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Apontamentos sobre os elementos jurídicos e teológicos da obra de Felipe

Guamán Poma de Ayala

Notes on the juridical and theological arguments in the work by Felipe Guamán Poma de
Ayala

Resumo: El Primer Nueva Corónica y Buen Gobierno (1616) do cronista Felipe Guamán Poma de Ayala é um
dos textos mais importantes produzidos por um autor nativo americano no período colonial. Durante décadas,
essa obra foi vista como a manifestação de uma visão puramente, ou tipicamente andina da colonização dos
Andes. Nesse trabalho, questionamos essa noção, com base em uma análise de como a Nueva Crónica se
articulava com os principais argumentos jurídicos e teológicos de seu tempo, sintetizados aqui com o apoio de
uma leitura das obras de Francisco de Vitória, um dos mais importantes teólogos da Espanha quinhentista,
Bartolomé de las Casas, que fornece boa parte do embasamento dos argumentos do cronista, e José de Acosta,
religioso que percorreu o vice-reino peruano e escreveu sobre a evangelização dos indígenas locais. Utilizamos
como fio condutor da análise as noções de barbárie, dominium e restituição. Com isso, apontamos que a Nueva
Crónica é um documento com mais elementos relacionados com as tradições escritas da Europa do que com
categorias andinas pré-hispânicas.
Palavras-chave: Guaman Poma; Francisco de Vitória; Bartolomé de las Casas; José de Acosta; Rolena Adorno.

Abstract: Felipe Guamán Poma de Ayala’s El Primer Nueva Corónica y Buen Gobierno (1616) is one of the
most important texts ever made by a native American author in the colonial period. For decades, this work has
been seen as the manifestation of a purely or typically Andean view of the colonization of the Andes. In this
paper, we question that notion, based upon an analysis of how the Nueva Crónica related to the main juridical
and theological arguments of its time, summed up here with the support of a reading of the works by Francisco
de Vitoria, one of sixteenth century Spain’s most important theologians, and Bartolomé de Las Casas, who
provides a good deal of the chronicler’s arguments bases, and José de Acosta, a friar who traveled the Peruvian
viceroyalty and wrote about the evangelization of the local indigenous peoples. We use the notions of barbarism,
dominium and restitution as the thread that guides our analysis. With that in mind, we have observed that the
Nueva Crónica is more related to the European written traditions than to pre-Hispanic categories.
Key Words: Guaman Poma; Francisco de Vitória; Bartolomé de las Casas; José de Acosta; Rolena Adorno.

Apresentação

Neste artigo, apresentaremos uma análise da obra El Primer Nueva Corónica y Buen
Gobierno (1616)1 do cronista andino Felipe Guamán Poma de Ayala, com foco nas categorias
jurídicas e teológicas originárias da Europa renascentista e medieval que se relacionam com a
obra do autor. Essa análise será cotejada com os escritos de três dos mais importantes
teólogos espanhóis do século XVI que escreveram sobre os povos indígenas da América:
Francisco de Vitória (1483-1546), Bartolomé de Las Casas (1484-1566) e José de Acosta
(1539-1600). Com essa análise, esperamos observar de que maneira a Nueva Crónica dialoga
com os debates acerca da conquista e da evangelização dos povos indígenas da América que
se desenrolaram naquele século. A partir dessas leituras, tomaremos parte na discussão
historiográfica atual acerca do que compunha a visão de mundo do famoso cronista e de como
essa visão se articula com o ambiente em que sua crônica foi concebida.

1
Nos referiremos à obra ao longo do trabalho utilizando a contração Nueva Crónica.
Alguns autores clássicos da historiografia andinista consideraram, a partir das décadas
de 1960 e 1970, que o texto da Nueva Crónica representa a manifestação de uma visão
tipicamente andina (ADORNO 1978 e 2007; WACHTEL, 1971) da colonização, em oposição
a uma visão eurocêntrica que seria característica das crônicas produzidas pelos autores
brancos. Na historiografia mais recente, essa ideia foi relativizada, e novas contribuições
trouxeram outras perspectivas a respeito do que compõe a Nueva Crónica e como esse
importante documento deve ser lido. Nas linhas abaixo, apresentaremos um breve resumo a
respeito da vida e da obra de nosso cronista. Em seguida, trataremos de definir a discussão
historiográfica a que nos referimos. Por fim, mostraremos o papel que as ideias tipicamente
europeias de barbárie, dominium e restituição, que foram parte dos debates sobre a
colonização da América no século XVI, aparecem na obra de Guamán Poma como parte de
algo mais além de um “útil estratagema” para a “proteção de seu próprio povo” e a
“facilitação de sua participação na nova sociedade” (ADORNO, 1978, p. 137)2.
Felipe Guamán Poma de Ayala3 nasceu na região de Huamanga, entre as décadas de
1530 e 1540. Em sua crônica, concluída em 1616, o autor disse ter oitenta anos de idade.
Guaman Poma afirmou ser neto de Guaman Chaua, o curaca mais poderoso da região do
Chinchaysuyu e segunda persona do Inca Topa Ynga Yupanqui4 (AYALA, 1987, p. 343) nos
anos do Tahuantinsuyu. O pai do autor, nomeado Martín Guaman Mallqui de Ayala, teria se
aliado aos espanhóis nos conflitos da Conquista e adotado o sobrenome Ayala ao salvar um
capitão espanhol homônimo5 durante a rebelião de Gonzalo Pizarro (1510 – 1548) contra a
Coroa espanhola. Sua mãe, como afirma na crônica, era Juana Curi Ocllo, nobre incaica filha
de Topa Ynga Yupanqui. O autor atribuiu sua educação e cristianização a seu meio-irmão,
também chamado Martín de Ayala, que se tornou sacerdote (AYALA, 1987, p. 18-21).
Guaman Poma passou parte de sua vida trabalhando para os espanhóis. Esse serviço é
descrito pelo autor em várias passagens da crônica e comprovado por outras fontes. Um
documento publicado em 1938 atesta que um “Don Phelipe Guaman Poma” trabalhou como
assistente de um protector de naturales chamado Amador de Valdepeña (ADORNO, 2000, p.
XII). Além disso, o autor afirma ter trabalhado nas campanhas de extirpação de idolatrias do
clérigo Cristóbal de Albornoz (1530?-?). Os nativos faziam parte das extirpações para ajudar
2
A tradução dos termos destacados é nossa.
3
Todas as informações que se seguem sobre a vida e a obra do cronista podem ser encontradas com mais
detalhes em (LIMA, 2021, p. 57-66).
4
O autor de refere a Tupac Yupanqui, que teria comandado o Tahuantinsuyu no final do século XV. Na versão
de Guaman Poma sobre a linhagem dos Incas, aquele senhor nativo foi o décimo a ocupar sua posição (AYALA,
1987, p. 110-111).
5
Tal capitão é Luís Ávalos de Ayala, um personagem conhecido da Conquista dos Andes. As descrições do
cronista sobre o capitão apresentam algumas inconsistências (AYALA, 1987, p. 16, nota 2).
a identificar elementos das crenças andinas que os espanhóis desejavam destruir, além de
atuarem como intérpretes. É provável que o cronista tenha sido recrutado para as extirpações
realizadas por Albornoz em Huamanga entre os anos de 1568 e 1570, pois, na Nueva Crónica,
Guaman Poma cita os nomes dos extirpadores e dos nativos punidos que também aparecem
no relatório oficial da extirpação escrito por Albornoz (ADORNO, 1978, p. 137-158). Além
disso, suas descrições sobre o período em que viveu costumam ser precisas se comparadas
com documentos oficiais do período, principalmente no que diz respeito ao governo do vice-
rei Francisco de Toledo (1569-1581).
A parte da vida de Guaman Poma mais bem conhecida por fontes externas à Nueva
Crónica é o período entre 1594 e 1600 (idem, p. 53-92).6 Nesse momento, o autor esteve
engajado em uma disputa legal por terras contra um grupo de indígenas Chachapoya. Guaman
Poma reivindicava terras ao redor da localidade de Santa Lucía de Chiara, na região de
Chupas, perto da cidade de Huamanga. Depois de uma longa série de disputas jurídicas, no
ano de 1600 os juízes da Audiencia de Lima entenderam que o status de cacique prencipal
que Guaman Poma afirmara ter era falso, e que ele na verdade era apenas um homem pobre
cujo nome real era Lázaro. A acusação de que Guaman Poma seria um farsante foi feita em 23
de março de 1600, em Huamanga. Em dezembro do mesmo ano, o teniente corregidor Gaspar
Alonso Ribeiro confirmou os direitos dos Chachapoyas às terras em litígio e impôs uma
sentença criminal de exílio e duzentos açoites contra o cronista. É provável que a Nueva
Crónica tenha começado a ser escrita depois da sentença contra Guaman Poma pois, na obra,
além de contar sua experiência naquele processo legal (AYALA, 1987, 918-919), o autor
associou várias vezes os Chachapoya à condição de yanacona7, portanto sem direitos sobre
terra alguma, e suplicou ao Rei que estes pagassem os tributos que ele considerava devidos
(idem, p. 391; 857; 871; 994).
Além disso, a Nueva Crónica contém informações sobre a descendência de Guaman
Poma, sobre sua visão do mundo andino pré-incaico, sobre a história dos Incas e suas coyas,
além de uma extensa narrativa sobre a Conquista e a colonização espanhola. Os escritos são
6
Há dois documentos coloniais em que o cronista aparece como protagonista de reivindicações junto à justiça
espanhola. Trata-se do Expediente Prado Tello, um expediente jurídico pertencente à coleção pessoal do
Monsenhor Elias Prado Tello, e a Compulsa Ayacucho, batizado com base na região homônima no Peru.
(ADORNO, 1993).
7
De acordo com Adorno (1993, p. 74), yanacona era “qualquer “servo índio, mineiro, ou trabalhador agrícola
removido de seu ayllu e concedido a um senhor espanhol” (Larson, 1988, 337). Removidos da sociedade
indígena, yanaconas não constituíam uma casta nem uma classe; ao contrário, eles compunham um grupo social
heterogêneo e transitório, a quem décadas antes o vice-rei Toledo havia designado por afiliação; aqueles
[yanaconas] a serviço dos europeus eram yanaconas de españoles, e aqueles que reconheciam apenas a
autoridade do Rei eram chamados yanaconas del Rey (Wightman, 1990, 17-18)”.
acompanhados por centenas de desenhos que o autor utilizou – como ele mesmo disse (idem,
p.11) – para compensar seu incompleto domínio da língua espanhola do século XVI e a
ausência de uma formação intelectual acadêmica. Entre os aspectos mais notáveis do texto
estão a crítica simultânea aos incas e aos abusos cometidos pelos colonizadores espanhóis,
pelas elites nativas e, principalmente, pelo clero. O objetivo principal da Nueva Crónica
parece ter sido a proposição de mudanças para que esses problemas fossem corrigidos. Além
disso, Guaman Poma criou uma exaustiva série de recomendações morais, que acompanham
cada narrativa das transgressões cometidas pelos diferentes atores do período colonial, e são
resumidas no diálogo imaginário que o cronista cria com o rei Felipe III no final da crônica
(idem, p. 944-948). Do início ao fim da crônica, destaca-se o clamor de seu autor pelo fim da
presença espanhola no vice-reino do Peru, que se tornaria então um reino cristão, tributário da
Coroa espanhola, mas governado exclusivamente pelas elites nativas não-incas – nesse caso, o
próprio filho de Guaman Poma, Francisco de Ayala (idem, p. 1106-1107).

Uma visão andina?

Em meados do século XX, ganhou força entre os historiadores americanistas uma


corrente teórica que buscava contar a história de nosso continente não por meio das antigas
fontes produzidas por indivíduos cristãos brancos, mas por aquelas criadas pelos membros
mais desfavorecidos da sociedade, especialmente os povos indígenas e africanos. Um dos
mais importantes autores dessa linha de pensamento foi o historiador mexicano Miguel León
Portilla, com sua obra La visión de los vencidos (PORTILLA, 1959). Na historiografia sobre
os Andes, essa visão foi defendida notadamente pelo historiador francês Nathan Wachtel que
publicou, em 1976, La vision des vaincus (WACHTEL, 1976). Essas obras ajudaram a
construir uma historiografia que partisse do papel dos pobres e dos oprimidos na história
colonial, e não dos povos que invadiram o continente após 1492. A partir de então, a
preocupação em fazer uma história vista de baixo foi marcante ao longo da segunda metade
do século XX, e esteve presente nas obras dos estudiosos indispensáveis para uma boa
compreensão de Guaman Poma, como Rolena Adorno e Raquel Chang-Rodriguez. Essas
autoras são exemplos das pesquisadoras que viram na obra do cronista nativo a manifestação
de uma visão tipicamente andina sobre a realidade colonial do vice-reino peruano.
Recentemente, contudo, essa leitura foi repensada, e surgiram novas maneiras de
pensar a relação de Guaman Poma e seus rivais nos processos pelas terras que ele considerava
suas:
Nathan Wachtel (1973: 175), por exemplo, escreveu que Guaman Poma foi
“despossuído de seus bens por um curaca cúmplice dos espanhóis”. Raquel Chang-
Rodríguez (1995: 100), por sua parte, afirmou que Guaman Poma iniciou seu pleito
contra os indigenas Chachapoyas “com o propósito de recuperar terras em
Guamanga” [destaque meu]. Em palavras recentes de Rolena Adorno: “A partir
desta data [1600], quando o sistema de justiça colonial espanhol no qual ele havia
confiado o traíra, Guaman Poma empreendeu seu próprio projeto literário
independente” (Adorno & Boserup, 2005: 220)8.

De acordo com o historiador José Carlos de la Puente Luna (LUNA, 2008), a ideia de
que Guaman Poma tentava recuperar a posse das terras de seus antepassados não se sustenta
quando pensamos que nos Andes pré-hispânicos inexistia o conceito de propriedade privada
da terra. As Crônicas de Índias9 fornecem muitos elementos textuais que servem como
evidência de um processo no qual os modos andinos de controle da terra foram
ressignificados para se adequarem ao acesso à terra por meio da propriedade privada
(PORTUGAL, 2009). Com isso, podemos questionar a tese de que a Nueva Crónica seria a
representação de uma visão tipicamente andina que apenas instrumentaliza algumas fontes de
origem europeia. Além disso, o autor vai de encontro à ideia de que a obra teria um valor
etnográfico que permitia conhecer as realidades das populações pré-hispânicas. Luna (2008)
fez esse questionamento com base em três premissas distintas.
A primeira premissa defendida foi a necessidade de estabelecer as características do
cenário colonial pertinente ao tema, que nesse caso significa comparar os sistemas pré-
hispânicos e espanhóis de tenência da terra na região de Huamanga, onde o cronista viveu.
Isso teria mostrado que a paisagem social descrita pelo cronista e seus rivais apenas poderia
ter existido depois da Conquista. Em segundo lugar, os marcadores territoriais (mojones)10 que
delimitavam a terra em disputa não podiam ter a origem pré-hispânica afirmada por Guaman
Poma, lembrando que os senhores de Cusco não premiavam as lideranças étnicas leais com
espaços de terra delimitados (LUNA, 2008, p. 127). Por fim, Luna propôs uma análise mais
detalhada dos títulos coloniais de terras apresentados pelo cronista, para evitar uma leitura
condicionada pela Nueva Corónica. As disputas territoriais de Guaman Poma – ocorridas

8
“Nathan Wachtel (1973: 175), por ejemplo, escribió que Guaman Poma fue «desposeído de sus bienes por un
curaca cómplice de los españoles». Raquel Chang-Rodríguez (1995: 100), por su parte, afirmó que Guama Poma
inició su pleito contra los indios Chachapoyas «con el propósito de recuperar tierras em Guamanga» [énfasis
mío]. En palabras recientes de Rolena Adorno: «Luego de esa fecha [1600], cuando el sistema de justicia
colonial español en el cual él había confiado lo traicionara, Guaman Poma emprendió su propio proyecto
literario independiente» (Adorno & Boserup, 2005: 220)” (LUNA, 2008, p. 125).
9
Com esse termo nos referimos ao complexo e heterogêneo conjunto de obras escritas para descrever o mundo
nativo americano a partir de 1492. Em meu livro, defini as características desse conjunto heterogêneo de obras
com mais detalhes (LIMA, 2021, p. 25-41).
10
Em geral, esses marcadores eram feitos com rochas, que muitas vezes estavam inseridas no sistema andino de
organização do espaço dos ceques. Essas rochas podiam ter uma dupla função para os andinos: demarcar o
território e servir como objetos de culto e adoração (MCEWAN, 2017, p. 110-112).
cinquenta anos depois do primeiro contato com os europeus – pouco teriam a ver com os
conceitos pré-hispânicos de posse da terra, ao contrário do que defendia Adorno (idem, p.
128).
Consideramos as críticas de Luna acertadas no que diz respeito a um exagero sobre a
presença de um pensamento andino na Nueva Crónica, por parte de vários dos principais
nomes da historiografia andinista da segunda metade do século XX. Por outro lado, essas
autoras e autores não falharam em demonstrar que Guaman Poma usou categorias, métodos e
fontes oriundos das tradições jurídicas e teológicas do ocidente cristão, e conseguiram mapear
bem essas fontes.11 Tais categorias foram indispensáveis para a produção das Crônicas de
Índias no século XVI, independentemente da procedência étnica de seus autores. 12 Em seus
trabalhos mais recentes, Rolena Adorno chegou à conclusão de que há um vínculo inequívoco
entre a Nueva Crónica e escritos de Bartolomé de las Casas (1484-1566) (ADORNO, 2007, p.
41), e seus estudos mais antigos já haviam deixado claro como uma vida de contato com
ideias e práticas de origem europeia foram determinantes na composição da crônica.
Nas páginas seguintes, buscaremos fornecer mais elementos para sustentar a ideia de
que a crônica de Guaman Poma tem mais em comum com conceitos jurídicos e teológicos
europeus do que uma suposta visão andina pré-hispânica. Para isso, cotejaremos a Nueva
Crónica com textos dos religiosos do século XVI que citamos acima, todos publicados e lidos
no período em questão, e que escreveram sobre a conquista e a evangelização dos Andes a
partir das tradições do cânone católico medieval, do direito romano e, nos casos de Las Casas
e Acosta, da experiência nas colônias.

Categorias jurídicas e teológicas na Nueva Crónica y Buen Gobierno

a) A barbárie
Para Guaman Poma, a barbárie13 foi uma característica dos povos indígenas em um
momento histórico específico, dentro da versão da história andina concebida pelo autor. 14 Na
narrativa de Guaman Poma, os primeiros habitantes dos Andes conheciam o verdadeiro Deus

11
Além das obras já citadas de Rolena Adorno, podemos acrescentar como exemplos COX, 1991 e 1992; PLAS,
1996.
12
Partimos da ideia de que a procedência étnica do autor de uma crônica de Índias, embora importante, não deve
ser o critério principal de análise dessas obras (LIMA, 2021, p. 25-41).
13
Destacamos que o uso desse conceito no presente artigo jamais é feito de modo a implicar qualquer tipo de
inferioridade natural dos povos nativos da América em relação aos brancos. O termo barbárie tem que ser
pensado, aqui, como os espanhóis do século XVI o utilizavam, ou seja, como a não pertença ao mundo cristão. O
tema é tratado na sequência do texto.
14
Para sustentar a argumentação que delinearemos ao longo deste trabalho, Guaman Poma produziu uma versão
própria e original da história dos Andes, inserida na história do restante mundo. Essa história geral do mundo e
dos Andes pode ser lida nas primeiras centenas de páginas da crônica (AYALA, 1987, p. 22-369).
e teriam vivido de acordo a lei natural.15 Porém, ao longo do tempo, essa proximidade com
Deus se perdeu, o domínio da escrita desapareceu e, por influência demoníaca, os indígenas
passaram a adorar os falsos ídolos (AYALA, 1987, p. 48-78).16 Para o autor, os responsáveis
por tal degeneração foram os incas, que teriam iniciado seu domínio dos Andes de maneira
injusta. Tal argumento é apresentado em várias ocasiões, como no exemplo abaixo:

E este Ynga edificou Curi Cancha, templo do sol. Começou a adorar ao sol e
à lua e disse que era seu pai [sic]. E tinha sujeita toda a cidade de Cusco sem
o de fora [sic], e não houve guerra nem batalha, mas ganhou com engano e
encantamento, idólatras. Com sortilégios do demônio começou a adorar
uacas, ídolos. E se casou, dando dote ao sol e à lua com sua mulher que era
sua mãe, a senhora Mama Uaco, coya, por mando das uacas e demônios
(tradução nossa).17

A narrativa acima se relaciona com as discussões jurídicas e teológicas a respeito da


natureza da barbárie em que se encontravam – na opinião dos espanhóis – os nativos da
América, mesmo que o autor não tenha feito essa relação de maneira explícita. Ao longo de
todo o século XVI, religiosos e juristas europeus discutiram a respeito de qual seria a origem
dos indígenas americanos, em qual tipo de barbárie viviam e que ações seriam justas ou
injustas por parte dos colonizadores espanhóis. Entre 1492 e a década de 1520, a opinião geral
entre os intelectuais era que os espanhóis haviam encontrado povos que viviam nas condições
que Aristóteles descreveu como as dos escravos naturais, ou seja, aqueles povos ditos
bárbaros que, por sua inferioridade natural, deveriam ser escravos dos senhores naturais.
Entretanto, com o passar do tempo os espanhóis logo perceberam que tal ideia não se
sustentava e, especialmente a partir da década de 1520, com o contato com os povos da
Mesoamérica e dos Andes, tal visão perdeu espaço. A partir daí, a noção do indígena como
escravo natural deu lugar à visão do indígena como pagão a ser evangelizado e tornado
vassalo cristão (PAGDEN, 1988).
Um dos primeiros e mais importantes defensores dessa ideia foi o padre dominicano
frei Francisco de Vitória (1483-1546). É certo que nenhum teólogo quinhentista negou a

15
Brian Tierney usa a definição do imperador romano Graciano para definir o que é a lei natural. De acordo com
o imperador: “A humanidade é governada por dois meios, a lei natural e os costumes. A lei natural é o que está
contido na Lei e no Evangelho, pelo qual cada um é ordenado a fazer ao outro o que quer que seja feito para si e
é proibido de fazer ao outro o que ele não quer que seja feito para si” (TIERNEY, 1987, p. 163).
16
Esse argumento é uma das bases do clamor de Guaman Poma por justiça. Se os primeiros indígenas haviam
conhecido Deus e esse conhecimento se perdeu, a conclusão lógica é que os nativos haviam sido cristãos
inicialmente, e logo não poderiam ser escravizados nem privados de poder seus senhores étnicos.
17
“Y este Ynga ydeficó Curi Cancha, templo del sol. Comensó a adorar el sol y luna y dixo que era su padre. Y
tenía suxeto todo el Cuzco cin lo de fuera y no tubo guerra ni batalla, cino ganó con engaño y encantamiento,
ydúlatras. Con suertes del demonio comensó a mochar [adorar] uacas ýdulos. Y se casó, dando dote al sol y a la
luna con su muger que era su madre, la señora Mama Uaco, coya, por mandado de los uacas y demonios”.
(AYALA, 1987, p. 87).
pretensa superioridade do cristianismo sobre as culturas ameríndias, mas a obra de Vitória foi
pioneira no sentido de reconhecer que havia uma contradição interna na teoria da escravidão
natural de Aristóteles, que fora utilizada para defender a escravização dos indígenas. O cerne
da obra de Vitoria era, de acordo com o historiador Anthony Pagden, uma exegese da lei
natural. O autor nos lembra que tal lei jamais foi um corpo de preceitos codificados, mas antes
um sistema ético, uma teoria sobre os mecanismos que permitem aos homens tomar decisões
morais e ver o mundo como realmente é (PAGDEN, 1988, p. 94). Por meio de um processo
chamado pelos escolásticos de sindérese, a lei natural se traduzia em princípios secundários
por meio dos quais os homens regulavam seu comportamento social. Daí nascem tanto os
costumes mais gerais, como a proibição do crime e do adultério, quanto os mais corriqueiros,
como o que se come ou as roupas que se veste (idem, p. 95). Cada comportamento humano
poderia, assim, ser julgado como natural e antinatural. E os comportamentos aceitos dentro do
consenso de uma ação moral coletiva deveriam ser considerados naturais, como manifestação
da lei natural (idem, p. 96).
Para o frei José de Acosta, assim como para os demais autores discutidos aqui, a
principal característica da barbárie era a vida fora do cristianismo e dos ensinamentos dos
evangelhos:

Por fim, a própria experiência parece ensinar-nos que esta infinita multitude
de bárbaros índios, por exigência de sua própria perversidade, estiveram
apartados da luz do Evangelho durante mil e quatrocentos anos; e que, além
disso, à instância crescente da ira divina ficaram cegas as mentes dos infiéis
para que não brilhasse nelas a luz do Evangelho da paz, depois que os
relâmpagos iluminaram o orbe da Terra, como disse o salmo, e de haver
luzido nestas partes o raio da verdade (Tradução Nossa) 18.

Para aquele religioso, a “perversidade” dos povos indígenas do vice-reino Peruano era
visível em praticamente todos os comportamentos desses povos. Em De Procuranda Indorum
Salute (ACOSTA, 1984, p. 61-95), Acosta usou termos duríssimos para descrever os modos
de vida que ele observou ao viajar o vice-reino peruano na década de 1570. Para ele, a
diferença entre a evangelização praticada pelos apóstolos de Cristo e aquela praticada em solo
americano estava na natureza da “barbárie” que caracterizava cada povo que habitava essas
regiões:

18
“En definitiva, la propria experiencia parece enseñarnos que esta infinita multitud de bárbaros indios, por
exigencia de su propria perversidad, han estado apartados de la luz del Evangelio durante mil cuatrocientos años;
y que, además, a instancia creciente de la ira divina quedaron cegadas las mentes de los infieles para que no
brille en ellas la luz del Evangelio de la paz, después de haber deslumbrado los relámpagos el orbe de la tierra,
como dice el salmo, y de haber lucido en estas partes el rayo de la verdad” (ACOSTA, 1984, p. 85).
Para nós a maior dificuldade é a excessiva estupidez e ignorância dos
bárbaros; aos Apóstolos, pelo contrário, nada os estorvou tanto quanto
aquela sabedoria inchada e poderosa dos judeus, dos gregos e acima de tudo
dos romanos, até o ponto em que pareciam os ridicularizar, por assim dizer,
quando se apresentavam nas sinagogas, nas academias e no Senado
(Tradução Nossa)19.

A partir da premissa de que todos os indígenas eram bárbaros, e que mesmo assim
eram muito diferentes entre si, Acosta tratou de classificá-los. O primeiro critério foi a
linguagem, com três categorias: 1) os povos que tinham organizações políticas aparentemente
similares aos Estados europeus, e dominavam o que os europeus entendiam por escrita.
Seriam exemplos dessa categoria, na visão de Acosta, os japoneses, chineses e indianos. 2) Os
que não conheciam a escrita, e portanto não disporiam da filosofia, mas conseguiam usar
formas de escrita consideradas mais rudimentares e, a partir delas, criar impérios e fundar
cultos religiosos unificados. Para Acosta, incas e nahuas se encaixavam nessa categoria. 3) Os
tidos como selvagens, semelhantes às bestas, dotados apenas dos sentimentos humanos. Estes
seriam nômades e viviam fora de todas as formas então conhecidas de organização civil.
Acosta enxergou como exemplos desse grupo todos os indígenas do Brasil, os caribenhos, os
nativos da Flórida, entre outros. Estes deveriam ser forçadamente confinados a povoados – em
outras palavras, reducidos – para viabilizar a conversão (ACOSTA, 1984, p. 55-107;
CASTAÑEDA, 2002, p. 109-133).
Acosta viajou pelo vice-reino a ensinar a fé cristã, organizou o Terceiro Concílio de
Lima, produziu três catecismos e retornou à Espanha em 1587, depois de passar um ano no
México (PAGDEN, 1988, p. 202-4). O religioso produziu farto material impresso, no qual se
destacam a Historia natural y moral de las Indias e a supracitada De procuranda indorum
salute. Apesar dos preconceitos e críticas desumanizadoras presentes em seus escritos sobre
os indígenas, Acosta já foi visto como um precursor da etnologia que nasceria no século XIX.
O jesuíta realizou um estudo sistemático da vida nativa, sustentando que até mesmo um ser
considerado completamente bárbaro deveria ser estudado e poderia contribuir com uma
“proveitosa filosofia” (idem, p. 205). Por isso, Acosta criticou a destruição das crenças e
histórias nativas por seus predecessores (idem, p. 206).
Para o jesuíta, havia um grande distanciamento entre a maior parte dos estudiosos do
mundo indígena americano e a realidade daquele mundo. Acosta observou que muitos deles –
como o próprio Francisco de Vitoria – sequer viajaram à América, e muitas vezes se
19
“Para nosotros la mayor dificultad es la excesiva estupidez e ignorancia de los bárbaros; a los Apóstoles, por el
contrario, nada les estorbó tanto como aquella sabiduría hinchada y poderosa de los judíos, de los griegos y sobre
todo los romanos, hasta el punto que parecían hacer el ridículo, por así decir, cuando se presentaban en las
sinagogas, en las academias, en el Senado” (ACOSTA, 1984, p. 107).
aferraram a dados imprecisos. O jesuíta defendeu, diante disso, que era preciso conhecer a
língua e as antiguedades dos indígenas. Além disso, ele considerava que os conhecimentos
disponíveis sobre o assunto se encontravam demasiadamente limitados pelos ensinamentos
dos clássicos gregos e romanos da Antiguidade, cuja ciência era “flaca y corta” tanto nos
assuntos divinos quanto nos humanos (ACOSTA apud PAGDEN, 1988, p. 208). Acosta
defendeu que os missionários deveriam tentar entender as populações nativas de acordo com o
pensamento dos próprios nativos. Para ele, a boa comunicação era imprescindível para
realizar uma conversão verdadeiramente eficaz. Por isso, os missionários deveriam conhecer o
mundo nativo, procurando saber tudo que era possível sobre os povos entre os quais
trabalhavam (PAGDEN, 1988, p. 200-215).

Embora Acosta acreditasse que alguns grupos indígenas pudessem ter nascido com
uma disposição natural à servidão, o religioso entendia que nenhum ser humano nasce sem a
Graça que permite a Salvação, e que era possível que todos aceitassem o cristianismo. Assim
como Vitoria, Acosta concluiu que o escravo natural de Aristóteles nunca existira, e que o
comportamento servil era produto dos hábitos e da educação (idem p. 216-217). Para Acosta,
todos os grupos humanos haviam iniciado em condições bestiais e ascendido, em diferentes
ritmos, à condição humana. O jesuíta e outros autores de seu tempo, como Bartolomé de las
Casas, que discutiremos a seguir, compartilharam a ideia de que os povos nahuas e incas
prepararam o caminho para a evangelização da América, da mesma forma que os impérios da
Antiguidade haviam tornado a Europa um terreno fértil para o crescimento do cristianismo
(idem, p. 226).

Para Acosta, a explicação última para as formas de expressão religiosas dos indígenas
era a intervenção satânica. O Demônio teria o papel crucial de inverter as normas sagradas
que regiam o mundo (idem, p. 234). Essa ideia de mundo ao revés foi recorrente nos escritos
do século XVI sobre a colonização, como mostra o exemplo do próprio Guaman Poma, que
denuncia essa mesma inversão ao longo de toda Nueva Crónica (idem, p. 235). Essa inversão
ia acompanhada de uma “corrupção real e ritual” que gerava “crueldade, sujeira e ociosidade”
e se manifestava nos rituais como o canibalismo, os sacrifícios humanos e a bebedeira (idem,
p. 236). Além disso, houve grande quantidade de relatos de relações homossexuais entre os
indígenas, sempre seguidos de duras críticas, e Acosta ecoa essas críticas em sua obra. Para o
jesuíta, isso significava uma degeneração dos costumes, que teria sido responsável pela queda
dos incas (idem, p. 237-238).
Como os teólogos que o precederam, Acosta considerou a linguagem como um fator
indispensável para conhecer as condições em que dado povo se encontrava (idem, p. 240).
Acostumados aos modelos morfológicos gregos e latinos, os gramáticos do século XVI
tiveram dificuldades para aprender e classificar as línguas nativas. A maior parte dos
estudiosos de línguas do período concordou que as línguas nativas da América eram sinal da
inferioridade – em relação aos europeus – de seus falantes, especialmente por causa da
suposta ausência de termos abstratos e universais e de palavras para designar elementos da fé
cristã (idem, p. 242). Diante dessa dificuldade, o auxílio visual para a evangelização dos
indígenas foi um meio de compensar a dificuldade na tradução do espanhol para as línguas. A
partir da metade do século XVI, proliferaram catecismos de desenhos que se propunham a
substituir os antigos alfabetos pictoglíficos20 (idem, p. 251).

José de Acosta foi um dos autores de seu tempo que Guaman Poma citou diretamente
na Nueva Crónica:

E depois se fez outro livro escrita [sic] do padre mestre Juzepe de Acosta,
reitor da Companhia de Jesus, escrita De natura de Nobi Urbis y De
procuranda [sic], além de cartilhas, catecismos, preparação e livro
confessionário e doutrina nas línguas quéchua, aimará, provida no santo
concílio, confirmado de Sua Majestade na dita cidade e corte de los Rey de
Lima21

De fato, Guaman Poma expressa uma opinião muito positiva sobre a Companhia de
Jesus em várias passagens da Nueva Crónica (AYALA, 1987, p. 564-565; 672-686; 844). O
cronista tinha a Companhia como exemplo de humildade, caridade e amor. Além disso, como
vimos acima, o trabalho do autor junto dos colonizadores e evangelizadores espanhóis se deu
mais ou menos ao mesmo tempo em que Acosta esteve no Peru. Guaman Poma foi, assim
como Acosta, um defensor da necessidade de conhecer as línguas nativas para evangelizar
(AYALA, 1987, p. 624-628). Por outro lado, o cronista operou uma inversão em relação ao
pensamento de Acosta, no que diz respeito à figura dos incas. Para o jesuíta, como vimos, a
presença do Tahuantinsuyu tornara a tarefa da evangelização menos dificultosa para os
futuros missionários que viriam tirar os povos indígenas dos Andes da barbárie. De acordo
com a obra de Guaman Poma, os incas é que haviam afastado os povos originários dos Andes
20
O historiador Eduardo Natalino dos Santos defende o uso do termo pictoglífico sobre pictográfico “por
acreditar que ele evoca, de forma mais explícita, a combinação entre elementos pictóricos e glíficos, a qual era
uma das principais características do sistema de escrita mixteco-nahua.” (SANTOS, 2004, p. 162).
21
Y después se hizo otro libro escrita del padre maystro Juzepe de Acosta, rretor de la Conpañía de Jesús,
escrita De natura de Nobi Urbis y De procuranda y cartilla, caticismo, preparación y libro confecionario y
dotrina en la lengua quichiua, aymara, proueýda en el santo concilio, confirmado de su Magestad en la dicha
ciudad y corte de los Rey de Lima (AYALA, 1079)
da verdade sobre Deus, conhecido por eles antes do surgimento do povo incaico. Guaman
Poma se apropriou, ainda, da ideia de mundo ao revés para apresentar seu clamor por
restituição, como veremos abaixo. E, ao encher a Nueva Crónica de desenhos, o cronista
lançou mão de um recurso de evangelização comum em seu tempo, ou seja, o uso de desenhos
para diminuir as barreiras linguísticas do continente americano.
Não temos certeza, como teve Adorno, de que tudo isso era parte de um estratagema
de um homem andino ultrajado pela justiça colonial e campeão de seu próprio povo.
Determinar as motivações inescrutáveis do cronista não é interesse do presente trabalho.
Como vimos, a maneira como Guaman Poma estruturou suas reivindicações levaria, caso
fossem acatadas, a um grande benefício pessoal seu e de sua família. Além disso, o cronista
lançou mão em várias ocasiões do uso da noção de barbárie para desqualificar grupos
indígenas antagônicos, principalmente seus rivais Chachapoya nos processos a que nos
referimos anteriormente. De qualquer forma, a noção de barbárie foi importante para justificar
a conquista, a evangelização e o dominium dos espanhóis sobre os povos nativos.

b) Dominium

Um dos elementos mais importantes da ideia da lei natural era a noção de que os
povos que vivessem de acordo com ela teriam a prerrogativa de dominar os ditos povos
bárbaros. Tal noção é o conceito de dominium, que designa a posse de alguém sobre algo, e
pode ser encontrado tanto na tradição canônica medieval quanto no direito romano. Dominar
outrem só seria possível para uma criatura racional e de livre vontade, e tal uso seria um
produto direto da Criação, mediante a qual Deus fez o homem à Sua imagem e semelhança. O
direito ao domínio está, pois, fundamentado em um critério de racionalidade, que pressupõe a
razão ao mesmo tempo como faculdade intelectual e como um aspecto normativo que conota
o que é razoável e o que não é. A base do dominium, para Francisco de Vitoria, era o direito –
ou seja, o que é lícito de acordo com as leis (TELLKAMP, 2009, p. 36).
Depois de 1492, Vitoria e outros teólogos e juristas de sua época tentaram criar uma
teoria que justificasse o dominium dos espanhóis sobre os povos americanos. Tal teoria teve o
cuidado de anular ideias cesaropapistas de soberania universal e a noção luterana de que
apenas o príncipe divino pode ser um governador legítimo. Nela, os indígenas seriam súditos
da Coroa espanhola não por causa de alguma lei positiva, mas sim porque sua “educação
escassa e bárbara” os tornava incapazes de criar sociedades civis (PAGDEN, 1988, p. 23).
Assim,
Os direitos de dominium que poderia ter a coroa espanhola na América não
eram consequência de seus direitos, mas de seu dever cristão de cuidar de
povos que ainda estavam em uma condição de ignorância infantil. Não
obstante, para chegar a esta proposição tinham que gerar sua própria teoria
da relatividade da conduta social humana. [...], fizeram isto mudando a base
de sua argumentação de uma seção da psicologia aristotélica (que tratava da
condição mental dos escravos) a outra (que tratava da disposição mental das
crianças) (Tradução Nossa)22.

Para Vitoria, o tema dos títulos justos para a conquista da América era um assunto
teológico, sobre o qual os juristas civis eram incapazes de opinar (PAGDEN, 1988, p. 100)23.
O religioso defendeu que nenhuma das quatro tradicionais justificativas para negar o
dominium de um povo sobre si mesmo (serem pecadores, infiéis, amentes ou idiotas) se
aplicava aos nativos americanos e, portanto, não havia justificativa para confiscar o dominium
de seus senhores (idem, p. 101-2). O dominicano acreditava que os indígenas tinham uma
razão e uma ordem para suas coisas. Além disso, o fato de que vários povos nativos
construíam unidades urbanas tão grandes ou maiores que as da Europa indicava que não
viviam completamente contra a lei natural, pois a ausência de cidades sempre fora
considerada pelos cristãos como um sinal de barbárie (idem, p. 102-105).24 Mesmo que
Vitória jamais tenha visitado o continente americano, ele acreditava que os povos que
construíam locais como os que existiam nos relatos sobre Tenochtitlán e Cuzco não podiam
ser os escravos naturais de Aristóteles (idem, p. 107). Além da capacidade de construir
cidades, Vitória também observou como sinais de uma condição não bárbara dos indígenas o
fato de que tinham instituições como famílias, elites, leis, indústria, comércio e crenças (idem,
p. 108).
Vitória se lançou a entender e explicar na obra De indis recenter inventis relectio
prior (1538-1539) a natureza da conquista, e se esta fora feita “com boa consciência” (PICH,
2012 p. 381). O padre estava interessado em determinar se os ditos bárbaros da América
podiam ter sido, antes de 1492, verdadeiros donos de suas posses, e se havia entre eles
príncipes e senhores dos demais (idem, p. 382). Os indígenas teriam, na acepção de Vitória,

22
“Los derechos de dominium que pudiera tener la corona española en América no eran la consecuencia de sus
derechos, sino de su deber cristiano de cuidar de pueblos·que todavía estaban en una condición de ignorancia
infantil. No óbstante, para llegar a esta proposición tenían que generar su propia teoría · de la relatividad de la
conducta social humana. [...], hicieron esto cambiando la base de su argumentación de una sección de la
psicología aristotélica (que trataba de la condición mental de los esclavos) a otra (que trataba de la disposición
mental de los niños)” (PAGDEN, 1988, p. 23).
23
Vitória sempre defendeu que os assuntos relacionados aos direitos (iura) e ao direito natural (ius naturae) eram
de competência dos teólogos, e não dos juristas (PAGDEN, 1988, p. 16-17).
24
Representações das cidades ocupam espaço importante na Nueva Crónica. O autor utilizou 87 páginas da obra
para desenhar e descrever as cidades dos domínios coloniais da Espanha (AYALA, 1987, p. 1000-1087).
dominium inequívoco tanto na esfera pública quanto no âmbito privado (idem, p. 383), porque
o pecado mortal da infidelidade não impediria, contrariamente ao que acreditavam muitos
teólogos do século XIV, o domínio civil e o domínio verdadeiro. Baseado em São Tomás de
Aquino, Vitória reiterou que a condição de infidelidade não implica impedimento a dominium
sobre qualquer coisa (idem, p. 384), lembrando que os gregos e romanos da Antiguidade
também eram considerados pagãos, e a opinião geral era que eles haviam sido capazes de se
autogovernar e viver em cidades. Além disso, como diz Pagden na citação acima, Vitoria
sustentou que nenhum individuo – nem mesmo o imperador e o papa – tinham direito a
exercer dominium sobre o mundo todo e, portanto, as terras da América não podiam fazer
parte dos domínios da Coroa ibérica automaticamente. Nas palavras de Vitória:

Prova-se: o domínio não pode existir senão por direito natural ou divino ou
humano. Ora, por nenhum desses há um senhor do mundo. Primeiramente, a
respeito do direito natural, porque, como bem diz São Tomás (1, p. q. 92 a. 1
ad 2 e q. 96 a. 4), no direito natural os homens são livres, exceto pelo
domínio paterno e marital. De fato, por direito natural o pai tem domínio
sobre os filhos e o marido sobre a esposa. Portanto, não existe ninguém que,
por direito natural, tenha o império sobre o mundo. E, assim como também
diz São Tomás (2.2 q. 10 a. 10), o domínio e primazia [praelatio] foram
introduzidos pelo direito humano. Portanto, não dizem respeito ao direito
natural. E não haveria maior razão para que tal domínio conviesse aos
alemães mais que aos franceses (VITORIA, 2016, p. 119-120).

Para Vitória, no que diz respeito ao dominium, pouco importava o critério da


capacidade dos indígenas de pensar racionalmente, pois até mesmo os “amentes” podiam ser
donos de alguma coisa, podiam sofrer injúrias e, portanto, tinham direitos e dominium (PICH,
2012, p. 388). Além disso, Vitória sustenta que o dominium dos indígenas também existia no
âmbito civil. O dominicano enxergava uma ordem racional no modo de vida dos indígenas. E,
mais do que isso, ele não acreditava na existência de bárbaros incapazes do pensamento
racional, pois se a razão é um aspecto constitutivo do homem, não seria natural que existissem
homens desprovidos de razão (idem, p. 390).
Na Nueva Crónica, o cronista Guaman Poma insiste, por diversas ocasiões, em afirmar
que é capaz do uso da razão a ponto de produzir sua grande obra:

[Eu], o autor don Felipe Guaman Poma de Ayala, digo que o leitor cristão
estará maravilhado e espantado de ler este livro e crônica e capítulos, e
perguntará quem me ensinou, e como pude saber tanto. Pois eu digo que me
custou trinta anos de trabalho, se não me engano, mas ao menos vinte anos
de trabalho e pobreza. Deixando minhas casas e filhos e haziendas, e
trabalhando, entrando no meio dos pobres e servindo a Deus e a Sua
Majestade, aprendendo as línguas e ler e escrever, servindo aos doutores, aos
que não sabem e aos que sabem (Tradução Nossa) 25.

Aqui podemos observar como o texto da Nueva Crónica tem proximidade com alguns
elementos do pensamento que tentamos apresentar com ajuda da obra de Vitória 26. Como já
dissemos, o critério de barbárie, na Espanha do século XVI, se relacionava ao paganismo, ou
à não pertença ao mundo cristão. Isso não significava que fosse impossível para um dito
bárbaro se converter. Os autores supracitados não acreditavam que Deus teria criado algum
homem com uma incapacidade inata de usar a razão e perceber a lei natural. Guaman Poma
defende essas mesmas ideias, que já circulavam na intelectualidade ibérica quando o cronista
ainda não havia nascido27. Vitória chegou à conclusão de que o fato de existirem seres
humanos “idiotas e grossos” é uma questão de educação, e não de natureza. Isso valeria tanto
para os povos indígenas como para os espanhóis (PICH, 2012, p. 391). A Nueva Crónica
apresenta uma concepção muito semelhante. Guaman Poma insiste em várias ocasiões na
possibilidade e na absoluta necessidade de catequizar e alfabetizar os nativos.
Além disso, o texto da Nueva Crónica exige que os próprios espanhóis emendem suas
ações. A crônica é repleta de elementos que mostram aos colonizadores espanhóis que seus
atos eram destrutivos e pecaminosos. A principal fonte que Guaman Poma usou
nominalmente28 para embasar sua crítica dos abusos cometidos pelos colonizadores é a obra
de um outro frei dominicano 29, Luís de Granada (1504-1588). Como se sabe, Guaman Poma
usa a obra do frei granadino em vários momentos (AYALA, 1987, p. 109, 369, 954, 955).
Essa obra fornece o modelo com o qual o cronista conclamou espanhóis, indígenas e negros

25
“El autor don Felipe Guaman Poma de Ayala, digo que el cristiano letor estará marauillado y espantado de leer
este libro y corónica y capítulos y dirán que quién me la enseñó, que como la puede sauer tanto. Pues yo te digo
que me a costado treynta años de trauajo ci yo no me engaño, pero a la buena rrazón beynte años de trauajo y
pobresa. Dexando mis casas y hi[j]os y haziendas, e trauajado, entrándome a medio de los pobres y seruiendo a
Dios y a su Magestad, prendiendo las lenguas y le[e]r y escriuir, seruiendo a los dotores y a los que no sauen y a
los que sauen” (AYALA, 1987, p. 715).
26
É importante enfatizar que o dominicano foi um dos teólogos mais lidos do século XVI, e sua obra forneceu as
bases do pensamento dos demais teólogos da Universidade de Salamanca, além do próprio Bartolomé de Las
Casas (PAGDEN, 1988, p. 92-94).
27
Podemos considerar que essas discussões começam com os diários de Cristovão Colombo, e elas nunca
cessaram ao passo que os europeus consolidavam sua presença nos espaços ameríndios. Pagden (1988, p.51-89)
faz um balanço dessas discussões na passagem do século XV para o XVI.
28
Luís de Granada é o autor mais citado na Nueva Crónica, mas o autor reconhece, ainda, as contribuições de
nomes como Johann Boemus (1485-1535), Luís Gerónimo de Oré (1554? – 1630), Agustín de Zárate (1514-
1560), Diego Fernandez de Palencia (1520-1581), além, é claro, dos testemunhos dos curacas que o autor
entrevistou pessoalmente (AYALA, 1987, p. 1088-1089). Não é nosso intuito, aqui, fazer um exame meticuloso
dos autores que Guaman Poma leu, por isso ressaltaremos apenas a contribuição de Luís de Granada, e
destacamos mais adiante como também há o uso explícito de autores que o cronista não cita, como Bartolomé de
las Casas.
29
A ordem dos dominicanos parece ter tido um impacto muito importante sobre o autor. Guaman Poma elogia
Luís de Granada e os grandes intelectuais que faziam parte da ordem. Entretanto, de maneira geral, Guaman
Poma mostra os padres dominicanos como algozes e abusadores dos indígenas (AYALA, 1987, p. 574-688).
ao exame de consciência e de conduta moral. No capítulo das “considerações” (AYALA,
1987, 923-973), Guaman Poma chega a copiar trechos inteiros do Memorial de la Vida
Cristiana do dominicano, publicado em 1561.
Luís de Granada nunca esteve em solo americano e não escreveu especificamente
sobre os indígenas, mas foi um autor importante durante o período colonial. Tendo passado
pelo norte da Itália, o religioso teve contato com o humanismo italiano, e foi censurado pelos
inquisidores católicos por defender ideias relacionadas a uma espiritualidade mística e uma
primazia da oração mental sobre a oração vocal (BORGES, 2009, p. 145). Não obstante, Luís
de Granada continuou a escrever, e adequou seus textos futuros (como o Memorial
supracitado) às demandas dos inquisidores. Por fim, os membros do Concílio de Trento
retiraram as proibições sobre suas obras. Depois disso, o autor escreveu aquele Memorial que
Guaman Poma viria a utilizar como fonte, para explicar o que é um bom cristão e uma vida
religiosa de qualidade (idem, p. 146). Com base na obra do frei Luís, Guaman Poma conta a
seguinte anedota:

Não vos espantais, leitor cristão, de que a idolatria e erro antigos os erraram
como gentis índios antigos [sic] o caminho verdadeiro. Como os espanhóis
tiveram ídolos, como escreveu o reverendo padre Frei Luís de Granada: que
um espanhol gentil tinha seu ídolo de prata, que ele o havia lavrado com suas
próprias mãos e outro espanhol o havia furtado. Daí foi chorando buscar seu
ídolo; mais chorava pelo ídolo que pela prata. Assim os índios como
bárbaros e gentis choravam por seus ídolos quando os quebraram no tempo
da Conquista (Tradução Nossa)30.

Nessa passagem, Guama Poma critica o amor de um espanhol por um “ídolo de prata”,
e a cobiça de outro espanhol que rouba o ídolo do primeiro. Com essa narrativa, o cronista
coloca uma prática comum entre os dois espanhóis e os “yndios como bárbaros y gentiles”,
sugerindo que a idolatria fora, em algum momento, praticada pelos espanhóis, da mesma
forma que entre os nativos encontrados na América. Isso deixa implícito que aqueles que
destruíram os elementos materiais das crenças andinas no século XVI podiam ter costumes
tão bárbaros quanto suas vítimas. Subjaz à citação a ideia de que a barbárie, então, não deve
depender de um critério de nascença, cultura ou linguagem, como era para os gregos antigos,
mas sim de um critério moral, relacionado à educação e às virtudes. Essa ideia é tão antiga

30
Nos espantéis, cristiano letor, de que la ydúlatra y herronía antigua lo herraron como xentiles yndios antigos
herraron el camino uerdadero. Cómo los españoles tubieron ýdolos como escriuió el rrebrendo padre fray Luys
de Granada: Que un español gentil tenía su ýdolo de plata, que él lo abía labrado con sus manos y otro español lo
abía hurtado. De ello fue llorando a buscar su ýdolo; más lloraua del ýdolo que de la plata. Ací los yndios como
bárbaros y gentiles lloraua de sus ýdolos quando se los quebraron en tienpo de la conquista (AYALA, 1987, p.
369).
quanto a obra do próprio Aristóteles. Na Política, o filósofo definiu vários níveis de
humanidade. Para ele, um homem poderia renunciar à sua condição humana ao comportar-se
de uma maneira cruel ou selvagem característica dos barbaroi, com comportamentos como a
degola das vítimas e a antropofagia (PAGDEN, 1988, p. 38). As páginas da Nueva Crónica
apresentam uma crítica orientada por uma lógica parecida, sempre a advertir para o fato de
que o rei de Espanha perderia seu reino se as práticas dos colonizadores não mudassem.
Para ajudar a sustentar essa tese, Guaman Poma provavelmente recorreu à obra de
Bartolomé de las Casas, que fornece muitos elementos da argumentação política e da crítica
social contidas na crônica. Isso inclui um dos argumentos centrais da Nueva Crónica, que
parece ter sido tomado diretamente da obra de Las Casas (ADORNO, 1973; 2007): a ideia de
um reino andino autônomo tributário da Coroa espanhola, com dominium próprio. Além
disso, a negação da Conquista dos Andes é embasada pelos mesmos argumentos nos dois
autores. Ambos estão em acordo, ainda, a respeito da total aptidão dos indígenas a receberem
o cristianismo e da consequente vedação da escravidão dos indígenas pelos espanhóis, do
ponto de vista moral, jurídico e teológico.
No século XVI, o frei Bartolomé de Las Casas acreditava que a lei natural e os direitos
do homem se originavam da própria natureza humana, racional e superior em relação aos
demais seres do mundo. Essa condição conferiria ao homem certa dignidade, que o tornaria
depositário de certos direitos naturais e inalienáveis. Tal dignidade teria relação,
filosoficamente, com a natureza racional e volitiva do homem, e, no plano teológico, com a
Criação. Las Casas pensava o homem como um animal racional e, considerando que os
indígenas eram homens, teriam de ser necessariamente capazes de viver de acordo com a
razão (BEUCHOT, 1993, p. 5). Dizer o contrário, na concepção daquele dominicano,
equivaleria a pressupor que os povos da América eram uma falha da natureza, e admitir uma
imperfeição da natureza implicaria admitir uma imperfeição da criação de Deus. Por isso, para
Las Casas, sempre seria possível fazer com que os indígenas vivessem como cristãos,
independentemente do nível de barbárie em que se encontrassem (idem, p. 6).
Na concepção de Las Casas, portanto, os indígenas tinham dominium de seus
territórios, de maneira legítima e justa, e os espanhóis não tinham o direito de usurpá-los
(PENNINGTON, 2018, p. 102). Em De thesauris qui reperiuntur in sepulchris Indorum, Las
Casas citou o princípio do direito romano Quod omnes tangit debet ab omnibus approbari (o
que toca a todos deve ser aprovado por todos) para defender que o dominium dos indígenas
deveria ser concedido aos espanhóis somente com a aprovação dos nativos. De acordo com
Pennington, essa máxima se tornou uma regula iuris no direito canônico (idem, p. 103).
Usando o conceito, o dominicano defendeu que seria perigoso se um príncipe ou bispo
indesejáveis fossem alocados para povos que não consentissem em obedecê-los. Da mesma
forma, não seria justo impor um rei a um povo estrangeiro livre. A premissa por trás desse
argumento é que as regras que são válidas na política eclesiástica devem ser válidas na
política secular. Logo, se o consenso era necessário na Igreja, também deveria ser, para Las
Casas, nas instituições seculares (idem, p. 104). Ao usar o direito para fazer frente aos novos
desafios do século XVI, Las Casas sustentou – como Vitória fizera – que o papa não tinha o
direito de conceder a jurisdição temporal sobre os indígenas aos reis espanhóis, como fizera o
papa Alexandre VI (1431-1503).
Guaman Poma manifesta um raciocínio muito semelhante para negar que houve uma
conquista nos Andes, com a diferença de ter construído essa argumentação de modo a
sustentar que sua família fosse a beneficiária de uma eventual restituição (AYALA, 1106-
1107). Considerando que a conquista dos Andes não era válida e que os males da colonização
não cessavam de castigar os indígenas, Guaman Poma propôs a seguinte ideia:

Haveis de considerar que todo o mundo é de Deus, e Castela é dos espanhóis


e as Índias são dos índios e Guenea é dos negros [sic]. Que cada um desses
são legítimos proprietários, não tão somente pela lei, como escreveu São
Paulo, que estava há dez anos em procissão e se chamava romano. Que bem
pode ser essa a lei porque um espanhol ao outro espanhol, ainda que seja
judeu ou mouro, são espanhóis [sic], que não se intrometam em outras
nações sendo que são espanhóis de Castela (Tradução Nossa) 31.

De acordo com Rolena Adorno, essa proposta foi inspirada pelo Tratado de las Doce
Dudas, publicado por Las Casas em 1564, no qual o autor diz:32

Têm todas estas (repúblicas) seus reinos, seus senhorios, seus reis, suas
jurisdições, altas e baixas, seus juízes e magistrados e seus territórios, dentro
dos quais usam legitimamente e podem livremente usar de sua potestade, e
dentro deles a nenhum rei do mundo, sem quebrantar o Direito natural, é
lícito sem licença de seus reis ou de suas repúblicas entrar, e menos usar nem
exercitar jurisdição nem potestade alguma (Tradução Nossa). 33

31
“Que aués de conzederar que todo el mundo es de Dios y ancí Castilla es de los españoles y las Yndias es de
los yndios y Guenea es de los negros. Que cada déstos son lexítimos propetarios, no tan solamente por la ley,
cómo lo escriuió San Pablo que de dies años estaua de pocición y se llamaua rromano. Que uien puede ser esta
ley porque un español al otro español, aunque sea judío o moro, son españoles, que no se entremete a otra nación
cino que son españoles de Castilla” (AYALA, 1987, p. 929).
32
O impacto desse tratado no Peru colonial parece ter sido muito importante, tendo em vista que o vice-rei
Francisco de Toledo (1515-1582) escreveu, em tom de desdém, que os religiosos lascasistas tinham muito
prestígio no vice-reino, logo antes de proibir a circulação das obras de Las Casas no Peru (ADORNO, 2007, p.
52).
33
Tienen todas estas (republicas) sus reinos, sus senorios, sus reyes, sus jurisdicciones, altas y bajas, sus jueces y
magistrados y sus territorios, dentro de los cuales usan legitimamente y pueden libremente usar de su potestad, y
dentro dellos a ningun rey del mundo, sin quebrantar el Derecho natural, es licito sin licencia de sus reyes o de
Para Las Casas, “por nenhum pecado de idolatria nem por qualquer outro erro, não
importando quão grave e detestável, são tomados os senhorios, as dignidades, ou qualquer
possessão dos lordes ou servos infiéis ipso facto vel ipso iure” (LAS CASAS apud.
PENNINGTON, 2018, p. 105). Ao mesmo tempo, o dominicano sabia que o papa Inocêncio
IV havia confirmado o direito dos espanhóis a tomar o dominium dos “infiéis” em duas
situações: se estes violassem a lei natural ou se recusassem a entrada de missionários cristãos
em seus territórios (idem, p. 106). Para contornar esse obstáculo, Las Casas defendeu que,
como não houvera o legítimo processo de concessão de tal dominium pelos nativos
americanos, eles foram injustamente saqueados de suas posses (idem, p. 106). De acordo com
o próprio Las Casas,

Considerando, pois, eu, mui poderoso senhor, os males e danos, perdição e


prejuízos (dos quais nunca outros iguais nem semelhantes se imaginou que
pudessem por homens serem feitos) daqueles tantos e tão grandes e tais
reinos e, por melhor dizer, daquele vastíssimo e novo mundo das Índias,
concedidos e encomendados por Deus e pela Sua Igreja aos reis de Castela
para que fossem regidos e governados, convertidos e prosperassem temporal
e espiritualmente, como homem que por cinquenta anos e mais de
experiência estando naquelas terras presente os vi cometer, que constando a
Vossa Alteza algumas particulares façanhas deles, não poderia conter-se de
suplicar a Vossa Majestade com instância inoportuna que não conceda nem
permita as que os tiranos inventaram, prosseguiram e cometeram, que
chamam conquistas, nas quais, se se permitirem, tornarão a fazer, pois de si
mesmas, feitas contra aquelas indianas gentes, pacíficas, humildes e mansas,
que a ninguém ofendem, são iníquas, tirânicas e por toda lei natural, divina e
humana condenadas, detestadas e malditas (Tradução Nossa) 34.

Guaman Poma parece ter tido ciência da importância de criar uma argumentação que
anulasse as duas situações previstas pelo Papa Inocêncio IV. Em seu capítulo sobre os
encomenderos (AYALA, p. 561-573),35 o cronista cria uma história em que seu próprio pai,

sus republicas entrar, y menos usar ni ejercitar jurisdiccion ni potestad alguna (489) (LAS CASAS apud.
ADORNO, 2007, p. 45).
34
“Considerando, pues, yo, muy poderoso señor, los males y daños, perdición y jacturas (de los cuales nunca
otros iguales ni semejantes se imaginaron poderse por hombres hacer) de aquellos tantos y tan grandes y tales
reinos y, por mejor decir, de aquel vastísimo y nuevo mundo de las Indias, concedidos y encomendados por Dios
y por su Iglesia a los reyes de Castilla para que se los rigiesen y gobernasen, convertiesen y prosperasen
temporal y espiritualmente, como hombre que por cincuenta años y más de experiencia siendo en aquellas tierras
presente los he visto cometer, que constándole a Vuestra Alteza algunas particulares hazañas dellos, no podría
contenerse de suplicar a Su Majestad con instancia importuna que no conceda ni permita las que los tiranos
inventaron, prosiguieron y han cometido, que llaman conquistas, en las cuales, si se permitiesen, han de tornarse
a hacer, pues de sí mismas, hechas contra aquellas indianas gentes, pacíficas, humildes y mansas que a nadie
ofenden, son inicuas, tiránicas, y por toda ley natural, divina y humana condenadas, detestadas y malditas” (LAS
CASAS, 2011, p. 9-10).
35
A encomienda era um arranjo contratual no qual se concedia a tutela de determinada população indígena a um
senhor espanhol, que podia dispor dessa população em troca de garantir a cristianização dos nativos.
Martin Guaman Mállque de Ayala, na condição de segunda persona de um monarca36 incaico,
foi junto dos representantes das quatro partes do Tahuantinsuyu pacificamente beijar os pés e
as mãos do imperador Carlos V:

Os ditos comenderos não se podem chamar de comenderos de índios nem


conquistadores por direito de justiça porque não foram conquistadores dos
índios, sendo que de boa vontade se deu paz [sic] à coroa real sem rebeliões.
Se apresentou diante deles o maior senhor, segunda persona do rei Ynga,
capac apo don Martín Guaman Mállque de Ayala [...] dos Chinchay Suyos,
apo [senhor grande] Alanya Chuqui Llanqui, de Jauja; apo don
Diego Quiquiya, apo Yauyo; dos Colla Suyos, don Cristóbal Castilla Pari,
[...] dos Conde Suyos, Cullaua Conde, don Juan Mullo; dos Ande Suyos don
Francisco Uachi do povo de Tanbopata. De maneira que as quatro partes
desses reinos foram dar-se paz e beijar os pés e as mãos do rei nosso senhor
imperador don Carlos da gloriosa memória. Bastava que somente fosse o
excelentíssimo senhor don Martín de Ayala a dar-se paz e servir à coroa real
por todo o Peru, pois foi grande senhor, capac apo, segunda persona do
Ynga e seu vice-rei destes reinos. E assim não temos encomendero nem
conquistador, sendo que somos da coroa real de sua Majestade, serviço de
Deus e de sua coroa (Tradução Nossa)37.

Essa passagem parece ter sido feita de modo a se encaixar no debate jurídico e
teológico sobre a colonização dos Andes que nunca cessou durante o século XVI.
Considerando o episódio inventado pelo cronista, os andinos aceitaram voluntariamente a
presença espanhola, “beijando os pés e as mãos do imperador”. Com isso, nada justificaria –
na concepção de Guaman Poma como em Vitória e em Las Casas – a necessidade e a
legitimidade de uma tutela como a encomienda, que confiava os indígenas a senhores
espanhóis. Além disso, durante esse beijar de mãos, os senhores dos Andes teriam sido
colocados a serviço direto da Coroa. Em outras palavras, o confisco do dominium dos
senhores nativos dos Andes pelos espanhóis era ilegítimo e deveria ser revertido. Daí a

36
De acordo com Susan E. Ramirez, a imagem do Inca como um monarca absoluto semelhante aos da Europa
quinhentista deve ser relativizada, pois as evidências arqueológicas do Tahuantinsuyu apontam para uma
unidade interna menos sólida e mais frágil do que os observadores coloniais registraram nas crônicas
(RAMIREZ, 2005). Na Nueva Crónica, a lista de sucessão dos Incas do Tahuantinsuyu tem um padrão
semelhante ao das demais crônicas coloniais, em que os chefes do dito império inca se sucedem por critérios
mais parecidos com as sucessões dinásticas europeias do que com o cenário delineado por Ramirez (AYALA,
1987, p. 79-119).
37
“Los dichos comenderos no se puede llamarse comenderos de yndios ni conquistadores por derecho de justicia
porque no fue conquistador de los yndios, cino que de buena boluntad se dio de pas a la corona rreal cin
alsamiento. Se presentó ante ellos el mayor señor, segunda persona del rrey Ynga, capac apo don
Martín Guaman Mállque 1 de Ayala [...] de los Chinchay Suyos, apo [señor grande] Alanya Chuqui Llanqui de
Xauxa; apo don Diego Quiquiya, opa Yauyo; de los Colla Suyos, don Cristóbal Castilla Pari, [...] de los Conde
Suyos, Cullaua Conde, don Juan Mullo; de los Ande Suyos don Francisco Uachi del pueblo de Tanbopata. De
manera los quatro partes destos rreynos se fueron a darse de pas y a bezar los pies y manos del rrey nuestro señor
enperador don Carlos de la gloriosa memoria. Bastaua que sólo fuera el excelentícimo señor don Martín de
Ayala a darse de pas y serbir a la corona rreal por todo el Pirú, pues que fue gran señor, capac apo, segunda
persona del Ynga y su bizorrey destos rreynos. Y ací no tenemos encomendero ni conquistador, sino que somos
de la corona rreal de su Magestad, seruicio de Dios y de su corona” (AYALA, 1987, p. 564).
proposta a que nos referimos acima, sobre o fim da presença espanhola nos Andes e a
restituição do poder dos senhores nativos.

c) Restituição

A restituição é um tema presente tanto no direito romano quanto no canônico, e fez


parte das discussões a respeito da colonização da América ao longo do século XVI e além,
especialmente com a contribuição do jurista Juan Solórzano y Pereira (1575-1655), que
atuou como oidor na Audiencia de Lima de 1609 a 1618. Sua obra discute o conceito
canônico de restitutio in integrum, que designa o restabelecimento do estado ou da posição
jurídica anterior. Se trata, portanto, da revogação de algum ato jurídico prévio (STAGL,
2021, p. 141). A princípio, o conceito poderia se referir a algum dano ou desvantagem
sofrido por um menor. Depois, tornou-se um “princípio” que permitia às pessoas lesadas por
conta de uma iniquidade, de um negócio ou processo jurídico anular tais efeitos. Do ponto
de vista dos eclesiásticos, esse conceito significava a obrigação da igreja de sempre proteger
a indenização dos mais pobres. O termo deve ser entendido “como um instrumento jurídico
para fazer justiça em casos particulares contra a seguridade jurídica e os princípios gerais, e
os que costumam beneficiar-se desse princípio são os débeis, como os menores” (idem, p.
142).
Em sua obra, Juan de Solórzano categorizou os indígenas americanos como pessoas
miseráveis (personae miserabiles), especialmente no sentido canônico de que eram recém-
convertidos à fé cristã. Para o jurista, o ponto em comum entre a persona miseribilis, como
conceito tradicional do direito canônico, e os indígenas era a suposta má compreensão destes
sobre as instituições espanholas, além da falta de ferramentas pecuniárias e intelectuais para
se defender dos espanhóis, mais familiarizados com o uso do direito (idem, p. 147). Ao
defender que os indígenas eram personae miserabiles, Solórzano defendeu que eles tivessem
direito aos favores e privilégios que se concediam aos mais pobres. Esses direitos seriam,
contudo, limitados pelos direitos de terceiros, que não podiam ser preteridos em favor dos
“privilégios” dos indígenas (idem, p. 147). Por outro lado, Solórzano insistiu que o rei não
poderia suprimir a capacidade jurídica dos nativos, pois estes eram seus vassalos livres. A
independência da qual dispunham os indígenas podia ser notada, por exemplo, no direito de
redigir testamentos, desde que acompanhados por um funcionário público. Se os juristas
consideram que os indígenas eram, ao mesmo tempo vassalos legítimos e incapazes de usar o
direito espanhol, a consequência lógica é de que os nativos necessitariam de um tutor, função
que era cumprida pelo ocupante do cargo de protector de índios (idem, p. 148). Em suma,
A operação jurídica de Solórzano consiste fundamentalmente em uma
combinação dos conceitos de personae miserabiles e restitutio in integrum.
Qualificando aos índios como pessoas miseráveis, os juristas abrem as portas
da justiça eclesiástica para eles e os situam, consequentemente, sob a
proteção da Igreja. E dentro da justiça eclesiástica podem recorrer à
restitutio in integrum. A combinação por parte de Solórzano e outros das
duas instituições, uma que abre as portas da justiça eclesiástica e outra que
outorga o poder de desfazer todo tipo de inequidade, é a base da criação de
um ius singulare, um direito particular para os índios que, atendendo a sua
lógica intrínseca, se manifesta como tal não no direito principalmente, mas
no direito real ou temporal. A criação de tal direito é necessária para
proteger os índios do direito comum espanhol, que seria uma arma legal
contra eles em mãos dos espanhóis. A consequência reside em que a
instituição do protector de indios e do foro misto se secularizam a favor da
Coroa (Tradução Nossa)38.

A ideologia por trás da criação do direito particular supracitado, com a restitutio in


integrum para as personae miserabiles, é a visão dos indígenas não como grupo social, mas
como raça inferior. Para Stagl, a posição de Solórzano é um tipo de racismo utilizado com
objetivo de justificar o domínio dos espanhóis sobre a América. De um lado, estava a ideia de
que os indígenas eram vassalos que não podiam ser escravizados. De outro, a dificuldade de
conviver com a avassaladora heterogeneidade dos povos autóctones da América, da qual a
vida de Guaman Poma é grande exemplo. Diante desse dilema, Stagl destacou duas respostas:
a) a de Francisco de Vitória, que postulava a autonomia cultural e política dos indígenas (sem
jamais negar a necessidade da evangelização, obviamente); b) a posição “cínica e fria” dos
funcionários públicos que defendiam que os indígenas fossem tratados como os demais
súditos da Coroa espanhola. A posição de Solórzono seria um compromisso entre esses dois
polos: “Os índios são livres, são vassalos de pleno direito do rei que podem ter acesso aos

38
“La operación jurídica de Solórzano consiste fundamentalmente en una combinación de los dos conceptos de
personae miserabiles y restitutio in integrum. Calificando a los indios como personas miserables, los juristas
abren las puertas de la justicia eclesiástica para ellos y los sitúan, consecuentemente, bajo la protección de la
Iglesia. Y dentro de la justicia eclesiástica pueden acogerse a la restitutio in integrum. La combinación por parte
de Solórzano y otros de las dos instituciones, una que abre las puertas de la justicia eclesiástica y otra que otorga
el poder de deshacer todo tipo de inequidad, es la base de la creación de un ius singulare, un derecho particular
para los indios que, atendiendo a su lógica intrínseca, se manifiesta como tal no en el derecho canónico
principalmente, sino más bien en el derecho real o temporal. La creación de tal derecho es necesaria para
proteger a los indios del derecho común español, que sería un arma legal contra ellos en manos de los españoles.
La consecuencia reside en que la institución del protector de indios y del fuero mixto se secularizan a favor de la
Corona” (STAGL, 2021, p. 149).
cargos de oficial e de cura, mas devem ser tratados como menores, com a Igreja atuando
como sua tutora, que os protege do exterior e os educa, os missiona, de portas adentro”39

Ao mesmo tempo em que essas ideias circulavam e eram discutidas, Guaman Poma
travava sua luta jurídica contra aqueles que julgava serem os usurpadores de suas terras e, a
partir de 1600, escrevia sua crônica. Como vimos, essa batalha se caracterizou por um clamor
por restituição que tinha muito em comum com a obra de Las Casas. Por outro lado, não
podemos nos esquecer de que a derrota de Guaman Poma dignificou a vitória de outros
senhores étnicos. Se cotejarmos a reivindicação de Guaman Poma por um reino andino
autônomo com a restitutio in integrum, podemos destacar uma outra particularidade desse
clamor. Guaman Poma não conseguiu a restituição das terras consideradas suas junto da
justiça colonial. Mas, na Nueva Crónica, o clamor por restituição se faz presente. O cronista
propôs a criação de um reino andino cristão autônomo em que os descendentes do cronista
governariam com ampla capacidade de garantir a evangelização e o buen gobierno, não como
pessoas miseráveis que precisassem de tutela, mas como autênticos vassalos da Coroa
espanhola. Com isso, a peculiaridade da restituição pedida por Guaman Poma está no fato de
que ela não solicitou o retorno a um estado jurídico prévio, mas pediu a criação de uma nova
forma de governança nos Andes. Assim, a Nueva Crónica traz um equilíbrio entre
representações do autor e dos demais indígenas como pobres e vítimas de um processo de
colonização implacável, o que ajuda a justificar a restituição, e dos indígenas como indivíduos
plenamente capazes de criar um governo autônomo, racional e eficiente, argumento que
anularia a legitimidade da conquista espanhola. Ao contrário do conceito tradicional da
restitutio in integrum, Guaman Poma não solicitou a anulação de um ato jurídico prévio, mas
solicitou a criação de uma situação jurídica nova.

Considerações Finais

Como vimos no presente artigo, as evidências a favor da tese de que Guaman Poma
seria o representante de uma visão puramente andina e teria sido despossuído de seus bens
tradicionais não se sustentam, pois o aporte da cultura europeia está presente na Nueva
Crónica, que foi composta com o objetivo final de ser lida pelo próprio Rei da Espanha,
com uma atenção meticulosa à construção de uma argumentação que não fosse
simplesmente inventada, mas que sim tinha relações claras com as querelas intelectuais a

39
“Los indios son libres, son vasallos de pleno derecho del rey que pueden acceder a los cargos de oficial y de
cura, pero deben ser tratados como menores, con la Iglesia actuando como su tutora, que los protege del exterior
y los educa, los misiona, de puertas adentro” (STAGL, 2021, p. 152).
respeito dos povos indígenas americanos.40 Os cronistas nativos da América, como
Guaman Poma, devem ser pensados como autores de um novo tipo de escrita, em que
tradições nativas e europeias se tornam indissociáveis, e ambas são postas a serviço de
agendas pessoais, determinadas pelo momento histórico. A propriedade privada que o
cronista reivindicou para si antes de escrever a crônica não é um componente dos modos
andinos pré-hispânicos de controle da terra.
De acordo com Susan E. Ramirez, os povos andinos pré-hispânicos

[...] não se viam como aglomerados de pessoas cujas afiliações político-religiosas


podiam ser delineadas como totalidades limitadas por linhas fechadas em um mapa
Ocidental. O mapa de Guamán Poma do Tawantinsuyu (reproduzido na figura 2.1)
representa uma compreensão europeizada do império nativo (Tradução Nossa)41.

Considerando isso, podemos concluir que as afirmações de Guaman Poma no processo


pelas terras de Santa Lucía de Chiara, com os mapas e marcadores de terra lá citados, não são
evidência suficiente para afirmar que o autor foi traído ou despossuído pelos espanhóis. As
afirmações de Guaman Poma no processo e na Nueva Crónica devem ser entendidas como a
criação premeditada de uma genealogia, uma história e uma série de recomendações morais
por um ator indígena colonial que manifestou a vontade de transformar seu mundo e
convencer os dominadores espanhóis a mudar suas condutas e cessar o abuso contra os povos
que dominaram. Quando lemos uma crônica, não podemos esquecer que “o mundo mostrado
por escritores espanhóis e nativos hispanizados no período colonial inicial não é
necessariamente e em todos os aspectos o que suas palavras nos levam a imaginar que ele
era”.42

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[1616].
BEUCHOT, Mauricio. El fundamento de los derechos humanos en Bartolomé de las Casas. ARETE:
Vol. V. n. 2, 1993, p. 5-13.
40

41
“[...] did not see themselves as clusters of people whose religio-political affiliations could be delineated as
bounded wholes by closed lines on a Western map. Guamán Poma’s map of the Tawantinsuyu (reproduced in
figure 2.1) represents a Europeanized understanding of the native empire” (RAMIREZ, 2005, p. 226).
42
“the world portrayed by the Spanish and Hispanicized native writers in early colonial times is not necessarily
and in all aspects what their words lead us to imagine it was today” (RAMIREZ, 2005, p .3).
BORGES, Célia Maia. As obras do frei Luís de Granada e a espiritualidade de seu tempo: A leitura dos
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