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A década que provocou 4 gênios da filosofia a tentar responder: o que é ser humano?

Martin Heidegger, Ernst Cassirer, Ludwig Wittgenstein e Walter Benjamin tiveram anos
prolíficos na década de 1920

A década entre 1919 e 1929 foi notável por uma série de razões. Foi um período de
ruptura, mudanças e novos começos, e também de muitos questionamentos
filosóficos.

O livro Tempo de Mágicos, do filósofo alemão Wolfram Eilenberger, trata de como os


acontecimentos do período foram de certa forma "parêntese fascinante" na história, e
como levaram a alguns dos mais importantes trabalhos de filosofia do século passado.
Mas afinal, o que houve de tão mágico nesses dez anos?

1919

O marco histórico mais óbvio é o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918. Embora
ela não tenha sido, nem de longe, a primeira nem a mais longa vivida pela Europa,
causou um horror singular que dividiu a história entre antes e depois.

"Eles a chama de Grande Guerra corretamente", diz Wolfram Eilenberger à BBC News
Mundo.
Tempos de crise geram grandes questionamentos filosóficos ('O filósofo", obra de
Lyubov Sergeyevna Popova [1889-1924])

"Foi a primeira guerra totalmente industrializada", afirma o autor do livro, refletindo


sobre o confronto que terminou em 11 de novembro de 1918, após reivindicar a vida
de cerca de 9 milhões de combatentes e 7 milhões de civis, um dos conflitos mais
mortais da história.

"Era anônimo. A ideia do que o heroísmo significava foi totalmente destruída pela
maneira como eles tiveram que lutar e pela maneira de matar."
A grande perda

Os filósofos protagonistas de Tempo de Mágicos, eram de países ou regiões de língua


alemã, dos derrotados na guerra, que tiveram de lidar com um senso generalizado de
catástrofe.

"(A guerra) Levou a uma crise política, econômica, e, acima de tudo, cultural, que pode
ser descrita como o colapso da narrativa predominante, a do Iluminismo, que aspirava
à civilização do ser humano através da cultura, ciência e tecnologia", diz Eilenberger.

Para Kant, o homem faz perguntas que em última instância não é capaz de responder

"No massacre da Primeira Guerra Mundial, esse ideal perdeu credibilidade ... Era
totalmente improvável. Quando o povo voltou, não perdeu apenas a guerra, mas
também a visão de mundo."

A magia

Essa mudança foi o início de uma grande década para a filosofia, porque o colapso de
fundações tidas como sólidas deixou um grande vazio, um momento e espaço férteis
para dúvidas e questionamentos em busca de uma nova verdade.

"Há momentos na vida em que somos forçados a nos perguntar as questões básicas e
fundamentais, e 1919, historicamente falando, foi um desses momentos. Houve uma
grande crise política e cultural, e esse é o momento da filosofia", diz o filósofo.

Estavam, enfim, dadas as condições para o que Eilenberger chamou de "magia".


"Em certo sentido, a magia não deveria ter nada a ver com filosofia, pois tenta enganar
as pessoas com truques - e os filósofos devem fazer o oposto."

"Mas existe um tipo de mágica cotidiana na filosofia, porque os filósofos descrevem o


mundo que conhecemos - ou achamos que conhecemos - de novas maneiras, fazem
'mágica' usando palavras."

"Os filósofos que são os heróis do meu livro têm a capacidade de tornar nosso mundo
estranho novamente de maneiras muito produtivas. Esse é o tipo de mágica que me
parece boa quando se trata de filosofia e literatura."

Os magos

Um sinônimo de mago é taumaturgo, que vem do grego thaumatourgós e significa


"que faz maravilhas" ou "coisas incríveis".

Os taumaturgos que atuaram nesse período entre guerras e foram descritos por
Eilenberger são os filósfos Ludwig Wittgenstein, Walter Benjamin, Ernst Cassirer e
Martin Heidegger.

Segundo o autor do livro, eles são dignos desse título porque "depois de ler qualquer
um dos quatro, você verá o mundo de outra maneira".

"Eles o transformam, o tornaram em algo diferente e até maravilhoso", diz o escritor.


E naquela época era urgente que o fizessem porque o mundo estava mudando de uma
maneira desconcertante e fascinante, e não apenas por causa dos estragos da guerra
na alma e na mente das pessoas.

Sigmund Freud havia criado uma nova teoria sobre o que é a mente humana e em que
medida a nossa - a de cada um - é acessível; Albert Einstein havia revolucionado o
entendimento do tempo e o espaço e os descreveu de uma nova maneira; Friedrich
Nietzsche havia contado uma história totalmente diferente sobre o que significava ser
um ser humano moral.

"Tudo isso abalou o sistema e deixou claro que as coisas não podiam continuar como
antes, que tínhamos que procurar e encontrar um novo quadro de referência", diz
Eilenberger.

"Esses quatro pensadores assumiram o desafio de enfrentar a pergunta mais básica e


fundamental que um ser humano pode se perguntar: o que é ser humano?"
Era a mesma pergunta que o influente filósofo Immanuel Kant havia se perguntado há
mais de um século.

"É uma pergunta que geralmente surge com a sensação de que nada faz sentido, e
Wittgenstein, Benjamin, Heidegger e Cassirer tiveram que reunir toda sua coragem
para espiar o abismo do absurdo absoluto e ver que não havia nada."
"As respostas que geralmente eram dadas a essa pergunta se tornaram inúteis, então
eles tiveram que reinventar um sentido e se tornaram os pais fundadores da filosofia
contemporânea", explica Eilenberger.

1929

Davos, a "a montanha mágica" nos Alpes suíços que inspirou o escritor alemão Thomas
Mann, foi, em 1929, o local de uma reunião que ficaria na história, entre Heidegger e
Cassirer. O tema do encontro era exatamente essa tremenda pergunta: "O que é o
homem?"

Ao final daquela década de crise, criatividade e questionamento eram próximos; e nela


se pôde "ver, cheirar, sentir as tensões e perigos que se materializariam na década
seguinte".

No entanto, diz Eilenberger, não era necessário que isso acontecesse.


"É muito importante que saibamos que não existe a necessidade histórica (a que
naturalmente deriva da conexão interna do fenômeno social e, portanto,
necessariamente ocorre). Foram tomadas decisões ruins, mas a história poderia ter
sido completamente diferente."

Entre 1941 e 1945 a Alemanha nazista e seus colaboradores assassinaram 6 milhões de


judeus na Europa ocupada

"A beleza dos anos 1920 é que foi uma época tão culturalmente rica que não pode ser
reduzida ao prelúdio de uma catástrofe: tinha a possibilidade de ter sido o prelúdio de
algo absolutamente maravilhoso."
Mas nem filósofos nem pensamentos são suficientes para evitar catástrofes.

"Não é por acaso que três desses quatro filósofos - Wittgenstein, Benjamin e Cassirer
eram judeus. E Heidegger (associado ao nazismo), cuja filosofia era muito ampla e rica,
embora perigosa, é um sinal de que você pode ser um grande pensador, sendo um
pequeno ser humano."

Essa pergunta, anos depois

No final, o que aconteceu, aconteceu.

A Segunda Guerra Mundial trouxe seus próprios horrores e abalou novamente nossa
compreensão do que é ser humano.

"Minha cultura - cultura alemã - nunca se recuperou da perda da expulsão e


extermínio dos judeus", diz Eilenberger.

Em 1945, o italiano Primo Levi, um sobrevivente do Holocausto, se perguntou "se este


é um homem".

A história foi escrita em resposta ao que Levi descreveu como uma necessidade que,
entre as vítimas dos campos de concentração, assumia "o caráter de um impulso
imediato e violento": contar aos outros o que havia acontecido.

Sua intenção era "fornecer documentação para um estudo sereno de alguns aspectos
da alma humana".

Para Eilenberger, isso é filosofia.

"A filosofia é e pode ser em muitos casos literatura e, às vezes, encontramos mais
filosofia em obras literárias - como as de Primo Levi ou, hoje, o americano David Foster
Wallace - do que em tratados de filosofia."

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