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Uma das questões que é sempre discutida dentro do escopo da arte, é sobre
seu lugar de encontro com nosso mundo, onde a arte passa a ser parte construtora e
força de alteração real, saindo de seu espaço apenas como imitação e espelho de
realidade para adentrar o espectro da criação, a arte deveria impactar todos aqueles
envolvidos no seu apresentar-se, ela deve causar uma reação de espanto no
espectador, algo que o tire da letargia da vida cotidiana e o coloque em posição de
questionar tais preceitos.
Aquele que é realmente atingido por esta arte libertadora do espírito, deve
sentir-se parte relevante dos processos em sua vida, aberto às reflexões que o farão
mudar hábitos e resignar-se aos tipo de controle que inibem a exploração do poder de
criação humana. Para que tal afirmação possa ser feita, é necessário um profundo
estudo da arte e os locais que a mesma ocupou nas sociedade ao longo do tempos,
até chegarmos ao ponto atual, que podemos ver uma arte constantemente
mercantilizada, criada apenas para essa saciedade do mercado, como simples método
de entretenimento, onde surge uma extrema necessidade da arte como impulsão das
capacidades de tomada de decisão, de uma arte que rompa com as estruturas que
engessam nosso constante movimentar da vida.
Nietzsche encontra na tragédia grega essa arte propulsora e impactante, que
segue em direção contrária aos métodos de aparelhamento da sociedade, e em O
Nascimento da Tragédia, analisa o surgimento desta condição realizadora em que a
arte trágica se encontra. Aprofundando-se nas manifestações artísticas da Grécia
Antiga, o autor chega na complementaridade e confronto entre Apolo e Dionísio,
exercício de trabalho e equilíbrio que gera a força necessária para a vinda e criação de
uma arte trágica, que tem suas bases no caos do cotidiano, nos desdobramentos dos
casos complicados de nossa existência.
A sabedoria trágica, se forma quando a racionalidade, a estética da beleza e
estabilidade harmônica de Apolo, são embebedados nos rituais, e se fundem a
natureza Dionisíaca, que se entrega ao caos e inconstâncias do mundo, alimentadas
pelas emoções trazidas no estado de transe dos mais diversos ritos, esse encontro,
mistura dos dois, é a geradora de toda a inspiração necessária para a realização da
arte.
Somente é possível conhecer a natureza dos homens e de Dionísio através
de sua prática, participando, integrado à ela, só se conhece a verdade das máscaras
de Dionísio quando se usa e tira elas, quando nos colocamos em sua posição.
O que Dionísio significava dentro do mito grego, vai além de, seu não menos
importante, embebedar das pessoas, ele é toda essa efemeridade dos processos da
vida, é o deus que altera as estações, os ciclos vitais. Por ser um entregar-se às
incertezas, Dionísio era um deus que vivendo com os homens, sofria e estava unido à
eles nas mazelas mundanas e nas maneiras que elas nos alteram, em sua divindade
encontra-se o profano. Ele é toda a força criativa do mundo, impulsiona e gera os
sonhos, que são narrados e mostrados à imagem de Apolo.
A figura de deus personificado por Dionísio nos contos de seus mistérios é
sempre acompanhada por seres místicos, Sileno, o sábio Sátiro conselheiro, professor
e amigo do próprio Dionísio, os centauros, ninfas e mênades que se uniam nos ritos de
celebração à esta forma de vida. Rituais estes, regados de vinho, liras, tambores,
flautas e com o deus materializando-se nas danças, no ânimo musical, no verdadeiro
entregar-se aos ritmos da vida, e em uma prática de experimentações do divino através
da vivência corpórea, carnal, algo para unir todos os seres, nos fundir com o outro, com
a totalidade, que trás toda a realidade transcendental aos homens, os coloca no lugar
de sentir a intensa emoção da curiosidade com as mudanças que surgem
continuamente em nossas vivências. No coro que universaliza a voz, cria o uno
constituído da multiplicidade e nos faz deixar de lado nossa subjetividade.
O culto Dionisíaco foi sendo aceito dentro da sociedade grega após
alterações de algumas práticas consideradas radicais para o pensamento apolíneo,
que tomava a mente de todo o povo grego e se manifestava na forma de vida e
cotidiano dos pensadores antigos. O rito à Dionísio, vivido de maneira mais crua, era
cultuado por povos bárbaros, e causavam um estranhamento muito além do que o
pensamento grego poderia suportar, e para que fosse implementado nas práticas
sagradas em cultos ao Olimpo, deveriam dispor de ordem, seria Apolo quem deveria
organizar e guiar a intensidade necessária do espírito dionisíaco nos homens.
As maneiras de arte não figuradas, como o teatro, a música e a poesia
lírica, são expressões criativas da natureza, que dizem respeito à profundos processos
de criação que utilizam das mais diversas experimentações sensoriais para sua
realização, elas não tem como objeto a observação passiva quanto aos movimentos e
fluxos da vida, elas se jogam em meio a essas fortes correntes de mudanças, e trazem
dela todo o poder de criação que vemos na arte. Não são expressões de nossas
próprias vidas, imagens do que ela mesma nos conta, são mostras da vida que habita
em nós, lidando com toda a inconstância dos movimentos da natureza.
Bibliografia:
Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. O nascimento da tragédia, ou Helenismo e
Pessimismo I Friedrich Nietzsche ; tradução, notas e posfácio J. Guinsburg. - São
Paulo , Companhia das Letras, 1992