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FICHAMENTO

“Música, cinema e os desafios teóricos interdisciplinares” de Suzana Reck


Miranda – Revista Estilo e Som

A autora inicia falando nos contextualizando sobre a importância do livro


Unheard Melodies de Claudia Gorbman para os estudos de Música no Cinema a partir
dos anos 90. Ela salienta que a música “original” muito utilizada no melodrama nasce
de um contexto mais voltado a era de ouro do cinema clássico hollywoodiano (1930 a
1950).
“[...] este tipo de música “reciclava” sonoridades sinfônicas e estratégias
melódicas do Romantismo tardio e teve na figura de Max Steiner (compositor escolhido
por Gorbman como uma espécie de alicerce para os seus pressupostos) um dos seus
grandes expoentes.”
Por fim, ela termina dizendo que irá abordar o estudo de “método de análise que
Philip Tagg desenvolveu para a Música Popular - tendo em vista possíveis
aproximações e aplicações no âmbito dos Estudos da Música de Cinema.”
O estilo musical presente nos filmes clássicos hollywoodianos era a música de
fundo que tende a ser imperceptível ao espectador, que para isso utiliza-se técnicas de
composição e edição para tal feito, tem como objetivo reforçar a narrativa do filme.
Gorbman utiliza um viés psicanalítico presenta na Teoria do Cinema nos anos 70
e 80 para reforçar o fato de que no cinema clássico tudo erro feito para o espectador não
se dar conta de que está assistindo a um filme, pelo contrário era comum fazer de tudo
para que o espectador ficasse em transe, se sentindo parte daquele mundo ficcional.
Desse modo, a música é de extrema importância, pois ela auxilia ainda mais nesse
processo, no caso a música de fundo.
“[...] Para desenvolver seus argumentos, Gorbman compactua com o viés
psicanalítico em voga na Teoria do Cinema dos anos 1970/1980 e retoma os conceitos
de Enunciação e de Sutura ao apontar que a narrativa clássica cinematográfica objetiva
encobrir as marcas de sua materialidade/construção, bem como colocar o espectador em
uma posição de “fusão” com o universo ficcional. A autora defende que a música típica
deste período, principalmente quando não está em um “primeiro plano” sonoro, é um
elemento essencial nestes dois processos pois, mesmo quando discreta, não perde sua
forte capacidade de abstração. Neste sentido, uma espécie de união entre o espectador e
a diegese seria estimulada pela música que, como um antidoto, seria capaz de afastar
elementos desagradáveis e manter um estado de prazer no espectador.”
Gorbman fala que “este mecanismo ocorre “tanto num campo semiótico”
(através de códigos culturais e conotações estimuladas pela informação musical),
“quanto psicológico” (o dispositivo técnico, as elipses espaciais e temporais, os cortes
seriam amenizados pela presença da música) e recorrera a Guy Rosolato e Didier
Anzieu para reforçar a ideia de Jean-Louis Baudry de que a narrativa clássica estimula o
espectador a mergulhar num “estado de regressão”.
Partindo disso, a autora fala sobre os autores Rosolato e Anzieu serem
influenciados pela psicanálise e pensarem no som como “processo de formação do
sujeito”, pois o bebê quando ainda está no útero da mãe tem a audição como forma de
imaginar o mundo do lado de fora, é o primeiro sentido que experimentamos. “Nesta
experiencia auditiva “das origens” residiria também os fundamentos do prazer da escuta
musical, independentemente de a música ser ou não um sistema discursivo codificado.
Uma melodia agradável, portanto, poderia relaxar o ouvinte a ponto de promover uma
espécie de transcendência e de evocar sensações de um estágio anterior, nostálgico ou,
como dizem os autores, fomentar uma “fusão imaginaria do sujeito com o corpo
materno” (GORBMAN, 1987: 60-63).
Gorbman busca, através de suas análises, identificar formas que fazem o
espectador “diminuir sua atenção crítica e abrir-se ao universo ficcional do filme a
ponto de não perceber o quanto a música, que quase não chama a sua atenção por estar
“no fundo”, atua como instancia narrativa potente.”
Questionamento: A música cinematográfica deixa o espectador mais passivo ao invés de
ativo em relação com a narrativa?
A autora do artigo, para complementar, se refere ao livro Strains of Utopia:
Gender, Nostalgia and Hollywood Film Music, de Caryl Flinn para dizer que Flinn vem
com a mesma proposta de Unheard Melodies, mas utiliza-se de termos diferentes. “[...]
desta vez em diálogo os conceitos de Gesamtkunstwerk (obra de arte total) unendliche
melodie (melodia infinita) e leitmotiv advindos da estética wagneriana.” Assim, ele
compreende que o cinema clássico hollywoodiano se utiliza da música para criar uma
“intenção de narratividade” e que para isso ela precisa estar ligada, mais
especificamente subordinada, aos demais elementos narrativos presentes no filme, ou
seja, diálogos, imagem, ação etc.
Questionamento: a música subordinada aos elementos narrativos é o padrão da música
extra diegética ou música de fosso?
Enquanto Gorbman busca, através de um viés psicanalítico, em filmes Noir e
melodramas femininos melodias que remetem a lembranças, momentos nostálgicos
“algo que, em sua opinião, está culturalmente arraigado na linguagem musical “em si”
adotada pelas trilhas musicais clássicas, onde impera uma eterna retrospectiva de
sonoridades tonais, previsíveis e familiares.” Finn recorre ao entendimento do que faz a
música “se alinhar a um ideário utópico”.
Em oposição ao modelo de Gorbman, a autora Kathryn Kalinak, em seu livro
Settling the Score: Music and Classical Hollywood Film, discorre sobre a música ser tão
valiosa quanto a imagem. “Desta forma, o enfoque reside na contemplação da música
como parte essencial da narrativa fílmica.” De acordo com a autora, há momentos em
que o espectador percebe a música e isso não atrapalha o “fluxo narrativo (que disfarça
a materialidade)”, pelo contrário, colabora para uma “apreensão prazerosa, o que, em
certa medida, demandaria um processo cognitivo.”
“Kalinak tenta confrontar o predomínio da imagem nos estudos
cinematográficos e propõe que som, música e imagem, no cinema, deveriam ser
investigados sob a chave da “interdependência”. A música, portanto, tem o poder de
conter informações tanto quanto a imagem, ao invés de ser um mero mecanismo de
apoio e/ou de mascaramento do aparato fílmico.”
Seguindo, Miranda traz o autor Jeff Smith que discordava veementemente com a
teoria de Unheard Melodies, pois segundo ele “a música não se passa por despercebida
na maior parte do tempo na narrativa clássica e ainda que os processos cognitivos
podem operar até mesmo quando a música está em segundo plano”. Smith, em seu
artigo, Unheard Melodies? A Critique of Psychoanalytic Theories of film Music, expõe
que reagir a música significa realizar processos mentais e para muitos cognitivistas não
se pode dizer que tal processo é inconsciente. Para ele os filmes eram capazes de ensinar
o público deve perceber a música, pois caso contrário como seria possível comprovar
sua autonomia na venda de discos, partituras, entre outros.
Miranda segue para o fato de que os estudos sobre música no cinema serem
recentes e isso lhe trazer alguns problemas. Apesar da interdisciplinaridade entre
Musicologia e Estudos de Cinema, “alguns musicólogos não toleram possíveis falhas
analíticas mesmo de quem não tenha um conhecimento de música avançado e os
teóricos de cinema teóricos do cinema não se interessam por análises musicais que não
consideram os elementos cinematográficos. Quem está nesta encruzilhada precisa,
então, lidar com uma espécie de “desconhecimento inerente” de uma das áreas. Dentro
desta lógica, o Unheard Melodies colaborou para diminuir este estigma pois, conforme
já dissemos, foi e ainda é uma referência central em diferentes contextos acadêmicos.”
“Régis Duprat nos lembra que a Musicologia surgiu como disciplina no final do
século XIX, no “clima epistemológico do positivismo cientificista” (DUPRAT, 2007:
7).”
“Guido Adler: Musicologia Histórica’, dedicada ao estudo da notação, das
formas musicais, das regras de composição e da organologia, e a ‘Musicologia
Sistemática’, ligada a estética, a psicologia da música, a educação musical e ao que hoje
chamamos de Etnomusicologia (NATTIEZ, 2005: 8).”
“Philip Tagg foi um dos pioneiros em estudos rigorosos sobre Música Popular
no início da década de 1980 e desde suas primeiras pesquisas dedicou-se a desenvolver
um modelo analítico que, além dos elementos estruturais, levasse em consideração o
que ele chama de contexto paramusical, no qual as significações musicais são
necessariamente compreendidas para além de seus elementos intrínsecos.”
Tagg, percebeu, através da análise musical do tema de abertura da série Kojak
(EUA, CBS, 1973-1978), que musicólogos tendem a analisar a composição musical sem
levar em consideração uma “série de características que são fundamentais no universo
da música popular como, por exemplo, o fato de circular como um produto comercial
entre públicos muitas vezes heterogêneos. Tagg notou que, de um modo geral, os
descritores analíticos comumente utilizados na musicologia sobrevalorizam elementos
inerentes ao ‘fazer’ musical.”
Segundo Miranda, Tagg leva em consideração o seguinte pensamento: de que a
música é um sistema simbólico e seu poder de comunicação depende tanto do ouvinte
que não tem conhecimentos musicais quanto do que tem. Além disso, ele prega por
“uma terminologia mais democrática e evitar descritores ligados apenas ao fazer
musical ou que não contemplem relações com fenômenos não musicais (TAGG, 2001:
4).”
A autora ainda apresenta o método de Tagg que consiste em identificar na obra
musical o que ele chama de musemas “(conceito originalmente elaborado por Charles
Seeger, em 1960, que diz respeito a unidades mínimas de significação)” e, a partir disso,
observar as possíveis associações paramusicais possíveis que estes musemas, em uma
prática cultural especifica, podem suscitar. O autor esclarece que os musemas (e suas
associações) são semelhantes a outros musemas de outras músicas e que esta
característica permite ao analista encontrar um possível significado (para o evento
sonoro) a partir de uma “correspondência hermenêutica” (entre eventos distintos).”
Há duas etapas importantes durante esse processo. “A primeira implica em
observar os musemas da música analisada em relação a outros, de outras obras, que
sejam semelhantes, desde que estas obras tenham sido concebidas dentro de um mesmo
contexto cultural. Os musemas, então, devem ser relacionados aos seus possíveis
contextos paramusicais (letra, cenários, ações, habitat social, entre outros).”
“No intuito de aprimorar tal modelo, Tagg e Bob Clarida empreenderam uma
longa pesquisa empírica entre 1979 e 1985 que, posteriormente, foi compilada no livro
Ten Little Title Tunes, publicado em 2003. Trechos musicais pequenos retirados de
exemplos fílmicos e televisivos114 foram reproduzidos sem as imagens a centenas de
pessoas115 que, num curto espaço de tempo, tiveram que descrever configurações
visuais que julgavam equivalentes a partir de exercícios de pensamento associativo.
Foram feitos cruzamentos estatísticos rigorosos e as tabelas resultantes passaram a
constituir o que os autores chamaram de material de ‘comparação inter-objetiva’. Para
os autores, o objetivo deste tipo de análise e fornecer meios para que se conheça e se
reconheça os arquétipos de nossa própria cultura. [...] Seus estudos envolveram também
uma disposição cronométrica exata do exemplo analisado bem como a elaboração de
uma espécie de partitura gráfica, com linhas para o tempo, para a forma, para a
ocorrência de musemas, entre outras. Tagg reforça ainda que não existe – e nem pode
existir – um “dicionário” de musemas. Ou seja, para cada análise, uma tabela de ideias
musicais deve ser elaborada (TAGG, 1979, 2003).”
“Kathryn Kalinak, em artigo importante de 1982, usou o estudo empírico de
Tagg e Clarida (que, na época ainda era um relatório de pesquisa) para analisar
exemplos de temas musicais que suscitam associações com a figura feminina (temas
pastorais, românticos, elementos rurais, entre outros)”.
Outra pesquisadora que utilizou da pesquisa de Tagg e Clarida foi “Anahid
Kassabian, que alinhada aos chamados Estudos Culturais, Kassabian foca sua reflexão
nos processos de recepção dos filmes, principalmente nos mecanismos de engajamento
e identificação. Ela afirma enfaticamente que qualquer abordagem sobre o tema deve
levar em conta a relação entre o espectador e a trilha musical. Para ela, o que gera
consistência tanto na codificação quanto na decodificação das significações possíveis da
música em filmes e o que ela chama de “competência”, uma habilidade culturalmente
adquirida, variável, que funciona entre “falantes de uma mesma linguagem”, cuja
consistência varia de acordo com o grau de “fluência” (KASSABIAN, 2001).”
Para finalizar, Miranda retoma a questão da interdisciplinaridade do assunto
música no cinema e ainda sobre a importância desse intercâmbio entre pesquisadores
imersos em áreas tidas como geradoras para que seja possível suscitar cruzamentos
importantes e remodelar paradigmas.

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