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SÍNTESE E JUÍZO
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Na Carta a Herz, Kant reconhece uma dificuldade que lhe passara des-
percebida em sua Dissertação: Como conceitos dependentes apenas da
"natureza mesma do entendimento puro"3 podem concordar com objetos
que, no entanto, são inteiramente independentes de nosso entendimento?
Esse problema dá ensejo a que se proponha, em sua generalidade, a ques-
tão da relação entre a representação e o objeto da representação no que
diz respeito não só a conceitos supostamente a priori, mas a toda repre-
sentação, sensível ou intelectual:
Notei que me faltava ainda alguma coisa de essencial que, como outras, havia
negligenciado em minhas longas investigações metafísicas, e que, de fato, consti-
tui a chave de todo o enigma da metafísica, ainda escondido dela mesma. De
fato, perguntei a mim mesmo: Qual é o fundamento sobre o qual repousa a re-
lação do que se denomina em nós representação com o objeto?
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do objeto com a representação divina, que é
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1ortanto, conclui Kant, compreendemos que uma representação pos-
sa oncordar com seu objeto tanto na hipótese de um intellectus archetypus,
intele to divino criando seus objetos, quanto no caso de um intellectus
ect ,pus, tal como o intelecto humano, em que as representações sensíveis
são causadas pelos objetos que afetam os sentidos e, por sua vez, suscitam
no entendimento a formação dos conceitos empíricos, de que se deve
exigir coerência lógica. 7 Mas o problema posto pelos "conceitos intelectuais
puros", admitidos pela Dissertação, é que não correspondem a nenhum
destes dois casos: ne1n surgem por comparação e abstração dos objetos
dos sentidos, nem criam seu objeto, visto serem conceitos não de um ín-
tellectus archetypus, mas de nosso entendimento finito:
Os conceitos puros do entendimento não devem, pois, ser abstraídos das impres-
sões dos sentidos, nem exprimir a receptividade das representações pelos senti-
dos, mas ter sua fonte na natureza do espírito; e não são, entretanto, nem o
efeito do objeto, nem produzem o objeto. Na Dissertação, fiquei satisfeito em
exprimir a natureza das representações intelectuais de maneira puramente ne-
gativa, dizendo que elas não eram modificações do espírito pelos objetos. Mas,
sobre como é possível uma representação que se reporte a um objeto, sem ser de
alguma maneira afetada por ele, fiquei calado. 8
Kant rejeita qualquer recurso à garantia divina, uma vez que esse tipo de
solução apresenta os inconvenientes afins de círculo vicioso e misticismo. 9
Poderíamos esperar que ele se ativesse, em seguida, apenas à relação re-
presentação/objeto que admitira como compreensível no caso de nosso
entendimento finito, isto é, a afecção de nosso espírito pelas coisas exte-
riores, e que recusasse a possibilidade, afinal de contas, de todo "conceito
intelectual puro': Mas essa alternativa é excluída na Carta de modo explí-
cito. Kant anuncia estar em vias de estabelecer uma classificação dos con-
ceitos puros inspirada em "alguns princípios pouco numerosos do enten-
dimento", de modo que não há dúvida, portanto, quanto à possibilidade
de tais conceitos "puramente intelectuais': 0 que nos permite entender que
Kant também está em vias de un1'aso · Juçao
:- ·
quanto à maneira pela qual se
pode pensar a relação desses conceitos com os objetos dados.
Não há senão dois casos possíveis em que uma representação sintética e seus
objetos podem concordar ou estar em uma relação mútua de maneira necessária
e, por assim dizer, encontrar-se. Ou é o objeto que torna possível a representação,
ou é a representação que torna possível o objeto. No primeiro caso, a relação só
pode ser empírica e a representação jamais é possível a priori. Esse é o caso dos
fenômenos no que diz respeito ao que neles pertence à sensação. No segundo
caso, uma vez que a representação nela mesma (pois não se trata aqui da causa-
lidade pela vontade) não produz seu objeto quanto à sua existência, ela é, todavia,
determinante a priori no que diz respeito ao objeto se, tão somente por ela, é
possível conhecer algo como um objeto. (A 92/B 125-126)
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duçào transcendental das categorias não mais é o objeto "em si", é antes o
objeto-da-representação, o objeto de uma intuição sensível ou fenômeno:
é apenas em relação a esse objeto "como fenômeno" que se pode pôr o
problema da "relação de uma representação sintética com seus objetos".
A segunda leitura possível da relação em que "o objeto torna possível
a representação", portanto, é a seguinte: os fenômenos, "quanto a isso que
neles pertence à sensação': são eles mesmos objetos que "tornam possíveis"
certas "representações sintéticas", por exemplo, as representações de su-
cessão, de justaposição, de conjunção constante e, pode ser o caso também,
de relação causal. A relação de tais representações sintéticas com seu ob-
jeto "seria sempre empírica e a representação jamais seria possível a prio-
ri". Se o conceito de causa fosse "tornado possível" pelos fenômenos dessa
maneira, deveríamos renunciar a qualquer generalidade a seu respeito que
não fosse a generalidade "comparativà: evocada pouco antes por Kant, ao
final do parágrafo 13 da Dedução. 12
Vê-se que, assim interpretada, a relação em que "o objeto torna pos-
sível a representação" é uma relação interna ao próprio registro da repre-
sentação. Ela não mais é uma relação de tipo causal entre coisas existentes
"em si" e representações (mentais), é antes uma relação imanente ao espí-
rito, entre representações dadas de modo imediato e singulares, isto é,
fenômenos como objetos da intuição empírica, e representações formadas
por aquilo que a Dissertação denominava o "uso lógico do entendimento",
isto é, pela reflexão discursiva sobre esse dado. Se os objetos (os fenômenos)
não fazem senão "tornar possíveis" as representações sintéticas ou de li-
gações dos fenômenos, é porque eles são condições necessárias, mas não
suficientes, dessas representações; é preciso que se acrescentem aos pri-
meiros, para que se formem as segundas, os atos mentais que podemos
caracterizar, de maneira provisória, como atividades discursivas de com-
paração e generalização.
Ora, a consideração desses atos do espírito é o que dá sentido ao se-
gundo aspecto visado por Kant na relação entre representação e objeto:
trata-se do caso em que "a representação torna possível o objeto". Nesse
segundo caso,"[ ...] visto que a representação nela mesma (pois não se
trata aqui de sua causalidade pela vontade) não produz seu objeto quanto
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à sua existência, ela é, todavia, determinante a priori se, tão somente por
ela, é possível conhecer algo como um objeto" (A 92-93/B 125).
A relação aí considerada nada mais possui em comum com o segun-
do termo da alternativa na Carta a Herz. O objeto não é distinto da repre-
sentação, é objeto representado que somente a representação "torna pos-
sível", não em sua existência (que continua dependente da presença de um
em si, estranho a toda representação), mas em seu caráter de objeto repre-
sentado ou do que é para a representação. Mas essa cláusula não tem
sentido a não ser que se aceite considerar que o próprio termo represen-
tação é reavaliado. Aí a "representação" não mais é resultado (como o eram
as representações sintéticas "tornadas possíveis pelo objeto» no caso ante-
rior), é antes ato de representação ou, no mínimo, disposição à represen-
tação. Se a representação é assim considerada, pode-se dizer que o objeto
(por exemplo, o fenômeno em questão no caso anterior) só é possível se
há representação, ou seja, se há uma "disposição à representação" que o
constitui como objeto da representação: a conjunção como então assinala,
mais precisamente, a interiorização do objeto no campo da representação.
Assim é possível que a disposição à representação tenha características
próprias que determinam as características do objeto "como" objeto inte-
riorizado na representação.
A Estética transcendental dava o primeiro exemplo dessa dependência
do objeto "como" objeto representado em face de uma disposição à repre-
sentação: o objeto era tornado possível "como" fenômeno por nossa recep-
tividade sensível, tendo por formas o espaço e o tempo. Assim também
são as formas a que Kant se refere para ilustrar o caso em que "apenas a
representação torna possível o objeto': A primeira das condições "somen-
te sob as quais o conhecimento de um objeto é possível" é a intuição, que
depende de uma aptidão à representação ( Vorstellungsfiihigkeit) receptiva,
cujas formas são o espaço e o tempo:
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1... ] 0 alidadc objetiva da, alegoria. , orn o on cito a priori, repousará sobre
0 fa tn ck que , omcnlc por ela, a cxperien ia possível (quanto à forma do pen-
, amcnto ). Pni. a., im cios . e reportam necessariamente e a priori aos objetos da
e ·prri~ncia. vi. to que não é senão por elas que um objeto da experiência pode
cr pen. adn. (A 93/B 126)
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A SÍNTESE
Kant indica com clareza que pretende conferir sentido inédito ao ter-
mo síntese. Este é apresentado como indissociável da doutrina do espaço
e do tempo exposta na Estética transcendental e por duas vezes o caráter
idiossincrático da definição é sublinhado ("chamo de síntese [...]; entendo
por síntese [... ]"). Ora, se a definição aí apresentada é inédita, de fato, a
exemplo do papel que Kant pretende atribuir ao ato de síntese, resta
que se introduz com esse termo, de modo implícito, a referência a um
modelo de pensamento em cuja fecundidade Kant jamais deixou de
pensar desde os textos pré-críticos: o modelo exposto pelo pensamento
matemático. 20
É no Preisschrift publicado em 1764 (Investigação sobre a evidência
dos princípios da teologia natural e da moral) que se encontra a primeira
ocorrência significativa do termo síntese, por ocasião, precisamente, de
uma exposição da diferença entre o pensamento matemático e o pensa-
mento filosófico. As matemáticas, escreve Kant, formam seus conceitos de
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modo arbitrário pela síntese de conceitos simples; a filosofia, por sua vez
procede apenas pela análise de conceitos complexos, cujas notas caracte.'
rísticas percebidas de modo confuso ela deve tornar claras.21 É certo que
a síntese pela qual se formam os conceitos matemáticos está longe do que
será, em 1781, a síntese cuja explicação abre o parágrafo 10 da Analítica
transcendental: trata-se, no texto de 1764, não da ligação de um diverso
sensível, mas da ligação arbitrária de conceitos no entendimento. A síntese
é concebida, então, sob o modelo de uma combinatória de tipo leibnizia-
no, da mesma forma que é de inspiração leibniziana a ideia de que a cla-
reza e a simplicidade dos conceitos matemáticos permitem o uso de signos
sensíveis para afigurar inconcreto sua utilização. A despeito disso, tem-se
aí o primeiro germe do uso crítico do modelo matemático da síntese.
De fato, esse modelo adquire significação e dimensão novas quando,
com a Dissertação de 1770, a combinação ou composição arbitrária dos
conceitos nas matemáticas torna-se indissociável do engendramento de
seu objeto na intuição sensível pura, isto é, nas formas do espaço e do
tempo. Então se anuncia o uso do termo síntese que se reencontrará no
parágrafo 10 da Analítica transcendental, em que a síntese significa não
mais a mera combinação de conceitos para formação arbitrária de um
conceito complexo, mas também a composição de uma multiplicidade
dada nas formas a priori da intuição sensível. É graças a essa composição
que se formam, segundo a Dissertação, os conceitos de número e mesmo
todos os conceitos matemáticos, porquanto estes são sempre conceitos
de quantidades:
Pode-se tornar inteligível a noção de quantidade do espaço ele mesmo sem re-
feri-lo a uma unidade de medida e sem exprimir a quantidade por um número?;
ora, o que é o número senão uma multiplicidade da qual se adquire o conheci-
mento distinto por enumeração, isto é, adicionando sucessivamente, em um
tempo dado, uma unidade a outra ?22
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Em geometria [... ] os objetos são dados pelo conhecimento ele mesmo a priori
(segundo a forma) na intuição. Ao contrário, com os conceitos puros do entendi~
mento surge a necessidade imperativa de procurar uma dedução transcendental
[... ], visto que eles não se fundam sobre a experiência, mas também não podem
apresentar a priori na intuição um objeto sobre o qual fundariam, antes de qual-
quer experiência, sua síntese [...]. (A 87-88/B 120)
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tábua das formas lógicas do juízo. C ontudo, mantém -se todo interesse,
conforme Kant nos encoraja no Prefácio à segunda edição da Crítica, em
tomar a Dedução de J781 como uma introdução necessária à de 1. 787, Por
, árias razões. Em primeiro lugar, porque a atenção à exposição da "tripla
síntese" nos permite considerar a dedução transcendental em seu solo pri-
meiro, aquele do confronto com a concepção empirista da percepção e seus
objetos, em particular o do confronto com o empirismo cético de Hume.
Em segundo lugar, porque nesse confronto desempenha papel central,
crescente na medida em que se avança da primeira à terceira das "sínteses~
o modelo matemático da construção, oposto por Kant ao modelo empirista
da associação das representações sensíveis. Essa onipresença do modelo
matemático na Dedução de 1781 é uma força e, ao mesmo tempo, uma
fraqueza. 1) É uma força porque sublinha a unidade da Analítica transcen-
dental e da Estética transcendental, da doutrina das categorias e das dou-
trinas do espaço e do tempo; é ainda uma força porque, ao ligar a dedução
transcendental das categorias à longa reflexão de Kant sobre a natureza do
pensamento matemático, faz da exposição da "tripla síntese" muito mais
que um argumento psicológico, embora seja incontestável a dimensão psico-
lógica de uma descrição de atos mentais nesse argumento. 2) Mas a oni-
presença do modelo matemático na Dedução de 1781 é também uma fra-
queza, porque o modelo matemático e sua solução ao problema da relação
de um conceito com seu objeto tendem a mascarar o problema específico
que constituía a verdadeira dificuldade anunciada nos parágrafos 13 e 14
da Dedução transcendental: a dificuldade em pensar a relação de conceitos
a priori com objetos empíricos. De todo modo, essa mesma fraqueza es-
clarecerá, por contraste, a importância da mudança do método na Dedu-
ção de 1787, em que se coloca em primeiro plano a forma lógica do juízo
como forma da relação de nossas representações com um objeto empírico.
Apresentaremos a seguir, no Capítulo 2, uma análise da "tripla sínte-
se" na Dedução de 1781. Analisaremos então, no Capítulo 3, os primeiros
parágrafos da Dedução de 1787, cuja função essencial é servir de introdu-
ção ao que, segundo Kant, é o coração do argumento tal como reelabora·
do: a explicação das formas lógicas do juízo como formas da "unida<le
objetiva da consciência de si", isto é, formas de uma consciência capaz de
relacionar suas representações com objetos.
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NOTAS
no Prefácio aos Prolegôme110s que Kant denominn "problema de !·f ome" a questão da
cau. altdade. reivindicando sua generaliznçáo (Ak., IV, 260 e ss.; Pléiade, li, p. 23 e ss.). Na
primeira edição da C,·ítirn. a posição de Hurne é mais longamente discutida na Metodologia
tnmsccndcntal (A 764 e ss./B 792 e ss.). Mas é preciso esperar a segunda edição para que o
nome de Humc seja mencionado, de maneira expressa, na própria dedução transcendental
( B 127). Ao contrário de Puech ( 1990, p. 7), não nos parece sustentável que a referênc ia a
Hume seja uma "falsa pista". introduzida por Kant mais tarde por razões pedagógicas. F.sse
ponto é desenvolvido i,~(ra, Cap. 11 ("A constituição da experiência").
2 C f. D e \ leeschauwer, 1976, vol. 1, p. 169 e ss. (p. I 7 1: "Kant narra nessa carta a invenção do
problema crítico"), e a Introdução de Alexis Philonenko a sua tradução ( 1976, pp. 127- 129).
3 C f. Dissertação, § 8, Ak., II, 395; Pléiade, I, p. 642.
4 Carta a Herz, Ak., X, 130; Pléiade, I, p. 691.
5 Dissertação, § 4, Ak., II, 393; Pléiade, 1, p. 638: "lei inerente a nosso espírito": /ex quaedam
menti insita. Kant jamais rejeitará esse inatismo, que diz respeito não às representações, mas
às f aculdades ou capacidades representativas tanto em vista das formas sensíveis ( dependen-
tes da faculdade receptiva, sensível) como das categorias (dependentes da faculdade espon-
tânea, intelectual); cf. Dissertação, § 8.
6 Carta a Herz, Ak., X, 130; Pléiade, I, pp. 691-692.
7 Poderia surpreender o fato de Kant não tratar em específico, na citada Carta a Herz, do
problema do acordo entre os conceitos empíricos e os objetos dados. Mas ocorre que a dou-
trina da Dissertação parece suficiente em relação aos conceitos empíricos: é preciso apenas
que sua formação não leve a juízos contraditórios ou, em outras palavras, que sempre se
observe o acordo entre o predicado e o sujeito dos juízos empíricos. O acordo com as coisas,
no caso dos conceitos empíricos, só pode ser mediado, mediação que se dá pelo acordo
(causal) das representações sensíveis intuitivas com as coisas. Cf. Dissertação, II,§ 11: "Na
medida em que [os fenômenos) são dados pelos sentidos, eles atestam, como realidades
causadas, a presença do objeto, o que vai contra o idealismo; e, se considerarmos, por sua
vez, os juízos relativos às coisas concebidas pelo conhecimento sensível, porque a verdade
do juízo consiste no acordo do predicado com o sujeito dado, e, em segundo lugar, porque
o conceito do sujeito, como fenômeno, não é dado senão com relação à faculdade sensitiva
de conhecer, e porque é de acordo com essa mesma faculdade, enfim, que são formados os
predicados observáveis pelo conhecimento sensível, é claro que as representações do sujeito
e do predicado se formam segundo leis comuns e, assim, dão lugar a um conhecimento
muito verdadeiro" (Ak., II, 397; Pléiade, I, p. 644).
8 Idem, Ak., X, l 30; Pléiade, I, p. 692 .
9 Idem, Ak., X, l 32; Pléiade, I, p. 693.
10 Cf. Estética transcendental,§ 1 (A 19-20/B 33-34), § 8 (A 46/B 63).
J l Vaihinger apresenta um notável relato das dificuldades suscitadas pela admissão, na abe rtura
da Estética transcendental, de um objeto "afetando a sensibilidade': e das diferentes tentativas
(em partic ular a de Fichte e depois a do neokantismo) para desembaraçar a filosofia knntia-
na dessa suposição, considerada incompatível com os resultados da AnaUtiw trn11srentlema/
(cf. 1976, vol. JJ , pp. 26-55. C f. também Bourgeois, 1968, pp. 15 -2 1). Não há dúvida de que
0 próprio Kan t jamais renun cio u a essa pressuposição, mesmo que a restri,·áo i111pust11
pela Analítica transcendental ao uso das categorias concil'lle a que pennanc\·a prnhlé111átku
qualquer cara teriz.ação da relação do objeto, "considerado nde 111es111u", co111 nossa n 1pnci-
dade representativa.
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91_9 IH 1 4: "Por certo, M fenôm no. fom e em a os d qu se pode extrair urna ''Ili
i..cgu nd n q1111l hnhi111alme111e o o rre algo, mas eles nun ca pod_e m dar a consequência Por
n<'rc, . riria[ ... ]. A universalidade estrit a da_regra ~ão é um~propnedad~ das regras ernpír~
que. por indu ão, 11 0 recebem outra universalidade senao comparativa, isto é, a P<>sslbi)f.
dad de um uso estendido".
13 Pode- e re onhecer a defi nição de fenômeno no parágrafo L da Estética transcendent,1
(A 20/B 34). Observa -se nesse mesmo parágrafo o emprego do termo Vorstellungsfi:thígiuf,,
14 Disse,-taçiio, § s, Ak., li, 394 ; Pléiade, I, pp. 639-640. Não se formula de modo expresso, -111-
,-ftica, uma di stinção entre appar-entia e phaenomenon análoga à da Dissertação, exceto em
uma só ocasião e só na primeira edição, no capítulo "Sobre o fundamento da distinção de
todos os objetos em geral em fenômenos e númenos': A 248-249: "Erscheinungen, softrn
sie ai Gegensti:inde nach der Einheit der Kategorien gedacht werden, heiften Phaenomena",
Texto de difícil tradução, visto ser usual traduzir Erscheinung por fenômeno. Em geral se
contorna essa dificuldade mediante uma perífrase para Erscheinung nesse caso excepct0 nat:
"O que se manifesta a nós, enquanto é pensado como objeto segundo a unidade das catego-
rias, denomina-se fenômeno" (Pléiade, I, p. 979). É preciso, na Crítica, remeter-se na maio-
ria das vezes ao contexto, para determinar se por Erscheinung Kant pretende se referir à
apparentia ou ao phaenomenon. Em todo caso, a distinção de A 248-249 não é exatamente
a da Dissertação, visto que Kant não fala em "reflexão segundo o uso lógico do entendimen-
to", mas em "unidade conforme às categorias". Mas as duas maneiras de determinar o phae-
nomenon, na verdade, articulam-se de modo estreito, a fórmula da Crítica assinalando a
solução do problema que a Dissertação ignorava, aquele da aplicação dos conceitos puros
do entendimento aos objetos dados. Essa solução se torna possível, como veremos, pela
identificação das categorias às próprias formas da "reflexão segundo o uso lógico do enten-
dimento''. pela qual o objeto é pensado "como" objeto.
15 Essa definição se confirma na Introdução à Crítica: "Pelo que seria desperto e posto em
movimento o poder de conhecer, senão pelos objetos que atingem nossos sentidos, objetos
que em parte produzem eles mesmos representações, em parte põem em movimento a ati-
vidade de nosso entendimento para compará-las, ligá-las ou separá-las, e, desse modo, elabo-
rar o material bruto das impressões sensíveis em um conhecimento de objetos que se chama
experiéncia?" (B l; itálicos nossos). Kant jamais renunciará a essa definição, mas a comple-
tará do seguinte modo, observando a Dedução transcendental das categorias: a experiência
supõe uma síntese das percepções conforme às categorias (A 177 e ss./8 218 e ss.). Da pri-
meira definição se poderiam escolher uma interpretação racionalista (a função do entendi-
mento seria então a de tornar claras as ligações inteligíveis percebidas de maneira confusa
no dado sensível), uma interpretação empirista moderada "à la Locke" (o entendimento
seria considerado como abstraindo os conceitos gerais a partir do sensível dado) ou uma
interpretação empirista cética" à la Hum e" (os conceitos do entendimento não seriam senão
a ideia generalizada das ligações da imaginação). Ao fundamentar a possibilidade de toda
l_igação discursiva das re~resentações sensíveis na síntese prévia das percepções conf?r~e
as categonas, Kant fechara a porta a todas essas interpretações e as substituirá por sua propria.
estabelecida na Crítica. Compreende-se, no entanto, que a Crítica adote como ponto de
p~tída a primeira caracterização, "neutra" (suscetível de várias interpretações), da experiên-
cia, e que a segunda, em contrapartida, seja a que deverá ser objeto de uma demonst ração.
16 Seria posi.ível objetar que, no§ 12 da Dissertação, Kant escreve que "dos objetos dos sentidos,
i.en_d o fenômenos, não possuímos uma intelecção real, mas apenas lógica" (Ak., 11, 398;
Plé~ade, l, P· 645). ontudo, isso não significa que, segundo a Dissertação, não possan,os
aplicar aob lt:nômenos os conceitos puros do entendimento, mas antes que só podemos fazt·
-lu mt diante O ui,u lógico do entendimento, que subordina nossos diversos con ceitos emp~·
ricob um aob _outros, até porventura subsumi-los também aos <.:onceitos puros do entend~-
mento. A 1tt:çao V da JJ,ssataçãu, de~tinada a delimitar o uso dos conhecimentos sensfveis
1
e dos conhecimentos intelectuais, absinala de mandra expressa que, se é ileg{timo atribuir
70
um objeto "em - t um prcdi ado que comporta uma condição en lvel, em contrapartida é
perfeitamente legítimo atribuir ao objeto sen ívei conceitos intelectuais (cf. ~§ 25-30); de
re, to, na - eção III ( Dos princípios da fo rma d o mundo sensível) se encontra a aplicação dos
conceitos puros aos fe nômeno (cf., por exemplo, § 14, 5, em que se determinam os fenô-
meno como rnl1s tàn cias e acidentes).
17 A 9- 11 O (a "tripla síntese" na Dedução de 1781 ), B 129-131 (§ 15 na Dedução de 1787).
lc Em particular o item 4 da segunda seção e toda a terceira seção na Dedução de 1781 (A 110-
-12 ): §§ 20-23 na Dedução de 1787.
19 Que o parágrafo I O antecipe a dedução transcendental das categorias, isso é reconhecido
por todos os comentadores. Adickes conclui que provavelmente as cinco primeiras alíneas
do parágrafo 1O foram acrescentadas por Kant mais tarde e que, na sua versão inicial, o
parágrafo devia começar, de forma direta, com o enunciado sobre a identidade da função
em operação nas formas lógicas do juízo e nas categorias (alínea 6, A 79/B 105; cf. Adickes,
1889, p. 119, n.). Sem chegar a ponto de admitir essa hipótese, De Vleeschauwer descreve a
elaboração do parágrafo 10 como "defeituosa e desequilibrada", e propõe encadear a leitura
do parágrafo 9 ("Da função lógica do entendimento nos juízos") diretamente com a alínea
6 do parágrafo 10 ("a mesma função ..."; De Vleeschauwer, 1976, vol. ll, p. 70 e ss.). Mas isso
é dar de barato, a nosso ver, a verdadeira fonte da dificuldade, que consiste no método de
Kant conforme tentamos analisá-lo. Heidegger aproxima-se mais da verdade ao afirmar
que, nesse ponto da Analítica transcendental., é muito cedo para que se possam derivar as
categorias a partir das formas lógicas do juízo, e que é preciso levar ao pé da letra a ideia
de um mero fio condutor em relação ao enunciado sobre o paralelismo (Heidegger, 1973,
pp. 115-116). Estamos em desacordo com Heidegger, porém, quando ele pretende sustentar
que as categorias não têm origem nas formas lógicas do juízo. Pensamos que a dedução
metafísica anuncia, pelo paralelismo das duas tábuas, uma identidade de origem entre as
categorias e as formas lógicas cuja prova e a explicação desenvolvida hão de ser fornecidas
pela dedução transcendental.
20 Strawson negligencia esse aspecto da noção de síntese quando a declara estranha ao proce-
dimento transcendental, entendido como análise do conceito de experiência, e considera
que ela advém do procedimento "inteiramente imaginário" de uma psicologia transcenden-
tal (1966, p. 32). Que a síntese seja uma noção psicológica, no sentido de que designa um
ato mental, disso não há dúvida. Mas a dimensão psicológica é indissociável aí de uma di-
mensão epistemológica e de uma reflexão lógica em que o modelo da síntese implica o da
análise. Por sua vez, Hoppe - que reivindica, contra Strawson, a dimensão psicológica do
procedimento transcendental kantiano - interpreta a noção de síntese em termos de uma
psicologia de inspiração fenomenológica ( em que a síntese transcendental seria o ato de
pensamento originário pelo qual nos referimos ao mundo em geral), e nela vê o instrumen-
to de uma polêmica com o associacionismo empirista (1983, em particular pp. 82-112).
Tentaremos mostrar que, mesmo quando a polêmica com o associacionismo está no foco
da cena, isto é, durante a exposição da "tripla síntese" na Dedução de 1781, o modelo mate-
mático está presente de maneira constante (cf. infra, Cap. 2).
21 Deut/ichkeit, §§ 1 e 2, Ak, II, 276-279; Pléiade, I, pp. 216-221. Relembremos que esse texto
responde à questão do concurso da Academia de Berlim em 1762 (daí sua designação usual
de Preisschrift), que versava sobre as respectivas evidências das verdades matemáticas e das
verdades metafísicas, em particular da teologia e da moral. Para uma análise desse texto e
da oposição de Kant à imitação, que a escola wolfiana crê poder praticar, do método mate-
mático na filosofia, cf. Debru, l 977, p. 19 e ss. Gottfried Martin apresenta um históríco es-
clarecedor dos termos análise e síntese, partindo da distinção euclidiana entre o método
analítico e O método sintético até sua reelaboração cartesiana e leibniziana (Martin, 1969,
pp. 245-3 12). A oposição enunciada no Preisschrift entre o pensamento matemático, que
engendra seus conceitos de maneira sintética, e o pensamento filosófico, que não procede
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senão por análise dos 011 eitos dados, será reencontrada na Metodologia tramcend .
~,-V, ern que a sfntese dos con citos matemáticos é entã~ lndi.ssociável não apenas d : : •
signos sensíveis, mas sobretudo da construção de conceitos, isto é, da apresentação dele, de
intui ão sensível a priori (A 713 e ss./8 741 e ss.). Ili
22 Dissertação,§ 15, Ak., Il, 406; Pléiade, I, p. 658.
23 Cf. A 162/8 201, n.
24 Dissertação, § 1, n ., Ak., II, 388; Pléiade, I, p. 630.
25 Idem, Ak., li, 389; Pléiade, I, p. 631.
26 Ak., X, 125- 126; Pléiade, 1, p. 693.
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