Soares de. Os Curacas nas crônicas de Felipe Guamán Poma de Ayala e Inca Garcilaso de
la Vega. São Paulo: Editora Dialética, 2021, p. 58-66.
5
DARTON, Robert. O Beijo de Lamourette: Mídia, Cultura e Revolução. São Paulo: Companhia de Bolso,
2010, p. 150.
pressupõe pensar a literatura livresca como parte de um sistema que produz e distribui livros,
composto por um circuito que envolve autoria, edição, impressão, expedição (logística),
venda (livreiros) e leitores.6 Com seus estudos sobre a França do século XVIII, o historiador
mostrou como cada uma dessas etapas determinava de alguma forma as condições de
publicação e circulação dos livros.
Darnton observou que muitas das preocupações dos envolvidos naquele circuito
literário eram voltadas às condições materiais de publicação dos livros. Um exemplo é a
atenção ao tipo de papel usado na produção livreira, elemento que podia representar de 50% a
75% dos custos de produção.7 Além disso, a tolerância dos clientes com problemas de
impressão nos livros parece ter sido baixa no período estudado por Darnton. O autor mostra
reclamações, por exemplo, a respeito de marcas de digitais dos impressores que
acidentalmente ficaram gravadas com tinta em exemplares impressos.8 Pensar um detalhe
simples como essa marca digital permitiu a Darnton “ver as vidas que estavam por trás do
maior livro do iluminismo” – a Enciclopédia de Diderot e D’Alembert. O autor demonstrou,
ainda, como a campanha de venda da Enciclopédia desses dois autores pode ser estudada com
grandes benefícios analíticos. Por último e mais importante, Darnton trouxe a ideia de que o
“o formato de um livro pode ser decisivo para seu significado”. 9 Partilhamos dessa postura
teórica no que diz respeito a Guaman Poma, e mostraremos a seguir como a compreensão da
Nueva Crónica pode ser enriquecida com essas ferramentas teóricas.
Pelo que sabemos das fontes conhecidas hoje, Guaman Poma jamais chegou a
publicar, imprimir e vender sua crônica em vida. Por outro lado, as evidências que
apresentaremos abaixo sugerem fortemente que o manuscrito foi concebido de modo a ser
impresso no futuro, o que indica que seu autor provavelmente desejava que o livro viesse a ser
comercializado. As mais de mil páginas que compõem o manuscrito original foram
descobertas no início do século XX, como parte da coleção da Biblioteca Real da Dinamarca.
Pouco se sabe sobre as circunstâncias do trajeto desse documento, mas os registros daquela
biblioteca mostram que o texto foi recebido no acervo no início do século XVIII. 10 Mesmo
6
Ibid., p. 154.
7
Ibid., p. 155.
8
Ibid., p. 156.
9
Ibid., p. 196.
10
A primeira menção ao manuscrito em registros da biblioteca é do ano de 1729, e foi descoberta pelo
historiador dinamarquês Harald Ilsoe. Entretanto, o manuscrito só foi catalogado entre 1784 e 1786, no
Catalogus manuscriptorum Bibliotechae Regiae et odinatus annis, preparado sob a supervisão de um certo Jón
Erichsen, nome que aparece como diretor da biblioteca no documento em questão. Sobre o percurso do
manuscrito entre 1616 e 1729 não há evidências conclusivas, mas Adorno constrói uma série de hipóteses
sobre como as páginas foram adquiridas pelos dinamarqueses. ADORNO, Rolena. A Witness unto Itself: The
Integrity of the Autograph Manuscript of Felipe Guaman Poma de Ayala’s El primer nueva corónica y buen
gobierno (1615/1616).  Copenhague: Det Kongelige Bibliotek, 2002. p. 17-23.
com esse registro, o texto permaneceu quase totalmente desconhecido desde o momento de
sua conclusão, em 1616, até que foi reencontrado em 1909. No fim do século XX, a mesma
biblioteca fez uma análise pormenorizada dos aspectos físicos daquele manuscrito. A partir
dessa análise, a historiadora Rolena Adorno obteve uma série de conclusões interessantes.
Em primeiro lugar, Adorno conseguiu constatar que todo o documento foi escrito e
desenhado pela mesma pessoa. Em segundo lugar, é provável que o autor tenha lidado com
problemas de escassez de recursos para sua grande obra, especialmente nas etapas finais do
trabalho. Por fim, as diversas correções e emendas feitas pelo próprio Guamán Poma sugerem
que ele trabalhou mais intensamente na produção do capítulo Buen Gobierno,11 escrito com o
objetivo de narrar os governos de cada vice-rei do Peru até aquele momento.
Embora não se possa relacionar uma preocupação com o tipo de folha a ser utilizada,
tal qual ocorreu na França Setecentista explicitada por Darnton, é importante refletirmos sobre
as características físicas das folhas do manuscrito. Rolena Adorno sustentou que a
necessidade do autor de colar emendas de papel aos blocos de folhas 12 sugere uma escassez de
materiais de escrita disponíveis ou, no mínimo, um fornecimento irregular destes materiais
para o cronista13. Como o primeiro bloco de folhas sugere, o plano do autor parece ter sido
coordenar completamente o tamanho desses blocos como tamanho de cada capítulo. Com
possível dificuldade de realizar isso, o autor deve ter se conformado a ignorar as quebras
naturais fornecidas pelos inícios e fins dos blocos enquanto ele concluía a redação final da
obra. De fato, o autor concluiu um capítulo no verso da última folha de um bloco de páginas
apenas três vezes, sem contar o posteriormente adicionado o capítulo Camina el autor.14
Adorno percebeu uma meticulosidade do cronista no trato com o manuscrito, com um
contínuo esforço para produzir um trabalho internamente coerente e completo.
Ao mesmo tempo, a preocupação com critérios artísticos também parece ter
influenciado muito seu julgamento. Daí Adorno concluiu que as duas principais prioridades
de Guamán Poma eram, em primeiro lugar, honrar os requerimentos formais de impressão
vigentes e, em segundo lugar, criar um manuscrito homogêneo e harmonioso, digno de ser
apresentado a um rei da Espanha. A necessidade de equilibrar essas duas prioridades ajuda a
explicar os problemas nas fases tardias da execução da obra. 15 De acordo com a análise da

11
AYALA, op. cit., p. 438-490.
12
O termo utilizado pela autora para designar esses blocos no inglês original é quire. A maioria desses blocos foi
composto por duas folhas – sheets – dobradas duas vezes, formando duas folhas quarto, que equivalem a oito
páginas. ADORNO, op. cit., p. 13.
13
Ibid., p. 25.
14
AYALA, op. cit., p. 1104-1139.
15
ADORNO, op. cit., p.34.
Biblioteca Real da Dinamarca, Guaman Poma fez pelo menos noventa e uma correções nesses
blocos de folhas. Essas correções foram divididas em seis tipos: folhas adicionadas a blocos,
folhas removidas de blocos, emendas textuais com novas informações, emendas textuais com
mudanças substanciais e emendas textuais com reiterações e/ou novas recomendações por
mudanças no sistema colonial.16 A vasta maioria das emendas são do terceiro e do sexto tipo,
o que indica que o autor teve marcada preocupação em atualizar as informações colocadas na
crônica enquanto escrevia e reforça a ideia de que a transformação da realidade colonial era
uma de suas preocupações principais. Além disso, o cronista realizou mais dezoito
modificações depois do manuscrito já encadernado, todas elas trazendo, também, informações
mais atuais – especialmente sobre os vice-reis – e novas ou corrigidas recomendações de
mudança no sistema colonial e nas condutas de seus variados agentes.
Para Adorno, a adição mais notável ao manuscrito completo é a seção Camina el
autor, nos blocos 22 e 23 do manuscrito. Essa parte trata da viagem do autor a Lima para
entregar o manuscrito, de onde este seria enviado à Espanha. Nesse capítulo, o autor narrou
uma viagem com visões tristes do sofrimento dos indígenas em meio às campanhas de
extirpação de idolatrias chefiadas pelo sacerdote cusquenho Francisco de Ávila (1573-1647).
Em Lima, a grande quantidade de indígenas vivendo na cidade foi alvo de severa reprovação
do autor, cuja obra contém inúmeras críticas à miscigenação.17 Pode-se pensar a adição desse
capítulo como parte da iniciativa do autor de corrigir os problemas oriundos da colonização.
Com isso, nosso cronista tratou de colar no texto físico uma emenda final para comprovar,
mais uma vez, tudo que argumentara em quase todos os capítulos anteriores – em suma, que a
ação colonizadora dos espanhóis, se mantida como estava, levaria à inevitável destruição dos
domínios da Coroa espanhola.
Além do que foi exposto até aqui, há evidências que apontam que Guamán Poma
escreveu seu manuscrito com intenção de transformá-lo num livro impresso. O volume
respeita as principais convenções do livro espanhol na segunda metade do século XVI, como
a letra ornamentada, as letras romanas, a paginação, o prólogo ao leitor cristão e a página de
título. Guamán Poma parece ter sido familiarizado com as práticas de impressão da época,
pois ele indica o número de folhas e blocos do manuscrito, que seriam informações destinadas
a um hipotético impressor. De acordo com tese da historiadora Sophie Plas, Guamán Poma

16
Ibid., p. 64.
17
Em suas críticas à miscigenação, Guaman Poma repete por vezes que a mistura étnica é o pior mal que podia
acometer as populações nativas, e que o Peru deveria, portanto, se tornar um Estado autônomo, tributário da
Coroa Espanhola, mas sem um governo direto de origem europeia no continente. AYALA, op.cit., p. 454, 812,
818.
usou como fonte a obra do cosmógrafo sevilhano Jerónimo Chaves (1523-1574), de cuja obra
tirou as convenções formais supracitadas, além de elementos do conteúdo do texto. A obra
Repertorio de los tempos, de Chaves, faz parte de um gênero bem comum e difundido na
época de Guaman Poma. Trata-se das obras de vulgarização científica sobre a astronomia e
suas aplicações. A mais famosa dessas obras era justamente a de Chaves, um dos escritores
espanhóis mais lidos de seu tempo. O Repertorio de los tempos era um guia útil à pratica de
atividades como a navegação, a agricultura e a medicina. Sua leitura era útil ao homem
religioso, ao historiador ou a qualquer leitor de cosmografias e astrologia. A preocupação de
Guamán Poma com as características físicas de seu manuscrito, muito provavelmente com a
intenção de uma impressão futura, demonstra não apenas seu conhecimento a respeito das
regras impostas pela Coroa, como sua atenção aos detalhes para que suas ideias pudessem ser
disseminadas. No próximo tópico veremos algumas como algumas ideias europeias estão
presentes nesse manuscrito.

Guaman Poma e as ideias europeias no Peru colonial

Ao defender uma história dos livros, Robert Darnton estava interessado em “entender
como as ideias eram transmitidas por vias impressas e como o contato com a palavra impressa
afetou o pensamento e comportamento da humanidade nos últimos quinhentos anos”. 18 Como
veremos neste tópico, isso pode ser notado no manuscrito de Guaman Poma. Os historiadores
do livro criaram métodos que envolviam a compilação de estatísticas a partir de solicitações
de privileges (direitos de publicação), a análise de bibliotecas particulares e o mapeamento de
correntes ideológicas. Pensando as contribuições dos Annales para o estudo da história,
Darnton propôs um modelo geral para analisar como os livros surgem e se difundem entre a
sociedade. A existência de tal modelo é possível porque “os livros impressos passam
aproximadamente pelo mesmo ciclo de vida. Este pode ser descrito como um circuito de
comunicação cujas instâncias são o autor, o editor (se não é o livreiro que assume esse papel),
o impressor, o distribuidor, o vendedor e o leitor”. Nessa dinâmica, autores e leitores se
transformam mutuamente, e os últimos determinam o trabalho dos primeiros. A história dos
livros se interessa por cada etapa desse processo, e por ele como um todo.19
Ao propor esse modelo, Darton admitiu a existência de relações entre o livro e o
mundo em cada instância do circuito de comunicação. Nesse sentido, os livros podem ser

18
DARNTON, op. cit., p. 122.
19
Ibid., p. 125.
pensados como vetores das ideias que circulam no mundo em determinado período e lugar.
Por outro lado, é preciso manter o cuidado para não estabelecermos relações automáticas e
taxativas a respeito das ideias como causas definitivas de processos históricos. Em As
Origens Culturais da Revolução Francesa o historiador Roger Chartier forneceu ferramentas
úteis para evitar esse problema.
Para criticar o apego à noção de origem na história, Chartier defendeu que as noções
clássicas de totalidade, continuidade e causalidade deveriam ser evadidas por aqueles
preocupados em fazer uma análise “arqueológica” com uma boa narrativa sobre rupturas e
divergências.20 Para Chartier, se aplicada à história da Revolução Francesa, a noção de origem
levaria a uma teleologia do século XVIII, compreendendo o período em relação ao fenômeno
tido como seu resultado necessário – a Revolução – e focando apenas no fenômeno tido como
causa desse resultado – as ideias do Iluminismo. A partir disso, Chartier propôs a ideia de que
uma reformulação que desloca a categoria de origens intelectuais para origens culturais teria
maiores benefícios compreensivos. Por outro lado, o autor observou que a negação do mito
das origens poderia degenerar a história em um “inventário sem fim de fatos desconexos
abandonados à sua vibrante incoerência por desejo de uma hipótese para propor uma ordem
entre eles”.21 Com isso, o autor concluiu que o legado dos historiadores do século XIX que
buscavam as origens da Revolução deve ser ao mesmo tempo aceitável e descartável, e nos
serve como um conjunto de problemas que recebemos como legado e devemos continuar a
questionar. No caso do período colonial, temos de ter o cuidado de não associar,
automaticamente, essas ideias a fenômenos históricos, da mesma forma que o Iluminismo –
que é indispensável para compreender o século XVIII – não pode ser pensado como a causa
maior da Revolução Francesa.
No caso da América Latina, a colonização introduziu o livro nas vidas dos povos
indígenas. Como vetores das ideias, os livros foram uma condição indispensável para as
tarefas de evangelizar e destruir as crenças autóctones. Com o passar das décadas, essas ideias
vindas de outro lugar começaram a aparecer nas obras dos primeiros indígenas a escrever
livros que sobreviveram até nosso tempo. Nas primeiras crônicas americanas, abundaram
comparações do Tahuantinsuyu dos incas com a Roma Antiga e do continente americano com
a lenda de Atlântida, além de inúmeras outras referências aos clássicos gregos e romanos. As
obras dos primeiros cronistas indígenas – como Guaman Poma – contêm essas ideias, e pensa-
los como leitores pode nos levar a compreender melhor o que esses autores leram e de que
20
CHARTIER, Roger. The Cultural Origins of the French Revolution. Londres: Durham University Press,
1991, p. 18.
21
Ibid., p. 19.
maneira tiveram acesso à grande quantidade de livros que necessariamente tiveram de ler para
conceber suas obras.
No Peru colonial, as formas de se adquirir um livro eram as tendas de livreiros, os
leilões, a herança ou encomendas da Europa. A vasta maioria do mercado livreiro colonial
estava concentrada em Lima, onde era possível ter acesso aos escritos que chegavam da
Europa pelo mar. A posse de livros é um bom indicativo da condição social de seus
possuidores e do mundo intelectual do vice-reino. Cada coleção particular variava de
tamanho, abrangendo de algumas dezenas a milhares de livros, que eram guardados em
bolsas, caixas, armários e escritórios e, no caso de leitores mais ricos, estantes. Seus donos
eram, comumente, espanhóis ou americanos brancos importantes, principalmente membros do
clero. O arquivo arcebispal de Lima contém registros de coleções que chegam a quase dois
mil volumes, como é o caso de um espanhol chamado Diego Vergara y Aguiar, catedrático da
Universidade de San Marcos no século XVII. A coleção de livros, ou parte dela, estava
geralmente presente no studio, o cômodo da casa onde o leitor ou escritor realizava seu
trabalho. De acordo com o historiador Georges Duby, o studio é também uma novidade do
Renascimento. O uso de studios no Peru colonial era mais comum entre altos membros do
clero, como os bispos Cipriano de Medina (Huamanga), Fernando de Mendoza e Manuel de
Mollinedo (Cusco), e Hernando Arias de Ugarte (Lima). A existência desses espaços de
escrita e leitura é cognoscível por meio de inventários post mortem e testamentos.22
Os assuntos específicos das obras variavam muito, mas é possível constatar que três
deles representavam a maior parte dos volumes: jurisprudência, religião e “humanidades”. 23 A
presença dos títulos de jurisprudência é indício da importância do direito castelhano no vice-
reino, visto que quaisquer assuntos não contemplados pela legislação indigenista seriam
necessariamente resolvidos pelo direito. Em religião, o frei Luís de Granada (1505-1588)
encabeçou a lista de exemplares. Os volumes mais comuns eram obras de exegese bíblica,
materiais litúrgicos e obras clássicas dos filósofos cristãos da Idade Média. No que diz
respeito às humanidades, as bibliotecas privadas do Peru continham alguns dos principais
exemplares produzidos pelos humanistas europeus do século XVI, além de cópias dos textos
gregos e romanos da Antiguidade. Assim, encontramos as obras de Platão, Diodoro Sículo,
Plutarco, Ovídio, Cícero, Flávio Josefo, Antonio de Nebrija, Erasmo de Roterdã, Antonio de
Guevara, entre outros autores da Antiguidade e do Renascimento. Também estavam presentes

22
Todas as informações constantes nesse parágrafo são frutos do artigo de PEREZ, Pedro Guibovich. Los
espacios de los libros en el Peru colonial. Lexis, XXVII, 1-2, 2003, 179-190.
23
MARTINEZ, T. Hampe. La difusión de libros e ideas en el Perú colonial: Análisis de bibliotecas particulares.
Bulletin Hispanique, t. 89, n. 1-4, 1987, p. 55-84.
obras da historiografia ibérica, como as crônicas de Alfonso X e muitas das principais obras
castelhanas produzidas no século XV, com destaque para a história dos césares de Pedro de
Mejía (1447-1551) e a crônica de Hernando del Pulgar sobre os Reis Católicos. Na lista
esboçada acima, há uma ausência marcante. Com exceção de obras sobre as línguas nativas,
como dicionários e gramáticas, não é possível constatar a presença de livros sobre a realidade
americana ou os povos pré-hispânicos, o que sugere um amplo uso do livro como maneira de
se conectar com os meios cultos europeus do período, e não com a realidade dos povos
indígenas.24 Os cronistas indígenas dos Andes manifestaram por vezes a vontade de corrigir
essa falha, criando obras que por fim contariam a história de modo a valorizar mais a herança
de seus povos.25
Um dos maiores desafios dos europeus que escreveram sobre a América nos séculos
XVI e XVII foi inserir a origem dos povos recém-descobertos nas interpretações correntes do
mundo e da história. Houve uma série de exegeses, baseadas na Bíblia e nos autores clássicos
relidos e reproduzidos durante a Idade Média e o Renascimento. É o caso da identificação do
Peru com as ricas terras do Rei Salomão ou com o paraíso terrenal. 26 Além disso, houve
associações dos indígenas aos infiéis, como fez o cronista Agustín de Zárate (1514-1560) ao
atribuir características dos judeus e muçulmanos aos povos autóctones, ainda como parte de
um esforço por encaixar os povos recém encontrados na história conhecida. 27 Os cronistas da
época da Conquista (1532 – 1571) colocaram nos Andes os monstros e criaturas míticas
típicos do imaginário europeu. Amazonas, quimeras e gigantes, bem como outros seres
fantásticos, foram associados aos povos e locais andinos. Esses monstros estão presentes em
textos tão antigos quanto a obra de Santo Isidoro de Sevilha (VII d.C.), cujos relatos podem
ter inspirado os autores do século XVI. Da mesma forma, a fauna americana foi associada a
tais criaturas lendárias, como ocorre com a associação do peixe-boi com as sereias.28
No que diz respeito à impressão, já fornecemos evidências suficientes para fazer crer
que Guamán Poma planejava ou tinha vontade de fazer sua crônica se tornar um livro

24
Ibid., p. 74-84.
25
O Inca Garcilaso de la Vega, por exemplo, abriu a primeira parte de seus Comentarios Reales de los Incas
com grandes pretensões. Ele não estava satisfeito com os escritos dos españoles curiosos que redigiram as
primeiras crônicas sobre a colonização da América. Seu objetivo era refinar os relatos pré-existentes do mundo
Andino, o qual julgava conhecer com mais propriedade não apenas por ter nascido lá, mas por dominar, como
nenhum espanhol, a língua nativa dos incas. Os relatos dos espanhóis estavam incompletos, e era preciso,
portanto, adicionar novos comentarios sobre as partes omitidas ou mal contadas da história. LIMA, op. cit., p.
67.
26
MARTINEZ, Teodoro Hampe. Introdución. MARTINEZ, T. H (org.). La tradición clásica en el Perú
virreinal. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2009, p. 11.
27
PEASE, Franklin. Temas clásicos en las crónicas peruanas de los siglos XVI y XVII. In: MARTINEZ, T. H.
(org.). La tradición clásica en el Perú virreinal. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2009, p. 19.
28
Ibid., p. 24.
impresso, e que o autor optou por enviar seu manuscrito para a Espanha. No Peru colonial, a
primeira máquina de imprensa começou a operar em 1584, ano em que Guamán Poma já
estava a realizar suas funções de indígena letrado a serviço dos espanhóis. Em 1581, o
Cabildo de Lima solicitara à Coroa a revogação da proibição da prensa no vice-reino, tendo
em vista que a ausência do dispositivo dificultava o atendimento da demanda da “vida
universitária” e da evangelização dos indígenas. O impressor responsável foi um italiano
chamado Antonio Ricardo. O primeiro material impresso foi um catequismo, supervisionado
pelos jesuítas Juan de Atienza e José de Acosta, além de um representante da Audiencia de
Lima.29
De acordo com Pérez, naquele contexto, a publicação requeria não apenas um hábil
impressor capaz de lidar com os censores, mas também de um empreendedor habilidoso
determinado a superar limitações logísticas e materiais 30. Além disso, a publicação também
dependia de relações políticas, pois hipotéticos autores deveriam submeter seus manuscritos
ao vice-rei ou à Audiencia, que ordenariam um exame do texto por juristas ou teólogos.
Autores eclesiásticos necessitavam, além do que foi dito, da permissão de seus superiores.31
Além da licença, os autores precisavam requerer o privilegio – ou seja, os direitos
autorais – sobre a obra. Geralmente, os privilegios duravam dez anos e eram emitidos
simultaneamente à licença. Com ambos os documentos em mãos, o próximo obstáculo a ser
vencido pelos autores costumava ser o financiamento de suas próprias publicações. Essas
dificuldades econômicas por vezes se somavam a problemas de baixa qualidade de tipos
móveis, pois “as prensas de Lima usavam letras de metal gastas e de segunda mão e peças
decorativas importadas da Espanha e, ainda pior, as empregavam por anos”. 32 Por vezes, a
falta de tipos forçava os impressores a utilizar fontes diferentes numa mesma impressão, o que
diminuía a qualidade dos trabalhos. Outra grande dificuldade material era a compra de papel,
que não era produzido em nenhuma colônia espanhola nos séculos XVI e XVII. No período
de 1584 a 1619, havia apenas uma prensa em operação no Peru, de acordo com os estudos de
Pérez. No final do século XVII, havia um total de quinze prensas, que não necessariamente
estavam em operação constante. Um dos principais usos da prensa peruana na virada daquele
século foi a produção em massa de textos religiosos, especialmente aqueles dedicados à
evangelização.33

29
PÉREZ, Pedro Guibovich. The printing press in colonial Peru: Production, Process and Literary Categories in
Lima, 1584-1699. Colonial Latin American Review, v. 10, n.2, 2001, p. 167-188.
30
Ibid., p. 169.
31
Ibid., p. 170.
32
Ibid., p. 171.
33
Ibid., p. 172.
Todas essas dificuldades parecem ter tornado a opção de tentar publicar na Espanha
mais atrativa para os autores peruanos. Foi o que fez Juan de Espinosa Medrano em 1686 ao
enviar o manuscrito de sua Philosophia Thomistica para a Europa. O mesmo fizeram autores
célebres do período, como José de Acosta, Pablo José de Arriaga e Francisco Carrasco del
Saz. Apesar de todas essas grandes dificuldades, Lima produziu 1106 impressos nos dois
primeiros séculos do período colonial, incluindo livros, panfletos e apostilas. Esse número,
embora importante, foi certamente inferior à quantidade de obras permitidas e proibidas que
chegavam a Lima pelo mar.34
De qualquer forma, impressas no Peru ou na Europa, as leituras que apresentamos aqui
foram parte do substrato sobre o qual se formaram gerações de indígenas leitores e escritores.
De acordo com Pérez,
a partir de la información proveniente de expedientes eclesiásticos y
registros notariales así como de las fuentes literarias, que fueron las élites las
que estuvieron más familiarizadas con la cultura del impreso; y, junto con
ellas, los asistentes de los doctrineros que servían las numerosas doctrinas o
parroquias rurales existentes en el virreinato peruano. Las diferentes formas
de alfabetización existentes en las ciudades y áreas rurales posibilitaron la
conversión de no pocos pobladores indígenas, hombres y mujeres, en
lectores de la literatura, principalmente religiosa, producida en las imprentas
europeas y locales. La apropiación de los textos si bien favoreció la
conversión al cristianismo, también nutrió las agendas políticas y sociales de
los pobladores andinos y, de esta manera, entraron en conflicto con las
prácticas y discursos de los colonizadores. La historia del libro en el mundo
colonial es un tema fascinante de explorar por las dimensiones sociales y
políticas de la misma. Sin embargo, es un campo todavía poco estudiado, en
el cual aun queda mucho por hacer.35

A pista mais clara sobre as leituras de Guaman Poma está no capítulo intitulado
corónicas pazadas, em que o autor narra as crônicas publicadas pelos “primeiros sábios
historiadores”36 que escreveram sobre os Andes. As obras citadas pelo autor são o Libro de
costumes de todas las gentes del mundo y de las Indias (1556) de Johann Boemus, a Historia
general y natural de las Indias (1535) de Gonzalo Férnandez de Oviedo, os tratados De
natura Novi Orbis (1581) e De procuranda indorum salute (1588), ambos do frei José de
Acosta e a Primera parte de la Carólea Ynchiridión, que trata de la vida y hechos del
ynvictísimo Emperador don Carlos Quinto de este nombre y muchas notables cossas en ella
sucedidas hasta el año 1555 (1585) de Juán Ochoa de la Sal. Os demais autores citados sem
menção de obra são Agustín de Zárate (1514?-1575), Diego Fernández de Palencia (1520-
34
Ibid., p. 173.
35
PÉREZ, Pedro Guibovich. Indios y libros en el Peru Colonial. In: CÁRDENAS, Carlos F. Cabanillas. Sujetos
Coloniales: escritura, identidad y negociación en Hispanoamérica (siglos XVI-XVIII). Nova York: Idea,
2017, p. 191.
36
AYALA, op. cit., p. 1088-1091.
1581) e Domingo de Santo Tomás (1499-1570). Guaman Poma cita, por fim, o testemunho
oral de seus antepassados e de outros membros das elites andinas, dando nomes aos curacas
cujos testemunhos serviram para a elaboração da crônica.
Além dessas fontes, há empréstimos – e por vezes cópias diretas – de outros autores
que o cronista preferiu omitir. É o caso do cosmógrafo Gerônimo de Chaves, que citamos
acima. Sabe-se, ainda, que Guaman Poma usou a obra do frade dominicano Bartolomé de las
Casas, como constatou Rolena Adorno.37 Aqui, não nos propomos a realizar um exame
pormenorizado das fontes do cronista. Mas, com essas informações, podemos tratar um perfil
um pouco mais claro de quem foi o leitor Guamán Poma. Como já vimos por meio da análise
física do manuscrito, o autor manifestou uma grande preocupação em apresentar informações
precisas a seus leitores. Por isso, o grande volume de crônicas e textos históricos observado
nas obras supracitadas parece reforçar o valor que o cronista atribuía a informações bem
embasadas – mesmo que, por vezes, ele tenha cometido diversos erros factuais.
Além disso, Guamán Poma via a cristianização dos Andes como um objetivo
incontornável. Por isso, suas leituras de títulos religiosos parecem ter sidos tão volumosas
quanto as de títulos históricos. Além dos religiosos supracitados, Guamán Poma foi um
grande leitor do frei Luís de Granada (1504-1588). Esse autor não escreveu especificamente
sobre os povos indígenas, mas seu Memorial da vida christã serviu como guia para que o
cronista andino fizesse as intermináveis séries de recomendações morais para emenda das
condutas dos cristãos daquele reino. Assim, as referências religiosas mais importantes para o
cronista parecem ter sido as obras de Granada, Acosta e Las Casas, embora vários outros
elementos da intelectualidade teológica e jurídica do século XVI estejam de alguma forma
presentes nas páginas da Nueva Crónica.
Em Guaman Poma, religião e política se misturam. A questão das leituras religiosas
nos permite formular algumas hipóteses a respeito do cronista. Mesmo que seja impossível
confirmá-las, essas hipóteses ajudam a compreender o processo histórico que discutimos aqui.
A omissão de Las Casas, por exemplo, pode estar relacionada ao fato de que o vice-rei
Francisco de Toledo demonstrou antipatia publicamente por esse religioso, 38 que fez inúmeros
inimigos ao defender ferozmente os direitos das populações indígenas da América e negar os

37
ADORNO, Rolena. The Polemics of Possession in Spanish American Narrative. New Haven: Yale
University Press, 2007.
38
O impacto desse tratado no Peru colonial parece ter sido muito importante, tendo em vista que o vice-rei
Francisco de Toledo (1515-1582) escreveu, em tom de desdém, que os religiosos lascasistas tinham muito
prestígio no vice-reino, logo antes de proibir a circulação das obras de Las Casas no Peru. ADORNO, op. cit.,
2007, p. 52).
direitos dos encomenderos sobre as populações nativas.39 Além disso, o cronista fez inúmeras
críticas à ordem dominicana em seus livros, cujos padres ele considerava exemplos de má
conduta e abuso. Por outro lado, Luís de Granada, também dominicano, é citado diretamente e
de maneira respeitosa. A ordem religiosa preferida do cronista era a Companhia de Jesus,
grupo elogiado em inúmeras seções da crônica, e, como vimos, dois livros do jesuíta Acosta
foram citados como fonte pelo cronista.
Para o jesuíta, havia um grande distanciamento entre a maior parte dos estudiosos do
mundo indígena americano e a realidade daquele mundo. Acosta observou que muitos deles
sequer viajaram à América, e muitas vezes se aferraram a dados imprecisos. O jesuíta
defendeu, diante disso, que era preciso conhecer a língua e as antiguedades dos indígenas.
Além disso, ele considerava que os conhecimentos disponíveis sobre o assunto se
encontravam demasiadamente limitados pelos ensinamentos dos clássicos gregos e romanos
da Antiguidade, cuja ciência era “flaca y corta” tanto nos assuntos divinos quanto nos
humanos.40 Acosta defendeu que os missionários deveriam tentar entender as populações
nativas de acordo com o pensamento dos próprios indígenas. Para ele, a boa comunicação era
imprescindível para realizar uma conversão verdadeiramente eficaz. Por isso, os missionários
deveriam conhecer o mundo indígena, procurando saber tudo que era possível sobre os povos
entre os quais trabalhavam.41 Esse mesmo argumento é usado com insistência por Guaman
Poma, que chegou a realizar um desenho que mostra um grupo de indígenas a dormir durante
uma missa por não entenderem o que dizia o sacerdote. Com essa barreira linguística, para
ambos os autores, estaria inviabilizada a evangelização e, portanto, estaria condenado o
domínio espanhol nos Andes.

Considerações finais

Tal qual os escritores da França do século XVIII mostrados por Robert Darnton,
Guamán Poma não se preocupou apenas em colocar suas ideias no papel. Mais do que isso,
inserido em seu tempo e nas regras de publicação que lhe cabiam, ele não deixou de pensar
nos importantes detalhes de sua escrita. Observamos que Guamán Poma, ao redigir seu
manuscrito, o formatou de maneira exclusiva para uma futura publicação. Mesmo a possível

39
LAS CASAS, Bartolomé de. Brevísima Relación de la Destrucción de las Índias. Medellín: Editorial
Universidad de Antioquia, 2011.
40
PAGDEN, Anthony. La Caída del Hombre Natural. Madri: Alianza Editorial, 1988, p. 208.
41
Ibid., p. 200-215.
escassez de materiais não o impediu de consolidar suas ideias do que era ser um indígena
peruano sob o poder físico e intelectual da Espanha.
Certamente, o cronista não era um homem completamente desprovido de meios. Para
conseguir as grandes e caras quantidades de papel e tinta, além das longas horas de leitura que
realizou, o autor deve ter tido muitos aliados importantes entre os colonizadores espanhóis, o
que se explica tanto pelas décadas em que o autor esteve a serviço da Coroa quanto pelas
histórias em que, de acordo ele próprio, seus antepassados colaboraram com os espanhóis na
época da Conquista.
Em grande medida, a história de Guamán Poma se confunde com a história dos livros
no Peru Colonial. Sua escrita surgiu como a iniciativa de um autoproclamado curaca andino
de se apropriar de uma cultura que há apenas algumas décadas se tornara parte da vida
daquele povo, mas se impunha cada vez mais. Assim, se torna possível analisar, por meio da
história dos livros, as transformações que ocorreram na cultura e nas relações de poder no
mundo colonial peruano daquele período.

Referências Bibliográficas:
ADORNO, Rolena. A Witness unto Itself: The Integrity of the Autograph Manuscript of
Felipe Guaman Poma de Ayala’s El primer nueva corónica y buen gobierno (1615/1616). 
Copenhague: Det Kongelige Bibliotek, 2002.

________________. The Polemics of Possession in Spanish American Narrative. New


Haven: Yale University Press, 2007

AYALA, Felipe Guaman Poma de. Nueva Corónica y Buen Gobierno. Madri: Historia-16,
1987.

CHARTIER, Roger. The Cultural Origins of the French Revolution. Londres: Durham
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DARTON, Robert. O Beijo de Lamourette: Mídia, Cultura e Revolulção. São Paulo:


Companhia de Bolso, 2010.

LAS CASAS, Bartolomé de. Brevísima Relación de la Destrucción de las Índias. Medellín:
Editorial Universidad de Antioquia, 2011.

LIMA, Vinicius Soares de. Os Curacas nas crônicas de Felipe Guamán Poma de Ayala e
Inca Garcilaso de la Vega. São Paulo: Editora Dialética, 2021

MARTINEZ, T. Hampe. La difusión de libros e ideas en el Perú colonial: Análisis de


bibliotecas particulares. Bulletin Hispanique, t. 89, n. 1-4, 1987, p. 55-84.

PEASE, Franklin. Temas clásicos en las crónicas peruanas de los siglos XVI y XVII. In:
MARTINEZ, T. H. (org.). La tradición clásica en el Perú virreinal. Alicante: Biblioteca Virtual
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PÉREZ, Pedro Guibovich. The printing press in colonial Peru: Production, Process and
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________________. Los espacios de los libros en el Peru colonial. Lexis, XXVII, 1-2, 2003,
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________________. Indios y libros en el Peru Colonial. In: CÁRDENAS, Carlos F.


Cabanillas. Sujetos Coloniales: escritura, identidad y negociación en Hispanoamérica (siglos
XVI-XVIII). Nova York: Idea, 2017.

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