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F O R T U N A C R Í T I C A

Ivan Teixeira

RETÓRICA E LITERATURA
No primeiro artigo da série Fortuna crítica, o

Fotos Reprodução
crítico Ivan Teixeira analisa a abordagem
retórica da literatura, que tem seus fundamentos
em Aristóteles e cujos tropos e figuras de
linguagem são dispositivos que permitem a
particularização do discurso poético
Estátua de Aristóteles no Museu Spada (Roma)

Série destaca as principais A abordagem retórica da literatura é quando chamado a se manifestar sobre
uma modalidade intrínseca de crítica, que coisas futuras é consultor, porque acon-
tendências da crítica literária leva em conta não apenas o texto em si, selha ou desaconselha uma ação ainda por
A partir desta edição, a CULT publica mas também o ato de emissão e seu efeito acontecer, como ocorre, por exemplo, na
a série “Fortuna Crítica”, com seis sobre o leitor, isto é, considera o produto, propaganda. No discurso demonstrativo
ensaios de Ivan Teixeira sobre as prin- o autor, o leitor e a circunstância em que ou epidítico, o ouvinte é apenas espectador,
cipais correntes da crítica literária e se processa a comunicação. Sempre reno- porque sua atenção recai sobre o presente,
das teorias poéticas. O primeiro, publi- vados, os estudos retóricos constituem- buscando tão-somente se deleitar com o
cado nestas páginas, aborda a retórica
de Aristóteles e Quintiliano. Os próxi-
se numa das mais antigas e permanentes louvor ou com a censura de uma ação
mos ensaios serão sobre o formalismo, preocupações do homem. ainda em vigência. Nesses casos, os
o new criticism, o estruturalismo, o new No terceiro capítulo da Retórica, ouvintes reúnem-se apenas para conhecer
historicism e o desconstrucionismo. Aristóteles ensina que há três gêneros de as ações; nos dois outros, para as conhecer
Ivan Teixeira é professor do Departa- discurso: o judicial (acusar ou defender), e determinar alguma coisa sobre elas. Os
mento de Jornalismo e Editoração da o deliberativo (aconselhar ou desacon- fundamentos dessas noções originam-se
ECA-USP, co-autor do material didático
do Anglo Vestibulares de São Paulo
selhar) e o epidítico ou demonstrativo em Aristóteles, mas alguns acréscimos
(onde lecionou literatura brasileira (louvar ou censurar). Essas modalidades apresentados aqui decorrem da versão
durante mais de 20 anos) e autor de definem-se a partir da posição do ouvinte setecentista de Quintiliano para o portu-
Apresentação de Machado de Assis perante o discurso. No gênero judicial e guês, levada a efeito por Jerônimo Soares
(Martins Fontes) e Mecenato pombalino no deliberativo, o ouvinte é sempre juiz, Barbosa, cujos comentários facilitam
e poesia neoclássica (a sair pela Edusp).
assumindo diferentes nuanças diante do muito a compreensão da matéria: Insti-
Ivan Teixeira tem se dedicado a edições
comentadas de clássicos – entre eles as discurso, conforme deva se manifestar tuições oratórias, 1788-1790.
Obras poéticas de Basílio da Gama sobre coisas passadas ou presentes. Quan- A partir dos acréscimos de Quin-
(Edusp) e Poesias de Olavo Bilac (Martins do chamado a se manifestar sobre coisas tiliano, pode-se afirmar que o gênero
Fontes) – e dirige a coleção “Clássicos passadas, o juiz é julgador, porque acusa demonstrativo é o que mais se aproxima
para o Vestibular”, da Ateliê Editorial. ou defende uma ação já concluída; do atual conceito de discurso literário,

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pois objetiva o aparato e a ostentação, segundo, organiza-as conforme a conve- criação, que integra a inventio e a dispositio.
intensificando a beleza do texto. Nele, o niência dos gêneros e dos argumentos; Conforme Lausberg, a elocução consiste
orador não pretende ganhar nenhuma no terceiro, aplica-lhes os ornatos, que na expressão lingüística das coisas
causa, mas a própria reputação, mediante são os artifícios mediante os quais se localizadas pela invenção. Jerônimo
o prazer proporcionado ao ouvinte. Em particularizam as coisas retóricas. Mas o Soares Barbosa afirma tratar-se da
vez de ocultar os artifícios da construção, que são coisas retóricas? São a matéria de expressão verbal capaz de acrescentar
coloca-os à mostra, procurando promo- que fala o poeta, a qual não deriva da vida nova força aos pensamentos, isto é, acre-
ver a maravilha e o espanto no ouvinte. empírica dos fenômenos, mas sim da copia ditava que a elocução tinha o poder de
Por isso, empenha-se nos tropos e nas rerum, que é o repertório coletivo de onde melhorar os pensamentos que já tivessem
figuras, então entendidos como ornatos se extraem as tópicas, moldadas pelas tido uma boa escolha e uma boa ordem.
do discurso, mediante os quais o orador contingências da questão finita. Entende- Todavia, a escolha e a ordem dos pen-
conquistava a aclamação. As operações se por questão finita o universo prático a samentos de nada valeriam sem expressão
do gênero demonstrativo em Quintiliano que se destina o discurso. eficiente.
não se distanciam daquilo que, hoje, se Em outros termos, as coisas retóricas Segundo Quintiliano, pensamentos
entende por função poética da linguagem, são os argumentos que se cristalizam sem expressão são como espadas na
em que os ornatos tornam o texto mais como casos passíveis de se converterem bainha. Conforme o mesmo Quintiliano,
denso, fornecendo ao leitor a essa parte da retórica divide-
Páris e Helena,
oportunidade de “apalpar” os se em duas modalidades: a
de Jacques-Louis
efeitos da ação do poeta sobre David, exemplifica elocução gramatical e a elocu-
o discurso. o uso pictórico da ção ornada. A primeira limita-
Em termos atuais, o as- alegoria, em que se à correta transmissão dos
pecto mais propriamente lite- idéias abstratas são pensamentos, vestida apenas
rário do epidítico é uma certa representadas por com clareza e elegância. A
ficcionalidade do gênero, pois figuras concretas segunda caracteriza-se pela
não pretende induzir a uma atribuição de força, luz e graça
ação imediata, de caráter práti- aos pensamentos. Pois não
co, como é o caso do gênero judicial e do em texto. Assim, a comunicação lin- basta ao sujeito falante ser claro e correto,
deliberativo. Ao contrário, pretende esti- güística funciona como uma espécie de deverá também causar admiração, caso
mular a contemplação das ações louvadas, simulacro da natureza, da mesma forma ambicione a aprovação dos sábios e o
assim como o repúdio das ações criticadas. que a poesia deve ser entendida como louvor do povo. E a admiração decorre
Nascem daí a poesia encomiástica (exal- uma cópia desse simulacro. Quaisquer da conveniente aplicação dos ornatos
tação da virtude) e a sátira (condenação que sejam as nuanças do vocábulo natu- retóricos, que são, basicamente, os tropos
do vício), entendidas ambas como moda- reza, parece indiscutível que sempre se e as figuras. Para realçar a importância
lidades recentes do epidítico. Tendo em associa ao objeto de referência do discurso do ornato na elocução, Quintiliano
vista o fim da poesia, esse gênero visava humano. Assim, o mundo imitado pela fornece dois exemplos bastante convin-
ao aprimoramento da vida moral, na poesia deve ser entendido como a reali- centes, dizendo que o brilho da espada
medida em que propunha modelos de dade dos casos retóricos, conjunto de intensifica o terror que ela pode causar
virtudes cívicas, assim como apontava o signos que representam as formas da vida. num combate, assim como o relâmpago
que se devia evitar no exercício da Se o mundo do poeta (fazedor) com- torna o raio mais impressionante.
cidadania. põe-se de coisas retóricas, o modo de Assim, entende-se que a elocução
Conforme a retórica antiga, a comu- articulação dessas coisas deve ocupar ornada seja a essência do discurso
nicação verbal envolve cinco estágios, dos especial atenção na análise retórica do convincente, apto a produzir um efeito
quais três ainda se podem considerar texto. Nesse sentido, a elocutio impõe-se favorável no leitor, causando maravilha
fundamentais: a invenção, a disposição e como o passo mais importante da – o que, tanto nos termos clássicos quanto
a elocução. No primeiro, o orador ou o comunicação verbal, pois confunde-se nos atuais, pertence à esfera do poético.
poeta escolhe as coisas retóricas; no com o dizer: o ato propriamente da De fato, nos modernos estudos de poética

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tem-se levado em conta principalmente ria, a antonomásia e a onomatopéia. vocábulos. O mesmo ocorre com a ale-
a fase elocutiva da construção do discurso, Nesses casos, usam-se os vocábulos fora goria, que deve ser entendida como um
o que pode ser confirmado pelas inves- de sua acepção comum. conjunto interligado de metáforas. Na
tigações de feição estruturalista, desde os Em outros termos: aplica-se um alegoria, certas noções abstratas (vícios,
formalistas russos, John C. Gerber, vocábulo em lugar de outro, sendo que virtudes) são representadas mediante
Wayne Booth até Roland Barthes, Tzve- deve haver uma relação perceptível entre figuras concretas, como costuma acon-
tan Todorov e o Grupo da Universidade o vocábulo utilizado e o evitado. Se a tecer com a iconografia tradicional do
de Liège. relação entre o vocábulo utilizado e o diabo (alegoria do mal) e do anjo (ale-
Seguindo a tendência atual no ensino evitado for de semelhança, ocorre a goria do bem).
da retórica clássica, um pequeno manual metáfora, que é uma espécie de com- Da mesma forma, a antonomásia
popular na Inglaterra considera o termo paração abreviada. Se a relação entre os pertence à esfera do tropo, pois nela um
latino elocutio como nome próprio é subs-
sinônimo de estilo (Peter Detalhe tituído por uma qua-
Dixon, 1971). Francisco do quadro lidade desse nome, como
José Freire, na Arte Apoteose de se observa na expressão
poética (1759), não cansa São Tomás, de o Pai dos deuses em lugar
de exaltar a necessidade Andrea da Firenze de Júpiter. A invenção de
de uma elocução ornada (Santa Maria Novella, palavras com finalidade
Florença),
para o bom efeito da expressiva é também
representando
poesia, dizendo que, sen- a “Retórica” de
considerada uma espécie
do impossível ao poeta maneira alegórica de tropo, tal como se
sempre encontrar maté- constata na onoma-
ria em si maravilhosa, topéia.
deve produzir maravilha Se os tropos se mani-
e novidade pela força do festam pelo uso impró-
artifício ou pelo esqui- prio das palavras, as
sito da pintura. Numa figuras consistem no uso
palavra, o poeta deve personalizado das pala-
provocar o estranha- vras, sem que seu sentido
mento mediante a elo- original seja violado,
cução projetada para o como se observa, por
efeito de surpresa e arrebatamento, o que vocábulos for de contigüidade, ocorre a exemplo, no hipérbato, que nada mais é
se consegue principalmente mediante as metonímia. Os autores do Renascimento do que um tipo de inversão.
imagens artificiais fantásticas, tal como e os da Ilustração esforçaram-se por O mesmo ocorre com a antítese, que
a define no capítulo XV de sua indis- manter o máximo de lógica na relação consiste na justaposição de contrários,
pensável poética. entre os termos do processo metafórico. sem alteração dos termos contrapostos,
Do que fica exposto acima, conclui- Pela perspectiva dos poetas seiscentistas, embora a fusão de ambos acabe gerando
se que os tropos e as figuras de linguagem quanto mais imprevista e imaginosa a um terceiro elemento semântico. Quin-
são dispositivos importantes para a relação entre os termos da metáfora tanto tiliano não adota a distinção entre tropos
particularização do discurso poético. A mais apreciável seria o tropo. e figuras, considerando apenas que
retórica clássica costumava fazer dis- A ironia pertence ao mesmo tipo de existem tropos para significar (com
tinção entre os tropos e as figuras, geração de sentido, pois consiste em insi- alteração do significado próprio) e tropos
também chamadas esquemas. Por tropo nuar o contrário do que se diz. Nela, para ornar (sem alteração do significado
entendia-se o uso de um vocábulo em afirma-se uma coisa para sugerir o seu próprio). Como quer que se encare a
sentido impróprio, como acontece com a contrário, isto é, baseia-se no princípio questão, a adoção atual da retórica deve
metáfora, a metonímia, a ironia, a alego- da alteração do sentido próprio dos conduzir ao exame da geração do sentido

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B I B L I O G R A F I A
• Ensaio de Rhetorica, Confórme o Metodo
e Doutrina de Quintiliano e as Reflexões
dos Authores mais Célebres, que trataram
desta Matéria, por Frei Sebastião de Santo
Antonio. Lisboa, 1779.
• Arte retórica e arte poética, de
literário. Tratando-se de dispositivos vocábulo fora de sua classe: antimeria). Aristóteles. Introdução e notas de Jean
metalingüísticos e, portanto, com força No mesmo poema, há outro verso Voilquin e Jean Capelle. Tradução de
crítica, o simples conhecimento da enigmático: “Olhos sujos no relógio da Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo,
estrutura dos ornatos pode conduzir à torre”. Caso o leitor tenha consciência Difusão Européia do Livro, 1964.
significação dos mesmos. de que o poeta incorporou o esquema da • Ancient rhetoric and poetic, de Charles
Pense-se no início de “A flor e a adjetivação transferida (hipálage), logo Sears Baldwin. Nova York, The Mac-
náusea”, de Drummond. O primeiro atribuiria mais densidade semântica ao millan Company, 1924.
verso diz: “Vou de branco pela rua texto, traduzindo: “Olhos [limpos do • Instituiçoens Oratorias de M. Fabio
cinzenta”. Admita-se que o leitor poeta] voltados para o relógio sujo da Quintiliano, [...] Traduzidas em Lin-
perceba isoladamente as cores enu- torre”. Um passo a mais, e chegar-se-ia guagem, e ilustradas com notas Criticas,
meradas no verso, sem perceber a relação à idéia de que o tempo, a época, a história Historicas, e Rhetoricas, para uso dos que
contrastante entre ambas. Nesse caso, a é que estão encardidos pela conta- Aprendem, por Jeronymo Soares Barboza.
leitura seria menos completa do que a minação social (Guerra Mundial, Coimbra, 2 volumes, 1788-1790.
que registrasse a oposição entre a pureza Estado Novo, capitalismo inconse- • Rhetorical analyses of literary works,
da persona lírica (o poeta) e a impureza qüente). Estes são pormenores perfeita- de Edward P. J. Corbett. Nova York,
do lugar por onde caminha. Logo, a mente compatíveis com o sentido geral Oxford University Press, 1969.
simples consciência de que o poeta do poema. E decorrem do entendimento • Rhetoric, de Peter Dixon. Londres,
lançou mão da antítese para caracterizar da função estrutural dos artifícios Methuen, 1971.
o cenário e a personagem do poema elocutivos, interpretados como um • Arte Poetica ou Regras da Verdadeira
desvenda o significado da abertura do conjunto de formas destinadas à signi- Poesia em Geral, e de Todas as suas
texto. ficação. Especies Principais, Tratadas com Juizo
Mais adiante, no mesmo poema, lê- Assim, a noção antiga de ornato Critico: Composta por Francisco Joseph
se: “Mercadorias, melancolias es- transforma-se em ornato dialético, in- Freire [Candido Lusitano], 2 volumes,
preitam-me”. Trata-se de um verso trinsecamente vinculado à formulação Lisboa, 1759.
enigmático, que facilmente seria inter- do sentido literário do enunciado • Alegoria: construção e interpretação da
pretado como absurdo, caso o leitor não lingüístico. Da idéia de ornato dialético metáfora, de João Adolfo Hansen. São
soubesse da existência da metonímia, chega-se com facilidade ao conceito de
Paulo, Atual, 1986.
que faz pensar em: homens melancólicos arte como procedimento, um dos mais
• A practical rhetoric of expository prose,
ao lado de mercadorias, nas lojas, espiam a adequados redimensionamentos da
de Thomas S. Kanes e Leonard J.
passagem de um poeta indignado. O retórica clássica no século XX, levado a
Peters. New York, Oxford University
primeiro substantivo (mercadorias) está efeito pelos teóricos do formalismo
Press, 1966.
por mercadores; o segundo funciona russo, de que se tratará no próximo
• Elementos de retórica literária, de
como adjetivo do primeiro (uso de um artigo desta série.
Heinrich Lausberg. Tradução, pre-
fácio e aditamentos de R. M. Rosado
O poeta Carlos Fernandes. Segunda edição. Lisboa,
Drummond de Andrade, Fundação Calouste Gulbenkian, 1972.
autor do poema • Camões e Vieira: As Artes e os Feitos, de
“A flor e a náusea”, Alcir Pécora. In: Revista do IFAC,
que utiliza as figuras
Instituto de Filosofia, Artes e Cultura/
retóricas da metonímia e da
adjetivação transferida Universidade Federal de Ouro Preto,
para dar maior densidade nº 2, dezembro, 1995.
semântica a seus versos • Elementos da Invençam, e Locuçam
Rhetorica, ou Princípios da Eloquencia:
escritos, e ilustrados com breves Notas por
Antônio Pereira. Lisboa, 1769.

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