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Conflicts over coca fields in XVIth Century colonial Peru – Joyce Marcus (Ed.).

Introduction – Joyce Marcus


O autor observa que os incas buscavam exercer um forte controle sobre os
territórios anexados ao Tahuantinsuyu, diferentemente da Tripla Aliança da
Mesoamérica, que constituiu um unidade cujo fim principal era o de coletar impostos.
Para corroborar esta ideia, o autor usa a análise de Murra, segundo a qual a mita teria
sido um elemento de controle estatal. A partir disto, Marcus apresenta os Canta e os
Chaclla, que constituem as partes litigantes do processo Justicia 413 (p. V). É
interessante notar que, no que diz respeito à região central do Peru (especificamente,
nos vales de Chillón, Rímac e Lurín), palco do litígio, evidências indicam que as trocas
de produtos entre os curacazgos ocorrem desde muito antes da presença incaica. De
acordo com testemunhas que figuram nos registros do processo, tais trocas nem sempre
ocorreram de maneira pacífica (p. VI). A conquista incaica da região alterou as relações
de poder entre os curacas locais, o que gerou disputas envolvendo vários grupos étnicos,
que apoiavam uma das duas partes litigantes. Depois da chega dos espanhóis, a situação
não se tornou mais estável. Cantas e Chacllas continuaram a disputar o controle da
localidade, em muitas ocasiões de maneira violenta. Esta questão é a origem do Justicia
413, que começa com a queixa dos Chaclla por restituição. O objetivo de ambas as
partes era o controle das plantações de coca na localidade (p. VII).
O desenrolar do processo ilustra as dificuldades de se relacionar conceitos
oriundos do âmbito jurídico do mundo ibérico, como as ideias posse privada da terra e
de compensação justa (just compensation) com o vocabulário e as categorias andinas
relacionados ao controle, à divisão e ao trabalho da terra. Para Marcus, estes dois
aparatos conceituais eram incompatíveis. Assim, quando os administradores espanhóis
tentavam resolver litígios por meio da venda ou transferência de direitos sobre a terra,
os indígenas pleiteantes costumavam resistir de maneira firme: “since indigenous
Andean populations had never ‘bought’ or ‘sold’ land, there was tremendous resistance
to this proposed resolution” (p. VII).
Part II – Prologue – Maria Rostworowski
Rostworowski destaca que a importância do Justicia 413 para o estudo dos
Andes pré-hispânicos está relacionada ao fato de que o processo data do início do
período colonial (1558-1570). O recorte temporal é anterior à grande reestruturação do
mundo nativo impulsionada pelo vice-rei Francisco de Toledo. Além disto, como dito
acima, o documento é resultado de inimizades e motivações que eram bem distintas dos
propósitos dos espanhóis. Novamente, é destacada a incapacidade dos espanhóis de
compreender as razões que causaram disputas locais como a retratada neste processo.
Para os europeus, era um desafio explicar a tenacidade dos indígenas litigantes em tais
disputas, que, em casos como este, chegaram a galgar todos os degraus do sistema
jurídico espanhol, até chegar ao Consejo de Índias.
No que diz respeito ao conteúdo dos registros do processo, Rostworowski
destaca, que a natureza deste tipo de documento difere substancialmente daquela das
crónicas e relaciones, que objetivavam, de maneira ampla e generalizante, justificar os
direitos da Coroa Espanhola em terras americanas. Processos como o Justicia 413, por
outro lado, tinham um escopo mais restrito, com objetivos relacionados a questões mais
locais (p. 53).
Para compreender as informações que constam no processo, a autora julga
necessário reconstruir o “ambiente sociopolítico” dos vales da costa central peruana
durante o Intermédio Tardio (1000-1476). Neste período, duas macro-etnias habitavam
os territórios andinos (Chillón e Ychma). A administração dos territórios estava a cargo
de um grande número de curacazgos sob hegemonia do centro religioso Ychma. Ao
mesmo tempo, as terras altas daquela região eram habitadas pelos Yauyos, aliados dos
incas de Cusco (p. 54). As informações sobre esses curacazgos pré-hispânicos figuram
nos processos como o Justicia 413 porque as reivindicações dos indígenas dependiam
da capacidade de cada grupo em comprovar seus direitos ancestrais (p. 55-9). Os
curacazgos citados no processo não são exceções (p. 59-61).
Events leading up to the lawsuit
A disputa entre os Canta e os Chaclla pelo controle das plantações de coca, que
segundo as partes envolvidas data do período incaico, continuou até o estabelecimento
do vice-reinado peruano na segunda metade do século XVI. Quando a rebelião de
Manco II eclodiu, os Canta se aliaram aos rebeldes incas, e os Chaclla se recusaram a
prestar o mesmo apoio aos cusquenhos. Diante disto, o curaca Guaman Yauri, dos
Chaclla, planejou um ardil que resultou, de acordo com o processo, na morte (ou
ferimento, as testemunhas divergem) do curaca Vilca Poma, dos Canta. Para resolver a
situação, os encomenderos Nicolás de Ribera, o moço, e Francisco de Ampuero,
responsáveis respectivamente pelos Canta e pelos Chaclla, buscaram selar a paz entre os
curacas de cada etnia, impondo uma solução em que os Chaclla deveriam vender suas
terras aos Canta pelo preço de 200 “ovelhas da terra” (camelídeos). Rostworowski não
explica, contudo, por que os espanhóis decidiram em favor da parte litigante que havia
auxiliado os Incas na revolta contra os espanhóis. O fato documentado é que nenhuma
das partes ficou satisfeita com este resultado, devido à incompatibilidade da
mentalidade andina com os conceitos tipicamente europeus de posse da terra, como
vimos acima. Outro curaca local, Ninavilca dos Huarochirí, tentou resolver a questão
entre os curacas. Entretanto, as lideranças nativas não eram mais capazes de resolver
situações como estas por seus próprios meios. Por isto, os Chaclla, que sentiram-se
injustiçados, foram obrigados a recorrer à justiça espanhola (p. 62).
The Trial
O processo foi iniciado na Real Audiencia de los Reyes pelos Chaclla, e durou
de 1558 a 1567. O veredito em última instância foi favorável aos Chaclla. Tal decisão
foi tomada em virtude de uma determinação da Coroa Espanhola, que dizia que os
mitmaq deveriam permanecer nas terras às quais foram fixados antes da presença
espanhola nos Andes. De acordo com Rostworoski, esta determinação objetivava evitar
o precedente de permitir a mobilização de um mitmaq para fora das terras onde estavam
alocados. Tal precedente poderia, de acordo com a autora, gerar “um número sem fim
de julgamentos e processos que teriam levado o país inteiro ao caos” (p. 63).
Diante disto, os Canta alegaram que os Chaclla jamais haviam sido mitmaq na
região, e que a presença desta etnia lá era fruto das cerimônias de capacocha realizadas
no local. Os curacas dos Quivi (ver p. 61) entraram na disputa ao lado dos Canta,
alegando que os Chaclla haviam lhes tomado suas terras ilegitimamente. O documento
dá os nomes e os depoimentos destes curacas (ver p. 63). As evidências apresentadas no
processo por ambas as partes (probanzas) consistem, principalmente, na elaboração de
modelos de barro das próprias terras, de acordo com a tradição pré-colombiana descrita
por Sarmiento de Gamboa. Tais modelos foram aceitos e requeridos pelas autoridades
espanholas neste processo, e os Chaclla foram incapazes de produzir um destes modelos
(p. 63).
Em 28 de julho de 1567, o curaca Chaclla don Juan Bautista Caxa Guaraca foi
entregar os duzentos camelídeos que, de acordo com o processo, deveriam ser entregues
ao curaca dos Canta em troca da retomada da posse dos campos de coca. Entretanto,
como ardil para evitar a negociação, o curaca dos Canta não compareceu à reunião com
don Juan Bautista para receber os camelídeos, e os índios Canta alegaram que a
transação não poderia ser completada sem a presença do curaca. Mesmo assim, os
funcionários espanhóis confirmaram a posse de don Juan Bautista e o levaram para
firmar os marcadores de território. Durante esta inspeção, os Canta atacaram, e os
espanhóis testemunharam a responsabilidade dos curacas Canta pelo ataque. Depois
disto, os curacas Canta foram presos, mas os espanhóis mantiveram o pagamento de 200
camelídeos devido pelos Chaclla. Por diversos motivos, os Canta se recusavam a
receber os animais. A recusa foi seguida de novas demarcações de terras pelos
espanhóis, até que os yunga entraram novamente no processo para prolongá-lo e tentar
evitar que os Chaclla tomassem o controle daquelas terras. Depois do veredito, o caso
foi enviado para a Espanha depois que os Canta apelaram ao Consejo de Indias, e em
1570, Gaspar de Zárate entregou um “segundo apelo” ou sentencia de revisita ao Real
Consejo (p. 64).
The coca fields of Quivi
Neste item, Rostworowski tenta explicar por que terras tão inóspitas como as de
Quivi suscitaram disputas tão intensas e apaixonadas entre os nativos da região. Em sua
visita de 1559 à região, o frei Gaspar de Carvajal havia estimado o valor daquelas terras
em torno de 600 a 700 pesos, porém, o próprio frei destaca que os indígenas calculavam
o valor daquela terra de forma diferente, visto que eram ideais para o plantio de coca e
que a planta era um elemento básico da cultura andina, que servia tanto para cerimônias
religiosas quanto para a alimentação (p. 64).
The Capacocha
Com base em outros estudiosos (p. 65), Rostworowski dá sua definição do que
eram as cerimônias e práticas associadas à capacocha, admitindo, como algumas
crônicas (Cieza, Guamán Poma), que o sacrifício de crianças era parte da capacocha. A
discussão é interessante pois a cerimônia de capacocha está no cerne de um dos
argumentos dos Canta, que negam a qualidade de mitimaq dos Chaclla ao afirmar que a
presença destes em Quivi foi fruto de cerimônias de capacocha realizadas a pedido do
Inca Huáscar naquela região (rever p. 63). A narrativa de Rostworowski dá destaque a
pelo menos dois possíveis tipos de Capacocha que ocorreram nos Andes (p. 66).

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