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SÍNTESE E JUÍZO

Na Dedução transcendental das categorias, Kant se propõe a responder à


questão: Como conceitos a priori podem se referir a objetos dados? Essa
questão diz respeito, antes de tudo, ao conceito de causa, pelo qual pensa-
mos uma ligação universal e necessária entre diferentes existências. Não
podemos extrair o conceito de causa por indução a partir da experiência,
porém o aplicamos a objetos cujas relações conhecemos apenas de ma-
neira empírica. De modo ainda mais suspeito, o pensamento metafísico
pretende usar esse conceito além de toda experiência e considera o prin-
cípio de causalidade universalmente válido para a existência das coisas em
geral, dadas ou não a nossos sentidos. Kant denomina "problema de Hume"
a questão posta pelo conceito de causa, mas reivindica a generalização do
problema: existem muitos outros conceitos que, não menos que o de
causa, não podemos ter formado por mera generalização empírica; con-
ceitos de que fazemos uso, porém, no conhecimento dos objetos empíricos
e que constituem, além disso, a armação de um pensamento metafísico
que pretende proceder por raciocínio puro, de modo independente de
toda experiência. 1
É na Carta a Herz de 21 de fevereiro de 1772 que Kant formula pela
primeira vez O problema que, na Crítica, se tornará a questão da dedução
transcendental das categorias. 2 O problema da relação entre conceitos a
priori e objetos dados dá ensejo, na Carta a Herz, a uma indagação gene-
ralizada sobre a relação de uma representação com seu objeto, indagação
retomada quase termo a termo, nove anos depois, na Dedução transcen-
dental das categorias. Mas a diferença entre os dois textos é fundamental:
a Carta a Herz apresenta a relação entre uma representação e seu objeto

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K T F O POO E R O JU LGA R

como relação causal entre duas instâncias heterogêneas, isto é, a represen-


tação «interior" ao espírito e o objeto que lhe é "exterior"; por sua vez, a
Crítica interioriza a relação entre a representação e o objeto no próprio
campo da representação. Essa interiorização é condição indispensável à
solução de um problema que de início ela leva a reformular.

REPRESENTAÇÃO E OBJETO DA REPRESENTAÇÃO

Relação causal entre representação e objeto da representação: A carta a


Marcus Herz de 21 de fevereiro de 1772

Na Carta a Herz, Kant reconhece uma dificuldade que lhe passara des-
percebida em sua Dissertação: Como conceitos dependentes apenas da
"natureza mesma do entendimento puro"3 podem concordar com objetos
que, no entanto, são inteiramente independentes de nosso entendimento?
Esse problema dá ensejo a que se proponha, em sua generalidade, a ques-
tão da relação entre a representação e o objeto da representação no que
diz respeito não só a conceitos supostamente a priori, mas a toda repre-
sentação, sensível ou intelectual:

Notei que me faltava ainda alguma coisa de essencial que, como outras, havia
negligenciado em minhas longas investigações metafísicas, e que, de fato, consti-
tui a chave de todo o enigma da metafísica, ainda escondido dela mesma. De
fato, perguntei a mim mesmo: Qual é o fundamento sobre o qual repousa a re-
lação do que se denomina em nós representação com o objeto?

Kant considera em seguida dois casos possíveis dessa relação. No


primeiro, a representação "não contém nada mais que a maneira pela qual
o sujeito é afetado pelo objeto". Aí "é fácil ver como ela lhe é conforme,
como um efeito à sua causa (. .. ais eine Wirkung seiner Ursache gemaft sei),
e como essa determinação de nosso espírito pode representar algo, isto é,
ter um objeto". 4
Esse caso compreende todas as nossas representações sensíveis. Por
serem apenas "a maneira pela qual o sujeito é afetado" pelo objeto, é certo

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SfNTl'.SE E JUÍZO

que nossas representações sensíveis não têm, como dizia a Dissertação,


nenhun1a relação de semelhança com o objeto; contudo, elas têm ao menos
uma constante correspondência com o objeto (isto é, com a coisa que
afeta nosso sentido) regulada pela relação de causalidade: as mesmas cau-
sas correspondem aos mesmos efeitos. Essa relação não de semelhança,
mas de conformidade com o objeto, "como a relação do efeito com sua
causa", diz respeito não só aos dados dos cinco sentidos, mas também a
relações espaçotemporais entre esses dados sensoriais dependentes das
formas a priori de nossa sensibilidade, o espaço e o tempo. De fato, se o
espaço e o tempo são, como sustentava a Dissertação, "não algum reflexo
ou projeção (adumbratio aut schema) do objeto, mas nada menos que
certa lei inerente ao nosso espírito, que sirva para coordenar entre si as
coisas sentidas em virtude da presença do objeto•:s então as coordenações
espaçotemporais de nossas sensações dependem da "disposição à repre-
sentação" do sujeito afetado, e não têm nenhuma relação de semelhança
com as coisas exteriores. Assim como as sensações, entretanto, as coorde-
nações espaçotemporais têm uma constante relação com a presença das
coisas, e suas variações são, como aquelas das sensações, determinadas
por essa presença. Kant não faz mais que reiterar, portanto, a doutrina da
Dissertação ao considerar na Carta a Herz que as representações sensíveis,
sem exceção, têm "uma relação compreensível com os objetos": "assim as
representações passivas ou sensíveis têm uma relação compreensível com
os objetos, e os princípios que derivam da natureza de nossa alma têm
uma validade compreensível para com todas as coisas enquanto devem
ser objetos dos sentidos".6
O segundo caso possível de correspondência entre uma representação
e seu objeto é aquele em que a representação seria criadora do objeto que
ela representa:

Do mesmo modo, se o que em nós se chama representação fosse ativo em face


do objeto, isto é, se O objeto pudesse dessa maneira ser produzido, tal como se
concebe O conhecimento divino como arquétipo das coisas, então a conformidade
(die Conformitiit) das representações com os objetos também seria inteligível.

A "conformidade" seria não apenas a correspondência regulada entre o


efeito (o objeto) e sua causa (a representação), mas também, em maior ou

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" , r () J'Clf)I n OH Jlll (l n

!llt:'1101
.
gt.lH,1 semelhança
0 , '
do objeto com a representação divina, que é
. cu arquc.:tipn.
1ortanto, conclui Kant, compreendemos que uma representação pos-
sa oncordar com seu objeto tanto na hipótese de um intellectus archetypus,
intele to divino criando seus objetos, quanto no caso de um intellectus
ect ,pus, tal como o intelecto humano, em que as representações sensíveis
são causadas pelos objetos que afetam os sentidos e, por sua vez, suscitam
no entendimento a formação dos conceitos empíricos, de que se deve
exigir coerência lógica. 7 Mas o problema posto pelos "conceitos intelectuais
puros", admitidos pela Dissertação, é que não correspondem a nenhum
destes dois casos: ne1n surgem por comparação e abstração dos objetos
dos sentidos, nem criam seu objeto, visto serem conceitos não de um ín-
tellectus archetypus, mas de nosso entendimento finito:

Os conceitos puros do entendimento não devem, pois, ser abstraídos das impres-
sões dos sentidos, nem exprimir a receptividade das representações pelos senti-
dos, mas ter sua fonte na natureza do espírito; e não são, entretanto, nem o
efeito do objeto, nem produzem o objeto. Na Dissertação, fiquei satisfeito em
exprimir a natureza das representações intelectuais de maneira puramente ne-
gativa, dizendo que elas não eram modificações do espírito pelos objetos. Mas,
sobre como é possível uma representação que se reporte a um objeto, sem ser de
alguma maneira afetada por ele, fiquei calado. 8

Kant rejeita qualquer recurso à garantia divina, uma vez que esse tipo de
solução apresenta os inconvenientes afins de círculo vicioso e misticismo. 9
Poderíamos esperar que ele se ativesse, em seguida, apenas à relação re-
presentação/objeto que admitira como compreensível no caso de nosso
entendimento finito, isto é, a afecção de nosso espírito pelas coisas exte-
riores, e que recusasse a possibilidade, afinal de contas, de todo "conceito
intelectual puro': Mas essa alternativa é excluída na Carta de modo explí-
cito. Kant anuncia estar em vias de estabelecer uma classificação dos con-
ceitos puros inspirada em "alguns princípios pouco numerosos do enten-
dimento", de modo que não há dúvida, portanto, quanto à possibilidade
de tais conceitos "puramente intelectuais': 0 que nos permite entender que
Kant também está em vias de un1'aso · Juçao
:- ·
quanto à maneira pela qual se
pode pensar a relação desses conceitos com os objetos dados.

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SfNTP.Se e 1ufzo

Em sua forma definitiva, o princípio dessa solução é formulado em


1781, no parágrafo 14 da Dedução transcendental das categorias. Ele se
ba eia em uma transformação radical dos termos do problema geral pro-
posto na Carta a Herz.

Interiorização da relação entre representação e objeto no campo da


representação: O parágrafo 14 da Dedução transcendental das categorias

No parágrafo 14 da Dedução transcendental, Kant reitera uma alter-


nativa análoga à que anuncia na Carta a Herz, mas com uma mudança de
vocabulário: trata-se não mais de uma relação causal entre o objeto e a
representação, mas de uma relação em que ou o primeiro "torna possível"
a segunda ou, ao contrário, a segunda "torna possível" o primeiro. Ora, a
substituição do vocabulário da causalidade por aquele das condições de
possibilidade não faz assinalar senão uma transformação mais fundamen-
tal: a passagem de uma relação entre dois termos heterogêneos, um "in-
terior" à representação, outro "exterior': para uma relação entre dois termos,
um e outro interiores ao que se poderia denominar o campo da represen-
tação. Além disso, a nós se apresenta não mais uma alternativa entre duas
relações causais de direções opostas, mas a conjugação de duas relações
complementares, passíveis de constituir em conjunto a "relação de uma
representação com seu objeto". Com essa transformação do problema,
Kant delimita desde logo o terreno de sua solução:

Não há senão dois casos possíveis em que uma representação sintética e seus
objetos podem concordar ou estar em uma relação mútua de maneira necessária
e, por assim dizer, encontrar-se. Ou é o objeto que torna possível a representação,
ou é a representação que torna possível o objeto. No primeiro caso, a relação só
pode ser empírica e a representação jamais é possível a priori. Esse é o caso dos
fenômenos no que diz respeito ao que neles pertence à sensação. No segundo
caso, uma vez que a representação nela mesma (pois não se trata aqui da causa-
lidade pela vontade) não produz seu objeto quanto à sua existência, ela é, todavia,
determinante a priori no que diz respeito ao objeto se, tão somente por ela, é
possível conhecer algo como um objeto. (A 92/B 125-126)

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KANT E O PODER DE JU LGAR

A primeira das duas relações consideradas se refere ao caso ern que


"o objeto torna possível a representação":"[ ... ] tal é o caso dos fenômenos
no que diz respeito ao que neles pertence à sensação': O "caso" é ambíguo:
"Os fenômenos, no que diz respeito ao que neles pertence à sensação~
de, em ser considerados como representações "tornadas possíveis" pelo
objeto, ou como objetos que "tornam possível" a representação? As duas
interpretações são possíveis e bem poderia ser proposital essa ambigui-
dade. A primeira leitura, que faz dos fenômenos (no que diz respeito ao
que neles pertence à sensação) "representações tornadas possíveis pelo
objeto", retoma a lição da Estética transcendental: só temos representação
do objeto na medida em que este "afeta o espírito de certa maneirá'; a
sensação é "o efeito de um objeto sobre a capacidade representativa na
medida em que somos afetados': e, por sua vez, os fenômenos, de que a
sensação constitui a "matéria': são "simples modificações de nossa intuição
°
sensível" (nas formas de nossa receptividade, o espaço e o tempo ). 1 Com-
preende-se, pois, que o fenômeno, "quanto a isso que nele pertence à sen-
sação': possa ser dito representação tornada possível pelo objeto que afeta
nossa capacidade representativa. A relação permaneceria próxima, então,
da que constituía o primeiro termo da alternativa na Carta a Herz, em que
Kant concluía por uma conformidade possível da representação a seu ob-
jeto (exterior à representação) como conformidade do efeito à causa. Mas,
na Crítica, a Dedução transcendental das categorias terminará por interditar
o uso das categorias além do registro dos fenômenos, algo que aí pode
explicar a fórmula prudente com que se contenta Kant: o objeto (exterior
à representação ou ao fenômeno) "torna possível" a representação, mas
não é determinado como sua "causa", em relação à qual a representação
seria "conforme" como seu efeito.
Mas essa primeira interpretação não é a única possível. Pois, se é ver-
dade que a Estética transcendental parte da referência a um objeto em si
como fundamento de toda representação, agora não mais se trata da rela-
ção direta com esse objeto exterior à representação, ao se chegar à Dedução
transcendental das categorias e apresentar o problema da "relação de uma
representação sintética com seus objetos': 11 A Estética transcendental es-
tabelece que um objeto só está presente à nossa representação na medida
em que nos "afeta de certa maneira"; mas o objeto de que se ocupa a De-

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SfNTeSE E JU Í ZO

duçào transcendental das categorias não mais é o objeto "em si", é antes o
objeto-da-representação, o objeto de uma intuição sensível ou fenômeno:
é apenas em relação a esse objeto "como fenômeno" que se pode pôr o
problema da "relação de uma representação sintética com seus objetos".
A segunda leitura possível da relação em que "o objeto torna possível
a representação", portanto, é a seguinte: os fenômenos, "quanto a isso que
neles pertence à sensação': são eles mesmos objetos que "tornam possíveis"
certas "representações sintéticas", por exemplo, as representações de su-
cessão, de justaposição, de conjunção constante e, pode ser o caso também,
de relação causal. A relação de tais representações sintéticas com seu ob-
jeto "seria sempre empírica e a representação jamais seria possível a prio-
ri". Se o conceito de causa fosse "tornado possível" pelos fenômenos dessa
maneira, deveríamos renunciar a qualquer generalidade a seu respeito que
não fosse a generalidade "comparativà: evocada pouco antes por Kant, ao
final do parágrafo 13 da Dedução. 12
Vê-se que, assim interpretada, a relação em que "o objeto torna pos-
sível a representação" é uma relação interna ao próprio registro da repre-
sentação. Ela não mais é uma relação de tipo causal entre coisas existentes
"em si" e representações (mentais), é antes uma relação imanente ao espí-
rito, entre representações dadas de modo imediato e singulares, isto é,
fenômenos como objetos da intuição empírica, e representações formadas
por aquilo que a Dissertação denominava o "uso lógico do entendimento",
isto é, pela reflexão discursiva sobre esse dado. Se os objetos (os fenômenos)
não fazem senão "tornar possíveis" as representações sintéticas ou de li-
gações dos fenômenos, é porque eles são condições necessárias, mas não
suficientes, dessas representações; é preciso que se acrescentem aos pri-
meiros, para que se formem as segundas, os atos mentais que podemos
caracterizar, de maneira provisória, como atividades discursivas de com-
paração e generalização.
Ora, a consideração desses atos do espírito é o que dá sentido ao se-
gundo aspecto visado por Kant na relação entre representação e objeto:
trata-se do caso em que "a representação torna possível o objeto". Nesse
segundo caso,"[ ...] visto que a representação nela mesma (pois não se
trata aqui de sua causalidade pela vontade) não produz seu objeto quanto

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KANT O PODER DE JULGAR

à sua existência, ela é, todavia, determinante a priori se, tão somente por
ela, é possível conhecer algo como um objeto" (A 92-93/B 125).
A relação aí considerada nada mais possui em comum com o segun-
do termo da alternativa na Carta a Herz. O objeto não é distinto da repre-
sentação, é objeto representado que somente a representação "torna pos-
sível", não em sua existência (que continua dependente da presença de um
em si, estranho a toda representação), mas em seu caráter de objeto repre-
sentado ou do que é para a representação. Mas essa cláusula não tem
sentido a não ser que se aceite considerar que o próprio termo represen-
tação é reavaliado. Aí a "representação" não mais é resultado (como o eram
as representações sintéticas "tornadas possíveis pelo objeto» no caso ante-
rior), é antes ato de representação ou, no mínimo, disposição à represen-
tação. Se a representação é assim considerada, pode-se dizer que o objeto
(por exemplo, o fenômeno em questão no caso anterior) só é possível se
há representação, ou seja, se há uma "disposição à representação" que o
constitui como objeto da representação: a conjunção como então assinala,
mais precisamente, a interiorização do objeto no campo da representação.
Assim é possível que a disposição à representação tenha características
próprias que determinam as características do objeto "como" objeto inte-
riorizado na representação.
A Estética transcendental dava o primeiro exemplo dessa dependência
do objeto "como" objeto representado em face de uma disposição à repre-
sentação: o objeto era tornado possível "como" fenômeno por nossa recep-
tividade sensível, tendo por formas o espaço e o tempo. Assim também
são as formas a que Kant se refere para ilustrar o caso em que "apenas a
representação torna possível o objeto': A primeira das condições "somen-
te sob as quais o conhecimento de um objeto é possível" é a intuição, que
depende de uma aptidão à representação ( Vorstellungsfiihigkeit) receptiva,
cujas formas são o espaço e o tempo:

Há duas condições somente sob as quais o conhecimento de um objeto é possí-


vel, primeiramente, a intuição, pela qual o objeto é dado, mas apenas como fe-
nômeno 1.. . ]. Ora, é d aro, pelo que precede, que a primeira condição, isto é,
aquela somente sob a qual os objetos podem ser intuídos, est.\. de fato, a priori
no espírito como fundamento dos objetos quanto à sua forma . Com essa condi-
ção formal da sensibilidade, então, oncordam ne essarhunente todos os fenô-

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S fN'rn SE P, JUÍZO

. . que .não é senão po r ta I cond tçao


menos, visto ' _ que eles aparecem, isto é, podem
ser empmcamente intuídos e dados. (A 92 _931B 125 )

Do fato do "acordo" entre a representação e o objeto extraímos então uma


identidade completa: a interiorização na representação é a constituição do
objeto "como" objeto da intuição sensível (receptiva). A intuição é repre-
sentação "singular e imediata", em que o objeto e a intuição do objeto são
imediatamente idênticos. Assim, o espaço e o tempo, formas da recepti-
vidade, imprimem caráter espacial e temporal aos fenômenos, visto que o
espaço e o tempo são aquilo pelo qual o objeto é possível "como" fenôme-
no: objeto (indeterminado, isto é, ainda não determinado por conceitos)
de uma intuição empírica.13
Mas a intuição, ou a aptidão à intuição sensível, não é senão a primeira
das "duas condições sob as quais o conhecimento de um objeto é possível".
Quando Kant escreve, no texto supracitado, que por ela "o objeto é dado,
mas apenas como fenômeno", a restrição pode pretender, em primeiro lugar,
distinguir o fenômeno do objeto em si, estranho a toda representação,
reservando com isso as formas do espaço e do tempo somente ao fenôme-
no, "objeto indeterminado da intuição empírica': Mas ela também preten-
de distinguir, no registro da representação, o objeto "apenas como" fenô-
meno do objeto "como" objeto. Em outras palavras, a restrição pretende
distinguir o objeto que se poderia denominar pré-objetivo (objeto inde-
terminado da intuição empírica, de imediato idêntico a essa mesma intui-
ção, portanto anterior a toda distinção entre a representação e o objeto da
representação) e o objeto "objetivo" ou "correspondente à" intuição. Para
que essa distinção seja possível, ou "para o conhecimento de um objeto
como objeto': é preciso que intervenha, segundo o texto citado, um segun-
do tipo de representação: os conceitos. Daí ser preciso considerar essa
segunda condição, omitida na citação acima: "Há duas condições somen-
te sob as quais o conhecimento de um objeto é possível: primeira, a intui-
ção, pela qual O objeto é dado, mas apenas como fenômeno; segunda, o
conceito, pe]o qual é pensado um objeto que corresponde a essa intuição".
A distinção entre o objeto "dado na intuição, mas apenas como fenô -
meno': e objeto "correspondente à intuição", que somente os conceitos
O
permitem pensar, já estava presente na Dissertação de 1770, que denomi-

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KA T O POn R DE Jll tGAR

nava appareni-ia O objeto imediato da intuição sensível e phaenomenon,


0
objeto "que corresponde à intuição',. Pensar um objeto correspondente à
intuição sensível (objeto distinto do objeto de imediato presente à intuição
ou apparentia) era algo que se apresentava como pertencente ao "uso ló-
gico do entendimento',: ao comparar nossas intuições, notamos identida-
des e diferenças, tratamos de inscrevê-las sob conceitos gerais subordina-
dos uns aos outros, e distinguimos das meras aparências (apparentiae)
aquilo que Leibniz teria denominado phaenomena bene fundata . Esse
conhecimento dos phaenomena, por reflexão discursiva sistemática sobre
as apparentiae, era denominado experiência:

Nos conhecimentos sensíveis e fenômenos (phaenomenis), o que precede o uso.


lógico do entendimento chama-se aparência (apparentia), mas o conhecimento
refletido que nasce de muitas aparências comparadas pelo entendimento chama-
-se experiência. Da aparência à experiência não há outra via senão a reflexão
segundo o uso lógico do entendimento. Os conceitos comuns da experiência são
ditos empíricos e seu objetos,fenômenos (phaenomena); e as leis tanto da expe-
riência quanto, em geral, de todo conhecimento sensível chamam-se leis dos
fenômenos. 14

Esse apelo às explicações da Dissertação ajuda a compreender o sentido


da distinção, no parágrafo 14 da Dedução transcendental, entre o objeto
da intuição, isto é, o objeto "como fenômeno': e o objeto "como objeto" ou
"correspondente à intuição". O "conceito pelo qual se pensa um objeto que
corresponde à intuição" são quaisquer dos conceitos que se formam de
maneira empírica pela reflexão generalizante e que permitem distinguir
apparentia e phaenomenon, o objeto "simplesmente como fenômeno" (ob-
jeto indeterminado de uma intuição empírica) e o objeto "como objeto~
"correspondente à intuição". Por exemplo: instruídos pela experiência (a
comparação sistemática de nossas intuições sensíveis), reconhecemos na
forma que percebemos à distância um objeto (phaenomenon) a que pode-
mos atribuir o conceito de torre e assim o distinguimos da apparentia de
imediato presente à nossa intuição (forma retangular, sem profundidade,
em diferentes tons de marrom, destacando-se no horizonte ao redor...).
Assim como existem condições a priori, isto é, o espaço e o tempo.
formas de nossa receptividade, que constituem nossa aptidão a represen-

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S fN TP.SE P. JUÍZO

taro objeto "como fenômeno" (objeto indeterminado de uma intuição


empírica), pode-se perguntar se existiriam condições a priori que imprimi-
riam sua forma ao objeto, agora no que diz respeito a nossa aptidão a re-
presentá-lo não mais apenas "como" fenômeno, mas antes "como" objeto.
Se assim fosse, a exemplo do objeto "simplesmente como fenômeno", que
"se tornaria possível" pela forma de nossa "disposição à representação" que
é a receptividade sensível, também o objeto "como objeto" (distinto do
fenômeno) «tornar-se-ia possível" pela forma de nossa "disposição à repre-
sentação" que é a atividade do entendimento, à qual a Dissertação denomi-
nava seu "uso lógico" (seu uso na generalização empírica de nossas repre-
sentações sensíveis). Em termos mais precisos, Kant se propõe a considerar
a hipótese de que esse papel das condições a priori da representação de
um objeto "como" objeto seria desempenhado pelas categorias, isto é, pe-
los conceitos puros do entendimento, cuja possibilidade é desde a Carta
a Herz posta em questão:

É preciso agora se perguntar se não são pressupostos também conceitos a priori


como condições somente sob as quais algo pode, se não ser intuído, ao menos
pensado como objeto em geral; pois assim todo conhecimento empírico dos
objetos é necessariamente conforme a seus conceitos, visto que, sem sua pressu-
posição, nada é possível como objeto da experiência. (A 92/B 125-126)

"Uso LÓGICO DO ENTENDIMENTO" E CATEGORIAS

Discrimina-se, portanto, a estratégia delineada para a Dedução transcen-


dental das categorias. A solução do problema posto desde a Carta a Herz
consistirá em identificar dois aspectos do entendimento que na Disserta-
ção permaneciam separados: de um lado, as "leis do espírito", de que sur-
gem os conceitos puros do entendimento; de outro, o "uso lógico do enten-
dimento" nas subordinações das representações sensíveis sob "conceitos
comuns", uso graças ao qual "um objeto é pensado para os fenômenos': É
o projeto dessa unificação que se trata de ler em filigrana no enunciado
programático do parágrafo 14 da Analítica transcendental:

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K T F O PODFR O J 1.G R

1... ] 0 alidadc objetiva da, alegoria. , orn o on cito a priori, repousará sobre
0 fa tn ck que , omcnlc por ela, a cxperien ia possível (quanto à forma do pen-
, amcnto ). Pni. a., im cios . e reportam necessariamente e a priori aos objetos da
e ·prri~ncia. vi. to que não é senão por elas que um objeto da experiência pode
cr pen. adn. (A 93/B 126)

É preciso aí entender por experiência o que a Dissertação designava


por esse termo: "conhecimento refletido que nasce de várias aparências
comparadas pelo entendimento': 15 A Dissertação considerava, de um ]ado,
que elaboramos nossos conhecimentos empíricos ao formar, por indução,
conceitos que subordinamos uns aos outros segundo as regras do "uso
lógico do entendimento"; de outro, que possuímos "conceitos puros~ re-
sultantes "somente das leis do espírito, quando refletimos sobre o sensíver
Graças a esses conceitos puros, segundo a Dissertação, podemos fazer um
"uso real" de nosso entendimento na metafísica, isto é, no conhecimento
puramente intelectual do ser em geral, ao proceder apenas pela análise dos
conceitos puros. Mas os conceitos puros poderiam ser aplicados também
ao sensível mediante o uso lógico do entendimento: é assim que conceitos
puros como causa, substância, possibilidade, necessidade etc. poderiam
se aplicar aos fenômenos. 16 De cada um desses dois usos dos conceitos
puros, a Carta a Herz sublinhava o caráter problemático. Se as "leis do
espírito", de que surgem os conceitos puros do entendimento, não são
senão as leis de seu uso lógico, então bem se poderia ter a chave do proble-
ma da possibilidade de referir esses conceitos aos objetos. Pois todo obje-
to da experiência (todo phaenomenon correspondente a nossas intuições
sensíveis) é pensado segundo as regras do "uso lógico do entendimento"
(subordinações imediatas de conceitos comuns por juízos e mediatas, por
silogismos): caso se possa mostrar que os conceitos puros do entendimento
não são senão essas mesmas regras, então os phaenomena serão com isso
necessariamente submetidos a eles.
Mas esse primeiro passo a uma possível solução é insuficiente. Pois a
suspeita que recaía sobre os "conceitos puros" pode ser transposta ao pró-
prio "uso lógico do entendimento": Por que lhe seriam conformes os te-
nômenos? Por que não seria inteiramente arbitrária a aplicação das fórmas
lógicas de nosso pensamento discursivo aos fenômenos? Ou, por que essa
apli ação não resultaria das mesmas tendên ias subjetivas procedentes da

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\fl'ITF~f, JIIÍ70

1111 ina~-ão e do hábito (retorno ao mpmsmo ti o), do quai H m


fa7i a fo nte da ideia de cau alidade?. a o se queira d ar cr di b ili d a d
Yia pro urada, é preci o algo na natureza dos próprios fenômenos qu o~
fa ncordar com as formas dou o lógico do entendimento e também
com a. ategoria , se estas não são enão as própria forma dou o lógk
d entendimento. É preciso mostrar, portanto, que es as forma ão con-
di õe · não apenas da ubordinação dos conceito segundo o u o lógk
ma. da própria apresentação dos fenômenos na intuição sensível, apresen-
tação que faz desses fenômenos objetos passíveis de serem refletido ob
onceitos. Tal é solução anunciada no parágrafo 14 como o "princípio da
dedução transcendental de todos os conceitos a priori":

A dedução transcendental de todos os conceitos a priori tem, pois, um principio


segundo o qual se deve guiar toda a investigação: a saber, que eles devem er
reconhecidos pelas condições a priori da possibilidade das experiências (seja da
intuição que neles se encontra, seja do pensamento). Os conceitos que fornecem
o fundamento objetivo da possibilidade da experiência são, por isso me m o,
necessários. (A 94/B I 26; itálicos nossos)

Assim, o que denominamos, a propósito da relação entre representação e


objeto, "a interiorização no campo da representação", permite reformular
o problema da relação entre os conceitos puros do entendimento e os
objetos dados, de modo a delinear a via de uma possível solução. O para-
doxo, porém, é que essa solução, cuja demonstração a Dedução transcen-
dental das categorias supostamente fornece, é na verdade reivindicada
antes que se desenvolva a dedução transcendental: é reivindicada, de fato,
não apenas na forma programática que acabamos de ver no parágrafo 14,
cujo propósito é, de modo explícito, servir de introdução à dedução tran -
cendental em sentido próprio, mas, já antes, desde a "dedução metafísica"
das categorias, no parágrafo 1O. De uma densidade excepcional, o pará-
grafo J o funda O paralelismo entre a tábua das categorias e a tábua da ~
forma lógicas do juízo na afirmação de que "a mesma função" go ern ,
de um lado, a unidade dos conceitos no juízo e, de outro, a unida it> 1
priori do dado sensível "representada de maneira gemi"' J elas rntegori .
Ora, ei,sa própria afirmação resulta de uma érie de as -erçõc , que, p )f ·ua
vez, erão objeto de uma tentativa J e demonstração 1n P e luç,w t ,111 , · n-

bl

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KANT F, O POOBR OF I LUAR

dental da. atcgorias. Em primeiro lugnr, Kant afirma que antes de to


onceito é necessá ria uma síntese (ligação) do diverso da intuição sensf1tdo
a priori (alínea I e 2 do§ JO): essa tese será objeto da exposição da "trí ~
sínte e" na Dedução transcendental de 1781 e será reiterada, com m:j:
brevidade, no início da Dedução de 1787. 17 Em segundo lugar, Kant afirrna
que a unidade dessa síntese é representada pelos conceitos a priori que são
as categorias (alíneas 3, 4, 5 do§ 10): essa afirmação será demonstrada,
por vias distintas, em cada uma das duas deduções transcendentais.'ª En-
fim , esses conceitos não são senão as funções de unidade do juízo aplica-
das à síntese a priori do múltiplo da intuição (alínea 6): os parágrafos 19
e 24 da segunda dedução transcendental mostrarão isso (que permanece
implícito, contudo, na dedução de 1781, o que é a razão de sua reescrita,
a nosso ver, na edição de 1787). Uma vez que essas diferentes teses intro-
duzem o estabelecimento da tábua das categorias segundo o "fio condutor"
da tábua das formas lógicas do juízo, é preciso concluir que o paralelismo
das duas tábuas já supõe aceita, em certa medida, a dedução transcenden-
tal das categorias. Mas, de modo recíproco, a dedução transcendental das
categorias é de antemão orientada pela afirmação de uma identidade de
origem entre as formas lógicas do juízo e os conceitos puros do entendi-
mento, afirmação em favor da qual o paralelismo das duas tábuas, expos-
to no § 1O, ocupa o lugar de um argumento provisoriamente suficiente.
Se tem cabimento lamentar a extrema dificuldade imposta à leitura
por essa apresentação circular de um argumento já complexo por si mes-
mo, é preciso reconhecer, porém, que o método adotado é conforme ao
que descreve Kant no Prefácio à segunda edição da Crítica, já que "a razão
não vê senão aquilo que ela mesma produz segundo seu projeto" (B XJII).
A dedução transcendental das categorias se baseia na pressuposição de
que os "conceitos puros do entendimento" provêm da mesma "lei do en-
tendimento" que as formas lógicas da subordinação dos conceitos, isto é,
as formas lógicas do juízo. Essa pressuposição, que deve permitir resolver
a maior dificuldade descoberta por Kant na Dissertação, é exposta antes
de se encontrar sua justificação na dedução transcendental, justificação
que também será sua explicação desenvolvida. É também por isso que 0
paraJeJismo das categorias e das formas lógicas do juízo só é afirmado na
dedução metafísi a omo "fio condutor" ou uma "indicação" (Leitfi1defl).

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fNTf. e rufao

S quando levada a efeito a dedução transcendental das categorias é que


le poderá se justificar como verdadeira identidade da "função do enten -
dimento" em operação na síntese do sensível e nas formas lógicas do juíw.19

A SÍNTESE

O parágrafo 1Oda Analítica transcendental tem por termo-chave a palavra


síntese. Ela já se define na abertura do parágrafo:

O espaço e o tempo contêm um diverso da intuição pura a priori, mas pertencem,


todavia, às condições da receptividade de nosso espírito, somente sob as quais
este pode receber representações de objetos, e devem sempre afetar, então, o
conceito desses objetos. Mas a espontaneidade de nosso pensamento exige que
esse diverso seja, de certa maneira, primeiramente percorrido, reunido e ligado
para formar um conhecimento. Esse ato chamo de síntese. / Entendo por síntese,
pois, no sentido mais geral, o ato de juntar diferentes representações umas com
as outras e compreender (begreifen) sua diversidade num conhecimento. Tal
síntese é pura se o diverso é dado não empiricamente, mas a priori (como o
diverso no espaço e no tempo). (A 77/B 102-103)

Kant indica com clareza que pretende conferir sentido inédito ao ter-
mo síntese. Este é apresentado como indissociável da doutrina do espaço
e do tempo exposta na Estética transcendental e por duas vezes o caráter
idiossincrático da definição é sublinhado ("chamo de síntese [...]; entendo
por síntese [... ]"). Ora, se a definição aí apresentada é inédita, de fato, a
exemplo do papel que Kant pretende atribuir ao ato de síntese, resta
que se introduz com esse termo, de modo implícito, a referência a um
modelo de pensamento em cuja fecundidade Kant jamais deixou de
pensar desde os textos pré-críticos: o modelo exposto pelo pensamento
matemático. 20
É no Preisschrift publicado em 1764 (Investigação sobre a evidência
dos princípios da teologia natural e da moral) que se encontra a primeira
ocorrência significativa do termo síntese, por ocasião, precisamente, de
uma exposição da diferença entre o pensamento matemático e o pensa-
mento filosófico. As matemáticas, escreve Kant, formam seus conceitos de

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K T F O PODER O E JULG AR

modo arbitrário pela síntese de conceitos simples; a filosofia, por sua vez
procede apenas pela análise de conceitos complexos, cujas notas caracte.'
rísticas percebidas de modo confuso ela deve tornar claras.21 É certo que
a síntese pela qual se formam os conceitos matemáticos está longe do que
será, em 1781, a síntese cuja explicação abre o parágrafo 10 da Analítica
transcendental: trata-se, no texto de 1764, não da ligação de um diverso
sensível, mas da ligação arbitrária de conceitos no entendimento. A síntese
é concebida, então, sob o modelo de uma combinatória de tipo leibnizia-
no, da mesma forma que é de inspiração leibniziana a ideia de que a cla-
reza e a simplicidade dos conceitos matemáticos permitem o uso de signos
sensíveis para afigurar inconcreto sua utilização. A despeito disso, tem-se
aí o primeiro germe do uso crítico do modelo matemático da síntese.
De fato, esse modelo adquire significação e dimensão novas quando,
com a Dissertação de 1770, a combinação ou composição arbitrária dos
conceitos nas matemáticas torna-se indissociável do engendramento de
seu objeto na intuição sensível pura, isto é, nas formas do espaço e do
tempo. Então se anuncia o uso do termo síntese que se reencontrará no
parágrafo 10 da Analítica transcendental, em que a síntese significa não
mais a mera combinação de conceitos para formação arbitrária de um
conceito complexo, mas também a composição de uma multiplicidade
dada nas formas a priori da intuição sensível. É graças a essa composição
que se formam, segundo a Dissertação, os conceitos de número e mesmo
todos os conceitos matemáticos, porquanto estes são sempre conceitos
de quantidades:

Pode-se tornar inteligível a noção de quantidade do espaço ele mesmo sem re-
feri-lo a uma unidade de medida e sem exprimir a quantidade por um número?;
ora, o que é o número senão uma multiplicidade da qual se adquire o conheci-
mento distinto por enumeração, isto é, adicionando sucessivamente, em um
tempo dado, uma unidade a outra ?22

Contudo, Kant ainda não denomina síntese a composição do múltiplo


a priori assim descrita. É preciso esperar pela Crítica para que essa com-
posição receba o nome de síntese, ao mesmo tempo em que se vai distin·
gui-la, como ligação por composição, da ligação do múltiplo empírico pelo
nexus sob a regulação das categorias dinâmicas. 23 Na Dissertação, em con·

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SfNrnsP. P. 1ufzo

trapartida, Kant reserva o uso do conceito de síntese apenas à elucidação


do conceito de mundo na seção I, conceito pelo qual se pensa a ligação
das substâncias singulares em um todo, quer essa ligação seja pensada
mediante o puro intelecto (mundo inteligível), quer sob as condições es-
paçotemporais da intuição sensível (mundo sensível). Ao menos o paren-
tesco entre a síntese pela qual se engendra o objeto do conceito de mundo
e o engendramento do múltiplo sob a direção de um conceito matemático,
esse parentesco é marcado por se denominar a primeira, quer puramente
intelectual, quer efetuada sob condições sensíveis, síntese quantitativa, de
modo que ela se distingue da síntese qualitativa, em que se pode reconhe-
cer o método sintético dos clássicos. 24 Além disso, a síntese quantitativa do
conceito de mundo sob condição sensível é vista, de modo explícito, como
similar à que governa os conceitos matemáticos. Kant nota que não se
pode terminar essa síntese, assim como não se pode engendrar um núme-
ro infinito, porquanto o engendramento do múltiplo pode ser perseguido
de maneira indefinida tanto de um lado como de outro. 25
Quando Kant expõe, na Carta a Herz de 21 de fevereiro de 1772, o
problema da possibilidade de se referir aos objetos dados os conceitos
puros do entendimento, ele nota que o pensamento matemático escapa
dessa dificuldade: seus conceitos são a priori e, ao mesmo tempo, referem-
-se a seus objetos sem dificuldade. Ocorre que os objetos matemáticos, à
diferença dos objetos da metafísica, não se dão de modo transcendente ao
pensamento, mas se engendram na intuição pura:

Se as representações intelectuais repousam sobre nossa atividade interna, de que


vem o acordo, que se lhes supõe, com os objetos que não são, porém, produzidos
por elas, e se os axiomata da razão pura concernem a esses objetos, como con-
cordam com estes, sem que esse acordo tenha requerido a ajuda da experiência?
Nas matemáticas isso pode ser feito, pois os objetos são apenas grandezas e só
podem ser representados como grandezas pelo fato de que podemos engendrar
sua representação tomando a unidade várias vezes. Por conseguinte, os concei-
tos de grandezas podem ser produtivos por eles mesmos (selbsttiitig) e seus prin-
cípios podem ser elaborados a priori. Mas, na relação das qualidades - Como
pode meu entendimento, supostamente, constituir por si mesmo os conceitos
completamente a priori das coisas, com os quais elas devem necessariamente
concordar?; Como pode, supostamente, projetar princípios reais concernentes

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KA T O P O D .R D F JU l.(; AR

à ua possibilidade, com os quais a experiência deve fidedignamente concorda,


e, 110 entanto, que são independentes da experiência? - , essa questão deixa sern.
pre pairar uma obscuridade sobre nosso poder de entendimento: De onde lht
· mesmas 726
vem esse acordo com as coisas .

Encontra -se no parágrafo 13 da Dedução transcendental o mesmo


contraste entre os conceitos do pensamento matemático, cuja validade a
priori não necessita de uma dedução, e os conceitos puros do entendimen-
to, cuja validade para quaisquer objetos é um problema:

Em geometria [... ] os objetos são dados pelo conhecimento ele mesmo a priori
(segundo a forma) na intuição. Ao contrário, com os conceitos puros do entendi~
mento surge a necessidade imperativa de procurar uma dedução transcendental
[... ], visto que eles não se fundam sobre a experiência, mas também não podem
apresentar a priori na intuição um objeto sobre o qual fundariam, antes de qual-
quer experiência, sua síntese [...]. (A 87-88/B 120)

O exemplo das matemáticas sugere ao menos que a possibilidade de


uma relação entre conceitos puros e objetos dados se tornaria compreen-
sível caso se pudesse supor, entre os conceitos e os fenômenos, uma relação
semelhante ou ao menos comparável àquela entre os conceitos matemá-
ticos e seus objetos, engendrados pela adição sucessiva de unidade a uni-
dade na intuição pura, isto é, pela síntese no sentido original que se pode
atribuir a esse termo desde a Dissertação: não mera ligação arbitrária de
conceitos no entendimento, mas ligação de uma multiplicidade sensível
sob a regra de um conceito ou, ainda, de uma ligação de conceitos.
Portanto, é preciso ver no termo síntese que reencontramos no pará-
grafo 10 a herança de um longo amadurecimento da reflexão sobre o exem-
plo matemático e seus limites. Quanto ao sentido da relação enunciada
nesse parágrafo entre a síntese do múltiplo sensível e as categorias, somen·
te a elucidação da dedução transcendental permitirá compreendê-lo com
certo grau de clareza: de novo a exposição preliminar antecipa uma prova
de que não faz senão delinear o projeto.

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SfNrese e rufzo

SÍNTESE E JUÍZO. As DUAS VIAS DA DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL


DAS CATEGORIAS

Na tentativa de solução do problema imposto a Kant pelas categorias,


pudemos seguir, portanto, duas linhas de argumentação. A primeira nos
le, ou a considerar o que Kant denominava na Dissertação "uso lógico do
entendimento": a subordinação discursiva de conceitos gerais formados
de maneira empírica. Na medida em que apenas por essa subordinação de
conceitos se podem pensar os objetos correspondentes às intuições (os
phaenomena correspondentes às apparentiis), o problema da relação entre
os conceitos puros do entendimento e os objetos empíricos podia ser re-
solvido pela identificação dos conceitos puros às próprias formas da su-
bordinação dos conceitos empíricos. Uma segunda linha de argumentação
nos levou a considerar o tema da síntese associado a outro modelo de uso
do entendimento, aquele do pensamento matemático e de seu engendra-
mento a priori das multiplicidades fornecendo a seus conceitos o objeto
delas. A exposição programática do parágrafo 10 da Analítica transcen-
dental anuncia que todo argumento da dedução transcendental das cate-
gorias se baseará na tentativa de conjugar dois modelos: o modelo da re-
flexão generalizante e o modelo da síntese a priori do múltiplo sensível.
Ambos deverão intervir, de uma ou de outra maneira, na regulação da
própria percepção dos fenômenos, para que seja pensável a eventual relação
dos conceitos a priori com os objetos empíricos.
A dificuldade que Kant encontrou para articular esses dois modelos
de pensamento - o modelo discursivo-reflexivo e o modelo intuitivo-
-construtivo -, assim como suas respectivas relações com a constituição
da percepção dos objetos, é a razão principal, a nosso ver, da nova reda-
ção da Dedução transcendental. A Dedução de 1781 privilegia, quase de
maneira exclusiva, o modelo da síntese em detrimento do modelo lógico-
-discursivo. Em contrapartida, a Dedução de 1787 atribui o papel decisivo
à forma lógica do juízo, em relação à qual se ordena a síntese a priori do
sensível. Assim, a segunda dedução, por sua natureza, parece mais apro-
priada que a primeira para esclarecer a relação das formas lógicas com as
sínte es sensíveis, relação que no parágrafo 1O Kant dá como justificativa
do e tabelecimento da tábua das categorias segundo o "fio condutor'' da

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KA T E O PODE R nF. JULG AR

tábua das formas lógicas do juízo. C ontudo, mantém -se todo interesse,
conforme Kant nos encoraja no Prefácio à segunda edição da Crítica, em
tomar a Dedução de J781 como uma introdução necessária à de 1. 787, Por
, árias razões. Em primeiro lugar, porque a atenção à exposição da "tripla
síntese" nos permite considerar a dedução transcendental em seu solo pri-
meiro, aquele do confronto com a concepção empirista da percepção e seus
objetos, em particular o do confronto com o empirismo cético de Hume.
Em segundo lugar, porque nesse confronto desempenha papel central,
crescente na medida em que se avança da primeira à terceira das "sínteses~
o modelo matemático da construção, oposto por Kant ao modelo empirista
da associação das representações sensíveis. Essa onipresença do modelo
matemático na Dedução de 1781 é uma força e, ao mesmo tempo, uma
fraqueza. 1) É uma força porque sublinha a unidade da Analítica transcen-
dental e da Estética transcendental, da doutrina das categorias e das dou-
trinas do espaço e do tempo; é ainda uma força porque, ao ligar a dedução
transcendental das categorias à longa reflexão de Kant sobre a natureza do
pensamento matemático, faz da exposição da "tripla síntese" muito mais
que um argumento psicológico, embora seja incontestável a dimensão psico-
lógica de uma descrição de atos mentais nesse argumento. 2) Mas a oni-
presença do modelo matemático na Dedução de 1781 é também uma fra-
queza, porque o modelo matemático e sua solução ao problema da relação
de um conceito com seu objeto tendem a mascarar o problema específico
que constituía a verdadeira dificuldade anunciada nos parágrafos 13 e 14
da Dedução transcendental: a dificuldade em pensar a relação de conceitos
a priori com objetos empíricos. De todo modo, essa mesma fraqueza es-
clarecerá, por contraste, a importância da mudança do método na Dedu-
ção de 1787, em que se coloca em primeiro plano a forma lógica do juízo
como forma da relação de nossas representações com um objeto empírico.
Apresentaremos a seguir, no Capítulo 2, uma análise da "tripla sínte-
se" na Dedução de 1781. Analisaremos então, no Capítulo 3, os primeiros
parágrafos da Dedução de 1787, cuja função essencial é servir de introdu-
ção ao que, segundo Kant, é o coração do argumento tal como reelabora·
do: a explicação das formas lógicas do juízo como formas da "unida<le
objetiva da consciência de si", isto é, formas de uma consciência capaz de
relacionar suas representações com objetos.

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SfNTP.SR H 1u fzo

NOTAS

no Prefácio aos Prolegôme110s que Kant denominn "problema de !·f ome" a questão da
cau. altdade. reivindicando sua generaliznçáo (Ak., IV, 260 e ss.; Pléiade, li, p. 23 e ss.). Na
primeira edição da C,·ítirn. a posição de Hurne é mais longamente discutida na Metodologia
tnmsccndcntal (A 764 e ss./B 792 e ss.). Mas é preciso esperar a segunda edição para que o
nome de Humc seja mencionado, de maneira expressa, na própria dedução transcendental
( B 127). Ao contrário de Puech ( 1990, p. 7), não nos parece sustentável que a referênc ia a
Hume seja uma "falsa pista". introduzida por Kant mais tarde por razões pedagógicas. F.sse
ponto é desenvolvido i,~(ra, Cap. 11 ("A constituição da experiência").
2 C f. D e \ leeschauwer, 1976, vol. 1, p. 169 e ss. (p. I 7 1: "Kant narra nessa carta a invenção do
problema crítico"), e a Introdução de Alexis Philonenko a sua tradução ( 1976, pp. 127- 129).
3 C f. Dissertação, § 8, Ak., II, 395; Pléiade, I, p. 642.
4 Carta a Herz, Ak., X, 130; Pléiade, I, p. 691.
5 Dissertação, § 4, Ak., II, 393; Pléiade, 1, p. 638: "lei inerente a nosso espírito": /ex quaedam
menti insita. Kant jamais rejeitará esse inatismo, que diz respeito não às representações, mas
às f aculdades ou capacidades representativas tanto em vista das formas sensíveis ( dependen-
tes da faculdade receptiva, sensível) como das categorias (dependentes da faculdade espon-
tânea, intelectual); cf. Dissertação, § 8.
6 Carta a Herz, Ak., X, 130; Pléiade, I, pp. 691-692.
7 Poderia surpreender o fato de Kant não tratar em específico, na citada Carta a Herz, do
problema do acordo entre os conceitos empíricos e os objetos dados. Mas ocorre que a dou-
trina da Dissertação parece suficiente em relação aos conceitos empíricos: é preciso apenas
que sua formação não leve a juízos contraditórios ou, em outras palavras, que sempre se
observe o acordo entre o predicado e o sujeito dos juízos empíricos. O acordo com as coisas,
no caso dos conceitos empíricos, só pode ser mediado, mediação que se dá pelo acordo
(causal) das representações sensíveis intuitivas com as coisas. Cf. Dissertação, II,§ 11: "Na
medida em que [os fenômenos) são dados pelos sentidos, eles atestam, como realidades
causadas, a presença do objeto, o que vai contra o idealismo; e, se considerarmos, por sua
vez, os juízos relativos às coisas concebidas pelo conhecimento sensível, porque a verdade
do juízo consiste no acordo do predicado com o sujeito dado, e, em segundo lugar, porque
o conceito do sujeito, como fenômeno, não é dado senão com relação à faculdade sensitiva
de conhecer, e porque é de acordo com essa mesma faculdade, enfim, que são formados os
predicados observáveis pelo conhecimento sensível, é claro que as representações do sujeito
e do predicado se formam segundo leis comuns e, assim, dão lugar a um conhecimento
muito verdadeiro" (Ak., II, 397; Pléiade, I, p. 644).
8 Idem, Ak., X, l 30; Pléiade, I, p. 692 .
9 Idem, Ak., X, l 32; Pléiade, I, p. 693.
10 Cf. Estética transcendental,§ 1 (A 19-20/B 33-34), § 8 (A 46/B 63).
J l Vaihinger apresenta um notável relato das dificuldades suscitadas pela admissão, na abe rtura
da Estética transcendental, de um objeto "afetando a sensibilidade': e das diferentes tentativas
(em partic ular a de Fichte e depois a do neokantismo) para desembaraçar a filosofia knntia-
na dessa suposição, considerada incompatível com os resultados da AnaUtiw trn11srentlema/
(cf. 1976, vol. JJ , pp. 26-55. C f. também Bourgeois, 1968, pp. 15 -2 1). Não há dúvida de que
0 próprio Kan t jamais renun cio u a essa pressuposição, mesmo que a restri,·áo i111pust11
pela Analítica transcendental ao uso das categorias concil'lle a que pennanc\·a prnhlé111átku
qualquer cara teriz.ação da relação do objeto, "considerado nde 111es111u", co111 nossa n 1pnci-
dade representativa.

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A 'f Jl P 111 R OP )lJl < AR

91_9 IH 1 4: "Por certo, M fenôm no. fom e em a os d qu se pode extrair urna ''Ili
i..cgu nd n q1111l hnhi111alme111e o o rre algo, mas eles nun ca pod_e m dar a consequência Por
n<'rc, . riria[ ... ]. A universalidade estrit a da_regra ~ão é um~propnedad~ das regras ernpír~
que. por indu ão, 11 0 recebem outra universalidade senao comparativa, isto é, a P<>sslbi)f.
dad de um uso estendido".
13 Pode- e re onhecer a defi nição de fenômeno no parágrafo L da Estética transcendent,1
(A 20/B 34). Observa -se nesse mesmo parágrafo o emprego do termo Vorstellungsfi:thígiuf,,
14 Disse,-taçiio, § s, Ak., li, 394 ; Pléiade, I, pp. 639-640. Não se formula de modo expresso, -111-
,-ftica, uma di stinção entre appar-entia e phaenomenon análoga à da Dissertação, exceto em
uma só ocasião e só na primeira edição, no capítulo "Sobre o fundamento da distinção de
todos os objetos em geral em fenômenos e númenos': A 248-249: "Erscheinungen, softrn
sie ai Gegensti:inde nach der Einheit der Kategorien gedacht werden, heiften Phaenomena",
Texto de difícil tradução, visto ser usual traduzir Erscheinung por fenômeno. Em geral se
contorna essa dificuldade mediante uma perífrase para Erscheinung nesse caso excepct0 nat:
"O que se manifesta a nós, enquanto é pensado como objeto segundo a unidade das catego-
rias, denomina-se fenômeno" (Pléiade, I, p. 979). É preciso, na Crítica, remeter-se na maio-
ria das vezes ao contexto, para determinar se por Erscheinung Kant pretende se referir à
apparentia ou ao phaenomenon. Em todo caso, a distinção de A 248-249 não é exatamente
a da Dissertação, visto que Kant não fala em "reflexão segundo o uso lógico do entendimen-
to", mas em "unidade conforme às categorias". Mas as duas maneiras de determinar o phae-
nomenon, na verdade, articulam-se de modo estreito, a fórmula da Crítica assinalando a
solução do problema que a Dissertação ignorava, aquele da aplicação dos conceitos puros
do entendimento aos objetos dados. Essa solução se torna possível, como veremos, pela
identificação das categorias às próprias formas da "reflexão segundo o uso lógico do enten-
dimento''. pela qual o objeto é pensado "como" objeto.
15 Essa definição se confirma na Introdução à Crítica: "Pelo que seria desperto e posto em
movimento o poder de conhecer, senão pelos objetos que atingem nossos sentidos, objetos
que em parte produzem eles mesmos representações, em parte põem em movimento a ati-
vidade de nosso entendimento para compará-las, ligá-las ou separá-las, e, desse modo, elabo-
rar o material bruto das impressões sensíveis em um conhecimento de objetos que se chama
experiéncia?" (B l; itálicos nossos). Kant jamais renunciará a essa definição, mas a comple-
tará do seguinte modo, observando a Dedução transcendental das categorias: a experiência
supõe uma síntese das percepções conforme às categorias (A 177 e ss./8 218 e ss.). Da pri-
meira definição se poderiam escolher uma interpretação racionalista (a função do entendi-
mento seria então a de tornar claras as ligações inteligíveis percebidas de maneira confusa
no dado sensível), uma interpretação empirista moderada "à la Locke" (o entendimento
seria considerado como abstraindo os conceitos gerais a partir do sensível dado) ou uma
interpretação empirista cética" à la Hum e" (os conceitos do entendimento não seriam senão
a ideia generalizada das ligações da imaginação). Ao fundamentar a possibilidade de toda
l_igação discursiva das re~resentações sensíveis na síntese prévia das percepções conf?r~e
as categonas, Kant fechara a porta a todas essas interpretações e as substituirá por sua propria.
estabelecida na Crítica. Compreende-se, no entanto, que a Crítica adote como ponto de
p~tída a primeira caracterização, "neutra" (suscetível de várias interpretações), da experiên-
cia, e que a segunda, em contrapartida, seja a que deverá ser objeto de uma demonst ração.
16 Seria posi.ível objetar que, no§ 12 da Dissertação, Kant escreve que "dos objetos dos sentidos,
i.en_d o fenômenos, não possuímos uma intelecção real, mas apenas lógica" (Ak., 11, 398;
Plé~ade, l, P· 645). ontudo, isso não significa que, segundo a Dissertação, não possan,os
aplicar aob lt:nômenos os conceitos puros do entendimento, mas antes que só podemos fazt·
-lu mt diante O ui,u lógico do entendimento, que subordina nossos diversos con ceitos emp~·
ricob um aob _outros, até porventura subsumi-los também aos <.:onceitos puros do entend~-
mento. A 1tt:çao V da JJ,ssataçãu, de~tinada a delimitar o uso dos conhecimentos sensfveis
1
e dos conhecimentos intelectuais, absinala de mandra expressa que, se é ileg{timo atribuir

70

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SÍNTE SE E J f7,o

um objeto "em - t um prcdi ado que comporta uma condição en lvel, em contrapartida é
perfeitamente legítimo atribuir ao objeto sen ívei conceitos intelectuais (cf. ~§ 25-30); de
re, to, na - eção III ( Dos princípios da fo rma d o mundo sensível) se encontra a aplicação dos
conceitos puros aos fe nômeno (cf., por exemplo, § 14, 5, em que se determinam os fenô-
meno como rnl1s tàn cias e acidentes).
17 A 9- 11 O (a "tripla síntese" na Dedução de 1781 ), B 129-131 (§ 15 na Dedução de 1787).
lc Em particular o item 4 da segunda seção e toda a terceira seção na Dedução de 1781 (A 110-
-12 ): §§ 20-23 na Dedução de 1787.
19 Que o parágrafo I O antecipe a dedução transcendental das categorias, isso é reconhecido
por todos os comentadores. Adickes conclui que provavelmente as cinco primeiras alíneas
do parágrafo 1O foram acrescentadas por Kant mais tarde e que, na sua versão inicial, o
parágrafo devia começar, de forma direta, com o enunciado sobre a identidade da função
em operação nas formas lógicas do juízo e nas categorias (alínea 6, A 79/B 105; cf. Adickes,
1889, p. 119, n.). Sem chegar a ponto de admitir essa hipótese, De Vleeschauwer descreve a
elaboração do parágrafo 10 como "defeituosa e desequilibrada", e propõe encadear a leitura
do parágrafo 9 ("Da função lógica do entendimento nos juízos") diretamente com a alínea
6 do parágrafo 10 ("a mesma função ..."; De Vleeschauwer, 1976, vol. ll, p. 70 e ss.). Mas isso
é dar de barato, a nosso ver, a verdadeira fonte da dificuldade, que consiste no método de
Kant conforme tentamos analisá-lo. Heidegger aproxima-se mais da verdade ao afirmar
que, nesse ponto da Analítica transcendental., é muito cedo para que se possam derivar as
categorias a partir das formas lógicas do juízo, e que é preciso levar ao pé da letra a ideia
de um mero fio condutor em relação ao enunciado sobre o paralelismo (Heidegger, 1973,
pp. 115-116). Estamos em desacordo com Heidegger, porém, quando ele pretende sustentar
que as categorias não têm origem nas formas lógicas do juízo. Pensamos que a dedução
metafísica anuncia, pelo paralelismo das duas tábuas, uma identidade de origem entre as
categorias e as formas lógicas cuja prova e a explicação desenvolvida hão de ser fornecidas
pela dedução transcendental.
20 Strawson negligencia esse aspecto da noção de síntese quando a declara estranha ao proce-
dimento transcendental, entendido como análise do conceito de experiência, e considera
que ela advém do procedimento "inteiramente imaginário" de uma psicologia transcenden-
tal (1966, p. 32). Que a síntese seja uma noção psicológica, no sentido de que designa um
ato mental, disso não há dúvida. Mas a dimensão psicológica é indissociável aí de uma di-
mensão epistemológica e de uma reflexão lógica em que o modelo da síntese implica o da
análise. Por sua vez, Hoppe - que reivindica, contra Strawson, a dimensão psicológica do
procedimento transcendental kantiano - interpreta a noção de síntese em termos de uma
psicologia de inspiração fenomenológica ( em que a síntese transcendental seria o ato de
pensamento originário pelo qual nos referimos ao mundo em geral), e nela vê o instrumen-
to de uma polêmica com o associacionismo empirista (1983, em particular pp. 82-112).
Tentaremos mostrar que, mesmo quando a polêmica com o associacionismo está no foco
da cena, isto é, durante a exposição da "tripla síntese" na Dedução de 1781, o modelo mate-
mático está presente de maneira constante (cf. infra, Cap. 2).
21 Deut/ichkeit, §§ 1 e 2, Ak, II, 276-279; Pléiade, I, pp. 216-221. Relembremos que esse texto
responde à questão do concurso da Academia de Berlim em 1762 (daí sua designação usual
de Preisschrift), que versava sobre as respectivas evidências das verdades matemáticas e das
verdades metafísicas, em particular da teologia e da moral. Para uma análise desse texto e
da oposição de Kant à imitação, que a escola wolfiana crê poder praticar, do método mate-
mático na filosofia, cf. Debru, l 977, p. 19 e ss. Gottfried Martin apresenta um históríco es-
clarecedor dos termos análise e síntese, partindo da distinção euclidiana entre o método
analítico e O método sintético até sua reelaboração cartesiana e leibniziana (Martin, 1969,
pp. 245-3 12). A oposição enunciada no Preisschrift entre o pensamento matemático, que
engendra seus conceitos de maneira sintética, e o pensamento filosófico, que não procede

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KANT E O POD ER O J L ,AR

senão por análise dos 011 eitos dados, será reencontrada na Metodologia tramcend .
~,-V, ern que a sfntese dos con citos matemáticos é entã~ lndi.ssociável não apenas d : : •
signos sensíveis, mas sobretudo da construção de conceitos, isto é, da apresentação dele, de
intui ão sensível a priori (A 713 e ss./8 741 e ss.). Ili
22 Dissertação,§ 15, Ak., Il, 406; Pléiade, I, p. 658.
23 Cf. A 162/8 201, n.
24 Dissertação, § 1, n ., Ak., II, 388; Pléiade, I, p. 630.
25 Idem, Ak., li, 389; Pléiade, I, p. 631.
26 Ak., X, 125- 126; Pléiade, 1, p. 693.

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