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Seminário

Capítulo 5: Como o entendimento discursivo chega ao sensível


Comparação de representações e juízo

Kant – O poder de julgar (Beatrice Longuenesse)

Beatrice Longuenesse inicia o Capítulo 5 de sua obra, Kant: O poder de Julgar,


apresentando dois exemplos usados por Kant, um presente na Lógica (§36) e outro
presente em uma das Reflexões sobre a metafísica (4634). Em ambos os exemplos é
explicado a distinção entre juízo analítico e juízo sintético. Para a autora, essas
passagens interessam, sobretudo, para explicitar que na forma lógica do juízo (as 12
formas), Kant assinala a posição que a intuição sensível ocupa na síntese ou ligação
discursiva. Em outras palavras, presença da intuição sensível é assinalada na forma
lógica do juízo por meio do x, o elemento não discursivo que permite a ligação de
conceitos ou ainda, a subordinação de conceitos apresentada no capítulo 4.

Em ambos os exemplos, segundo Longuenesse, “Kant reporta a ligação dos


conceitos ao objeto=x, ao qual eles podem ser atribuídos”(nota 2). Isto é explicado
pelo fato de que independentemente da posição que os conceitos ocupem num
determinado juízo, eles sempre serão predicados do objeto=x que é pensado no juízo.

Com isso, Kant afirma (Ler, p. 1-2, nota 1-3): “Não conhecemos um objeto
senão pelos predicados que enunciamos ou pensamos dele [...]”

Para Longuenesse, a presença do x na forma lógica do juízo não constitui a


originalidade do pensamento kantiano. Para compreender esta originalidade é
necessário determinar o significado que Kant atribui aos conceitos e também aos
objetos ao qual são reportados os conceitos. Por ora, devemos reter que a
originalidade na teoria kantiana do juízo consiste, segundo a autora, que “nem os
conceitos nem mesmo o objeto=x ao qual eles são reportados são independentes do
ato de julgar; não são tampouco anteriores a ele” (p. nota 3). Com esta afirmação,

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Longuenesse parece nos adiantar o que ela descreverá, no final desta introdução ao
capítulo, sobre a relação do entendimento com a intuição sensível, isto é, que essa
relação seria simultaneamente “circular” e “cumulativa”.

Na sequência, Longuenesse se detém, primeiramente, sobre os conceitos.


Quanto à matéria dos conceitos eles são: empíricos, factícios (conceitos matemáticos)
ou puros (categorias). Já quanto à forma dos conceitos, Kant afirma que são sempre
factícias. Segundo Longuenesse, isso significa que “os conceitos não são formas
prontas já dadas, seja nas coisas, seja no espírito ou num hipotético céu das ideias”
(p. 3, nota 5). A forma do conceito é “suscitada” pelo próprio ato de julgar. Aqui está a
razão pela qual é possível dizer que Kant liquidou com o realismo dos universais, isto é,
que os universais não estão dados previamente. Talvez sobre este ponto, caberia aqui
interrogação se isso também é válido para as categorias do entendimento puro. Pois se
assim o for, um caminho possível seria pensar as categorias como constituídas pelas
formas do juízo. É por isso que o entendimento enquanto uma faculdade de julgar
poderia servir para Kant como “fio condutor” para a dedução metafísica das categorias
do entendimento. Sendo assim, essas categorias do entendimento “espelhariam” o ato
de julgar.

No entanto, autora, no decorrer do capítulo 5 e no próximo capítulo, se


compromete a esclarecer a originalidade da posição kantiana sobre a natureza dos
conceitos, por meio do processo de formação dos conceitos nos juízos e a formação
dos conceitos operada pelos próprios juízos. Tal operação é possível porque os juízos
comparam e ligam os conceitos. Por esta razão, veremos que Longuenesse dedicará
uma seção para falar da importância do termo “comparação” presente em alguns
textos de Kant da qual será ainda objeto desta exposição.

Na sequência do texto, Longuenesse diz que não apenas os conceitos são


suscitados pelo ato de julgar, mas que também o x é constituído no ato de julgar.

Portanto, o fato dos conceitos quanto a sua forma serem factícios não resume a
posição de Kant quanto à natureza dos conceitos. Essa posição precisa ser
compreendida por meio das explicações concernentes ao “x do juízo” que é reportado
os conceitos atribuídos por meio de um juízo a um x que o juízo mesmo constitui.

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Quanto a essas explicações de Kant, Longuenesse nos alerta sobre sua “ambiguidade”.
Segundo ela:

Com efeito, ás vezes parece ser o objeto sensível que fornece,


de alguma forma, seu lugar para o exercício da ligação
discursiva, outras vezes parece ser o objeto “pensando para”
o dado sensível, mas de alguma forma tão irredutível a esse
último quanto o é aos conceitos. (nota 5)

No primeiro caso, a autora afirma que:

“o ‘x’ ao qual é preciso reportar, em última análise, a ligação


dos conceitos no juízo pode ser identificado com a intuição
sensível na qual a imaginação desenhou os esquemas a priori
e a posteriori (associativos) que refletem conceitos e juízos”
(p.4, nota 5-8).

Disso podemos destacar que o objeto sensível que pensamos a partir de certos
predicados que formam os conceitos são ligados pela própria intuição sensível. Isto é,
“o x do juízo” é imanente à intuição sensível.

É a esse “x do juízo”, segundo Longuenesse, que Kant se refere na Introdução à


Crítica da razão pura sobre a possibilidade de juízos sintéticos a posteriori, quando diz
(p. 4, nota 8):

Nos juízos sintéticos, preciso ter, fora o conceito de sujeito,


ainda alguma outra coisa (X) sobre a qual se apoia o
entendimento para reconhecer um predicado, como
pertencente ao conceito, mas que não se encontra nele. Nos
juízos empíricos ou de experiência, não há, sobre esse ponto,
qualquer dificuldade. Pois esse X é a experiência completo do
objeto que penso por um conceito A, que não constitui senão
uma parte dessa experiência (A 8).

Nesta citação, a autora afirma que o Kant chama de “experiência completa do


objeto” é o mesmo que “a unidade sintética com outras representações”. Para
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compreender essa equivalência de termos aqui em questão, é necessário esclarecer
que para Kant a “unidade sintética” é o pressuposto da “unidade analítica”. Isto quer
dizer que, a “unidade sintética” ou “a experiência completa do objeto” é a
possibilidade de que as diversas representações, ao serem comparadas entre si,
possam ser unificadas em uma consciência sob um “conceito comum”. O X que ela
chama de “toda experiência” é também os “fenômenos” aos quais são reportados os
conceitos ligados no juízo. (Aqui, caberia discutirmos a diferença entre x, minúsculo, e
X, maiúsculo, para a qual ela desenvolve na nota 8).

Já no segundo caso, Longuenesse afirma que:

“o x do juízo – isto é, o termo não discursivo ao qual são


reportadas as formas discursivas e sua ligação – pode ser
interpretado não mais como sendo imanente á intuição
sensível, mas como sendo o objeto exterior a toda
representação, pensado para a intuição sensível, ou a qual ela
é ela mesma reportada” (p. 4-5, nota 8-11).

Em outras palavras, Longuenesse afirma que essa “alguma coisa em geral que
pensamos por certos predicados” não é mais a intuição sensível, isto é, o que fornece
aos conceitos o “lugar” e o fundamento da ligação discursiva. A intuição sensível é,
segundo a autora:

“o material no qual o ato de julgar desenha as representações gerais que ele


reporta a um objeto=x, objeto ao qual é, desse modo, reportada também a intuição
sensível. Não é mais a intuição sensível que é o ‘objeto=x’. Ao contrário, ela própria
adquire um ‘objeto=x’ no momento em que o juízo pensa tal objeto para os
conceitos que ele liga e, assim, para a intuição sensível, a partir da qual esses
conceitos são formados” (p. 5, nota 11).

Objeto transcendental? Função objetivante do juízo?

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Importância da noção de “comparação”

Para Longuenesse, o termo comparação está sempre presente nas explicações


de Kant sobre a nossa atividade de conhecimento. O termo está presente, por
exemplo, na Reflexão 4634 quando Kant afirma que, “em todo juízo são dois
predicados que nós comparamos um ao outro”. Como também o termo está presente
em uma frase encontrada no capítulo da Anfibologia dos conceitos de reflexão da
Crítica da Razão Pura quando Kant diz: “antes de pronunciar juízos objetivos,
comparamos os conceitos [...]”.

Por fim, autora aproxima estas duas passagens à outra que explica a
comparação de representações que derivam de uma gênese empírica de
conhecimentos. Essa passagem está na Introdução á segunda edição da Crítica que diz
(Ler na pagina 7):

Com esta citação, fica evidente que lhe interessa falar sobre a comparação de
representações sensíveis que são ligadas ou separadas para produzir a “matéria bruta
das impressões sensíveis” e transformá-las em conceitos segundo a forma que é
suscitada pela faculdade de julgar. Ato de julgar que, por sua vez, compara os
conceitos e forma os juízos. Aí está o que Longuenesse chama de “forma impura das
ligações discursivas” que lhe interessa particularmente neste capítulo.

Embora a presença do termo comparação possa ser encontrada em diferentes


textos de Kant, a autora salienta que os comentadores não consideram este termo
como algo significativo para a compreensão do filósofo. A desconsideração desse
termo resultaria de uma leitura de Kant que, segundo ela, “privilegia deliberadamente
a determinação do empírico pelo a priori (isto é, pelas categorias e pelos conceitos
matemáticos), em detrimento da inscrição reflexionante das formas intelectuais no
sensível”(nota 12). Além disso, a autora acrescenta que o termo comparação é
geralmente relacionado as concepções empiristas de Locke e Hume de comparação de
ideias. No caso de Locke, a comparação das ideias constitui a atividade humana de
raciocinar. Enquanto em Hume, a comparação das ideias, especificamente, por meio
das ideias de relação, nos permitiria atribuir qualidades aos objetos.

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No entanto, a importância do termo comparação como atividade discursiva não
é uma originalidade do empirismo, mas sim da encontra-se na definição de juízo
proposta pela Lógica de Port-Royal. Segundo ele (ler p. 8)

Já Kant define, no capítulo da Anfibologia dos conceitos de reflexão, que todo


juízo é uma comparação de conceitos. Sendo necessário que “se reflita”, ou seja, que
se faça a distinção devida acerca do “lugar transcendental da comparação”. Com isso
Kant quer dizer que, os conceitos de um juízo podem pertencer à sensibilidade ou ao
entendimento puro.

Para Longuenesse, a originalidade da posição kantiana a respeito da noção de


comparação está, justamente, no fato de ele definir os lugares da comparação como
dito acima e os objetos da comparação, isto é, conceitos ou objetos dados na intuição
sensível. Dessa forma, temos a comparação de conceitos e a comparação de objetos.
Sendo que a comparação de conceitos é lógica (ou reflexão lógica) e a comparação de
objetos, aquela dos objetos dados na intuição sensível, deriva de uma reflexão
transcendental.

A reflexão transcendental efetua uma comparação entre as representações


dadas à sensibilidade ou ao entendimento. Logo, ela possibilita determinar a relação
que essas representações, ou melhor, conceitos possuem entre si, isto é, relação de
identidade ou diversidade, de concordância ou oposição, de interno ou externo e de
determinável e determinação.

Como vimos, Longuenesse nos apresentou três usos distintos do termo


comparação nos textos de Kant, a saber, a comparação lógica (comparação dos
conceitos no entendimento), a comparação de objetos ou “estética” como ela nomeia
e que trata da comparação de fenômenos na percepção sensível e a comparação ou
reflexão transcendental. Mas o uso de comparação que lhe interessa particularmente
é aquele que ela chama de comparação “intermediária” entre comparação lógica e
comparação estética. A comparação intermediária consiste na comparação de
representações sensíveis aliadas às operações de “reflexão” e “abstração” para a
formação de conceitos mencionada por Kant na Lógica. Sobre isso a autora dedica
algumas observações na nota 22 (Ler).

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Para a autora, Kant está se referindo a este “tipo” de comparação quando
afirma, na primeira frase da Introdução a CRP (B1), que os objetos dos sentidos: “[...]
em parte produzem eles mesmos representações, em parte colocam em movimento
nossa atividade intelectual para comparar essas representações, para ligá-las ou
separá-las [...]” (p. 10, nota 19).

O que chama a atenção de Longuenesse é o fato de Kant não oferecer uma


exposição que articule a comparação lógica, presente no capítulo da Anfibologia dos
conceitos de reflexão, ás operações de comparação, reflexão e abstração, mencionadas
por ele na Lógica. Dessa maneira, ela se propõe a expor de forma articulada as
explicações que Kant fez delas de maneira dispersa. Por isso, será objeto de estudo da
próxima seção a “formação dos conceitos por ‘comparação, reflexão, abstração’”.

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