Você está na página 1de 8

1

Utopia da Improvisação
por Vítor Rua

“Improvisar é uma forma rápida de compor


Compor é uma forma lenta de improvisar”
(Arnold Schoenberg)

Resumo

Na actualidade, é através da improvisação, e de uma utopia do erro


na improvisação, que grande parte das pessoas escuta um certo tipo
de sons musicalmente organizados que não ouviria noutras
circunstâncias. Este texto aborda a manipulação subliminal
desenvolvida num determinado estilo musical, bem como a
importância aparentemente utópica do erro na improvisação.

Palavras-chave: utopia, erro, música, improvisação, aleatório,


indeterminação.

legitimated, middlebrow & popular taste #01 - Segundo Pierre


Bordieu, o gosto do público pela música, está intimamente ligado
ao seu estrato social e background. Bordieu classifica esse gosto
em três categorias diferentes, sendo a primeira o legitimated
taste (alguém que escolhe prioritariamente escutar Lachenmann ou
Stockhausen) e acredita que as pessoas que afirmam ter este tipo
de gosto são mais compatíveis socialmente com as classes
dominantes. A segunda categoria por ele considerada é o gosto
middlebrow, uma média entre dois extremos e tido como o lado
legitimado de uma música mais popular. A terceira categoria
considerada é o popular taste, e aplica-se a pessoas que gostam de
um certo tipo de música, consoante aquilo que a rádio lhes dá a
ouvir. Alguns chamarão a esta última categoria, um gosto não-
refinado. Seguindo o pensamento de Bordieu, ele acredita, por
2
exemplo, que os professores interagem melhor com crianças que
possuem o gosto "legitimado" e, que o gosto de cada um está ligado
às classes sociais. Assim, na sua perspectiva, quanto mais alta
for a classe social de um estudante, mais possibilidades ele tem
de vir a ter sucesso escolar. No entanto esta categorização das
classes sociais já vem de trás.
Dwight MacDonald, parte da distinção de três níveis intelectuais,
high, middle e lowbrow (distinção que deriva daquela entre
highbrow e lowbrow, (proposta por Van Wyck Brooks, em America´s
Coming of Age), mudando-lhes a denominação de acordo com um
intento polémico mais violento: contra as manifestações de uma
arte de elite e de uma cultura propriamente dita, erguem-se as
manifestações de uma cultura de massa que não é tal, e que por
isso, ele não chama de mass culture, mas de masscult, e de uma
cultura media, pequeno burguesa, que ele chama de midcult. (Eco
2005:37).
Para os pertencentes à terceira categoria (popular taste), é
apenas numa certa publicidade, séries, e nos filmes, que ocorre a
oportunidade de escutarem certo tipo de música, ou seja, no medium
que Bordieu refere como sendo o formador do gosto desses
indivíduos: a TV.
O que se pode então ver e ouvir na televisão nos dias de hoje, que
permita aos espectadores do popular taste um “vislumbre” do
legitimated taste? É sobre isso que reflicto em seguida.
Um indivíduo pertencente à categoria do popular taste, que
sintonize um canal de TV prestes a emitir o filme de Stanley
Kubrick, 2001 Odisseia no Espaço, assistirá a uma obra-prima do
cinema e ouvirá uma miríade de composições musicais que, noutras
circunstâncias não veria nem ouviria. A exemplo, o filme inicia
com a palavra Overture enquanto se ouve Atmosphères do compositor
György Ligeti, de seguida, no genérico da MGM, ouve-se a obra de
Richard Strauss Also Sprach Zaratustra.
Embora durante a Alvorada do Ser Humano a música seja inexistente
– apenas com uma sonoplastia concretista constituída de sons da
natureza, vento, pássaros e ruídos dos antropóides –, com a
3
aparição do monólito surge de novo a música de Ligeti. Também a
descoberta do osso de um animal como arma (símbolo de poder), faz
regressar a música de Richard Strauss. Na continuação, o homem-
macaco atira o osso ao ar – e quando este começa a descer e se
transforma numa nave espacial que desliza em silêncio sobre a
tela, com o zoom da câmara sobre a nave –, surgem as primeiras
notas do Danúbio Azul de Johann Strauss Jr.. Posteriormente,
quando uma nave passa sobre a Lua, ouvimos em surdina o coral Lux
Aeterna, de György Ligeti. Já na Lua, os astronautas aproximam-se
do monólito e retorna – como num leitmotiv – a música Atmosphères
de Ligeti. Num outro momento, uma nave voa em direcção a Júpiter e
escutamos a peça da Suite Gayaneh, de Khatchaturian. Ainda para a
palavra Entreato, Kubrick reserva a música de Ligeti, que
acompanha todo o processo do desligar do computador Hal, bem como
toda a cena rumo ao infinito. No final do filme, numa espécie de
eterno retorno, surge de novo o tema Also Sprach Zaratustra de
Strauss.
Como pudemos constatar, este filme contém música dita clássica/
erudita normalmente enquadrada nas categorias do legitimated e
middlebrow taste de Bordieu. É assim, que assistindo a apenas um
filme e no conforto das suas casas (através da TV), indivíduos
pertencentes à categoria do popular taste usufruem, mesmo sem o
saberem, de compositores integrados no legitimated e middlebrow
taste – como é o caso de Johann e Richard Strauss, Ligeti e
Khatchaturian. Podemos com pertinência interrogar-nos: “Em que
outras circunstâncias poderiam ouvir Ligeti nas suas vidas?”.
Escolhi a obra 2001 Odisseia no Espaço, de Kubrick, por ser um
caso paradigmático no uso de música clássica/erudita no cinema.
A música improvisada total pertence à categoria - intitulada por
Bordieu - do legitimated e middlebrow taste, e o conceito de erro
é um termo que melhor descreve esta tipologia musical, sendo -
aparentemente - uma utopia a sua atendibilidade.

lucky luke #02 - Nos últimos 35 anos, a minha relação com a


prática musical, tem incluído, com um grau cada vez maior, a
4
improvisação. Cada concerto, ensaio, gravação, tenta ser
conceptualmente diferente da anterior, quer a nível técnico,
performativo ou das metodologias utilizadas. Factores que
determinam essas diferenças, podem ser, o local onde se realizam
essas acções, o espaço cénico, condições tecnológicas, estados
psicofisiológicos.
Estudar, trabalhar e controlar a improvisação, é um paradoxo: como
controlar o que deve ser um desenvolvimento livre de ideias
musicais, espontaneamente sugeridos pela imaginação? E de que
improvisação me estou a referir? À improvisação como um sistema de
sinais? À improvisação total, onde nenhum parâmetro/notação/gesto/
acção/ideia, é previamente definido? À improvisação estruturada,
onde apenas um mínimo de informação serve de estrutura à acção
musical? A improvisação jazzística na qual após a exposição de um
tema pré-determinado, o improvisador tem a liberdade de agir numa
tonalidade/ escala ou modo definido?
De todas estas formas de improvisação, a que mais me fascina e
apaixona, a que verdadeiramente me eleva a graus de prazer
excepcionalmente misteriosos e extraordinários, é a improvisação
total não-idiomática.
Derek Bailey escreveu sobre a improvisação “And as regards method,
the improviser employs the oldest in music-making… Mankind's first
musical performance couldn't have been anything other than a free
improvisation”. E sobre a improvisação total refere que “Free
improvisation, in addition to being a highly skilled musical
craft, is open to use by almost anyone--beginners, children, and
non-musicians”.
A introdução de jogos/sistemas aleatórios, levam o improvisador a
momentos improvisatórios de excepção, se tivermos em conta, que o
que está em causa implicitamente nessas situações musicais são: a
surpresa, o risco, o espantar constante, imediato e em tempo-real
- o improvisador tem que ser um pouco como o Lucky Luke: “mais
rápido que a própria sombra”.
5
errar é humano? #03 - “An error may be only an unintentional
rightness...Do not get too fussy about how every part of the thing
sounds. Go ahead. All processes are at first awkward and clumsy
and funny. Do not be afraid of being wrong; just be afraid of
being uninteresting”. (T. Carl Whitmer).
O erro na música é visto por certas civilizações (a Ocidental
especialmente) como algo negativo, depreciativo e indesejável. Mas
sei também, que a História da Ciência está repleta de casos de
descobertas importantíssimas que se originaram de erros ou de
acidentes: Fleming descobriu a penicilina graças ao fungo que
contaminou uma lâmina de cultura; Roentgen descobriu os raios X
graças a um descuido no manuseio de uma placa fotográfica. É
conhecido o princípio do jiu-jítsu: usar os golpes do adversário e
a energia que deles vem, para desviá-los em nosso proveito. Joe
Pass, guitarrista de jazz, diz que “If you hit a wrong note, then
make it right by what you play afterwards”. Já o compositor John
Cage diz que “The idea of a mistake is beside the point, for once
anything happens it authentically is”.
Como é que nascem as pérolas? Um grão de areia deposita-se
acidentalmente na concha de uma ostra; a ostra passa a segregar um
muco espesso e homogéneo, que se solidifica em camadas
microscópica, até se transformar numa pedra dura, perfeitamente
esférica e lisa, de lírica beleza.
Os erros podem ser assim, grãos de areia que se travestisam em
pérolas. Freud mostrou-nos a maneira fascinante como os lapsos de
linguagem revelam o material inconsciente. Ora, o inconsciente é o
verdadeiro pão do artista, de forma que “os erros e lapsos devem
ser valorizados como informações inestimáveis do nosso interior”.
Ora, sabendo eu da importância que o erro tem ou pode ter na
música e em especial na improvisação, comecei inicialmente, por
distinguir diferentes tipos de erros:
erro ocasional (provocado por diversos factores: distracção
momentânea, amnésia, fadiga, dislexia, etc.);
6
erro por excesso (quando por exemplo um pintor não sabe terminar o
seu quadro na altura certa) erro por ignorância (causado por
desconhecimento de como proceder);
erro virtuosístico (que advém de o improvisador levar ao limite
máximo, determinada situação musical complexa, e tentar uma
espécie de "overdose" técnica tal, que a determinada altura, o
erro ocorre);
erro tecnológico (causado por uso indevido de certa tecnologia, ou
pelo contrário: usar essa tecnologia para recriar o erro). Mas
como provocar o erro? O erro provocado intencionalmente não é
erro! O erro quer-se aqui, num estado puro (utopicamente natural),
não-intencional.
Thelonious Monk, descontente com uma improvisação que acabava de
executar, saiu-se com esta extraordinária observação: "I have made
the wrong mistakes" !
O erro, como possibilidade utópica musical, tinha que ser
concebido como um sistema simbólico formal capaz de trazer novas
possibilidades à improvisação: caos com feedback. Da mesma maneira
que a simplicidade gera a complexidade, o erro tem que gerar o
erro.
Encarar o erro como uma utopia musical, é como uma espécie de
"Alegoria da Caverna", em que as sombras são a realidade. Se a
Música é uma criatividade governada por regras, poderá o erro ser
uma criatividade governada por regras?
Para lidar com o erro, tinha que desaprender o que era certo.
Tinha que sair fora-do-sistema. Para Douglas Hofstadter, sair-se
de um sistema era o que distinguia o ser humano da máquina; e dava
como exemplo o pegarmos numa calculadora e somarmos ao número 1, 1
e depois +I e +I e depois +1 e +1 e +1 e +1 e repetirmos isto
durante várias horas; a máquina nunca aprenderá a antecipar-nos,
enquanto que qualquer pessoa encontraria imediatamente um padrão
repetitivo. Conclui Hofstadter, que “é possível para uma máquina
agir sem observar, é impossível ao homem agir sem observar".
Como sair então fora do sistema? Se estiver a ler um livro ou a
escrever este texto e me sentir cansado, posso sempre parar de ler
7
ou escrever e retomar mais logo: isto é sair-do-sistema. Se o
sistema normal de um músico é o de não-errar, como inverter o jogo
e direccionar o seu acto musical para o erro, sem o provocar
intencionalmente?
Através de um modo mecânico, que nos leve a trabalhar dentro do
sistema e esperando obter o erro? Através de um modo inteligente,
isto é, nada nos diz que estando sempre dentro do sistema nos vai
trazer o erro e assim sai-se fora-do-sistema, tentando modificar
constantemente as regras deste, trabalhando às avessas? Ou através
de uma espécie de não modo, uma maneira zen de esperar que o erro
apareça por si? Reflectindo sobre estes três modos de proceder
para provocar naturalmente o erro, lembrou-me que quando me
aparece uma coisa que não percebo no computador e passo horas e
horas a tentar resolver o problema (erro) muitas vezes não o
descubro: isto é o modo mecânico; depois desisto, vou-me deitar
(saio do sistema) e de manhã, acordo, ligo o computador e descubro
imediatamente a solução: isto é o modo inteligente; ou então, sem
qualquer razão aparente, o problema resolve-se por ele próprio:o
não modo. Passei então a considerar o erro, como um sistema
formal, uma espécie de puzzle: “como produzir erro?”. Para
resolver este puzzle é necessário estabelecer uma regra: "não se
pode errar propositadamente"; deve-se errar "naturalmente", sem
consciência que se vai errar. A solução do puzzle é a de que esse
erro assim obtido, deixa de ser erro, porque é o que se pretende
obter: "a sombra torna-se realidade", chegando-se assim a um
paradoxo, ou melhor, aquilo que Hofstadter chamou de strange loop
(laço estranho):
“A FRASE SEGUINTE É FALSA
A FRASE ANTERIOR É VERDADEIRA”

James Last but not the Liszt #04 - Se as letras impressas deste
artigo fossem aparecendo gradualmente acompanhadas da improvisação
de sons diversos (e.g. gato a miar, porta a ranger, derrapagem,
buzina, nota de vibrafone), e se se tratasse de um anúncio a uma
impressora ou a um computador, ou se fosse o início de um filme no
8
qual um plano de mãos que escrevem é acompanhado do som das unhas
e dedos a bater nas teclas, ou ainda, se se tratasse de um cartoon
onde as letras com vida própria dançassem sobre a folha de papel
ao som do rabiscar de uma esferográfica, qualquer um destes casos
seria exemplo de sons organizados, ou seja, música, e neste caso
de música concreta improvisada. Estes são exemplos musicais, que a
popular taste normalmente nunca ouviria noutras circunstâncias.
Assim, quando se desliga o volume nos intervalos dos anúncios da
TV ou rádio, ou quando se ignoram certos cartoons ou filmes,
alguns espectadores estão a perder a oportunidade de se
aproximarem musicalmente do legitimated taste, uma vez que
geralmente não frequentam concertos de música improvisada
acusmática/concreta ou ambientes especificamente dedicados a esse
tipo de música, onde o erro faz parte inerente desta tipologia
musical.

Referências Bibliográficas:
Attali, Jacques, Bruits, Fayard, 2001
Bailey, Derek, Improvisation, Da Capo Press, 1980
Borgo, David, Sync or Swarm, Continuum, 2005
Cook, Nocolas, A Guide to Musical Analyses, W.W. Norton, 1987
Cogan, Robert, New Images of Musical Sound, Harvard University
Press, 1984
Hofstadtler, R. Douglas, Godel, Escher, Bach, Gradiva, 1979
Holtzman, R. Steven, Digital Mantras, The MIT Press, 1994
Khan, Douglas, Noise Water Meat, The MIT Press, 1999
Kramer, D. Johnatan, The Time of Music, Schrimer Books, 1988
Landy, Leigh, What´s the Matter with Today´s Experimental
Music?, Harwood Academic Publishers, 1991
Leeuwen, Theo Van, Speech, Music, Sound, Macmillan, 1999
Maconie, Robin, The Science of Music, Clarendon Press, 1997
Nachmanovitch, Stephen, Free Play, Tarcher Penguin, 1990
Rua, Vítor, A Musicologia na Era do Porquinho Babe, Bubok,2009
Schaefer, R. Murray, The Soundscape, Destiny Books, 1977
Tame, David, The Secret Power of Music, Destiny, 1989

Você também pode gostar