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Resenhas

Resenhas

Memória e Narradores de Javé, um filme sobre


(res)sentimento: memória, História e exclusão
indagações sobre Direção Eliane Caffé, 2004, Brasil.
uma questão
sensível Por Marta Kanashiro
Stella Bresciani e
Márcia Naxara
Se fosse possível colocar uma trilha sonora
Narradores de para esta resenha do filme Narradores de
Javé Javé certamente ela não poderia ter a
Dir. Eliane Café cadência dramática e sóbria que em geral é
usada em filmes sobre o sertão nordestino.
Memória & A sutileza, as ironias e os momentos
sociedade: tragicômicos de Narradores de Javé só
lembrança de podem mesmo ser embalados pelo som
velhos eletrônico-regional-pulsante de DJ Dolores,
Ecléa Bosi responsável pela trilha sonora do filme. É nesse clima que se dá
abertura para o espectador vislumbrar a importância dos sujeitos na
Outras resenhas História e as soluções e saídas para o sofrimento do sertão.

O longa, dirigido por Eliane Caffé, reúne tantos elementos


interessantes para discussão, que é difícil eleger os que devem
ocupar o espaço de uma resenha. Além disso, os oito prêmios
recebidos pelo filme apontam a qualidade com que foram abordados
esses elementos. Muitos temas relacionados com a História estão
presentes: a história oral, a oficial, sua cientificidade, o limiar com a
literatura, o vídeo e o próprio cinema, diferentes suportes para a
História, diferentes olhares e intercâmbios, a busca de uma
"verdade", teoria e método. Esse segundo filme da cineasta (o
primeiro foi Kenoma-1998), trata de um povoado fictício (Javé), que
está prestes a ser inundado para a construção de uma hidrelétrica.
Para mudar esse rumo, os moradores de Javé resolvem escrever sua
história e tentar transformar o local em patrimônio histórico a ser
preservado. O único adulto alfabetizado de Javé, Antônio Biá (José
Dumont) é o incumbido de recuperar a história e transpor para o
papel de forma "científica" as memórias dos moradores.

Ironicamente, Biá, que havia sido expulso da cidade por inventar


fofocas escritas sobre os moradores, é o escolhido para escrever o
"livro da salvação", como eles mesmos chamam. O artifício de
"florear" e inventar fatos locais já era usado pela personagem para
aumentar a circulação de cartas, obviamente escassas no povoado, e
manter em funcionamento a agência de correio onde ele trabalha.
Escrever a história de Javé e salvá-la do afogamento é sua
oportunidade de se redimir. E a redenção parece ter que se dar
justamente aflorando seu lado mais condenável. "Bendita Geni", pois
é justamente a capacidade de Biá de aumentar as histórias que traz
à tona o papel do historiador interferindo na História, reunindo

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relatos, selecionando-os, conectando-os de forma compreensível.

Na coleta do primeiro relato "javélico", Biá diz à sua "fonte": "uma


coisa é o fato acontecido, outra é o fato escrito". Esse pequeno
conjunto de elementos já é suficiente para apontar a isenção e a
imparcialidade impossíveis à História e ao historiador. O filme se
desenrola com a difícil tarefa para Biá: reunir uma história a partir
de cinco versões diferentes - uma multiplicidade de fragmentos,
memórias incompatíveis entre si. O personagem se vê entre essa
impossibilidade e um futuro/progresso destruidor e irremediável.

Nas várias versões os heróis são alterados conforme o narrador.


Assim, na versão relatada por uma mulher do povoado, a grande
heroína entre os fundadores de Javé é Maria Dina. Na versão de um
morador negro, o herói principal também é negro e chama-se
Indalêo. Assim, ao mesmo tempo que o filme nos diz da interferência
do narrador na história, também fala sobre os excluídos da "história
oficial" (a dos livros didáticos).

Na narração sobre Indalêo surge a oralidade da memória - como


praticada por culturas milenares. O narrador negro canta a história
em seu dialeto africano, quase num êxtase profético, que nos remete
tanto aos gregos como aos xamãs. As divisas cantadas, que são as
fronteiras de Javé pronunciadas em canto, também são um outro
exemplo da aparição desse elemento no filme. O canto demarca uma
terra (Javé), que está sendo disputada, e é o canto que legitima sua
posse, não um documento escrito. Da mesma forma, são as versões
orais que podem tornar esse espaço de terra patrimônio histórico.
De forma sintética, todo o filme fala de uma disputa entre a história
oficial e aqueles excluídos dessa história, assim como, entre a
oralidade e a escrita.

Em outro momento, uma das moradoras de Javé argumenta perante


uma câmera digital que a hidrelétrica não poderia ser construída lá
onde estavam enterrados seus antepassados e seus filhos que
morreram. Eles não poderiam ficar embaixo d'água. De forma sutil, a
cena introduz no filme essa questão fundamental do patrimônio
imaterial, a cultura, e os laços diversos que podem existir com um
pedaço de terra. A cena remete ao filme de Werner Herzog, "Onde
sonham as formigas verdes" (1983), no qual também trava-se uma
disputa em torno de uma área de terra. No caso, uma tribo
aborígene defende a sacralidade da terra onde estão seus
antepassados e onde sonham as formigas verdes, diante da
construção de uma companhia de mineração; uma representação dos
avanços da sociedade branca, industrial. A problemática da
destruição de um grupo étnico, sua memória, cultura, religião, modo
de vida, é uma história bem comum nesses nossos 500 anos, e o
filme de Eliane Caffé também se destaca por essa inclusão.

Entre a multiplicidade de versões que Há um quadro de Klee que


ecoam em seus ouvidos, a se chama Angelus Novus.
arbitrariedade da interferência e a

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Representa um anjo que


necessidade de produzir algo parece querer afastar-se de
convincente para salvar Javé, Antônio algo que ele encara
Biá entrega um livro em branco para fixamente. Seus olhos estão
a população. Cobrado e acuado por escancarados, sua boca
todos no meio da rua, Biá sai aos dilatada, suas asas abertas.
berros andando de costas. O gesto O anjo da história deve ter
remete a uma outra passagem do esse aspecto. Seu rosto
filme em que se diz que essa atitude está dirigido para o
demonstraria coragem, seria um passado. Onde nós vemos
recuo e não uma fuga. Mas a mesma uma cadeia de
imagem pode ir além disso, quando acontecimentos, ele vê uma
se pensa no "anjo da história" de catástrofe única, que
Walter Benjamim (veja quadro ao acumula incansavelmente
lado). ruína sobre ruína e as
dispersa a nossos pés. Ele
Biá, assim como o anjo, caminha gostaria de deter-se para
olhando o passado a ser "destruído" acordar os mortos e juntar
irremediavelmente pelo futuro, pelo os fragmentos. Mas uma
progresso, pela hidrelétrica. E esta, tempestade sopra do
"responsável" pela transformação do paraíso e prende-se em
sertão em mar, afogará a memória, a suas asas com tanta força
cultura local e os antepassados. que ele não pode mais
fechá-las. Essa tempestade
Narradores no plural o impele irresistivelmente
Vale destacar as dimensões e os para o futuro, ao qual ele
infinitos níveis das interferências que vira as costas, enquanto o
os narradores podem ter na História. amontoado de ruínas cresce
Todo o caso de Javé - a história que até o céu. Essa tempestade
não é escrita por Biá - é narrado por é o que chamamos
Zaqueu (Nelson Xavier), que tenta progresso". (Benjamin
distrair um viajante num bar a beira 1985:226).
de um rio. Durante todo o tempo em
que o caso ocorreu, Zaqueu não estava presente no povoado, pois
sai para buscar mantimentos. Isso nos faz supor que sua versão já é
fruto de uma série de outras versões, e abriga toda a interferência
dessas múltiplas narrações, inclusive a dele mesmo. Ao mesmo
tempo, a história que Biá não consegue escrever está contada, mas
em outro suporte, na narração de Zaqueu, que é o próprio filme.

A própria filmagem de Narradores de Javé sinaliza o grau de


intercâmbios entre presente, passado e futuro na construção da
História. Os dois mil moradores de Gameleira da Lapa (locação do
filme) estavam sem coleta de lixo há onze anos e foram incentivados
a não apenas recolher o lixo como a separá-lo para reciclagem. Com
tudo isso, a população local passou a exigir dos órgãos competentes
a coleta seletiva, o que deu início a um processo para trocar o nome
da cidade de Gameleira da Lapa para Javé. Certamente o filme deu
mais conta da História e seus Sujeitos do que esperava.

Para saber mais veja o site do filme:


http://www.narradoresdejave.com.br

Atualizado em 10/03/04

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2003
SBPC/Labjor
Brasil

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