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FOTOGRAFIA E CIDADE

Material de apoio
Por Cristiano Mascaro

Avenida São João, São Paulo. Fotografia de Cristiano Mascaro

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Fotografia de Cristiano Mascaro

Nasci em Catanduva, mas vivo em São Paulo


desde os cinco anos. Assim que cheguei come-
cei a andar pela cidade: não havia carro na fa-
mília e íamos a pé para a escola, para comprar
pão, para a escola, para o cinema. Quase sempre,
meu caminho era a avenida São João, que me
parecia um fundo de vale, ladeado por grandes
prédios. A variedade das construções que se su-
cediam naquela reta imensa me assombrava – e
talvez ali tenha se iniciado minha relação de en-
cantamento e intimidade com o espaço urbano.

Cursei o ensino médio no Colégio de Aplicação,


politizado e de elite entre as escolas públicas.
Quando concluí o curso, estava, como quase
todo adolescente, inseguro quanto à faculdade
que deveria escolher. A família esperava que eu
estudasse medicina, o que não tinha nada a ver
com meus planos ainda confusos.

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O acaso me ajudou a resolver o dilema. Certo dia,
no caminho de casa, passei em frente ao casa-
rão art-nouveau onde funcionava a Faculdade
de Arquitetura da Universidade de São Paulo. Fi-
quei encantado com aquele ambiente e decidi,
de imediato, que seria ali que eu iria estudar.

Prestei vestibular em 1964, o ano do golpe mi-


litar no país. Comecei, portanto, meu curso em
plena ditadura. Foi um intenso e ativo período
de política universitária, marcado por passeatas,
tomadas dos prédios das faculdades e perma-
nente contestação na música, teatro, nas artes
plásticas e no cinema.

A fotografia surgiu, assim, em meio a essas ati-


vidades e às aulas. Mais uma vez, quase casual-
mente: fugindo de uma aula técnica, refugiei-
-me na biblioteca da faculdade e abri ao acaso
um livro. Era Images à la sauvette, de Henri Car-
tier-Bresson, com fotos que me deixaram espan-
tado e entusiasmado. Naquele exato momento,
eu soube que seria fotógrafo.

Talvez não seja fantasioso pensar que ali, nesses


anos iniciais, estavam presentes os elementos
que iriam definir meu caminho ao longo das
décadas seguintes: o impulso de caminhar pela
cidade, o fascínio sempre renovado pela paisa-
gem construída, a permanente abertura para as
possibilidades trazidas pelo acaso.

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Um pouco de história

Acredito que uma brevíssima digressão pela his-


tória da fotografia pode servir como uma espécie
de genealogia do trabalho que faço, ou esclare-
cer a tradição em que me insiro como fotógrafo.

A fotografia surgiu em meados do século XIX. Em


1826, o francês Joseph Nicéphore Niépce produ-
ziu o que se considera a primeira fotografia da
história, registrando com uma máquina primiti-
va uma vista de sua rua (e é curioso pensar que
essa imagem inaugural seja justamente de uma
rua, como se o retrato da paisagem urbana esti-
vesse na gênese mesma da fotografia). Niépce
mais tarde se associaria a Louis Daguerre, inven-
tor do daguerreótipo, processo que consistia em
fixar uma imagem – ainda única, não reprodutí-
vel – em uma placa metálica sensibilizada.

Alguns anos depois, já na passagem do século


XIX para o XX, Eugène Atget registraria as ruas
de Paris, num trabalho pioneiro de fotografia ur-
bana.

As primeiras câmeras, porém, eram enormes e


obrigavam os fotógrafos a se comportar quase
como pintores, tal o tempo necessário para fo-
tografar uma paisagem ou retratar uma pessoa.
Niépce levou oito horas para conseguir sua fo-
tografia, e o próprio Atget tinha de se deslocar
com um equipamento pesadíssimo e pouco
ágil. Somente quase um século depois desses
exercícios é que surgiram câmeras mais leves e
portáteis, que permitiram aos fotógrafos cami-
nhar com seu equipamento a tiracolo.

A câmera portátil proporcionou um avanço sig-


nificativo da narrativa fotográfica. Surgiu o que
foi chamado de “o ponto de vista da calçada”,
isso é, a fotografia obtida pelo fotógrafo que se
movimenta pelas ruas das cidades e que regis-

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tra o momento no instante mesmo em que ele
acontece.

Os primeiros fotógrafos a se dedicarem àquilo


que chamo de “ver as cidades” foram André Ker-
tész, Henri Cartier-Bresson e, mais tarde, Robert
Frank. Não é coincidência que eles tenham sido
minhas maiores referências no ofício que estava
iniciando.

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Primeiras experiências

Comecei a fotografar principalmente nas via-


gens de estudante. Nesse espírito meio nôma-
de, fotografei Ouro Preto, Salvador, Brasília, e me
aventurei por um destino muito em voga entre
os jovens da época: Peru e Bolívia, pelo lendário
Trem da Morte. Essa viagem acabou sendo de-
cisiva para mim: com as fotos dela ganhei o pri-
meiro lugar em um concurso cujos jurados eram
Fernando Lemos, Claudia Andujar e João Xavier.

Ouro Preto. Fotografia de Cristiano Mascaro

Animado pelo concurso e imbuído da coragem


da juventude, procurei Claudia Andujar, fotógra-
fa por quem tinha – e tenho – grande admiração.
Ela acabou me levando para a editora Abril, onde
comecei minha carreira de repórter fotográfico
na revista Veja.

Como fotojornalista, viajei pelo Brasil e pela


América Latina, fui detido algumas vezes pela

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ditadura vigilante, levei alguns golpes de casse-
tete em passeatas. Submetido às pautas jorna-
lísticas, chegava a realizar três trabalhos, às vezes
sobre assuntos completamente diferentes, em
um só dia. A experiência na Veja durou apenas
dois anos e meio, mas marcou fortemente mi-
nha postura como fotógrafo.

Fotografia da viagem por Peru e Bolívia, pelo Trem


da Morte, de autoria de Cristiano Mascaro

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Fotógrafo autônomo

Se o encontro com uma imagem produzida por


um grande fotógrafo definiu minha profissão, foi
uma fotografia feita por mim – ou melhor, uma
cena a ser fotografada – que me mostrou o ca-
minho a seguir dentro do meu ofício. Ainda tra-
balhava na Veja quando vislumbrei na praça da
Sé um vulto que parecia emparedado pelo már-
more negro de um edifício. Fiz a foto: o resulta-
do, que evocava uma tela de Edward Hopper, me
pareceu instigante e fez com que me interessas-
se apaixonadamente pela fotografia de rua.

Fotografia de Cristiano Mascaro

Foi o estímulo que faltava para me libertar das


pautas da redação e me dedicar ativamente a

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projetos autorais de documentação urbana e
exploração da vida das cidades. À essa época,
fui convidado a coordenar o recém-criado La-
boratório de Recursos Audiovisuais da FAU-USP;
consegui dividir meu tempo, dedicando-me ao
meu incipiente trabalho pessoal e mantendo o
vínculo com a universidade, onde depois rece-
beria os títulos de mestre (dissertação: O uso da
fotografia na interpretação do espaço urbano,
1986) e de doutor (tese: A fotografia e a arquite-
tura, 1994).

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Primeiros trabalhos

Fiz minha primeira exposição em 1975, na esco-


la Enfoco, onde dei aulas de fotojornalismo. Essa
escola formou importantes fotógrafos e tinha
grandes profissionais em seus quadros. Entre
eles estava Maureen Bisilliat, grande fotógrafa
que me acolheu com generosidade. A exposição
chamou-se Paisagens urbanas e reuniu minhas
primeiras fotos paulistanas. O resultado foi mui-
to positivo, o que me deu a certeza de estar no
caminho correto.

Fotografia do projeto O bairro do Brás, de Cristiano Mascaro

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Lancei-me, então, àquilo que seria um primeiro
trabalho significativo de documentação da ci-
dade: O bairro do Brás, em parceria com Pedro
Martinelli. Àquela época – meados da década de
1970 – o antigo bairro operário habitado sobretu-
do por imigrantes italianos se transformava rapi-
damente, com as obras de construção do metrô
e a chegada de trabalhadores nordestinos. Nes-
se projeto, pude, de forma clara, conciliar as duas
vertentes de minha formação – a arquitetura e
a fotografia –, registrando ruas, edifícios, comér-
cios, novos prédios e velhos casarões. Ao mes-
mo tempo, ao fotografar personagens do bairro,
pude explorar outro terreno: o retrato.

Retrato do projeto O bairro do Brás, de Cristiano Mascaro

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A fotografia como trabalho autoral

Meu método de trabalho pode parecer um pou-


co indisciplinado em um primeiro momento. Ele
consiste, basicamente, em andar muito, flanar livre
de qualquer objetivo pré-definido. Trata-se, em úl-
tima instância, de estar predisposto ao improviso,
aberto para identificar aquilo que há de surpreen-
dente, de espantoso na realidade cotidiana – e cap-
turá-lo. Saio em busca desses pequenos espantos,
como disse certa vez o poeta Ferreira Gullar a pro-
pósito da “inspiração” de seu trabalho.

Fotografia de Cristiano Mascaro

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É verdade que há muito de intuição nessa forma
de trabalhar. Mas é preciso notar que a intuição
não brota sozinha; ela decorre de um longo trei-
no do olhar: a escolha do “momento certo” é re-
sultado de uma educação, de um “saber ver” que
vem da prática, certamente, mas também do
conhecimento. Por isso, insisto na necessidade
de que os jovens fotógrafos conheçam a história
da fotografia e o trabalho de outros profissionais
– tanto o de seus contemporâneos quanto o da-
queles que os antecederam.

A imprevisibilidade está presente inclusive nas


fotos de arquitetura. Quando fotografo um pré-
dio ou um monumento, faço um planejamento
prévio, examino o objeto da foto de forma ob-
jetiva e racional. No entanto, a foto em si, seu
momento exato, sempre carrega uma surpresa,
pois a realidade se transforma incessantemen-
te: uma nuvem sombreia a parede, o vento agita
uma cortina, uma pessoa atravessa a rua distrai-
damente. A realidade está em permanente mu-
tação, e o que o fotógrafo faz é apreender um
fragmento dela – único, irrepetível – antes que
se dissolva.

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Os trabalhos comissionados

Bastante diferentes dessa liberdade dos traba-


lhos autorais, nos quais o compromisso é unica-
mente com nosso desejo, são os trabalhos ditos
“comissionados”, ou seja, encomendados. Quan-
do aceitamos um projeto de um cliente – um ar-
quiteto, uma editora, uma instituição –, regras e
prazos são muito mais estritos, e o primeiro man-
damento é, claro, dar ao cliente no mínimo aqui-
lo que ele busca. Ao fazer o trabalho encomen-
dado, levo vários tipos de câmeras, para que não
haja acidentes. É importante lembrar que num
trabalho pessoal todas as experimentações são
permitidas; num trabalho comissionado, numa
documentação arquitetônica, o compromisso
é com o rigor e a exatidão, o que não significa
seguir o óbvio, mas estar sempre atento ao de-
talhe, buscar algum ineditismo em um mundo
saturado de imagens.

Se deve responder a uma pauta previamente


dada, o trabalho comissionado não é necessaria-
mente um corpo estranho à obra do fotógrafo. À
medida que me aprofundei na documentação
urbana e arquitetônica, passei a receber convites
para projetos que enriqueceram minha experi-
ência. Assim foi com o projeto de fotografar os
cem edifícios mais representativos da arquite-
tura brasileira, que me levou a ficar oito meses
viajando pelo Brasil e deu origem ao livro Patri-
mônio construído (2002); vinte anos depois, em
uma segunda edição, foram incluídas mais dez
construções. Em 1998, fui incumbido de um pro-
jeto semelhante, o de fotografar 28 centros his-
tóricos brasileiros, dessa vez com uma aborda-
gem mais urbanística que arquitetônica, para o
Programa Monumenta, do Ministério da Cultura.

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Ensaio, livro, fotolivro

O fotojornalismo não foi meu caminho, mas foi


uma experiência decisiva e uma escola importan-
te para mim, pessoalmente, e para a linguagem
fotográfica como um todo. O binômio imagem/
narrativa foi magistralmente desenvolvido pela
revista americana Life, que circulou de 1886 a
2000 e publicou, a partir da década de 1930, en-
saios fotográficos – ou “discursos visuais”, como
também se dizia – de grandes fotógrafos. Um
exemplo clássico são os ensaios de Eugene Smi-
th publicados pela revista, verdadeiras aulas de
como compor frases visuais – as fotos em sequ-
ência dão toda uma modulação àquilo que se
conta, assumindo a função de vírgulas e pontos
conforme seu tamanho na página. Assim, no en-
saio Spanish Village, Smith mostrava um vilarejo
espanhol durante a ditadura franquista. A ima-
gem domina a narrativa: após o início, em que se
mostra uma foto mais geral da vila, a série apre-
senta personagens, lugares e cenas da vida local,
conduzindo o olhar do leitor/observador até uma
foto grande, sangrada, de um velório, que marca
indiscutivelmente o fim – da vida, do ensaio, da
história. Em outro ensaio, Country Doctor, Smith
mostra o trabalho incessante de um médico ru-
ral, retratado no atendimento a seus pacientes
em uma variada sequência de ações; na última
imagem, ele está exausto, recostado, bebendo
um café. Mais uma vez, a foto atua como ponto
final, marcando tanto o fim da jornada do mé-
dico quanto da reportagem em si. É importante
assinalar que Smith contou com uma autonomia
incomum na edição desses ensaios, pois ele mes-
mo diagramava suas fotos; na imensa maioria
dos casos, isso fica a cargo dos editores da revista.

Enquanto o fotojornalismo liga-se mais à atu-


alidade, a um fato ou história ser contado com
agilidade, um livro é projeto mais longo, mais
pensado e mais livre, no sentido de poder trans-

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formar-se à medida que novas descobertas se
coloquem para o fotógrafo. Foi o que me aconte-
ceu, por exemplo, no livro Portugal, em que uma
ideia inicial, bastante restrita (fotografar duas bi-
bliotecas portuguesas), acabou por se desdobrar
num longo ensaio que contemplou também a
arquitetura contemporânea lusitana. Essa mu-
dança de planos só foi possível porque eu não
estava trabalhando com os compromissos im-
postos pelo jornalismo.

É importante lembrar, porém, que, mesmo no


livro, o fotógrafo não é dono absoluto de seu tra-
balho. Ele dividirá a responsabilidade final com
todos os profissionais envolvidos na produção
editorial e terá de levar em conta questões como
a escolha do papel, formato, impressão, custo fi-
nal da obra. O posicionamento das fotos ao lon-
go do livro é outro ponto importante, muitas ve-
zes discutido entre fotógrafo e designer ou chefe
de arte: uma estrutura bastante usada é formar
pares entre as fotos, colocando-as lado a lado,
seguindo uma lógica de semelhança ou de con-
traste de forma ou conteúdo. Com o designer,
o fotógrafo também decidirá que fotos devem
ocupar as páginas duplas ou quantos espaços
em branco (“respirações” na sequência) haverá
no livro.

Outra vertente que hoje está tomando fôlego, na


esteira do desenvolvimento de impressoras rápi-
das de boa qualidade e custo menor que as grá-
ficas tradicionais, é o fotolivro. Ele permite que
o fotógrafo assuma integralmente a produção
de seu objeto, retirando o aspecto mais “solene”
de uma edição convencional, que geralmente
conta com um aparato de textos, créditos etc., e
dando-lhe todo o controle sobre seu trabalho.

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Forma, composição, luz

Em 2006, resolvi reunir em livro as fotos urbanas


que havia produzido ao longo de minha trajetó-
ria. O resultado foi Cidades reveladas, no qual as
imagens foram divididas em capítulos segundo
os pressupostos da fotografia: composição, for-
ma, luz e sombra. Parto, assim, do livro para falar
um pouco sobre esses temas.

No capítulo “Forma”, apresentamos fotografias


em que esse é o elemento mais evidente: uma
árvore que projeta no chão sombras que tomam
formas geométricas; a escada do Itamaraty vista
“ao contrário”, de trás, assumindo o desenho de
uma grande sombra elíptica (essa imagem re-
força um ponto já comentado: o fotógrafo deve
buscar novos ângulos, buscar uma forma dife-
rente do habitual, descobrir aquilo que o objeto
a ser fotografado pode oferecer e que não havia
sido suspeitado).

As fotografias que compõem o capítulo “Com-


posição” guardam também esse aspecto de sur-
presa. Não sei precisar até que ponto minha for-
mação de arquiteto me impele a procurar certo
equilíbrio nos elementos da fotografia; muitas
vezes, porém, o interesse não é o rigor da sime-
tria, mas exatamente sua ruptura. O fotógrafo
anda, ajeita-se, aproxima-se e afasta-se até que
o campo esteja ocupado da forma que deseja;
pode fotografar um momento fugidio ou espe-
rar muito tempo até que surja um elemento que
deseja – uma pessoa, uma sombra. São esco-
lhas feitas caso a caso, para as quais concorrem,
como sempre, o acaso e a intuição. Não é inco-
mum que a qualidade de uma foto só se revele a
posteriori – no tempo das fotografias analógicas,
na revelação; hoje, com as digitais, ao serem ob-
servadas na tela.

Por fim, outro capítulo de Cidades reveladas dis-

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Fotografia de Cristiano Mascaro

cute um ponto essencial: a luz (e a sombra). Uma


regra que obedeço é acordar o mais cedo possí-
vel e ver o sol nascer. No começo da manhã, a luz
resvala na parede dos edifícios, lhes dá relevo, di-
ferentemente da luz do meio-dia, que é dura, fria.

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Arquitetura

A arquitetura foi minha primeira escolha profis-


sional e sempre fez parte da minha vida. Vejo-a
como um vestígio da evolução do conhecimen-
to humano, o resultado concreto dos avanços
da técnica e da tecnologia: a pegada que cada
época deixa para seus sucessores. Arquitetura e
cidade são, em meu trabalho, dois temas corre-
latos que correm paralelos e eventualmente se
sobrepõem.

Fotografia de Cristiano Mascaro

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Uma importante referência para meu trabalho
foi o livro Looking at architecture, do fotógrafo
e arquiteto americano George Everard Kidder-
-Smith, que apresenta, em ordem cronológica,
grandes obras arquitetônicas de todo o mun-
do. O livro é uma homenagem à arquitetura,
expondo seu caráter de testemunho de época
e da capacidade criativa humana por meio de
fotografias de grande qualidade – nunca óbvias
ou literais. Foi a partir desse livro que decidi re-
gistrar, de forma mais sistemática, e à minha
maneira – sem a organização rígida de Kidder-
-Smith –, construções de importância históri-
ca e arquitetônica. Fiz isso em longas séries de
viagens, dentro de meu trabalho pessoal ou em
projetos comissionados – entre estes, além do
livro Patrimônio construído e do Programa Mo-
numenta, já mencionados, estão o projeto Tra-
ces of peoples, de documentação de cinco cida-
des polonesas, e a documentação fotográfica da
reforma, construção e restauro dos edifícios do
complexo Cidade Matarazzo, de São Paulo, regis-
trados ao longo de 7 anos.

É claro que há grandes diferenças na forma de


lidar com cada um deles. Fotografar a cidade é
debruçar-se sobre um organismo vivo, mutável,
que surpreende a cada momento; um concerto
sem maestro, incontrolável. A arquitetura, por
sua vez, já está organizada para ser vista; tem
um caráter estático, de permanência. A surpresa,
na fotografia de arquitetura, é mais sutil e deve
ser revelada pelo fotógrafo, por meio da luz, da
atenção ao detalhe, da escolha de um ângulo
incomum – muitas vezes insuspeitado até pelo
próprio arquiteto.

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Preto e branco

Descobri a fotografia quando conheci o trabalho


de Henri Cartier-Bresson, André Kertész e Ro-
bert Frank, e esses três nomes se mantiveram
sempre como minhas referências básicas. Essa
circunstância explicaria, em parte, minha prefe-
rência pela fotografia em preto e branco. Outra
explicação, também plausível, é minha formação
analógica: o preto e branco permitia o domínio
da técnica da revelação do filme, mais simplifi-
cada e barata do que a dos filmes coloridos.

Isso tudo é fato, mas há um motivo mais impor-


tante e de ordem puramente estética na minha
escolha: o preto e branco imprime dramaticida-
de, estranhamento, “clima” à foto. Ao retirar a cor
das imagens, fico mais próximo do objetivo que
persigo, que é o de apresentar uma representa-
ção particular, pessoal, do mundo real. Costumo
recorrer a uma ideia do professor Antonio Can-
dido que, a meu ver, se aplica ao ofício do fotó-
grafo da forma como o entendo e pratico: inter-
pretar o mundo que vemos a nossa volta é um
exercício permanente de desfazer a realidade
para em seguida refazê-la, transformada. Uso a
cor eventualmente, mas costumo deixá-la para
trabalhos mais documentais, em que é impor-
tante apresentar o objeto fotografado de uma
maneira mais literal.

Uma curiosidade: com as câmeras analógicas es-


colhia-se de antemão se o filme usado seria colo-
rido ou preto e branco; hoje a escolha é posterior
à foto. Posso fotografar, em princípio, no modo
colorido e depois transformar o arquivo colorido
em preto e branco. E é o que faço normalmente:
uso a opção “cor”, que permite melhor resolução,
e, no computador, passo para o preto e branco.

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Vida útil do fotógrafo

Há uma imagem um pouco romantizada do


fotógrafo como aventureiro, quase um atleta,
pronto para os maiores malabarismos em sua
busca pela foto ideal. Há alguma verdade nisso:
sobretudo o fotógrafo que trabalha nas ruas, e
não em estúdio, tem de ter disposição física su-
ficiente pelo menos para conseguir se deslocar
com suas pesadas câmeras e demais acessórios
(uma mochila bem desenhada, portanto, faz
parte do equipamento básico do profissional). A
“vida útil” do fotógrafo – se é que se pode usar
essa expressão mais adequada a produtos e coi-
sas – dependeria, portanto, desse vigor físico e
estaria encerrada tão logo a idade começasse a
impor limitações.

Não é bem assim. É fácil apontar, ao longo da


história, exemplos de fotógrafos que continua-
ram a trabalhar com a qualidade de sempre em
idades em que muita gente se aposenta. Hen-
ri Cartier- Bresson, André Kertész, Robert Frank
(como sempre, volto a essa tríade fundamental),
Robert Doisneau e Jacques-Henri Lartigue pas-
saram dos 80 anos, alguns dos 90, em plena ati-
vidade. A segurança técnica, o conhecimento e a
intuição apurada ao longo do tempo constituem
o grande patrimônio do artista (de qualquer ar-
tista, não apenas do fotógrafo). No meu caso, a
partir dos 50 anos realizei alguns de meus tra-
balhos mais significativos e de maior fôlego. A
conclusão: tão importante quanto a boa forma
física é a experiência acumulada, o olhar aten-
to, as boas ideias e o ingrediente indispensável: a
paixão pelo ofício.

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A fotografia acessível

Assim como o estereótipo do fotógrafo como


arrojado aventureiro não corresponde à realida-
de, também não é verdade que ele precise estar
sempre de posse de equipamentos ultrassofisti-
cados.

Para realizar um bom trabalho, não é necessá-


rio se equipar exageradamente com as últimas
novidades (que, aliás, se sucedem a cada ano,
tornando obsoletas câmeras perfeitamente ca-
pazes de realizar ótimos trabalhos). O que limita
a atuação é a falta de boas ideias. Se as tivermos,
bastam um velho celular e a compreensão de
como fazer bom uso dele. Deixo claro que não
romantizo a precariedade nem sou apegado a
tecnologias antigas; apenas questiono a corrida
incessante por inovações que nem sempre re-
presentam, de fato, mudanças na prática ou na
qualidade do trabalho. A melhor tecnologia é a
que responde à necessidade e ao desejo de ex-
pressão do artista.

Repito: uma boa fotografia é resultado de um


olhar sensível e de uma boa ideia, independen-
temente do equipamento usado. Acredito até
que uma preocupação técnica excessiva muitas
vezes atrapalha. Poderemos criar belas imagens
com velhas câmeras ou com celulares, assim
como falhar redondamente com uma câmera
de último tipo.

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Fotografar com o celular

Num projeto recente, feito conjuntamente com


o fotógrafo José Bassit, fotografei a avenida Pau-
lista com um celular. Foi uma experiência nova
e interessante para mim, que confirmou que a
boa fotografia independe do equipamento. A
agilidade e a discrição do celular me permitiram
fotografar pessoas e lugares de maneira espon-
tânea, o que não é pouco nos dias hoje, em que
todos parecem desconfiados e vigilantes, e os
entraves burocráticos se multiplicam.

No entanto, essa mesma facilidade resulta na


produção de um excesso de imagens, no vício de
fotografar muito e de ver pouco. Cada vez mais
nos deparamos com reflexões sobre os rumos da
fotografia: produzida aos milhares, ela corre o ris-
co de perder o interesse e o impacto?

Creio que há diferentes respostas para essa per-


gunta. A mais evidente é que a fotografia não é
só para fotógrafos. É legítimo fotografar apenas
para guardar momentos sem nenhuma preten-
são adicional, e devemos lembrar que a sensa-
ção de “banalização” já estava presente mesmo
em tempos analógicos, à medida em que a tec-
nologia se disseminava e permitia que todos
construíssem seu acervo de memórias guar-
dadas nos álbuns de família. O celular apenas
potencializou esse impulso, e os velhos álbuns
foram sendo substituídos por publicações em
redes sociais.

Num segundo plano, é possível fotografar com


qualidade mesmo sem desejar ser profissional,
assim como se pode tocar bem um instrumen-
to sem pretender ser concertista. Mais que o re-
gistro puramente afetivo, a fotografia nesse caso
começa a ser uma forma de expressão e, sobre-
tudo, uma forma de olhar, uma forma de pensar.
Se a ideia é ter mais que um registro para a me-

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mória, uma atitude menos voraz é importante.
O fotógrafo tem a intenção de descobrir coisas,
mas não olha a realidade pela lente o tempo
todo. Existe aí um jogo de equilíbrio, um vaivém;
é preciso saber olhar para as coisas a olho nu, sem
intermediação, para perceber que cena pode se
transformar em uma boa foto. Só então é que o
observador olha através da câmera e organiza o
que vê – e espera o momento certo, em que to-
dos os elementos se compõem da forma como
deseja. Essa operação, que se torna inconsciente
e intuitiva pela prática, é tão necessária na foto-
grafia com o celular quanto naquela feita com
uma câmera cheia de recursos.

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Conselhos para novos fotógrafos

O elemento indispensável, básico, para quem


quer se tornar fotógrafo é o entusiasmo pelo ofí-
cio. A paixão é o motor que faz com que o fotó-
grafo amador ou profissional saia todos os dias,
enfrente obstáculos, persiga a imagem, acerte,
erre, aprimore-se.

Outro elemento fundamental é, como venho re-


petindo, conhecimento: das artes em geral, das
artes visuais, da fotografia em particular. Todo
fotógrafo precisa conhecer a obra dos grandes
fotógrafos, estudá-las e entender o contexto em
que foram criadas. E precisa também conhecer
o trabalho dos fotógrafos contemporâneos, sa-
ber o que fazem seus pares, cercar-se de bons
profissionais. Cultura, curiosidade, interesse é o
que dá consistência e sentido ao trabalho.

Evidentemente que a profissão pressupõe al-


gum conhecimento técnico, que será apurado
pela prática, pela observação do trabalho de ou-
tros fotógrafos e pelo estudo. Mas, muitas vezes,
por várias limitações, não temos condições de
tratar os arquivos digitais ou de revelar nossos
próprios filmes. Daí a importância de nos cercar-
mos de profissionais competentes, técnicos que
se tornam verdadeiros parceiros – tive a sorte de
contar com companheiros como Rosângela An-
drade, que revelou meus filmes por muitos anos,
e Marcos Ribeiro, que hoje cuida de meus arqui-
vos profissionais.

Por fim, o fotógrafo conta com alguns fatores


mais fugidios, difíceis de descrever com obje-
tividade, mas sempre presentes. Um deles é a
intuição, de que já falei muito, e que é filha do
exercício e da sensibilidade. O outro, inescapável,
é a sorte – de encontrar um tema que se encai-
xe em seu desejo, de escolher o caminho certo,
de estar presente no momento mágico em que

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tudo acontece. Sei que isso é imponderável. Mas
sinto que posso dizer aos novos fotógrafos: estu-
dem, olhem, pratiquem. E acreditem na sorte –
ela sempre aparece.

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Flanando por São Paulo, como sempre

Sou um fotógrafo andarilho. E um fotógrafo de


São Paulo. Minha relação com a cidade que for-
mou meu olhar é intensa e sempre renovada.
Para quem sempre busca o inesperado, ela é
inesgotável em seus múltiplos cantos de sereia.
Meus planos são sempre desviados pelas surpre-
sas que se interpõem em meu caminho.

Hoje volto ao centro e revejo lugares que fotogra-


fei muitas vezes, desde muito tempo. Em 1983,

Centro comercial na rua 24 de maio. Fotografia de Cristiano Mascaro

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passei por um centro comercial na rua 24 de
Maio e, curioso, subi por escadas rolantes que-
bradas até o último andar carregando meu pe-
sado equipamento. Ao me encostar no parapei-
to, vi as escadas rolantes abaixo de mim, numa
espantosa composição geométrica. Para cap-
tá-la, tive de tirar a câmera do tripé e apontá-la
para baixo, mas não conseguia olhar pelo visor.
Tive sorte: a imagem captou a simetria da cena,
preservando seu aspecto de máquina, de engre-
nagem. Ali, há 40 anos, percebi que era possível
falar da cidade por meio de seus detalhes, sem
recorrer aos discursos mais desgastados.

Também no centro paulistano fotografei, em


1986, a avenida São João do alto do Edifício Ba-
nespa. O sol entre as nuvens refletia-se sobre o
asfalto transformando a avenida num facho de
luz. Um momento mágico que tive a sorte de
presenciar, em uma circunstância – o dia enco-
berto – talvez considerada pouco adequada para
a fotografia. Essas fotos se tornaram conhecidas
e continuam entre minhas preferidas, pela histó-
ria por trás delas e pelo resultado.

Flano pela cidade dando tanta atenção ao que


é novo e preservado quanto ao que está degra-
dado ou em ruínas. As coisas abandonadas têm
alma. Entre os japoneses há uma palavra – kint-
sugi – que designa a beleza das coisas quebradas.
Quando um vaso quebra, eles o colam deixando
o remendo aparente, ou usando como adesivo
um material precioso que destaca e enobrece a
rachadura. Para o fotógrafo, as cicatrizes das ci-
dades, em sua superposição de vidas e histórias,
pelo eterno movimento de destruição e recons-
trução, são pontos de luz.

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Fotografia de Cristiano Mascaro

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Este material de apoio é parte do curso Fotografia
e Cidade. A formação é gratuita e está disponível
na plataforma de educação a distância do Sesc São
Paulo: www.sescsp.org.br/ead

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