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Jeane Lima e Silva Carnei
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Histórico da saúde no Brasil
Gustavo Swarowsky
Willian Adami
Jeane Lima e Silva Carneiro
Edson Lopes Mergulhão

1. Introdução
O Brasil é um país de dimensões continentais, com amplas desigualdades
regionais e sociais, e, ao longo da sua história, sofreu grandes transformações
políticas, econômicas, demográficas e sociais. A Saúde nunca ocupou um
lugar central na política brasileira, tanto na resolução dos problemas de saúde
da população quanto na destinação de recursos ao setor. A evolução histórica
das políticas de saúde está diretamente relacionada com a evolução política e
socioeconômica da sociedade brasileira.
Entende-se como sistema de saúde o “conjunto de relações políticas,
econômicas e institucionais responsáveis pela condução dos processos
referentes à saúde de uma dada população que se concretizam em
organizações, regras e serviços que visam alcançar resultados condizentes
com a concepção de saúde prevalecente na sociedade”. Dentro desse
contexto, as políticas de saúde podem ser entendidas como o conjunto de
decisões e compromissos definidos pelo Estado para orientar o
desenvolvimento de ações e estratégias voltadas à melhoria da saúde.
A situação de saúde no Brasil é resultado de uma história que foi se
construindo, principalmente, em torno da questão da saúde do trabalhador. A
assistência médica no país traz, ainda hoje, forte presença de uma herança
previdenciária, que se caracteriza por clientelismo, ineficiência, burocracia e
não universalidade. Para ser possível analisar a realidade de saúde atual, é
necessário conhecer os determinantes históricos envolvidos nesse processo.

2. Breve histórico da saúde no Brasil


A - De 1500 a 1889

Durante o período colonial (1500-1822), o Brasil não dispunha de nenhum


modelo de atenção à saúde da população. Alguns poucos eram assistidos
pelos doutores trazidos de Portugal, enquanto aos nativos restavam os
recursos naturais (plantas e ervas) e os conhecimentos empíricos
(curandeiros). A vinda da Família Real ao Brasil (1808) criou a necessidade
de organizar uma estrutura sanitária mínima, de forma a dar suporte ao poder
que se instalava na cidade do Rio de Janeiro.
A história do Brasil Imperial tem início com a Proclamação da Independência,
em 1822, e termina com a Proclamação da República, em 1889. Durante esse
período, as ações de saúde limitavam-se ao controle sanitário mínimo,
delegado às Juntas Municipais, e ao controle de navios e saúde dos portos.
Devido à organização política, unitária e centralizada, não havia eficiência na
transmissão e execução a distância das determinações emanadas dos
comandos centrais.
As necessidades da Corte forçaram a criação das 2 primeiras escolas de
Medicina do país: o Colégio Médico-Cirúrgico, no Real Hospital Militar da
Cidade de Salvador, e a Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro, únicas medidas
governamentais até a República.

B - De 1889 a 1920

A falta de um modelo sanitário ocasionou um quadro de saúde caótico,


caracterizado pela presença de diversas doenças, como varíola, malária, febre
amarela e, posteriormente, peste. Tal cenário gerou consequências para a
saúde coletiva, mas também para o comércio exterior, pois os navios
estrangeiros não queriam atracar no porto do Rio de Janeiro. A saúde emergiu
como efetiva prioridade do governo no começo do século XX, com as ações
de saúde concentradas no eixo agrário-exportador e administrativo (Rio de
Janeiro e São Paulo).
Na década de 1900, Oswaldo Cruz foi nomeado Diretor Geral de Saúde
Pública e propôs erradicar a epidemia da febre amarela por meio de um
modelo de intervenção de desinfecção, conhecido como campanhista, em que
o uso da força e autoridade pelos “guardas-sanitários” era considerado o
instrumento preferencial de ação. Em 1904, Oswaldo Cruz instituiu, por meio
de Lei Federal, a vacinação antivaríola obrigatória em todo o território
nacional, o que agravou a onda de insatisfação social causada pela
intervenção campanhista e levou a um grande movimento de revolta,
conhecido como a Revolta da Vacina.
O modelo campanhista tornou-se hegemônico como proposta de intervenção
na área da saúde coletiva, visto que foi eficiente no controle das doenças
epidêmicas, conseguindo erradicar a febre amarela na cidade do Rio de
Janeiro. As políticas sanitárias eram desenvolvidas para a erradicação das
doenças portuárias e ligadas diretamente à economia agroexportadora; dessa
forma, Oswaldo Cruz obteve o apoio do governo para as ações de controle da
febre amarela, peste bubônica e varíola, porém não conseguiu sensibilizar a
classe política quanto à necessidade de maior intervenção estatal na
tuberculose.
Em 1908, o Instituto Soroterápico Federal foi rebatizado como Instituto
Oswaldo Cruz, e com a morte de Oswaldo Cruz, em 1917, Carlos Chagas
assumiu sua direção.
Em 1916, a Fundação Rockefeller chegou ao Brasil, e, em 1923, estabeleceu
convênio com o governo brasileiro para cooperação médico-sanitária e
programas de erradicação de endemias, tendo como foco principal a febre
amarela e, em seguida, a malária. Em 1937, foi inaugurado o Laboratório do
Serviço Especial de Profilaxia da Febre Amarela pela Fundação Rockefeller,
dentro do Instituto Oswaldo Cruz, e a vacina contra a febre amarela foi
utilizada pela 1ª vez no Brasil. Desde então, a vacina é produzida pela
Fundação Oswaldo Cruz, atualmente responsável por 80% da produção
mundial desse imunizante.

De modo geral, durante esse período, a assistência à saúde restringia-se às


situações de epidemia e aos casos de especial interesse para o controle das
condições de saúde pública no eixo central da economia, praticamente sem
capacidade de atuação na assistência individual à saúde. Dessa forma, a
assistência médico-hospitalar dependia, em maior parte, de entidades
beneficentes e filantrópicas e das diversas mutualidades a que se filiavam os
grupos de imigrantes. As sociedades de socorro mútuo foram criadas em
meados do século XIX e são consideradas precursoras dos movimentos
operários do século seguinte, que proporcionaram aos trabalhadores maiores
coesão e condições de enfrentamento diante dos interesses da classe
dominante.

Dica
No período de 1889 a 1920, a assistência pública à saúde estava restrita às
situações de epidemia, sem ações direcionadas à assistência individual à
saúde.
C - De 1920 a 1930

A partir de 1921, o modelo campanhista foi inovado por Carlos Chagas,


sucessor de Oswaldo Cruz, por meio da introdução da propaganda e educação
sanitária na técnica rotineira de ação. Foram criados órgãos especializados na
luta contra tuberculose, hanseníase e doenças venéreas, e as assistências
hospitalar e infantil e a higiene industrial se destacaram como problemas
individualizados. Além disso, as atividades de saneamento se expandiram
para outros estados, além do eixo central.
Em 1923, foi aprovada a Lei Eloy Chaves, marco inicial da Previdência
Social no Brasil. Por meio dela, foram instituídas as Caixas de Aposentadoria
e Pensão (CAPs) para os empregados de cada empresa ferroviária. As CAPs
proviam pensões, aposentadorias, serviços funerários e serviços médicos aos
operários afiliados, mas sua criação não era automática, dependendo do poder
de mobilização e organização dos trabalhadores. A administração só poderia
ser realizada pela empresa e contava com um conselho composto por
representantes dos empregados e empregadores.

Importante
A Lei Eloy Chaves foi o marco inicial da Previdência Social no Brasil, pois
foram criadas as CAPs, que proviam pensões, aposentadorias, serviços
funerários e serviços médicos aos trabalhadores afiliados.

O Estado não participava do custeio das Caixas, as quais eram mantidas pelos
empregados (3% dos respectivos vencimentos), pela empresa (1% da renda
bruta) e pelos consumidores dos serviços. As próprias empresas recolhiam
mensalmente as contribuições de todas as fontes de receita e as depositavam
na conta bancária de sua CAP. O financiamento das CAPs não era suficiente
para construir serviços de saúde (como hospitais e ambulatórios) e municiá-
los com equipamentos e recursos humanos; dessa forma, elas passaram a
contratar serviços de saúde privados, pontapé para a privatização da saúde no
Brasil.

D - De 1930 a 1940

A partir de 1930, com a depressão econômica mundial e a crise nos setores


associados à exportação do café, o governo brasileiro passou a dar maior
prioridade e incentivo à indústria. No plano social, esse período caracterizou-
se por mudanças importantes introduzidas pelo governo de Getúlio Vargas
(1930-1945), como a consolidação da legislação trabalhista e a estatização da
Previdência Social. Os benefícios previdenciários foram, então, estendidos a
todas as categorias do operariado urbano. Dessa forma, em substituição ao
sistema fragmentário das CAPs, foram fundados os Institutos de
Aposentadoria e Pensão (IAPs).
Nesses institutos, os trabalhadores eram organizados por categoria
profissional, e não por empresa. O Estado passou a ter o controle
administrativo dos Institutos, que ainda eram custeados por meio de
contribuições obrigatórias por parte de empregadores e empregados. Os IAPs
foram criados de acordo com a capacidade de organização, mobilização e
importância da categoria profissional, logo os benefícios e serviços prestados
eram diferenciados por categoria. O 1º Instituto criado foi o IAPM
(Marítimos), em 1933, seguido pelo IAPC (Comerciários) e o IAPB
(Bancários), em 1934, entre outros.
Os IAPs prestavam serviços e benefícios apenas aos trabalhadores registrados
em carteira. A presença direta do Estado na administração dos IAPs
contribuiu para cristalizar o perfil centralizador, burocrático e ineficiente da
política previdenciária brasileira, na medida em que os trabalhadores não
tinham mais controle sobre essas instituições. Apesar de a centralização da
gestão estar nas mãos do Estado, o financiamento, a distribuição e a prestação
dos serviços não estavam, de modo que esses serviços também eram
oferecidos por instituições privadas.

Dica
As CAPs foram substituídas, nos anos de 1930 a 1940, pelos IAPs. Os
benefícios previdenciários estendiam-se a todos os trabalhadores urbanos
registrados em carteira.

E - De 1940 a 1960

No período entre 1945 e 1964, o Brasil viveu uma fase de instabilidade


democrática, em que muitas das estruturas corporativistas permaneceram
intactas, especialmente no campo das relações de trabalho. As disparidades
normativas entre os IAPs contribuíram para que surgissem reivindicações em
favor de um sistema de previdência unificado e menos desigual, politizando-
se, assim, a questão previdenciária. O Estado defendia a permanência do
clientelismo e do controle administrativo estatal, enquanto os trabalhadores
urbanos assalariados, principais financiadores e beneficiados dos IAPs,
reivindicavam seu controle administrativo.
Na assistência à saúde, a maior inovação aconteceu em 1949, quando foi
criado o Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência (SAMDU),
mantido por todos os Institutos e as Caixas remanescentes.

Importante
A importância histórica do Serviço de Assistência Médica Domiciliar de
Urgência está na criação do atendimento médico domiciliar no setor
público, financiamento consorciado entre todos os IAPs, e, ainda, na
instauração do atendimento universal, mesmo que limitado aos casos de
urgência.

A partir da 2ª metade da década de 1950, com o maior desenvolvimento


industrial, a aceleração da urbanização e o assalariamento de parcelas
crescentes da população, ocorreu maior pressão pela assistência médica via
Institutos, viabilizando o crescimento de um complexo médico-hospitalar para
prestar atendimento aos previdenciários, no qual se privilegiava a contratação
de serviços de terceiros.
Nesse contexto, sob forte pressão dos trabalhadores, a Lei Orgânica da
Previdência Social (LOPS) foi criada em 1960, propondo a uniformização dos
benefícios prestados pelos IAPs e a responsabilidade da Previdência Social
pela assistência médica individual de seus beneficiários, representando,
porém, a maturação de um ciclo que reafirmou a participação reduzida dos
trabalhadores na gerência e no controle dos IAPs.

F - De 1960 a 1980

Com a instauração do governo militar, em 1964, foram realizadas as


principais reformas econômicas e institucionais, a partir de uma perspectiva
centralizadora. O regime militar era extremamente ditatorial e repressivo e,
como estratégia, utilizou o sistema previdenciário para conquistar o apoio
social e a sua legitimação. Como os IAPs eram limitados às categorias
profissionais mais mobilizadas e organizadas, o governo militar garantiu,
então, os benefícios da Previdência Social para todos os trabalhadores
urbanos e seus dependentes.
Dessa forma, os IAPs foram unificados no Instituto Nacional de Previdência
Social (INPS), que incorporou todos os benefícios já instituídos, inclusive a
assistência médico-hospitalar. Considerando que todo trabalhador urbano com
carteira assinada era automaticamente contribuinte e beneficiário do novo
sistema previdenciário, foi grande o volume de recursos financeiros
capitalizados. O aumento da base de contribuição, aliado ao crescimento
econômico da década de 1970 (o chamado Milagre Econômico) e ao pequeno
percentual de pagamento de aposentadorias e pensões em relação ao total de
contribuintes, fez que o sistema acumulasse um grande volume de recursos
financeiros. Em 1955, eram 8 segurados trabalhando para 1 afastado. Estima-
se que atualmente a relação de ativos para inativos seja de 2:1, quando a
média ideal é de 4:1.
Diante disso, o governo militar decidiu alocar os recursos públicos para
atender à necessidade de ampliação do sistema médico, direcionando os
recursos para a iniciativa privada, com o objetivo de conquistar o apoio de
setores importantes e influentes dentro da sociedade e da economia. Dessa
forma, foram estabelecidos convênios e contratos com a maioria dos médicos
e hospitais existentes no país, pagando-se pelos serviços produzidos e
formando um sistema médico-industrial. Esse sistema, dentro da estrutura do
INPS, foi se tornando cada vez mais complexo, tanto do ponto de vista
administrativo quanto do financeiro, o que levou à criação, em 1978, de uma
estrutura administrativa própria, o Instituto Nacional de Assistência Médica
da Previdência Social (INAMPS).
Cabe lembrar que, naquele período, os pagamentos eram realizados por
serviços prestados, o que facilitava as fraudes.

Importante
Entre as décadas de 1960 e 1980, foi criado o INPS, em substituição aos
IAPs, incluindo a assistência médico-hospitalar aos demais benefícios já
instituídos.

Somente na década de 1970 é que algumas categorias profissionais


conseguiram se tornar beneficiárias do sistema previdenciário, como os
trabalhadores rurais, com a criação do Programa de Assistência ao
Trabalhador Rural (PRORURAL), que destinava fundos específicos para a
manutenção do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL).
Além disso, em 1974, o sistema previdenciário saiu da área do Ministério do
Trabalho para se consolidar como um ministério próprio, o Ministério da
Previdência e Assistência Social, e juntamente a ele foi criado o Fundo de
Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS), que permitiu a remodelação e
ampliação de hospitais da rede privada, levando a um crescimento próximo de
500% no número de leitos hospitalares privados. Em 1975, foi instituído o
Sistema Nacional de Saúde, que estabelecia de forma sistemática o campo de
ação na área de saúde, dos setores públicos e privados, para o
desenvolvimento das atividades de promoção, proteção e recuperação da
saúde. O documento reconhecia e oficializava a dicotomia da questão da
saúde, afirmando que a Medicina Curativa seria de competência do Ministério
da Previdência, e a Medicina Preventiva, de responsabilidade do Ministério
da Saúde, criado em 1953.
Em 1975, porém, o modelo econômico implantado pela ditadura militar
entrou em crise, acompanhando a crise do capitalismo em nível internacional.
A população com baixos salários, contidos pela política econômica e pela
repressão, passou a conviver com o desemprego e as suas graves
consequências sociais e de saúde. Dessa forma, o modelo de saúde
previdenciário começou a mostrar suas mazelas.

Assim, devido à escassez de recursos para a sua manutenção, ao aumento dos


custos operacionais e ao descrédito social em resolver a agenda da saúde, o
modelo de saúde proposto entrou em crise.

G - De 1980 a 1990

Na tentativa de conter os custos e combater as fraudes, o governo criou, em


1981, o Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária
(CONASP), ligado ao INAMPS.
Durante a 2ª metade da década de 1970, devido à crise econômica e social,
surgiu o Movimento Sanitário, cuja concepção defendia a saúde não como
uma questão exclusivamente biológica a ser resolvida pelos serviços médicos,
mas uma questão social e política a ser abordada no espaço público.
Professores de Saúde Pública, pesquisadores da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC) e profissionais de saúde de orientação
progressista se engajaram nas lutas dos movimentos de base e dos sindicatos.
O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) foi fundado em 1976,
organizando o movimento da Reforma Sanitária, e, em 1979, formou-se a
Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO).
Ambas propiciaram a base institucional para alavancar a Reforma Sanitária.
O movimento também foi influenciado por movimentos e intelectuais de
outros países, como Giovanni Berlinguer, um dos sanitaristas e bioeticistas
mais respeitados do mundo. No Brasil, além do Cebes e ABRASCO, o
sanitarista Mário Magalhães da Silveira teve destaque na liderança do
movimento sanitário.

Na década de 1980, a crise econômica se aprofundou consideravelmente. O


governo precisou criar meios para controlar os gastos públicos em geral,
inclusive no setor da saúde. Para obter maior controle sobre as internações,
foi criada a Autorização de Internação Hospitalar (AIH). Dessa forma, para
cada paciente internado era emitida uma AIH, mediante a qual a internação
seria paga ao hospital. Com essa estratégia, o governo eliminou o repasse de
verbas às internações escritas (controle sobre o setor privado), e os hospitais
passaram a reter o paciente no hospital o menor tempo possível, pois era
necessário liberar leitos para internar mais pessoas e, consequentemente,
emitir mais AIHs.
Outra estratégia foi a transferência de atribuições e encargos da esfera federal
aos estados e municípios. Com a criação das Ações Integradas de Saúde
(AISs), algumas responsabilidades em saúde foram repassadas diretamente da
Federação aos estados e municípios, que se tornaram responsáveis pelo
atendimento médico individual da população previdenciária, representando os
primeiros passos em direção à descentralização. Em 1985, esgotado o regime
autoritário, a Nova República expandiu consideravelmente as AISs, que se
tornaram parte do programa de governo do presidente Tancredo Neves.
Em 1986, a 8ª Conferência Nacional de Saúde aprovou o conceito da saúde
como um direito do cidadão e delineou os fundamentos do Sistema Único
Descentralizado de Saúde (SUDS), com base no desenvolvimento de várias
estratégias que permitiram a coordenação, a integração e a transferência de
recursos entre as instituições de saúde federais, estaduais e municipais. Essas
mudanças administrativas estabeleceram os alicerces para a construção do
Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro.
Esses fatos ocorreram de forma concomitante à eleição da Assembleia
Nacional Constituinte, em 1986, e à promulgação da nova Constituição em
1988. Com base nas propostas da 8ª Conferência Nacional de Saúde, a
Constituição de 1988 estabeleceu, pela 1ª vez de forma relevante, uma seção
sobre a saúde. O texto constitucional, no Art. 196, define que: “Saúde é um
direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da
saúde”. O SUS, por sua vez, é concebido e definido no Art. 198, que diz: “As
ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e
hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as
seguintes diretrizes: descentralização, integralidade e participação social”.
Com o advento do SUS, previsto na Constituição de 1988, ocorreu a definição
da participação livre à iniciativa privada, de forma complementar, na
execução de serviços de saúde no Brasil. No entanto, esse setor somente foi
regulamentado 10 anos após, em 1998 (leia mais no capítulo Sistema de saúde
suplementar – Agência Nacional de Saúde Suplementar).

Tema frequente de prova


A aprovação do conceito de saúde como um direito do cidadão em 1986,
na 8ª Conferência Nacional de Saúde, é um tema frequente nas provas de
concursos médicos.

As reformas contemporâneas dos sistemas de saúde induziram um gasto


crescente universal, público e privado. O aumento dos gastos no setor
privado, ocasionado pela falta de equidade e efetividade vigente no sistema
público de diversos países, criou uma anomalia (disparidades de atenção),
levando o sistema de saúde a rever o modelo e retornar à discussão do SUS
como modelo ideal e único. Apesar de o SUS ter sido definido pela
Constituição, somente foi regulamentado em 1990, por meio das Leis nº 8.080
e nº 8.142 (Leis Orgânicas). Essas leis definem o modelo operacional do SUS,
propondo a sua forma de organização, funcionamento e financiamento. O
SUS e suas legislações serão aprofundados nos próximos capítulos.

Resumo
Sistema Único de Saúde
Gustavo Swarowsky
Marcos Vinícius Ambrosini Mendonça
Jeane Lima e Silva Carneiro
Edson Lopes Mergulhão

1. Introdução
O Sistema Único de Saúde (SUS) é a formulação política e organizacional dos
serviços e das ações de saúde no Brasil, estabelecida pela Constituição de
1988. É um sistema único, visto que segue a mesma doutrina e os mesmos
princípios organizativos em todo o território nacional, com vistas à promoção,
proteção e recuperação da saúde.

A - Histórico

Antes da Constituição de 1988, o acesso aos principais serviços de saúde


públicos restringia-se aos trabalhadores formais que pagavam a previdência,
cuja assistência ficava a cargo do Ministério da Previdência Social
(INAMPS). A organização da saúde era fragmentada e centralizada, ou seja,
gerida pelo Governo Federal e apenas executada pelos municípios,
independentemente das diferentes demandas de saúde, sem levar em
consideração as distintas características populacionais e culturais das regiões
do país. Além disso, havia uma baixa cobertura assistencial, com dificuldades
de acesso a consultas e procedimentos. Quem não tinha vínculo com o
INAMPS tinha 2 alternativas: procurar os serviços privados ou esperar
atendimento nas santas casas e hospitais filantrópicos. O financiamento era
essencialmente por produção (sem se importar com o perfil do usuário ou
com o desfecho de saúde populacional), e a atenção à saúde era feita
predominantemente nos hospitais, sendo o foco essencialmente curativo, sem
um vínculo preventivo ao longo do tempo.
Neste contexto, no Brasil e no mundo, a partir dos anos 1980, os movimentos
de reforma sanitária eram muito fortes, com o objetivo de modificar a
organização e o conceito de saúde. Em 1986, na 8ª Conferência Nacional de
Saúde em Brasília, a Reforma Sanitária Brasileira atinge seu momento apical,
quando discutiu a crise da saúde e os novos rumos para ela com diferentes
segmentos da sociedade brasileira, tais como profissionais, estudantes e
entidades da área da saúde, movimentos e instituições sociais, sindicatos,
lideranças políticas e pessoas de diferentes classes e segmentos sociais. Nesse
momento, consolidam-se as ideias que viriam a ser a base do texto
constitucional (artigos 196 a 200) da Constituição de 1988. Definiu-se o
conceito de que saúde é um direito do cidadão, formando as primeiras ideias
de um sistema único, público e integrado com mobilização social. Todos os
conceitos relacionados à unificação do serviço de saúde foram influenciados
pelos resultados dessa conferência. A seguir, os artigos da Constituição de
1988:

Art. 196: a saúde é um direito de todos e dever do Estado;


Art. 198: as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede
regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado
e de acordo com as seguintes diretrizes: descentralização, integralidade e
participação social.
A construção do SUS norteia-se por princípios doutrinários (sua filosofia
ou estrutura ética) e princípios organizacionais, que explicam como o
sistema deve ser ordenado.

B - Princípios doutrinários

a) Universalidade

Universalidade é a garantia de acesso à saúde a todo e qualquer cidadão


brasileiro, independentemente de situação laboral, financeira ou social. Ou
seja, qualquer indivíduo tem o direito de ter acesso a todos os serviços
públicos de saúde do SUS, bem como aos serviços privados conveniados por
ele. Esse princípio é um dos mais importantes porque rompe com a ideia
antiga de que apenas quem contribuía com a previdência podia receber
atenção do sistema público de saúde.

b) Equidade

Por definição, equidade é a característica de algo ou alguém que revele senso


de justiça, imparcialidade, isenção e neutralidade; é a disposição de
reconhecer a imparcialidade do direito de cada indivíduo.
Quando falamos que um sistema é equânime, queremos dizer que ele assegura
a prioridade das ações e dos serviços de saúde para quem mais tem
necessidade.
Um sistema com equidade dá tratamento desigual aos desiguais, ou seja, há
uma discriminação positiva que tenha como objetivo minimizar as
disparidades entre os usuários.
Um bom exemplo de equidade é quando priorizamos o agendamento de uma
consulta com o oftalmologista para um paciente com suspeita de glaucoma,
em relação a um paciente que precisa de uma consulta para troca de lentes.
Ambos receberão o atendimento, mas o serviço de saúde investirá mais em
quem mais precisa.

c) Integralidade

Traz o conceito de que o homem é um ser integral e biopsicossocial, portanto


deverá ser atendido em sua integralidade por um sistema de saúde também
integral, voltado à promoção, à proteção e prevenção e à recuperação da sua
saúde.
São exemplos de promoção à saúde: campanhas de conscientização,
educação, aconselhamentos;
São exemplos de proteção e prevenção à saúde: vigilância epidemiológica
(informações), vigilância sanitária (qualidade dos serviços, meio ambiente e
produtos), vacinações, saneamento básico, exames médicos e odontológicos
periódicos;
São exemplos de recuperação da saúde: atendimento médico, tratamento de
urgência e emergência, limitação da invalidez e reabilitação.
A integralidade garante que o usuário do SUS receba todo tipo de
atendimento que precisar em todos os níveis de atenção (primário, secundário
e terciário), e não apenas os procedimentos curativos, pois o tratamento
integral também engloba a prevenção e a promoção à saúde.

Dica
Saber identificar os 3 princípios doutrinários (ou éticos) do SUS é um
raciocínio bastante exigido em concursos médicos, então vamos lembrar:
Universalidade, Equidade e Integralidade.

C - Princípios organizacionais

Regionalização: o Brasil é um país continental e possui perfis


epidemiológicos bastante diferentes. Para tanto, o SUS deve se adaptar e estar
organizado diferentemente em cada região de um determinado estado ou
cidade. Dessa forma, o serviço de saúde delimita as comunidades onde vai
atuar, assim fortalecendo a autonomia para definir suas prioridades. A
regionalização dos serviços implica a delimitação de uma base territorial para
o sistema de saúde, que leva em conta a divisão político-administrativa do
país, mas também contempla a delimitação de espaços territoriais específicos
para a organização das ações de saúde, subdivisões ou agregações do espaço
político-administrativo;
Hierarquização: os serviços devem ser organizados e hierarquizados em 3
níveis de complexidade crescente: atenções primária (ou básica), secundária e
terciária. A porta de entrada do serviço de saúde deve ser a atenção primária
(onde se devem resolver pelo menos 85% dos problemas de saúde de uma
população). Ao passo que o paciente necessita de recursos mais complexos
para seu problema ser resolvido, ele deve ser encaminhado para a atenção
secundária (centros ambulatoriais de especialidades, unidades de pronto
atendimento) ou para a atenção terciária (hospitais de alta complexidade). A
hierarquização estabelece uma rede que articula as unidades mais simples até
as unidades mais complexas, por meio de um sistema de referência e
contrarreferência de usuários e informações;
Implicações da regionalização e da hierarquização: maior conhecimento
dos problemas de saúde da população da área delimitada, favorecendo ações
de vigilância epidemiológica e sanitária, controle de vetores, educação em
saúde, além de atenção ambulatorial e hospitalar em todos os níveis de
complexidade;

Figura 1 - Níveis de atenção à saúde

Dica
A regionalização e a hierarquização propõem a organização dos serviços de
saúde em níveis de complexidade crescente (primário, secundário e
terciário) e com definição da população a ser atendida.

Resolubilidade: os serviços devem estar capacitados para enfrentar e resolver


os problemas de saúde, individuais ou de impacto coletivo, até o nível de sua
competência;
Descentralização: é a redistribuição das responsabilidades entre os vários
níveis de governo (municipal, estadual e federal) quanto às ações e aos
serviços de saúde, com base na ideia de que, quanto mais perto do fato a
decisão for tomada, maior será a chance de acerto. A descentralização reforça
o poder municipal no processo de gestão da saúde. Essa transferência de
responsabilidades de cada nível diz respeito não apenas à condução político-
administrativa do sistema de saúde em seu respectivo território (nacional,
estadual, municipal), mas também com a transferência de recursos
financeiros, humanos e materiais para o controle das instâncias
governamentais correspondentes;
Implicações da descentralização: reforço do poder municipal
(municipalização da saúde) – municípios têm a maior responsabilidade na
promoção das ações de saúde;

Importante
Com a descentralização, ocorreu transferência maior de responsabilidade
aos municípios na gestão da saúde da população.

Participação social: entende que a população, por meio de entidades


representativas, deve participar do processo de formulação das políticas
públicas de saúde e do controle da sua execução em todos os níveis de
governo;
Implicações da participação social: participação social nos Conselhos de
Saúde (representação paritária de usuários, governo, profissionais de saúde e
prestadores de serviços) e nas Conferências de Saúde (definição de
prioridades e linhas de ação sobre a saúde);
Complementaridade do setor privado: o SUS deve contratar os serviços
privados quando os públicos forem insuficientes. A contratação deve
acontecer sob 3 condições: .

Por celebração de contrato, conforme as normas de direito público;


A instituição privada contratada deve estar de acordo com os princípios e
as normas técnicas do SUS;
Os serviços privados devem seguir a lógica organizativa do SUS em
termos de posição definida em uma rede regionalizada e hierarquizada.

Dentre os serviços privados, devem ter preferência os não lucrativos


(hospitais filantrópicos e santas casas), conforme determina a Constituição.
Assim, cada gestor deve planejar primeiramente o setor público e, na
sequência, complementar a rede assistencial com o setor privado, com os
mesmos conceitos de regionalização, hierarquização e universalização.

Dica
Atualmente, no SUS, o predomínio do financiamento é feito pelo setor
público, entretanto o predomínio da prestação de serviços é feito pelo setor
privado.

D - Gestão

Trata-se das entidades encarregadas de fazerem que o SUS seja implantado e


funcione adequadamente dentro das doutrinas e da lógica organizacional e
seja operacionalizado dentro dos princípios. Há gestores nas 3 esferas,
conforme a Tabela 1.

E - Financiamento

O investimento e o custeio do SUS são feitos com recursos das 3 esferas de


governo. Os recursos financeiros do SUS estão em uma conta especial, ou
seja, um fundo único para os gastos em saúde chamado Fundo Nacional de
Saúde, cujo montante provém principalmente da Seguridade Social e de
outros recursos da União, constantes da Lei de Diretrizes Orçamentárias,
aprovada anualmente pelo Congresso Nacional.
Dentre os recursos federais destinados ao custeio da Seguridade Social e,
portanto, para a saúde, têm-se, além dos recursos ordinários, a contribuição
das seguintes fontes: o Programa de Integração Social (PIS), a Contribuição
para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) e a Contribuição
Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Outros recursos incluem 45% do
DPVAT e outras receitas e créditos.

Importante
O financiamento do SUS é feito com recursos das 3 esferas de governo, e
os recursos federais são provenientes do Fundo Nacional de Saúde, que
recebe quantias do INSS, do PIS, da COFINS e da CSLL.

Os recursos, geridos pelo Ministério da Saúde, são divididos em 2 partes: uma


é retida (para o investimento e custeio das ações federais), e outra é repassada
às Secretarias de Saúde, Estaduais e Municipais, de acordo com critérios
previamente definidos em função da população, das necessidades de saúde e
da rede assistencial.
Os recursos da esfera federal destinados às vigilâncias sanitária e
epidemiológica configuram o Teto Financeiro da Vigilância Sanitária (TFVS)
e o Teto Financeiro de Epidemiologia e Controle de Doenças (TFECD). O
custeio de seus valores pode ser transferido fundo a fundo, de forma regular e
automática, ou pago diretamente pela execução de ações de média e alta
complexidades.

Em cada estado, os recursos repassados pelo Ministério da Saúde são


somados aos alocados pelo próprio governo estadual, advindos da cobrança
dos seus tributos. Desse montante, uma parte fica retida para o custeio de
ações e serviços estaduais, enquanto a outra parte é repassada aos municípios,
de acordo também com critérios específicos.
Os municípios gerem os recursos federais repassados e os seus próprios
recursos alocados para o investimento e custeio das ações de saúde de âmbito
municipal. Todos os recursos são administrados por meio de Fundos de Saúde
(nacional, estadual ou municipal), de forma a assegurar que sejam geridos
pelo setor de Saúde (e não pelas Secretarias da Fazenda), garantindo, assim, o
acesso do setor aos recursos.
Apenas no ano 2000 a Saúde iniciou uma era de financiamento estável e
crescente, com a aprovação da Emenda Constitucional (EC) nº 29 pelo
Congresso Nacional. Ela obriga os vários níveis de governo a alocar uma
parcela dos seus recursos na Saúde (ou seja, a responsabilidade pelo
financiamento dos serviços do SUS é das 3 esferas) e é associada à Lei de
Responsabilidade Fiscal, sujeitando a sanções o governante que não cumpri-
la.
A Emenda definiu percentuais mínimos de financiamento da Saúde para a
União, estados e municípios:

União: montante do ano anterior + variação nominal do PIB (Produto


Interno Bruto);
Estados: 12% da arrecadação anual em impostos;
Municípios: 15% da sua receita total.

Apesar de a EC nº 29 definir a quantia a ser investida, ela não define o que é


gasto público em saúde, tampouco onde o recurso deve ser aplicado.
Com a EC nº 29, houve um aumento da participação relativa de assistências
farmacêuticas e atenção básica e uma diminuição relativa da participação de
pessoal ativo e dos serviços de média e alta complexidades.
Em dezembro de 2016, com a promulgação da EC nº 95, ficou instituído o
Novo Regime Fiscal no âmbito do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social
da União, que limita as despesas primárias e, consequentemente, o repasse
financeiro da União. Assim, os limites para o exercício de 2017 equivalem à
despesa primária paga no exercício de 2016, incluídos os restos a pagar pagos
e demais operações que afetam o resultado primário, corrigida em 7,2%, e,
para os exercícios posteriores, ao valor do limite referente ao exercício
imediatamente anterior, corrigido pela variação do Índice Nacional de Preços
ao Consumidor Amplo , publicado pelo IBGE, ou de outro índice que vier a
substituí-lo.
Em 2017, 1º exercício financeiro sob o novo regime, que vigorará por 20
exercícios (anos), apesar de ter havido um aumento de recursos para as Ações
e Serviços Públicos em Saúde de R$8 bilhões em relação a 2016, a fatia das
despesas com saúde no orçamento federal foi de 3,93% em 2016 para 3,25%
em 2017, uma queda de 17% da participação da saúde no orçamento da União
em 2017 (INESC, março/2017).

F - Ações desenvolvidas pelo SUS

As ações de saúde devem ser combinadas e voltadas, ao mesmo tempo, para


promoção, prevenção e proteção e cura (ações de recuperação e reabilitação).
Promoção e proteção:

São ações que buscam eliminar ou controlar as causas das doenças e dos
agravos, ou seja, o que determina ou condiciona o aparecimento de
problemas de saúde. Essas ações podem ser desenvolvidas por
instituições governamentais, empresas, associações comunitárias e
indivíduos. As ações, em seu conjunto, constituem um campo de
aplicação que se convencionou chamar, tradicionalmente, de Saúde
Pública, ou seja, o diagnóstico e tratamento científico da comunidade;

Recuperação:

Ações que evitam mortes e sequelas e que atuam sobre os danos. Essas
ações são exercidas pelos serviços públicos de saúde (ambulatoriais e
hospitalares) e, de forma complementar, pelos serviços privados
conveniados ao SUS;

Promoção:
Ações de promoção:

Educação em saúde;
Bons padrões de alimentação e nutrição;
Adoção de estilos de vida saudáveis;
Uso adequado e desenvolvimento de aptidões e capacidades;
Aconselhamentos específicos (como genético e sexual).

Prevenção e proteção:
Ações de prevenção e proteção:

Vigilância epidemiológica;
Vigilância sanitária;
Vacinações;
Saneamento básico;
Exames médicos e odontológicos periódicos.

Cura:
Ações de recuperação:

Atendimento médico (ambulatorial e Urgência e Emergência);


Atendimento odontológico;
Diagnóstico e tratamento oportunos;
Acidentes e danos de qualquer natureza;
Limitação da invalidez;
Reabilitação.

Dica
As ações desenvolvidas pelo SUS são de promoção, de prevenção e
proteção e de recuperação (cura e reabilitação). Ou seja, é importante
lembrar que a Vigilância Sanitária (que controla a qualidade dos alimentos
e produtos, por exemplo), o saneamento básico e a política de vacinações
também são parte do SUS.

Para identificar os principais grupos de ações de promoção, proteção e


prevenção e recuperação da saúde, é necessário conhecer as principais
características do perfil epidemiológico da população, tanto em termos de
doenças mais frequentes quanto em termos das condições socioeconômicas da
comunidade.
A vigilância epidemiológica possibilita a obtenção de informações para
conhecer e acompanhar o estado de saúde da comunidade e desencadear
oportunamente as medidas dirigidas à prevenção e ao controle das doenças e
agravos à saúde. Já a vigilância sanitária visa garantir a qualidade de serviços,
meio ambiente, meio de trabalho e produtos (alimentos, medicamentos,
cosméticos, saneantes, agrotóxicos etc.).

G - HumanizaSUS

Em 2003, foi constituída a Política Nacional de Humanização (PNH), que tem


foco na efetivação dos princípios do SUS na prática cotidiana e na gestão. É
uma política transversal ao sistema, perpassando diferentes ações, políticas
públicas e instâncias gestoras. Nesse sentido, a PNH apresenta um novo modo
de fazer saúde, aprimorando os princípios originais do SUS por meio da:

Transversalidade: estar inserida em todas as políticas e programas do


SUS; reconhecer que diferentes especialidades e práticas de saúde estão
conectadas com aquele que é assistido, para a produção do cuidado;
Indissociabilidade entre atenção e gestão: como as decisões da gestão
interferem na atenção à saúde, trabalhadores e usuários devem conhecer
a rede de saúde e a gestão dos serviços para que possam participar do
processo de tomada de decisão nas organizações de saúde e nas ações de
saúde coletiva;
Protagonismo, corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e dos
coletivos: o cuidado e a assistência em saúde não se restringem às
responsabilidades da equipe de saúde. O usuário e sua rede sociofamiliar
devem também corresponsabilizar-se pelo próprio cuidado nos
tratamentos, assumindo posição protagonista com relação a sua saúde.

Em suas diretrizes, a PNH destaca o acolhimento do usuário, a gestão


participativa e a cogestão, a ambiência (espaços saudáveis, acolhedores e
confortáveis, que respeitem a privacidade e propiciem mudanças no processo
de trabalho), clínica ampliada e compartilhada (olhar interdisciplinar, que
coloca o sujeito e sua necessidade de saúde em outras perspectivas, como a
social, econômica, cultural, psíquica etc.), Valorização do trabalho e do
trabalhador e Defesa dos Direitos dos Usuários.

Resumo
Princípios doutrinários do SUS

Universalidade;
Equidade;
Integralidade.

Princípios organizativos do SUS

Regionalização;
Hierarquização;
Resolutividade;
Descentralização;
Participação social;
Complementaridade do setor privado.
Leis Orgânicas da Saúde
Gustavo Swarowsky
Marcos Vinícius Ambrosini Mendonça
Jeane Lima e Silva Carneiro
Edson Lopes Mergulhão

1. As Leis Orgânicas da Saúde e suas


regulamentações
A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, e a Lei nº 8.142, de 28 de
dezembro de 1990, compõem as chamadas Leis Orgânicas da Saúde que
regem o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS). A primeira foi
sancionada pelo Presidente da República Fernando Collor de Melo; contudo,
seus vetos a artigos fundamentais, que tratavam principalmente do controle
social e do financiamento, motivaram a formulação da Lei nº 8.142, em que
tais artigos são resgatados.
A regulamentação das Leis Orgânicas da Saúde que, em tese, deveria ter
ocorrido em seguida, a fim de esclarecer as normas que balizariam a
implementação do SUS, ocorreu apenas em 2011, por meio do Decreto nº
7.508, de 28 de julho. Em razão disso, durante esse intervalo de 21 anos, o
modo de operacionalizar o SUS foi definido por intermédio de normas
operacionais, como a Norma Operacional Básica (NOB) e a Norma
Operacional de Assistência à Saúde (NOAS), publicadas em forma de
portarias do Ministério da Saúde do Brasil.

A - Lei nº 8.080/90

A Lei nº 8.080/90 define a saúde como um direito fundamental do ser


humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno
exercício, pois os níveis de saúde expressam a organização social e
econômica do país, cujos determinantes e condicionantes são, entre outros, a
alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a
renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso a bens e
serviços essenciais.
Segundo essa lei, o SUS objetiva prestar assistência por meio de ações de
promoção, proteção e recuperação da saúde, integrando ações assistenciais e
preventivas; divulgar os fatores condicionantes e determinantes da saúde;
formular a política de saúde a fim de garanti-la como direito. Para isso, deve
realizar ações de vigilância (epidemiológica, sanitária, nutricional e na saúde
do trabalhador), ordenar a formação de recursos humanos para a saúde,
formular políticas de saúde específicas, como de medicamentos,
equipamentos e sangue, bem como colaborar com outras políticas, como a de
saneamento básico.
Na Lei nº 8.080/90 são definidos os princípios doutrinários (universalidade,
integralidade e equidade) e as diretrizes organizacionais do
SUS(regionalização, hierarquização, descentralização e participação popular).
Salienta-se que o texto da lei não distingue claramente os princípios das
diretrizes, além de apontar outros. Contudo, a literatura especializada no tema
consagra os já citados como os principais e essa distinção aqui feita. A partir
dessa premissa, o SUS deve executar ações e serviços através dos entes
federativos (municípios, estados, Distrito Federal e União), com a
participação complementar da iniciativa privada, por meio de uma rede
organizada de forma regionalizada e hierarquizada em níveis de
complexidade crescente.
A Lei nº 8.080 sofreu diversas alterações desde sua publicação; dentre as
quais, destacam-se: a inclusão do subsistema de saúde indígena, pela Lei nº
9.836, de 1999; do subsistema de atendimento e internação domiciliar, pela
Lei nº 10.424, de 2002; do subsistema de acompanhamento durante o trabalho
de parto, parto e pós-parto imediato, pela Lei nº 11.108, de 2005; da
assistência terapêutica e da incorporação de tecnologias em saúde, pela Lei nº
12.401, de 2011; a permissão para a participação, inicialmente vetada, de
empresas ou de capital estrangeiro na assistência à saúde, pela Lei nº 13.097,
de 2015.

Dica
A Lei nº 8.080/90 determina que a entrada do usuário para usufruir dos
serviços do SUS seja feita pelos serviços de atenção primária e de
urgência, quando for o caso. Ou seja, não adianta o usuário procurar
diretamente o especialista focal no hospital se desejar atendimento
específico: ele deverá procurar o seu serviço de atenção primária de
referência para que seu problema seja resolvido e, caso haja necessidade de
maior complexidade de recursos, será encaminhado aos demais níveis de
atenção conforme a demanda.

B - Lei nº 8.142/90

A Lei nº 8.142 institui medidas que fortalecem a participação social no SUS e


as transferências intergovernamentais dos recursos financeiros. Sobre a
participação popular, essa lei cria, em cada esfera de governo, as seguintes
instâncias colegiadas:

I - Conselhos de Saúde.
II - Conferências de Saúde.

O Conselho de Saúde tem caráter permanente e deliberativo (ou seja, o


conselho de saúde reunido pode tomar qualquer decisão em caráter definitivo,
sem precisar de julgamento de nenhuma outra instância ou poder). É um
órgão colegiado composto por representantes do governo e prestadores de
serviço (25% do total), profissionais de saúde (25% do total) e usuários (50%
do total), que devem fazer reuniões mensais com o objetivo de atuar na
formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na
instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros,
cujas decisões são homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído
em cada esfera de governo.
As Conferências de Saúde devem ocorrer a cada 4 anos, com a representação
de vários segmentos sociais para avaliar a situação de saúde e propor
diretrizes para a formulação da política de saúde em âmbitos municipal,
estadual e federal. Além disso, são convocadas pelo poder executivo ou,
extraordinariamente, pelo Conselho de Saúde.
O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e o Conselho
Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) têm
representação no Conselho Nacional de Saúde.
Figura 1 - Composição paritária dos Conselhos de Saúde

Dica
Podemos dizer, com referência à composição dos Conselhos de Saúde, que
a participação dos usuários é paritária com relação à participação do
conjunto dos demais segmentos (governo, prestadores de serviços e
trabalhadores da saúde).

A transferência intergovernamental dos recursos é repassada pela União


(Fundo Nacional de Saúde) para os estados, o Distrito Federal e os
municípios. Pelo menos 70% dos recursos devem ser destinados aos
municípios, e o restante é repassado aos estados. Os municípios podem
estabelecer consórcios para a execução de ações e serviços, remanejando,
entre eles, as parcelas dos recursos para as ações e os serviços de saúde. Para
receberem os recursos, os municípios, os estados e o Distrito Federal devem
preencher os requisitos listados na Tabela 2.

2. A regulamentação da Lei nº 8.080/90 por


meio do Decreto nº 7.508/11
O Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011, dispõe, entre outras
providências, sobre a organização do SUS, o planejamento da saúde, a
assistência à saúde e a articulação interfederativa.
Quanto à organização do SUS, o decreto reitera a forma regionalizada e
hierarquizada, oferecendo ações e serviços em Redes de Atenção à Saúde
localizadas nas Regiões de Saúde. As Regiões de Saúde são espaços
geográficos contínuos, constituídos por agrupamentos de municípios
limítrofes, com a finalidade de integrar a organização, o planejamento e a
execução de ações e serviços de saúde. As Redes de Atenção à Saúde são
conjuntos de ações e serviços articulados em níveis de complexidade
crescente, com a finalidade de garantir a integralidade da assistência.
As Regiões de Saúde são instituídas pelos estados em articulação com os
municípios, respeitadas as diretrizes gerais pactuadas na Comissão
Intergestores Tripartite (CIT). As Regiões devem conter, no mínimo, serviços
de:

I - Atenção Primária.
II - Urgência e Emergência.
III - Atenção psicossocial.
IV - Atenção ambulatorial especializada e hospitalar.
V - Vigilância em saúde.

As Redes de Atenção à Saúde estão compreendidas no âmbito de uma Região


de Saúde, ou de várias, em consonância com as diretrizes pactuadas nas
Comissões Intergestores (CIs). Nas Redes de Atenção à Saúde, são portas de
entrada os serviços de atenção primária, de atenção à urgência e emergência;
de atenção psicossocial; especiais de acesso aberto. As CIs pactuam as regras
de continuidade do acesso às ações e aos serviços nas respectivas áreas de
atuação, com vistas a ofertar e ordenar o fluxo de ações e serviços de saúde,
bem como monitorizar a integralidade e equidade no acesso.
O planejamento da saúde é ascendente e integrado, do nível local até o
federal, compatibilizando as necessidades das políticas de saúde com a
disponibilidade de recursos financeiros. A compatibilização é efetuada no
âmbito dos planos de saúde, resultantes do planejamento integrado dos entes
federativos, nos quais constam as metas de saúde. O Conselho Nacional de
Saúde estabelece as diretrizes a serem observadas na elaboração dos planos.
No planejamento, devem ser considerados os serviços e as ações prestados
pelas iniciativas pública e privada, de forma complementar ou não ao SUS, os
quais deverão compor os Mapas de Saúde. O planejamento deve estar
orientado pelos Mapas de Saúde que contêm a descrição geográfica da
distribuição de recursos humanos, ações e serviços de saúde ofertados pelo
SUS e pela iniciativa privada, considerando a capacidade instalada existente,
os investimentos e o desempenho aferido a partir dos indicadores de saúde do
sistema.
Com a intenção de promover a articulação dos processos de planejamento em
saúde nas 3 esferas de governo, o PlanejaSUS foi implantado em 2008/2009,
de forma a favorecer o aperfeiçoamento da gestão do sistema e conferir
direcionalidade. A sistematização do processo de planejamento ocorre por
meio de instrumentos de ação governamental, previstos na Constituição de
1988, como o Plano Plurianual (PPA), que apresenta as diretrizes, os objetivos
e as metas em saúde, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que explicita
as metas e prioridades para cada ano, e a Lei Orçamentária Anual (LOA), que
prevê os recursos necessários para a execução das metas. Essa estratégia
pressupõe que cada esfera de gestão realize o seu planejamento, articulando-
se de forma a fortalecer e consolidar os objetivos e as diretrizes do SUS,
contemplando as peculiaridades, necessidades e realidades de saúde
locorregionais. Cada gestor (federal, estadual, municipal) realiza seu
planejamento, utilizando-se de instrumentos básicos: o Plano de Saúde, as
Programações Anuais de Saúde e os Relatórios Anuais de Gestão. O
PlanejaSUS obedece ao PPA, à LDO e à LOA.
No tocante à assistência à saúde, o decreto reitera a integralidade da
assistência que deve iniciar e se completar nas Redes de Atenção à Saúde,
mediante o referenciamento do usuário regional e interestadual. Para isso,
estabelece a Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (RENASES),
Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) e Protocolos
Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs) em âmbito nacional. A RENASES
compreende todas as ações e serviços que o SUS oferece para garantir a
integralidade da assistência. A RENAME compreende a seleção e
padronização de medicamentos indicados para atendimento de doenças e
agravos no âmbito do SUS. Os PCDTs são documentos que estabelecem
critérios para o diagnóstico dos problemas de saúde, o tratamento
preconizado, as posologias recomendadas, os mecanismos de controle clínico,
e o acompanhamento e a verificação dos resultados terapêuticos.
Na articulação interfederativa, destaca-se o papel das CIs como espaços de
pactuação consensual entre os entes federativos para definição das regras da
gestão compartilhada do SUS. Compreendem espaços de discussão que
pactuam com a organização e o funcionamento das ações e dos serviços de
saúde integrados nas Redes de Atenção à Saúde, definindo desde os aspectos
operacionais, financeiros e administrativos da gestão compartilhada até as
diretrizes sobre as Regiões de Saúde e Redes de Atenção à Saúde e as
responsabilidades de cada esfera na integração das Redes de Atenção.
O decreto estabelece que os acordos entre os entes federativos para a
organização das Redes de Atenção à Saúde sejam firmados por meio de
Contratos Organizativos de Ação Pública (COAPs). Para isso, entes federados
integram seus planos de saúde e definem no contrato as responsabilidades
individuais e solidárias de cada um com relação a ações e serviços a serem
oferecidos na Região de Saúde, bem como indicadores e metas, critérios de
avaliação de desempenho, recursos financeiros utilizados e forma de controle
e fiscalização.

Leitura recomendada
O Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011, dispõe sobre a organização do
SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação
interfederativa.
3. As Normas Operacionais e o Pacto pela
Saúde: instrumentos normativos para a
implementação do SUS
Entre a publicação das Leis Orgânicas da Saúde em 1990 e sua
regulamentação em 2011, transcorreram 21 anos em que a implementação do
SUS foi regida por normas operacionais e, a partir de 2006, pelo Pacto pela
Saúde. Quatro NOBs foram publicadas entre 1991 e 1996: NOB 01/91, NOB
01/92, NOB 01/93 e NOB 01/96; 2 NOAS foram publicadas entre 2001 e
2002: NOAS SUS 01/2001 e NOAS SUS 01/2002; o Pacto pela Saúde foi
publicado em 2006. São leis infraconstitucionais que foram editadas
seguindo, em maior ou menor proporção, o que estabeleciam as Leis
Orgânicas da Saúde para normatizar a implementação do SUS nos seus
respectivos períodos históricos. A seguir, apresentaremos as principais
características de cada uma delas.

A - Norma Operacional Básica 01/91


Esta norma enfocou os mecanismos de financiamento do SUS, ou seja, o
repasse, acompanhamento, controle e avaliação dos recursos financeiros do
Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS)
para os estados e municípios. Não descentralizou a gestão para estados e
municípios, porque estes figuravam como prestadores de serviços, e valorizou
principalmente as atividades hospitalares e ambulatoriais, perpetuando a
lógica da assistência médica historicamente desenvolvida pelo INAMPS. O
fato de ter sido editada pelo INAMPS e não pelo Ministério da Saúde, como
se esperava após as Leis Orgânicas da Saúde, revelava que o cumprimento
dessas leis e a consequente implantação do novo sistema de saúde, o SUS,
seriam desafios a serem enfrentados nas décadas seguintes.

B - Norma Operacional Básica 01/92

A NOB 01/92 já foi publicada pelo Ministério da Saúde, mas manteve a


lógica de financiamento da NOB 01/91. Embora não tenha descentralizado a
gestão das ações e dos serviços, como indicado nas Leis Orgânicas, avançou
em explicitar princípios da descentralização. Foi entendida como uma norma
de transição, resultado de um acordo entre diversos atores que disputavam o
rumo da saúde no país, ou seja, entre os militantes do SUS e os que, como o
INAMPS, resistiam à sua implantação.

C - Norma Operacional Básica 01/93

A NOB 93 estabeleceu as instâncias intergestores bipartite e tripartite como


espaços de negociação, pactuação e integração entre os gestores do SUS.

Até 1993, quando houve a criação da NOB 93, as ações de saúde de caráter
curativo e individual, produzidas pelos estados e municípios, eram
“compradas” pelo Governo Federal por meio do INAMPS. Tal sistemática
passou a ser a política dominante após o golpe militar de 1964, quando o
Governo Federal não construiu mais instituições públicas de saúde, optando
pela compra de serviços da iniciativa privada. Mais tarde, com a criação das
Ações Integradas de Saúde (AISs), em 1983, o governo também passou a
comprar serviços de saúde dos estados e municípios.
Dessa forma, as instituições de saúde estaduais e municipais, apesar da sua
relevância pública, eram tratadas como meras prestadoras de consultas
médicas e outros procedimentos cobertos pelo INAMPS. Além disso, como
os recursos financeiros se concentravam na esfera federal, os estados e
municípios aderiram à cultura da produtividade, preocupando-se
exclusivamente em produzir o maior número possível de procedimentos
médicos, sem se importarem com a qualidade e a resolutividade deles.
A NOB 01/93 começou a modificar essa situação ao implantar formas
progressivas de gestão municipalizada das ações de saúde. Os municípios
habilitados passaram a dispor de tetos financeiros definidos a serem
repassados pelo Governo Federal, bem como de autonomia de gestão de todas
as unidades de abrangência municipal ou regional (dependendo do porte do
município). A NOB 93 iniciou a municipalização da saúde no país, pois
definiu municípios e estados como gestores, desencadeando o processo de
municipalização da gestão, com a habilitação dos municípios nas condições
de gestão então criadas: incipiente, parcial e semiplena.

Dica
A NOB 93 iniciou a municipalização da saúde no país ao definir
municípios e estados como gestores da saúde.

Ao gestor que se habilitar no modelo de gestão semiplena caberá a


transferência de recursos fundo a fundo, ou seja, diretamente do Fundo
Nacional de Saúde para o Fundo Municipal ou Estadual.
D - Norma Operacional Básica 01/96

Visando superar os limites de descentralização, gestão e financiamento, surgiu


a NOB 96, que introduziu alguns instrumentos de ação e tornou a autonomia
de estados e municípios mais próxima das leis que hoje regulam o setor. Na
lógica assistencial, a NOB representou o rompimento com o produtivismo
(pagamento por produção de serviços, como realizado pelo INAMPS) e a
implementação de incentivos aos programas dirigidos às populações mais
carentes e a uma nova lógica assistencial, como o Programa de Agentes
Comunitários de Saúde (PACS) e o Programa Saúde da Família (PSF).

De forma geral, a PPI é uma pactuação coordenada pelo gestor estadual e


representa o principal instrumento para garantia de acesso da população aos
serviços de média e alta complexidades não disponíveis em um determinado
município.
Os municípios, a partir dessa NOB, passaram a habilitar-se em uma das 2
novas condições de gestão: Gestão Plena da Atenção Básica (GPAB) e Gestão
Plena do Sistema Municipal (GPSM). Na GPAB, os municípios tornam-se
responsáveis pela gestão apenas dos serviços que realizam assistência à
Atenção Básica de Saúde (baixa complexidade); já na GPSM, os municípios
se tornam responsáveis pela gestão de todos os serviços que realizam
assistência à saúde no seu território.
Os estabelecimentos desse subsistema do SUS municipal não precisam ser de
propriedade da prefeitura. Suas ações, desenvolvidas pelas unidades estatais
(próprias, estaduais ou federais) ou privadas (contratadas ou conveniadas,
com prioridade para as entidades filantrópicas), têm de estar organizadas e
coordenadas de modo que o gestor municipal possa garantir à população o
acesso aos serviços e a disponibilidade das ações e dos meios para o
atendimento integral. Isso significa que, independentemente de a gerência dos
estabelecimentos prestadores de serviços ser estatal ou privada, a gestão de
todo o sistema municipal é, necessariamente, da competência do poder
público e exclusiva dessa esfera de governo, respeitadas as atribuições do
respectivo Conselho e de outras diferentes instâncias de poder.
Para o financiamento dessas ações, foi determinado o Piso Assistencial
Básico (PAB), que consiste em um montante de recursos financeiros
destinado ao custeio de procedimentos e ações de assistência básica, de
responsabilidade tipicamente municipal. Esse piso é definido pela
multiplicação de um valor per capita nacional pela população de cada
município (fornecida pelo IBGE), transferido, regular e automaticamente, ao
Fundo de Saúde ou conta especial dos municípios e, transitoriamente, ao
fundo estadual, até a habilitação municipal. O valor do PAB inicial foi fixado
em R$10,00/habitante/ano. Hoje esse valor varia entre R$23,00 e R$28,00 (de
acordo com a Portaria nº 1.409, de 10 de julho de 2013).
Tais incentivos significam melhoria do modelo assistencial ao romper com a
lógica do pagamento por produção de serviços, estimulando os municípios a
construir sistemas de saúde voltados à promoção, prevenção, tratamento e
reabilitação do conjunto de seus cidadãos. Só fazem jus a esses recursos os
municípios que se habilitam em alguma condição de gestão segundo a NOB
96, e a transferência total do PAB é suspensa no caso da não alimentação, pela
Secretaria Municipal de Saúde junto à Secretaria Estadual de Saúde, dos
bancos de dados de interesse nacional, por mais de 2 meses consecutivos.
E - Norma Operacional da Assistência à Saúde SUS
01/2001 e Norma Operacional da Assistência à Saúde
SUS 01/2002
Em janeiro de 2001, continuando o processo de aperfeiçoamento do sistema e
visando reordenar os caminhos trilhados pelo SUS após a NOB 96, o
Ministério da Saúde criou a Norma Operacional da Assistência à Saúde
(NOAS), que adota a estratégia de regionalização da assistência como forma
de reorientar o processo de descentralização do sistema, promovendo a
organização de sistemas ou redes funcionais de forma a perpassar as
fronteiras municipais, com o objetivo de facilitar e garantir o acesso dos
cidadãos à integralidade da assistência, além de fomentar comportamentos
cooperativos entre os gestores.
A principal estratégia da NOAS é a realização do Plano Diretor de
Regionalização, definindo que compete ao gestor estadual a sua confecção. O
plano de regionalização tem, como estratégia, a divisão administrativa do
estado em sub-regiões. Dessa forma, o município-sede passa a receber
recursos fundo a fundo para atendimento não só da sua população, mas
também da população a ele referenciada. Mais uma vez, são redefinidas as
condições de gestão para habilitação dos municípios, seguindo a tendência
anterior de ampliar cada vez mais a condição gestora dos municípios. Assim,
são 2 as novas possibilidades de habilitação: GPAB ampliada e GPSM.

Dica
A criação do NOAS adota a estratégia de regionalização por meio de um
Plano Diretor de Regionalização, que propõe a divisão administrativa do
estado em sub-regiões.

Para a qualificação da região, a proposta deve ser enviada à CIB, que a


encaminha ao Conselho Estadual de Saúde. Se aprovada, vai à CIT, que a
envia ao Conselho Nacional de Saúde para homologação. A NOAS
2001/2002 pressupõe, também, que a PPI esteja implantada no estado. As
habilitações devem conter termos de compromisso firmados com o estado por
cada município-sede, em relação ao atendimento da população referenciada
por outros municípios. E, como nova estratégia de financiamento, há a
implantação de um valor per capita nacional correspondente a esse conjunto
de serviços mínimos de média complexidade.
A NOAS criou uma modalidade de habilitação para os municípios, visando
ampliar os procedimentos requeridos para a atenção básica. Criou-se o valor
do PAB - Ampliado (PAB-A), que passou a ser de R$13,00, embora alguns
municípios recebam R$18,00. Essa diferença existe na tentativa de promover
maior equidade na alocação dos recursos.
Para habilitar-se à condição de GPAB e receber o PAB-A, correspondente ao
financiamento da atenção básica ampliada, o município deve ser avaliado pela
Secretaria Estadual de Saúde, pela CIB e pelo Departamento de Atenção
Básica (DAB) da Secretaria de Atenção à Saúde. Já para habilitar-se como
gestor pleno, o município deve dispor de uma rede assistencial capaz de
ofertar, além do elenco de procedimentos propostos para a atenção básica
ampliada, um conjunto mínimo de serviços de média complexidade, como
laboratório de patologia clínica, radiologia simples, ultrassonografia
obstétrica, fisioterapia etc.
Em 2004, segundo a Portaria GM/MS nº 2.023, os municípios e o Distrito
Federal passaram a ser responsáveis pela gestão do sistema municipal de
saúde na organização e execução das ações de atenção básica, o que significa
que todos os municípios e o Distrito Federal passaram a ser responsáveis pela
gestão do sistema municipal de saúde, independentemente da habilitação
como gestor, sem prejuízo das competências definidas na Lei nº 8.080/90.
Essa Portaria também extingue as condições de GPAB e GPAB ampliada,
conferidas aos municípios que cumpriram os requisitos da NOB 96 e da
NOAS SUS 2002 para habilitação nessas formas de gestão. Isso significa que,
atualmente, não há mais habilitação específica para ser gestor pleno da
atenção básica e todos os municípios brasileiros se constituem como gestores
responsáveis pela atenção básica. Logo, atualmente só existe habilitação de
municípios para a condição de GPSM.
Assim, o Ministério da Saúde definiu mecanismos e instrumentos de
monitorização e avaliação dos municípios por meio do Pacto de Indicadores
da Atenção Básica, bem como as sanções cabíveis em caso de
descumprimento das respectivas responsabilidades. Portanto, verifica-se que a
habilitação como gestor básico tenha sido substituída por uma
responsabilização por meio de metas a serem cumpridas por todos os
municípios e o Distrito Federal.
F - Pacto pela Saúde (2006)
O Pacto pela Saúde é um conjunto de reformas institucionais pactuado entre
as 3 esferas de gestão do SUS com o objetivo de fazer avançar sua
organização e seu funcionamento. Foi aprovado pelos gestores do SUS na
CIT, assinado pelo Ministro da Saúde, pelo Presidente do CONASS e pelo
Presidente do CONASEMS. Sua intenção é superar problemas que
acompanharam as NOBs, como a distância entre as normas e a realidade dos
municípios, a dificuldade de fiscalização do SUS pela falta de instrumentos
que responsabilizem os gestores de forma clara a partir de metas e indicadores
de saúde, e a necessidade de avançar na regionalização e descentralização.
Saliente-se que, a partir de então, todo município possui a gestão plena das
ações e dos serviços oferecidos em seu território. O Pacto deve ser revisado
anualmente com ênfase nas necessidades de saúde da população e implica o
exercício simultâneo de definição de prioridades, articuladas e integradas nos
3 componentes: Pacto pela Vida, Pacto em Defesa do SUS e Pacto de Gestão
do SUS.
Tais prioridades são expressas em objetivos e metas no Termo de
Compromisso de Gestão (TCG). Extingue-se, então, a necessidade de
habilitação dos municípios como gestores junto ao Governo Federal,
substituída pelo TCG, a ser assinado por todas as esferas de governo do SUS,
em que são explicitadas as atribuições de cada ente federativo.
Importante
De forma geral, as prioridades do Pacto pela Vida são: saúde do idoso,
câncer de colo uterino e mama, mortalidade materno-infantil, doenças
endêmicas, promoção à saúde e fortalecimento da atenção básica. As
prioridades do Pacto em Defesa do SUS são: implementar um projeto
permanente de mobilização social e elaborar e divulgar a Carta dos
Direitos dos Usuários do SUS; as prioridades do Pacto de Gestão são:
definir a responsabilidade sanitária de cada instância gestora do SUS e
estabelecer as diretrizes para a gestão do SUS.

O Pacto introduziu mudanças nas relações entre os entes federados, inclusive


nos mecanismos de financiamento, significando, portanto, um esforço de
atualização e aprimoramento do SUS. As transferências de recursos foram
modificadas, passando a ser divididas em 6 grandes blocos de financiamento
(Atenção Básica, Média e Alta Complexidade de Assistência, Vigilância em
Saúde, Assistência Farmacêutica, Gestão do SUS e Investimentos em Saúde),
garantindo maior adequação às realidades locais.
Em 2008, o Pacto pela Vida, regulamentado pela Portaria nº 325, foi revisado
e ampliado, preconizando 11 prioridades: atenção à saúde do idoso; controle
do câncer de colo de útero e de mama; redução da mortalidade materno-
infantil; fortalecimento da capacidade de respostas às doenças emergentes e
endemias, com ênfase na dengue, hanseníase, tuberculose, malária, influenza,
hepatite e AIDS; promoção da saúde; fortalecimento da atenção básica; saúde
do trabalhador; saúde mental; fortalecimento da capacidade de resposta do
sistema de saúde às pessoas com deficiência; atenção integral às pessoas em
situação ou risco de violência; saúde do homem.

Resumo
Legislações do SUS

Lei nº 8.080/90: dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e


prevenção da saúde e sobre a organização e o funcionamento dos
serviços de saúde;
Lei nº 9.142/90: dispõe sobre a participação social na gestão do SUS e as
transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da
Saúde;
Decreto nº 7.508/11: regulamenta a Lei Orgânica nº 8.080/90 e dispõe
sobre a organização do SUS, o planejamento da saúde, a assistência à
saúde e a articulação interfederativa.

SUS – Arcabouço jurídico

NOB 93: estabeleceu as instâncias intergestoras bipartite (CIB) e


tripartite (CIT) como espaços de negociação, pactuação e integração
entre os gestores; iniciou a municipalização da saúde no país;
NOB 96: introduziu alguns instrumentos de ação (PPI, transferência
fundo a fundo, habilitação de municípios para gestão) e fortaleceu a
autonomia de estados e municípios; determinação do PAB;
NOAS-SUS 2001/2002: adota a estratégia de regionalização da
assistência como forma de reorientar o processo de descentralização do
sistema, promovendo a organização de sistemas ou redes funcionais de
forma a perpassar as fronteiras municipais, com o objetivo de facilitar e
garantir o acesso dos cidadãos à integralidade da assistência, além de
fomentar comportamentos cooperativos entre os gestores;
Pacto pela Saúde (Portaria nº 399/2006): conjunto de reformas
institucionais pactuado entre as 3 esferas de gestão do SUS, com o
objetivo de promover inovações nos processos e instrumentos de gestão.

Pacto pela Vida

Saúde do idoso;
Câncer do colo uterino e de mama;
Mortalidade materno-infantil;
Doenças endêmicas;
Promoção à saúde;
Fortalecimento da atenção básica.

Pacto em Defesa do SUS

Implementar um projeto permanente de mobilização social;


Elaborar e divulgar a Carta dos Direitos dos Usuários do SUS.

Pacto de Gestão do SUS

Definir a responsabilidade sanitária de cada instância gestora do SUS;


Estabelecer as diretrizes para a gestão do SUS, com ênfase em
descentralização, regionalização, financiamento, PPI, regulação,
participação e controle social, planejamento, gestão do trabalho e
educação em saúde.
Atenção Primária à Saúde e
Estratégia Saúde da Família
Gustavo Swarowsky
Marcos Vinícius Ambrosini Mendonça
Jeane Lima e Silva Carneiro
Edson Lopes Mergulhão

1. Atenção Primária à Saúde

A - Conceito e princípios
A Atenção Primária à Saúde (APS) comporta 4 concepções distintas:

1 - APS seletiva, realizada com programa focalizado e seletivo com cesta


restrita de serviços.
2 - APS de 1º nível, que corresponde a um dos níveis de atenção do
sistema de saúde e oferta serviços ambulatoriais médicos de 1º contato
não especializados, incluindo ou não amplo espectro de ações de saúde
pública e de serviços clínicos direcionados a toda a população.
3 - APS abrangente ou integral, caracterizada como uma concepção de
modelo assistencial e de organização do sistema de saúde conforme
proposto em Alma-Ata para enfrentar necessidades individuais e
coletivas.
4 - APS como filosofia que orienta processos emancipatórios pelo direito
universal à saúde (Giovanella; Mendonça, 2012).

Na Europa, a atenção primária refere-se, de modo geral, aos serviços


ambulatoriais de 1º contato integrados a um sistema de saúde de acesso
universal, diferentemente do que se observa nos países periféricos, nos quais a
atenção primária corresponde também, com frequência, a programas
seletivos, focalizados e de baixa resolutividade.
No Brasil, a APS nasce com características de APS seletiva, mas, a partir do
momento em que é assumida como estratégia para reorientação do modelo
assistencial, no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), pode ser
caracterizada como uma APS integral. No Brasil, o uso do termo Atenção
Básica em substituição à Atenção Primária ocorreu no contexto de
implementação do SUS a fim de se diferenciar das propostas de APS seletivas
e focalizadas difundidas por Agências Internacionais (Giovanella; Mendonça,
2012).
Os princípios gerais da APS têm base na Declaração de Alma-Ata e podem
ser resumidos em 4 atributos essenciais: acesso ou 1º contato, integralidade,
longitudinalidade e coordenação do cuidado; e 3 atributos derivados:
orientação familiar, orientação comunitária e competência cultural (Starfield,
2002).

Tema frequente de prova


Os atributos essenciais da APS – acesso (ou 1º contato), integralidade,
longitudinalidade e coordenação do cuidado – são bastante frequentes nos
exames de concursos médicos.

Acesso (ou 1º contato): definido como porta de entrada dos serviços de


saúde, ou seja, quando a população e a equipe identificam aquele serviço
como o 1º recurso a ser buscado quando há uma necessidade ou problema de
saúde. Para que o serviço de saúde possa ser o 1º contato ou porta de entrada,
é preciso analisar os quesitos de acesso e acessibilidade. Acesso traz a ideia
de não impedir a entrada do paciente ao serviço, enquanto acessibilidade diz
respeito à oferta de serviços, à capacidade de produzir serviços e responder às
necessidades de saúde de determinada população, ou seja, a capacidade de o
usuário obter cuidados de saúde sempre que necessitar, de maneira fácil e
conveniente;
Integralidade: também é um dos princípios doutrinários do SUS. Trata-se da
capacidade da equipe de saúde em lidar com o amplo espectro de
necessidades em saúde do indivíduo, da família ou das comunidades,
resolvendo-os em até 85% das vezes ou referindo-os a outros níveis de
atenção à saúde conforme a necessidade (secundário ou terciário). Pressupõe
um conceito amplo de saúde, no qual são reconhecidas necessidades
biopsicossociais, culturais e subjetivas; a promoção, a prevenção e o
tratamento são integrados na prática clínica e comunitária, e a abordagem
envolve o indivíduo, sua família e seu contexto;
Longitudinalidade: ou vínculo e responsabilização, é uma relação
personalizada entre usuário e serviço de saúde que se estabelece ao longo do
tempo, independentemente do tipo de problemas de saúde ou mesmo da
presença de um problema de saúde. Nesse conceito surge a proposta do
acolhimento, que consiste na busca constante de reconhecimento das
necessidades de saúde dos usuários e das formas possíveis de satisfazê-las, o
que resulta em resolução na unidade, encaminhamentos ou deslocamentos e
trânsitos pela rede assistencial;
Coordenação do cuidado: atributo essencial para a obtenção dos outros
aspectos, é considerada a capacidade de integrar todo cuidado que o paciente
recebe em diferentes pontos, por meio do gerenciamento e da coordenação
entre os serviços. É, portanto, um estado de harmonia por meio de uma ação
ou um esforço comum. Sem ela, a longitudinalidade perderia muito do seu
potencial, a integralidade seria dificultada, e a função de 1º contato se tornaria
puramente administrativa.
As abordagens familiar e comunitária e a competência cultural são observadas
principalmente na Estratégia Saúde da Família (ESF), relacionadas ao foco de
atenção da equipe de saúde.

B - Histórico
a) Relatório Dawson

O conceito de APS surgiu na Inglaterra no início do século XX. Na época se


vivia uma revolução na estrutura do cuidado em saúde e no ensino médico
proposta por Flexner (1910); observava-se uma expansão de cuidados
médicos apenas de cunho curativo, fundado no reducionismo biológico e na
atenção individual em nível predominantemente hospitalar. Esse modelo
preocupava as autoridades inglesas devido ao elevado custo, à crescente
complexidade, à fragmentação da atenção médica e à sua baixa
resolutividade.
Nesse contexto, o médico britânico Bertrand Edward Dawson, em 1920, após
ter sido convocado pelo governo inglês, escreveu o Interim Report on the
Future Provision of Medical and Allied Services (mais conhecido como
Relatório Dawson), em que a ideia de atenção primária foi utilizada pela 1ª
vez como forma de organização de um sistema de saúde e se tornou uma
alternativa para contrapor o modelo flexneriano. Nesse documento, Dawson
organizava o modelo de atenção em centros de saúde primários e secundários,
serviços domiciliares, serviços suplementares e hospitais de ensino. Os
centros de saúde primários e os serviços domiciliares deveriam estar
organizados de forma regionalizada, em que a maior parte dos problemas de
saúde deveria ser resolvida por médicos com formação em Clínica Geral. Os
casos que o médico não tivesse condições de solucionar com os recursos
disponíveis na atenção primária deveriam ser encaminhados para os centros
de atenção secundária, onde haveria especialistas das mais diversas áreas, ou
então, para os hospitais, quando existisse indicação de internação ou cirurgia.
Essa organização caracteriza-se pela hierarquização dos níveis de atenção à
saúde.
As concepções desse documento influenciaram a criação do sistema nacional
de saúde britânico (National Health Service – NHS) em 1948, que, por sua
vez, passou a orientar a reorganização dos sistemas de saúde em vários países
do mundo. O relatório Dawson definiu 2 características básicas da APS: a
regionalização (os serviços de saúde organizados para atender áreas definidas
com características próprias) e a integralidade, que define que os cuidados em
saúde devem ser tanto curativos quanto preventivos.

b) Declaração de Alma-Ata

Os elevados custos dos sistemas de saúde mundiais, o uso indiscriminado da


tecnologia dura (exames laboratoriais e de imagem) e a baixa resolutividade
preocupavam a economia da saúde nos países desenvolvidos, fazendo-os
pesquisar novas formas de organização da atenção com custos menores e
maior eficiência. Em contrapartida, os países subdesenvolvidos e em
desenvolvimento sofriam com a desigualdade do acesso à saúde, aliada à falta
de cobertura dos cuidados primários, à alta mortalidade infantil e às péssimas
condições sociais, econômicas e de saneamento básico.
Nesse contexto, a Organização Mundial da Saúde (OMS) fomentou o debate
sobre os rumos mundiais para a saúde, gerando, em 1978, na cidade de Alma-
Ata (antiga URSS, hoje Cazaquistão), a I Conferência Internacional sobre
Cuidados Primários de Saúde (Figura 1), na qual foi proposto o maior nível
de saúde até o ano 2000, por meio da APS, conhecida como “Saúde para
Todos no Ano 2000”. Nessa conferência, foi escrita a Declaração de Alma-
Ata, em que 134 países (incluindo o Brasil) assinaram uma carta
comprometendo-se a modificar seus sistemas de saúde, levando em conta um
conjunto de princípios que ampliavam o conceito de saúde.
A partir de Alma-Ata se definiu, em nível mundial, a saúde como um direito
do cidadão, defendendo a ideia de que a saúde depende da elaboração de
políticas públicas, que vão desde o comprometimento com o planejamento até
a equidade social, passando pelo fortalecimento da sociedade, por meio do
acesso à educação e informação e direito à participação social para o
fortalecimento das ações de saúde a serem implantadas.
Figura 1 - I Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde

Importante
A Declaração de Alma-Ata definiu a saúde como um direito do cidadão, e
foi necessária a criação de políticas públicas a fim de garantir um maior
nível de saúde até o ano 2000.

c) Carta de Ottawa e o Movimento de Promoção da Saúde

Em 1986, em Ottawa, Canadá, foi realizada a I Conferência Internacional


sobre Promoção da Saúde. Essa conferência foi uma resposta às crescentes
expectativas por uma nova saúde pública, movimento que vinha ocorrendo
em todo o mundo.
A conferência tinha como plano discutir o futuro da saúde pública,
principalmente nos países desenvolvidos, e introduzir um conceito novo, o de
promoção de saúde. Promoção de saúde é o nome dado ao processo de
capacitação da comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e
saúde, incluindo maior participação no controle desse processo.
Como estratégias de ação, a Carta de Ottawa defendia a criação de ambientes
sustentáveis, a reorientação dos serviços de saúde, o desenvolvimento da
capacidade dos sujeitos individuais e o fortalecimento de ações comunitárias.
As discussões basearam-se nos progressos alcançados com a Declaração de
Alma-Ata e tinham como objetivo auxiliar na meta de “Saúde para Todos no
Ano 2000”.
Entre 1986 e 2000, realizaram-se 5 Conferências Internacionais de Promoção
da Saúde em vários países do mundo. A reorientação dos serviços de saúde
proposta nessas conferências fortalece a ideia de organizar os sistemas de
saúde com base na atenção primária. Em 2014, foi publicada, no Brasil, a
Política Nacional de Promoção da Saúde que, em seu texto, afirma a
necessidade de articulação com a Política Nacional de Atenção Básica (Brasil,
2014).

d) Histórico da Atenção Primária à Saúde no Brasil

No Brasil, há registros de serviços orientados para a APS nas décadas de 1920


e 1940 em São Paulo; entretanto, foram experiências isoladas. Em 1960
houve outra experiência, a criação da Fundação Serviço Especial de Saúde
Pública (SESP), que teve atuação marcante nas regiões Norte, Nordeste e
Centro-Oeste, organizando e operando serviços de saúde pública e assistência
médica. Contudo, apenas na década de 1970 houve uma expansão da APS em
nível nacional, com o surgimento do Programa de Interiorização das Ações de
Saúde e Saneamento do Nordeste (PIASS), cujo objetivo era possibilitar o
acesso à saúde às populações marginalizadas, e a criação em 1976 dos
primeiros programas de Residência Médica em Medicina de Família e
Comunidade (na época Medicina Geral e Comunitária), formando médicos
especializados em construir um novo modelo de atenção à saúde no país.
Assim, principalmente após a Constituição de 1988, a APS se tornou o
modelo de saúde preconizado pelo SUS. Em 1991, criou-se o Programa de
Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e, em 1994, o Programa Saúde da
Família (PSF), representando modelos APS bastante restritos, pois
focalizavam populações específicas e ofereciam serviços restritos ao
enfrentamento de problemas específicos. A partir de 1997, com a publicação
pelo Ministério da Saúde do documento “PSF: uma reorientação do modelo
assistencial”, a APS foi alçada à condição de estratégia estruturante de
organização do sistema de saúde brasileiro, reiterado em 2006 e 2011, quando
da publicação e republicação da Política Nacional de Atenção Básica
(PNAB), pelas Portarias 648, de 2006, e 2.488, de 2011. A versão da PNAB
de 2011 manteve a essência da anterior, embora tenha feito mudanças, como a
flexibilização da carga horária de médicos, antes contratados
obrigatoriamente em regime de 40 horas semanais, podendo, desde então,
estabelecer contratos de 20, 30 ou 40 horas semanais (Brasil, 2011).
Em 21 de setembro de 2017, a Portaria nº 2.436 aprovou uma nova versão da
PNAB, em que a ESF deixou de ser o único modelo para a organização da
Atenção Básica no Brasil; passou a ser admitida, também, a composição de
equipes multiprofissionais apenas por médicos, enfermeiros e técnicos ou
auxiliares de enfermagem (portanto, sem Agente Comunitário de Saúde –
ACS), com carga horária mínima de 10 horas semanais para os médicos.

2. Política Brasileira de Atenção Básica


A PNAB mais recente foi publicada com a Portaria nº 2.436, em 21 de
setembro de 2017. Nela, a Atenção Básica é definida como um conjunto de
ações de saúde, individuais, familiares e coletivas, que envolvem promoção,
prevenção, proteção, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos,
cuidados paliativos e vigilância em saúde, desenvolvida por meio de práticas
de cuidado integrado e gestão qualificada, realizada com equipe
multiprofissional e dirigida à população em território definido, sobre as quais
as equipes assumem responsabilidade sanitária (Brasil, 2017).

A - Princípios e Diretrizes da Atenção Básica no Brasil


(PNAB 2017)

A Atenção Básica tem como princípios a universalidade, a integralidade e a


equidade, assim definidos:

Universalidade: possibilitar o acesso universal e contínuo a serviços de


saúde de qualidade e resolutivos, caracterizados como a porta de entrada
aberta e preferencial da rede de atenção (1º contato), com o acolhimento
das pessoas, promovendo a vinculação e corresponsabilização pela
atenção às suas necessidades de saúde. O estabelecimento de
mecanismos que assegurem acessibilidade e acolhimento pressupõe uma
lógica de organização e funcionamento do serviço de saúde que parte do
princípio de que as equipes que atuam na Atenção Básica nas Unidades
Básicas de Saúde (UBSs) devem receber e ouvir todas as pessoas que
procuram seus serviços, de modo universal, de fácil acesso, sem
diferenciações excludentes, e a partir daí construir respostas para suas
demandas e necessidades;
Equidade: ofertar o cuidado, com o reconhecimento das diferenças nas
condições de vida e saúde, de acordo com as necessidades das pessoas,
considerando que o direito à saúde passa pelas diferenciações sociais e
deve atender à diversidade. Ficou proibida qualquer exclusão com base
em idade, gênero, cor, crença, nacionalidade, etnia, orientação sexual,
identidade de gênero, estado de saúde, condição socioeconômica,
escolaridade ou limitação física, intelectual, funcional, entre outras, com
estratégias que permitam minimizar desigualdades, evitar exclusão social
de grupos que possam vir a sofrer estigmatização ou discriminação, de
maneira que impacte na autonomia e na situação de saúde;
Integralidade: é o conjunto de serviços executados pela equipe de saúde
que atendam às necessidades da população adscrita nos campos do
cuidado, da promoção e manutenção da saúde, da prevenção de doenças
e agravos, da cura, da reabilitação, da redução de danos e dos cuidados
paliativos. Inclui a responsabilização pela oferta de serviços em outros
pontos de atenção à saúde e o reconhecimento adequado das
necessidades biológicas, psicológicas, ambientais e sociais causadoras
das doenças, além do manejo das diversas tecnologias de cuidado e de
gestão necessárias a estes fins, além da ampliação da autonomia das
pessoas e coletividade. As diretrizes da Atenção Básica são:
1 - Regionalização e hierarquização.
2 - Territorialização e adstrição.
3 - População adscrita.
4 - Cuidado centrado na pessoa.
5 - Resolutividade.
6 - Longitudinalidade do cuidado.
7 - Coordenação do cuidado.
8 - Ordenação das redes.
9 - Participação da comunidade.
Regionalização e hierarquização: dos pontos de atenção das Redes de
Atenção à Saúde (RAS), tendo a Atenção Básica como ponto de
comunicação entre eles. Consideram-se regiões de saúde como um
recorte espacial estratégico para fins de planejamento, organização e
gestão de redes de ações e serviços de saúde em determinada localidade,
e a hierarquização como forma de organização de pontos de atenção das
RASs entre si, com fluxos e referências estabelecidos;
Territorialização e adstrição: de forma a permitir o planejamento, a
programação descentralizada e o desenvolvimento de ações setoriais e
intersetoriais com foco em um território específico, com impacto na
situação, nos condicionantes e determinantes da saúde das pessoas e
coletividades que constituem aquele espaço e estão, portanto, adstritos a
ele. Para efeitos dessa portaria, considera-se território a unidade
geográfica única, de construção descentralizada do SUS na execução das
ações estratégicas destinadas à vigilância, promoção, prevenção,
proteção e recuperação da saúde. Os territórios são destinados para
dinamizar a ação em saúde pública, o estudo social, econômico,
epidemiológico, assistencial, cultural e identitário, possibilitando uma
ampla visão de cada unidade geográfica e subsidiando a atuação na
Atenção Básica, de forma que atendam a necessidade da população
adscrita e/ou das populações específicas;
População adscrita: população presente no território da UBS, de forma
a estimular o desenvolvimento de relações de vínculo e
responsabilização entre as equipes e a população, garantindo a
continuidade das ações de saúde e a longitudinalidade do cuidado, com o
objetivo de ser referência para o seu cuidado;
Cuidado centrado na pessoa: aponta para o desenvolvimento de ações
de cuidado de forma singularizada, que auxilie as pessoas a
desenvolverem os conhecimentos, aptidões, competências e a confiança
necessária para gerir e tomar decisões embasadas sobre sua própria
saúde e seu cuidado de saúde de forma mais efetiva. O cuidado é
construído com as pessoas, de acordo com suas necessidades e
potencialidades na busca de uma vida independente e plena. A família, a
comunidade e outras formas de coletividade são elementos relevantes,
muitas vezes condicionantes ou determinantes na vida das pessoas e, por
consequência, no cuidado;
Resolutividade: reforça a importância de a Atenção Básica ser
resolutiva, utilizando e articulando diferentes tecnologias de cuidado
individual e coletivo, por meio de uma clínica ampliada capaz de
construir vínculos positivos e intervenções clínica e sanitariamente
efetivas, centrada na pessoa, na perspectiva de ampliação dos graus de
autonomia dos indivíduos e grupos sociais. Deve ser capaz de resolver a
grande maioria dos problemas de saúde da população, coordenando o
cuidado do usuário em outros pontos da RAS, quando necessário;
Longitudinalidade do cuidado: pressupõe a continuidade da relação de
cuidado, com construção de vínculo e responsabilização entre
profissionais e usuários ao longo do tempo, de modo permanente e
consistente, com acompanhamento dos efeitos das intervenções em
saúde e de outros elementos na vida das pessoas, a fim de evitar a perda
de referências e diminuir os riscos de iatrogenia decorrentes do
desconhecimento das histórias de vida e da falta de coordenação do
cuidado;
Coordenar o cuidado: elaborar, acompanhar e organizar o fluxo dos
usuários entre os pontos de atenção das RASs; atua como o centro de
comunicação entre os diversos pontos de atenção, responsabilizando-se
pelo cuidado dos usuários em qualquer desses pontos através de uma
relação horizontal, contínua e integrada, com o objetivo de produzir a
gestão compartilhada da atenção integral, além de articular outras
estruturas das redes de saúde e intersetoriais, públicas, comunitárias e
sociais;
Ordenar as redes: reconhecer as necessidades de saúde da população
sob sua responsabilidade, organizando as necessidades dessa população
em relação aos outros pontos de atenção à saúde, contribuindo para que o
planejamento das ações, assim como a programação dos serviços de
saúde, parta das necessidades de saúde das pessoas;
Participação da comunidade: estimular a participação das pessoas, a
orientação comunitária das ações de saúde na Atenção Básica e a
competência cultural no cuidado como forma de ampliar sua autonomia
e capacidade na construção do cuidado à sua saúde e das pessoas e
coletividades do território; considerar, ainda, o enfrentamento dos
determinantes e condicionantes de saúde, através de articulação e
integração das ações intersetoriais na organização e orientação dos
serviços de saúde, a partir de lógicas mais centradas nas pessoas e no
exercício do controle social.

B - A Atenção Básica nas Redes de Atenção à Saúde


As RASs são arranjos organizativos formados por ações e serviços de saúde
com diferentes configurações tecnológicas (na atenção primária, secundária e
terciária) e missões assistenciais (prevenção, promoção e recuperação da
saúde), articulados de forma complementar em determinada região de saúde,
espaço geográfico geralmente composto por municípios circunvizinhos com
características sociodemográficas e epidemiológicas semelhantes.
A Atenção Básica é parte integrante das RASs, atuando como porta de entrada
preferencial e ordenadora dessas redes e coordenadora dos cuidados nelas
oferecido. Para cumprir sua missão, a Atenção Básica deve possuir alta
resolutividade, com capacidade clínica e de cuidado, e incorporação de
tecnologias leves e/ou de baixa complexidade (diagnósticas e terapêuticas),
além de articulação com os demais serviços da rede. Para isso, deve realizar
práticas de microrregulação nas UBSs, como gestão de filas, exames e
consultas, ligado ao Telessaúde. Assim, a Atenção Básica deve, no interior da
RAS, ordenar o fluxo de pessoas aos demais pontos de atenção da rede, gerir
a referência e contrarreferência, bem como estabelecer relação com os
especialistas que cuidam das pessoas de seu território.
O Programa Nacional Telessaúde Brasil Redes foi instituído em 2007 e
redefinido e ampliado em 2011. Os núcleos de Telessaúde desenvolvem
atividades técnicas, científicas e administrativas para planejar, executar,
monitorizar e avaliar as ações de Telessaúde, principalmente a produção de
teleconsultoria (consulta/pergunta e resposta registrada sobre dúvidas em
manejo, condutas e procedimentos clínicos, ações de saúde e processo de
trabalho). Há 2 formas:
Síncrona (em tempo real): por meio de chat/videoconferência e serviço
telefônico gratuito;
Assíncrona (mensagens offline respondidas em até 72 horas): tele-
educação (ensino a distância) e telediagnóstico.

Figura 2 - Núcleos da Telessaúde

- Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da


Qualidade da Atenção Básica

Em 2011, foi instituído o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da


Qualidade da Atenção Básica (PMAQ), cujo principal objetivo é ampliar o
acesso e melhorar a qualidade da Atenção Básica, garantindo um padrão de
qualidade comparável nacional, regional e localmente, permitindo maior
transparência e efetividade das ações governamentais direcionadas à Atenção
Básica. O PMAQ foi organizado em 4 fases, de forma que os compromissos
assumidos sejam cumpridos, avaliados e, assim, façam jus ao incentivo
financeiro de 20% do valor integral do Componente de Qualidade do Piso da
Atenção Básica variável (PAB variável) por Equipe de Atenção Básica
participante. Dos 47 indicadores pactuados, 23 são imprescindíveis para a
permanência da equipe no programa. Os indicadores selecionados se referem
a alguns dos principais focos estratégicos da Atenção Básica, assim como a
iniciativas e programas estratégicos do Ministério da Saúde, buscando
sinergia entre o PMAQ e as prioridades pactuadas pelas 3 esferas de governo.

C - Funcionamento da Atenção Básica (PNAB 2017)


A Atenção Básica funciona nas chamadas UBSs, Unidades Básicas de Saúde
Fluviais e Unidades Odontológicas Móveis, onde atuam equipes
multiprofissionais.
As UBSs funcionam 40 horas semanais, 5 dias por semana, no mínimo,
habitualmente em horário matutino e vespertino. Horários alternativos podem
ser pactuados nas instâncias de participação social, como os conselhos de
saúde. Podem ter até 4 equipes de Atenção Básica ou Saúde da Família para
atingir seu potencial resolutivo. As equipes devem assumir a responsabilidade
sanitária por uma população de 2.000 a 3.500 pessoas, residentes em território
definido. As ações realizadas deverão seguir 2 padrões: essencial, com ações
e procedimentos básicos relacionados a condições básicas/essenciais;
ampliados, com ações e procedimentos considerados estratégicos.
Todas as UBSs devem monitorizar a satisfação dos usuários (registro de
elogios, críticas, reclamações) e assegurar acolhimento e escuta ativa e
qualificada das pessoas, mesmo que não sejam da sua área de abrangência,
com classificação de risco e encaminhamento responsável e articulado com
outros serviços.
Há 5 tipos de equipes multiprofissionais que podem atuar na Atenção Básica:
equipe de Saúde da Família (eSF), Equipe de Atenção Básica (EAB), Equipe
de Saúde Bucal (ESB), Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção
Básica (NASF-AB) e Estratégia de Agentes Comunitários de Saúde (EACS).
A EAB é uma novidade da PNAB 2017. Ela não exige a participação de
ACSs em sua composição e pode ser formada com médico, enfermeiro e
técnico ou auxiliar de enfermagem, o que não é possível no caso da eSF, que
conta com todos esses profissionais.
As ESBs, compostas por dentista, técnico de saúde bucal ou auxiliar de saúde
bucal (modalidade I) ou dentista, técnico de saúde bucal e auxiliar de saúde
bucal ou outro técnico de saúde bucal (modalidade II), atuam sempre
vinculados às eSFs ou EABs. As equipes da EACS são uma possibilidade
para a reorganização inicial da Atenção Básica, com vistas à implantação
gradual da ESF ou como forma de agregar os agentes comunitários a outras
maneiras de organização da Atenção Básica. Para isso, é necessária a
existência de UBS, ACS e enfermeiro supervisor. Cada ACS deverá realizar
suas ações previstas, dentro de sua microárea de responsabilidade, com um
limite máximo de até 750 pessoas.
Já as Equipes do NASF foram criadas pelo Ministério da Saúde por meio da
Portaria GM nº 154, de 2008, com o objetivo de ampliar a abrangência e o
escopo das ações da Atenção Básica, bem como sua resolubilidade. Com a
publicação da Portaria nº 3.124, de 2012, o Ministério da Saúde criou uma 3ª
modalidade de conformação de equipe: o NASF 3, abrindo a possibilidade de
qualquer município do Brasil fazer implantação de equipes NASF, desde que
tenha ao menos 1 eSF. As modalidades de NASF estão assim definidas:
NASF 1 (de 5 a 9 ESFs), NASF 2 (de 3 a 4 eSFs) e NASF 3 (de 1 a 2 eSFs).
Com a PNAB 2017, o NASF passou a complementar não só as eSFs, mas
também as EABs. Por isso, o nome foi trocado para Núcleo Ampliado de
Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB).
As equipes do NASF-AB são compostas por diferentes ocupações da área da
saúde para dar suporte (clínico, pedagógico e sanitário) às eSFs e EABs,
atuando em conjunto com elas, em seus respectivos territórios. Como parte do
corpo de profissionais, podemos citar: médico acupunturista, assistente social,
profissional/professor de educação física, farmacêutico, fisioterapeuta,
fonoaudiólogo, ginecologista/obstetra, médico homeopata, nutricionista,
pediatra, psicólogo, psiquiatra, terapeuta ocupacional, geriatra, clínico
médico, médico do trabalho, veterinário, arte-educador e profissional de
saúde sanitarista. Portanto, as equipes do NASF-AB não se constituem como
serviços com unidades físicas independentes ou especiais nem são de livre
acesso para atendimento individual ou coletivo (estes, quando necessários,
devem ser regulados pelas equipes que atuam na Atenção Básica). Devem, a
partir das demandas identificadas no trabalho conjunto com as equipes, atuar
de forma integrada a RASs e seus diversos pontos de atenção, além de outros
equipamentos sociais públicos/privados, redes sociais e comunitárias.
Há, ainda, as equipes que atuam com populações específicas: as Equipes de
Consultório de Rua, cujo objetivo é ampliar o acesso desses usuários à rede
de atenção e ofertar de maneira mais oportuna atenção integral à saúde.
Realiza atividades de forma itinerante, desenvolvendo ações na rua, em
instalações específicas, na unidade móvel e nas instalações das UBSs do
território onde atua, sempre articuladas e desenvolvendo ações em parceria
com as demais equipes de Atenção Básica do território (UBS e NASF) e dos
Centros de Atenção Psicossocial, da Rede de Urgência e dos serviços e
instituições componentes do Sistema Único de Assistência Social, entre
outras instituições públicas e da sociedade civil. Há, também, as Equipes de
Saúde da Família para o Atendimento da População Ribeirinha da Amazônia
Legal e Pantanal Sul-Mato-Grossense. As Equipes de Saúde da Família
Ribeirinha (ESFR) desempenham a maior parte de suas funções em UBSs
construídas/localizadas nas comunidades pertencentes à área adscrita e cujo
acesso ocorre por meio fluvial. As equipes de Saúde da Família Fluviais
(eSFFs) desempenham suas funções em Unidades Básicas de Saúde Fluviais
(UBSFs).
Dentre as Estratégias e Programas da Atenção Básica, que inclui as equipes
citadas, há também o Programa de Saúde na Escola (PSE). Foi criado em
2007, pelo Decreto Presidencial nº 6.286, de 5 de dezembro, na perspectiva da
atenção integral (promoção, prevenção, diagnóstico e recuperação da saúde e
formação) à saúde de crianças, adolescentes e jovens do ensino público
básico, no âmbito das escolas e UBSs, realizada pelas equipes de saúde da
Atenção Básica e educação de forma integrada, por meio de ações de
avaliação clínica e psicossocial; promoção e prevenção, visando à promoção
da alimentação saudável, à promoção de práticas corporais e atividades físicas
nas escolas, à educação para a saúde sexual e reprodutiva, à prevenção ao uso
de álcool, tabaco e outras drogas, à promoção da cultura de paz e prevenção
das violências, à promoção da saúde ambiental e desenvolvimento
sustentável; educação permanente para qualificação da atuação dos
profissionais da educação e da saúde e formação de jovens.

D - Atribuições dos profissionais da Atenção Básica


Importante
O médico da equipe de Saúde da Família é responsável pela conduta de
todos os pacientes de sua região de atendimento, sendo, muitas vezes, o
único ponto de acesso à saúde aos usuários. Por esse motivo, deve entender
e evitar o processo de medicalização social, compreendido como a
expansão progressiva do campo de intervenção da Biomedicina por meio
da redefinição de experiências e comportamentos humanos como se fossem
problemas médicos. O desfecho prático disso mostra que resfriados, lutos,
pequenas contusões, tristezas, crises de relacionamento, dores ocasionais,
morte e nascimentos, crises existenciais etc. passam a ser vertiginosamente
medicalizados.

E - O processo de trabalho na Atenção Básica

A Atenção Básica como contato preferencial dos usuários na RAS orienta-se


pelos princípios e diretrizes do SUS, a partir dos quais assume funções e
características específicas. Considera as pessoas em sua singularidade e
inserção sociocultural, buscando produzir a atenção integral, por meio da
promoção da saúde, da prevenção de doenças e agravos, do diagnóstico, do
tratamento, da reabilitação e da redução de danos ou de sofrimentos que
possam comprometer sua autonomia. Dessa forma, é fundamental que o
processo de trabalho na Atenção Básica se caracterize por:

I - Definição do território e territorialização.


II - Responsabilização sanitária.
III - Porta de entrada preferencial.
IV - Adscrição de usuários e desenvolvimento de relações de vínculo e
responsabilização entre a equipe e a população.
V - Acesso de modo a acolher todas as pessoas do seu território, de
modo universal e sem diferenciações excludentes.
VI - O acolhimento em todas as relações de cuidado, nos encontros entre
trabalhadores de saúde e usuários.
VII - Trabalho em equipe multiprofissional.
VIII - Resolutividade, com capacidade de intervir nos riscos,
necessidades e demandas de saúde da população, solucionando
problemas de saúde.
VIII - Atenção integral, contínua e organizada à população adscrita, com
base nas necessidades sociais e de saúde.
IX - Realização de ações de atenção domiciliar.
X - Programação e implementação de ações com base nas necessidades
de saúde, priorizando-as de acordo com a frequência, risco,
vulnerabilidade e resiliência.
XI - Implementação da Promoção da Saúde como um princípio para o
cuidado em saúde.
XII - Desenvolvimento de ações de prevenção primária, secundária,
terciária e quaternária.
XIII - Desenvolvimento de ações educativas.
XIV - Desenvolver ações intersetoriais.
XV - Implementação de diretrizes de qualificação dos modelos de
atenção e gestão.
XVI - Participação do planejamento local de saúde.
XVII - Implantar estratégias de segurança do paciente.
XVIII - Apoio às estratégias de fortalecimento da gestão local e do
controle social.
XIX - Formação e Educação Permanente em Saúde.

F - Financiamento da Atenção Básica

O financiamento da Atenção Básica é tripartite e deve estar detalhado no


Plano Municipal de Saúde. No âmbito federal, o montante de recursos
financeiros destinados à viabilização de ações de Atenção Básica à saúde
compõe o financiamento de Atenção Básica. O financiamento federal é
composto por: a) recursos per capita; b) recursos para estratégias e programas
da Atenção Básica, como eSF, EAB, EACS, NASF, Equipe Consultório na
Rua, eSFF, PSE e Academias da Saúde; c) recursos condicionados à
abrangência e oferta de serviços; d) recursos condicionados a desempenho
dos serviços, como o PMAQ; e) recursos de investimento. O recurso per
capita é transferido mensalmente, de forma regular e automática, do Fundo
Nacional de Saúde aos Fundos Municipais de Saúde e do Distrito Federal,
com base em um valor multiplicado pela população do município.

3. Programa/Estratégia Saúde da Família:


histórico e mudanças recentes
O PSF foi criado no Brasil em 1994, com a publicação do Ministério da
Saúde “Programa de Saúde da Família: dentro de casa”. Seu antecedente
imediato foi o PACS, iniciado em 1991, a fim de aumentar a acessibilidade ao
sistema de saúde e incrementar as ações de prevenção e promoção da saúde,
contribuindo para a redução das mortalidades infantil e materna,
principalmente nas regiões Norte e Nordeste. Para ser um ACS de
determinada unidade de saúde, o profissional deve morar na área adscrita de
abrangência da unidade, ter no mínimo o ensino fundamental e ter realizado o
curso introdutório de ACS.

Importante
Com o Programa Saúde da Família, a família passa a ser o objeto de
atenção, no ambiente em que vive, permitindo uma compreensão ampliada
do processo saúde-doença, por meio de ações que incluem a promoção da
saúde, prevenção, recuperação, reabilitação de doenças e agravos mais
frequentes.

Na 2ª publicação oficial do PSF, em 1997, intitulada “PSF: uma reorientação


do modelo assistencial”, observa-se a mudança de sua característica de
programa (com tempo de início e fim definidos) para Estratégia Saúde da
Família (ou ESF, sem tempo determinado para o término). Em 28 de março de
2006, o Ministério da Saúde emitiu a Portaria nº 648, na qual ficou
estabelecido que o PSF é a estratégia prioritária do Ministério da Saúde para
organizar a Atenção Básica no Brasil, o que se mantém com a PNAB, em
2012.
Com a PNAB publicada em 2017, ocorreu uma flexibilização no modo de
organizar a Atenção Básica, não sendo mais obrigatório a ESF como único
modelo de organização, pois os municípios podem, desde então, compor
equipes menores, as chamadas Equipes de Atenção Básica, sem a presença do
ACS. Outras mudanças significativas também são verificadas com a PNAB
2017: estabelecimento de “padrões” na oferta de serviços – padrão de ações e
serviços essenciais e padrão de ações e serviços ampliados; flexibilização da
carga horária dos profissionais das EABs, que podem ser contratados com
carga horária de 10 horas semanais (no caso da eSF continua sendo 40 horas
semanais, com exceção do médico); flexibilização do atendimento nas UBSs,
não sendo obrigatório o usuário pertencer ao território de abrangência de sua
equipe de referência para ser atendido.

4. Sistema de informação em saúde


A OMS define um sistema de informação em saúde como mecanismo de
coleta, processamento, análise e transmissão da informação para planejar,
organizar, operar e avaliar serviços de saúde.

- Sistema de Informação em Saúde para a Atenção


Básica (SISAB)
Dentro dos sistemas de informação, foi criado um sistema exclusivamente
para a Atenção Básica, que teve início em 1993 com o nome de Sistema de
Informação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (SIPACS), com
troca para o nome SIAB em 1998 (Sistema de Informação da Atenção
Básica). O SIAB é um sistema desenvolvido pelo DATASUS com o objetivo
de agregar, armazenar e processar as informações relacionadas à Atenção
Básica, usando como ponto central a ESF.
Tal instrumento incorporou em sua formulação conceitos como território,
problema e responsabilidade sanitária, completamente inserido no contexto de
reorganização do SUS no país, fazendo que assumisse características distintas
dos demais sistemas existentes. As fichas que estruturam o trabalho das
equipes de Atenção Básica e produzem os dados que compõem o SIAB são
utilizadas para o cadastro, acompanhamento domiciliar, registro de atividades,
procedimentos e notificações, organizadas conforme indicado na Tabela 6.
No intuito de reestruturar o SIAB para um sistema unificado, integrando
todos os sistemas de informação para a Atenção Básica e garantindo o
registro individualizado por meio do Cartão Nacional de Saúde (CNS), foi
instituído o Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB),
pela Portaria GM/MS nº 1.412, de 10 de julho de 2013. Este tem como fins o
financiamento e a adesão aos programas e estratégias da PNAB. O SISAB
integra a estratégia do Departamento de Atenção Básica (DAB/SAS/MS)
denominada e-SUS Atenção Básica (e-SUS AB), que propõe o incremento da
gestão da informação, a automação dos processos, a melhora das condições de
infraestrutura e das condições de trabalho.
A estratégia é implementar um software único (e-SUS AB) e é composta por
2 sistemas que instrumentalizam a coleta dos dados que serão inseridos no
SISAB: a Coleta de Dados Simplificado (CDS) e o Prontuário Eletrônico do
Cidadão (PEC). Recentemente incluído pela PRT GM/MS nº 1.653, de
02.10.2015, também já está disponível um módulo de atenção domiciliar para
os Serviços de Atenção Domiciliar, compostos por Equipes Multiprofissionais
de Atenção Domiciliar e Equipes Multiprofissionais de Apoio.
Os sistemas e-SUS AB foram desenvolvidos para atender os processos de
trabalho da Atenção Básica para a gestão do cuidado em saúde, podendo ser
utilizados por profissionais de todas as equipes, incluindo o Núcleo de Apoio
à Saúde da Família, do Consultório na Rua, de Atenção à Saúde Prisional, do
Programa Saúde na Escola, da Academia de Saúde e da Atenção Domiciliar.

Resumo
Medicina de Família e
Comunidade
Gustavo Swarowsky
Marcos Vinícius Ambrosini Mendonça
Jeane Lima e Silva Carneiro
Edson Lopes Mergulhão

1. Introdução
Ainda no início do século XX, a Medicina era exercida de forma muito
independente e com direcionamentos terapêuticos diversos. Além da medicina
ortodoxa, havia práticas médicas como o fisiomedicalismo ou
botanomedicalismo, precursores da fitoterapia e da homeopatia, por exemplo.
Não havia um controle de abertura de escolas médicas, tampouco necessidade
de conexão com as universidades ou uma padronização científica da prática
clínica.
Assim, em 1910, foi publicado pelo médico estadunidense Abraham Flexner
o estudo chamado Medical Education in the United States and Canada – A
Report to the Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, que
ficou conhecido como Relatório Flexner. Esse relatório revolucionou a
educação médica, pois reorganizou e regulamentou o ensino médico nos
Estados Unidos e serviu de base para estruturar as faculdades de Medicina no
mundo inteiro. Suas principais características são a definição da estrutura do
curso em 4 anos, a vinculação das escolas médicas às universidades, a ênfase
na pesquisa biológica como forma de superar a era empírica do ensino, o
controle do exercício profissional pela profissão organizada e a prática da
Medicina centrada na doença e no ambiente hospitalar. Construiu-se um
modelo fragmentado (com divisão entre ciclos básicos e ciclos clínicos), cuja
abordagem de ensino trazia à lembrança o antigo modelo de Descartes do
dualismo corpo e mente, em que se acreditava que era possível compreender a
biologia do ser humano apenas por suas partes orgânicas, separadas das
emoções.
Entretanto, essa revolução desencadeou um processo de exclusão de todas as
propostas de atenção em saúde que não estivessem dentro dos seus
parâmetros, desconsiderando outros fatores que interferem na qualidade do
trabalho dos médicos para a sociedade, como o estudo da Medicina de
Família e Comunidade (MFC), a compreensão das necessidades sociais das
pessoas e a resolução das doenças mais prevalentes de uma população fora do
ambiente hospitalar.
Em função disso é que, a partir da década de 1960, em todo o mundo, esse
modelo vem sendo contestado. Nesse ínterim, surge o movimento da MFC
como forma de resistência à ênfase dedicada ao modelo flexneriano,
enfatizando a preocupação com as demandas dos pacientes nas comunidades
e seus enfrentamentos psicossociais em relação às suas doenças.
A formação da Organização Mundial de Médicos de Família e Comunidade
(World Organization of National Colleges, Academies and Academic
Associations of General Practice – WONCA) em 1972 e a formação do
Grupo de Leeuwenhorst, durante a II Conference in the Teaching of General
Practice (Holanda, 1974), podem ser considerados marcos importantes para o
fortalecimento da Medicina de Família e Comunidade no mundo.
No Brasil, a formação em Medicina de Família e Comunidade teve início em
1976, quando foram criados 3 programas de Residência Médica (Rio de
Janeiro, Vitória de Santo Antão e Porto Alegre), que tinham como propósito
formar especialistas em MFC no campo da Atenção Primária à Saúde (APS).
Hoje a MFC é uma especialidade médica reconhecida pelo MEC/AMB, com
vagas de Residência Médica espalhadas por todo o país. Com a Lei nº
12.871/2013, foi instituído o Conselho Nacional de Educação (CNE), que, por
sua vez, discutiu e aprovou as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para os
cursos de Medicina no Brasil. Estas orientam que a formação médica seja
dirigida fundamentalmente às reais necessidades de saúde da população e do
sistema brasileiro, com ênfase para atuação no médico na APS, além de que,
no mínimo, 30% do internato aconteça na APS e nos serviços de urgência.
Essas medidas levaram a um maior contato do estudante com a especialidade
de MFC.
Em todo esse contexto histórico, a MFC tem contribuído para a reestruturação
científica da própria Medicina, pois seus princípios e práticas são centrados
na clínica para a pessoa (e não apenas para a doença), na relação médico-
paciente e na interlocução com o indivíduo, sua família e sua comunidade.

2. Princípios
A MFC é uma especialidade médica com foco privilegiado na APS e, por
isso, é considerada especialidade estratégica na conformação dos sistemas de
saúde. A definição de princípios para a MFC foi esboçada pela Seção
Europeia WONCA (Tabela 1), e a partir dela mesma foram traçados objetivos
para a MFC (Tabela 2).
Figura 1 - Abordagem do médico de família e comunidade, em comparação às demais especialidades
Fonte: adaptado de Gusso; Lopes, 2012.

Dica
A MFC tem seu foco na APS e, por conta disso, é regida pelos mesmos
princípios: 4 atributos essenciais (acesso ou 1º contato, integralidade,
longitudinalidade e coordenação do cuidado) e 3 atributos derivados
(orientação para a família, orientação para a comunidade e competência
cultural).

3. Doença x moléstia
Um dos processos estudados e treinados na MFC é a diferenciação entre
doença (disease) e moléstia ou adoecimento (illness). Tal diferenciação foi
descrita por Susser e Watson em 1971 (e, posteriormente, por Eisenberg em
1977) e relata que a doença (disease) se refere a um processo explicável a
partir da fisiopatologia, dos sinais e sintomas clínicos e exames
complementares, com base em anomalias estruturais, que definem alterações
orgânicas funcionais, e que se expressam de maneira similar
independentemente de cada indivíduo. Já a moléstia ou adoecimento (illness)
se refere à experiência subjetiva que vive cada pessoa ao adoecer ou sentir-se
mal por qualquer motivo; essa experiência é expressa por queixas, problemas
ou disfunções, de modo único, ou seja, cada pessoa expressa adoecimento de
forma distinta de acordo com sua história de vida.
A illness, em geral, deve ser avaliada em termos de sentimentos da pessoa,
ideias com relação ao processo de adoecimento ou de procura ao serviço,
efeitos que esse problema imprime no dia a dia (na função) e a expectativa da
pessoa quanto ao atendimento prestado. É importante lembrar que o
adoecimento (ou moléstia, illness) nem sempre está necessariamente ligado a
um diagnóstico nosológico: pacientes em sofrimento podem procurar o
médico por frustrações de vida, luto e outras condições não classificadas
como doenças (disease); entretanto, é função do médico de família e
comunidade ser o 1º contato do paciente, entender o contexto deste acerca de
seu problema e resolver a situação utilizando de técnica e tecnologia
adequada para que o adoecimento (ou moléstia) também não se transforme
em doença (disease).

Importante
O conceito de illness é de grande importância em MFC, pois se relaciona
com as percepções individuais em relação a um problema ou doença, o que
interfere na forma de abordar o paciente e orientar seu tratamento, bem
como na adesão das medidas propostas.

O estudo do processo de illness e sua relação com o processo de disease é


extremamente importante na MFC, pois, em muitos casos, o paciente pode
sofrer incapacidade e reclusão do ambiente social e econômico, tamanha é a
expressão/percepção da doença para ele (illness). Além disso, o paciente deve
ser tratado como um todo, portanto ambos os processos devem ser analisados
na tomada de condutas.
Figura 2 - Processo de doença e moléstia
Fonte: adaptado de Ruben et al., 2009.

4. Abordagem centrada na pessoa


O paciente, quando chega à consulta clínica na Atenção Primária, apresenta
problemas e queixas não pré-selecionados como num consultório de um
especialista focal; são frequentemente encontrados num estágio
indiferenciado no que diz respeito à História Natural da Doença. Para uma
boa avaliação, diversos modelos de abordagem são propostos (Tabela 3),
conforme o objetivo da consulta.
No caso do médico de família e comunidade, diversos são os caminhos que
podem ser tomados no início da consulta (conversa direta com diagnóstico e
tratamento, apenas renovação da medicação ou mesmo choro durante toda a
consulta) sendo, portanto, importante ao médico incorporar um método que
assegure que as atitudes tomadas serão na busca do melhor cuidado. Tal
método clínico é conhecido como abordagem centrada na pessoa.
O método clínico centrado na pessoa é uma sistematização da abordagem
centrada na pessoa e tem como objetivo o estabelecimento de uma boa
relação médico-paciente, com uma avaliação integral, resolutiva, longitudinal,
com responsabilização da pessoa, humanização e vínculo, considerando o
sujeito em sua singularidade e inserção sociocultural. Possui 6 passos (Figura
3 e Tabela 4):

1 - Explorar a doença e a experiência da pessoa (disease e illness).


2 - Entender a pessoa como um todo, inteira.
3 - Elaborar um projeto comum ao médico e à pessoa para o manejo dos
problemas.
4 - Incorporar prevenção e promoção à saúde na prática diária.
5 - Intensificar a relação médico-pessoa.
6 - Ser realista.

Figura 3 - O método clínico de abordagem centrada na pessoa


Fonte: adaptado de Gusso; Lopes, 2012.
Os componentes do método de abordagem centrado na pessoa estão
estreitamente interligados. O bom médico de família e comunidade move-se
com habilidade para frente e para trás entre os componentes, seguindo as
palavras e sentimentos da pessoa durante a consulta. Essa técnica “de ir e vir”
é o conceito-chave para utilizar e ensinar da abordagem centrada na pessoa,
requerendo prática e experiência.
Nesse sentido, o modelo transteórico é um instrumento promissor de auxílio à
compreensão da mudança comportamental relacionada à saúde. O principal
pressuposto é o fato de que as mudanças bem-sucedidas dependem da
aplicação das estratégias certas na hora certa. O processo de mudança inclui
diferentes estágios motivacionais e, se considerados em conjunto, possibilita o
entendimento de como ocorre a mudança de comportamento.
Os 6 estágios são considerados flutuantes, ou seja, é possível o retorno do
indivíduo ao estágio anterior e sua transposição novamente. Na pré-
contemplação, não há motivação para a mudança, pois o indivíduo não
acredita na necessidade de mudar; na contemplação, o sentimento mais
prevalente é a ambivalência; na preparação, há melhor conscientização do
problema; no estágio de ação, o indivíduo engaja-se em ações específicas e
incorpora habilidades que o levem ao novo comportamento; na fase de
manutenção, o desafio é a estabilização do novo comportamento; a recaída é
uma etapa prevista no processo de mudança.
O profissional deve atuar de forma clara e objetiva, mas evitando o confronto.
As estratégias da entrevista motivacional podem auxiliar nesse processo.
Também é papel do profissional auxiliar na elaboração de estratégias de
enfrentamento da situação, oferecer o suporte necessário e envolver a rede
social mais próxima, fortalecendo o paciente para que, em caso de recaída,
haja a percepção do que a motivou e a retomada do processo de mudança.

Importante
A abordagem centrada na pessoa envolve avaliar a illness (moléstia ou
percepção do paciente sobre o adoecimento), levar em conta seu contexto
de vida e trabalho, ser realista a respeito do problema/doença do paciente,
praticar uma relação médico-paciente horizontal, realizar promoção e
prevenção de saúde e, por fim, tomar uma decisão compartilhada com o
paciente a respeito de seu tratamento.

5. Registro clínico orientado por problemas


Além da correta abordagem clínica pelo médico de família e comunidade, na
atenção primária há a necessidade de um registro correto dos encontros entre
médico e paciente, pois o elemento que mais contribui para aumentar o
desempenho da coordenação do cuidado do paciente é o processo de
reconhecimento das informações a respeito dos problemas, pois apenas
quando estes são reconhecidos é que os profissionais podem agir sobre eles.
Dentro desse contexto, o Registro Clínico Orientado por Problemas (RCOP)
tem-se mostrado eficiente.
O RCOP possui 3 áreas fundamentais para o registro das informações
clínicas: a base de dados da pessoa, lista de problemas e as notas de evolução
clínica (notas “SOAP” – Subjetivo, Objetivo, Avaliação e Plano), podendo ser
adicionado um 4º componente: as fichas de acompanhamento, que resumem
os dados complementares mais relevantes e sua evolução.
A base de dados da pessoa é formada pelas informações e dados obtidos na
história clínica e de vida (antecedentes pessoais e familiares), no exame físico
e nos resultados de exames complementares, registrados geralmente na
primeira ou nas primeiras consultas.
A lista de problemas constitui a 1ª parte de um prontuário baseado no RCOP,
devendo vir logo após a identificação da pessoa, elaborada a partir da sua
base de dados e das notas de evolução subsequentes, sendo dinâmica. Com o
uso dela, forma-se um resumo dos problemas de saúde da pessoa, facilitando
a compreensão do caso por parte do médico.

Importante
Na prática do registro clínico orientado por problemas, deve-se realizar
uma lista de problemas, a partir da qual se tomarão as condutas e se
orientará o tratamento com base em uma decisão compartilhada. Esse
registro clínico é feito com base no atendimento médico, no qual se
utilizam informações e dados colhidos na história clínica e nos
antecedentes pessoais e familiares, bem como no exame físico e no
resultado de exames complementares.

As notas de evolução clínica são formadas por 4 partes, conhecidas


resumidamente como “SOAP” (Tabela 5).
6. Abordagem familiar
Outro ponto extremamente importante na MFC é a abordagem familiar, tendo
em vista que o impacto de um problema de saúde sobre uma pessoa não afeta
só a ela, mas também ao seu entorno. Além disso, a família pode atuar como
origem ou perpetuadora da crise ou servir para ajudar na resolução do
conflito.
Hoje, verifica-se uma ampla variação da organização familiar de uma
sociedade para outra ou mesmo no interior de uma dada sociedade. Porém,
algumas organizações podem ser definidas, como:

Família nuclear, conjugal ou elementar: pai, mãe e filhos nascidos


dessa união; todos habitam o mesmo espaço, e sua união é reconhecida
pelos demais membros da comunidade;
Família composta: conjunto de cônjuges e de seus filhos na sociedade
poligâmica, podendo ocorrer a poliginia (homem com mais de 1 esposa)
ou a poliandria (mulher com vários maridos);
Família extensa: rede familiar ligando consanguíneos, aliados e
descendentes, ao longo de pelo menos 3 gerações, correspondendo, em
geral, a uma unidade doméstica (propriedade da terra e das habitações).

A - Estágios do ciclo vital

Em uma organização familiar, diferentes estágios do ciclo de vida (ou ciclo


vital) são observados (Tabela 6), baseados em eventos significativos que
transformam a estrutura da família, apresentando novas tarefas a serem
cumpridas em cada etapa. É na transição desses estágios que geralmente
aparecem dificuldades, e estas se transformam em problemas se a família não
consegue realizar adequadamente suas tarefas. O estudo do ciclo vital permite
que o médico perceba os entraves que a família está atravessando, previsíveis
ou não. A classificação do ciclo vital mais aceita foi proposta por Carter e
McGoldrick (1995).
Ainda dentro do estudo dos ciclos vitais, estão presentes as crises normativas,
ou seja, aquelas esperadas no decorrer de cada ciclo, e as crises
paranormativas, as quais não estão previstas nos ciclos e acabam gerando
maior impacto na família, podendo-se desestruturá-la emocional e
socialmente. Dentro das crises normativas, podemos citar dependência
econômica, insatisfação sexual, gravidez, aleitamento, ingresso e adaptação
escolar, separação e independência dos filhos, climatério, síndrome do ninho
vazio, perspectiva da morte.
Nas crises paranormativas, os exemplos são os seguintes:

Fatores ambientais: separação do casal, infidelidade, rivalidade entre


irmãos;
Doenças: aborto, doenças venéreas, doenças graves, suicídio,
hospitalização, invalidez, morte;
Fatores econômicos: desemprego, mudança de posto/horário do
trabalho;
Outros: mudança de residência, migração, atividades criminais e prisão.

B - Ferramentas de abordagem familiar


Para avaliar diferentes aspectos da organização familiar, a MFC conta com
diferentes ferramentas, oriundas da Sociologia e da Psicologia, que visam
estreitar as relações entre profissionais e famílias, promovendo a
compreensão em profundidade do funcionamento do indivíduo e de suas
relações com a família e a comunidade.

a) Genograma

O genograma é um instrumento de avaliação do paciente e de sua família.


Também chamado de árvore familiar, foi usado no passado por Gregor
Mendel para explicar a transmissão genética das doenças, por meio das linhas
de transmissão entre as gerações.
O genograma proporciona uma visão de um quadro trigeracional de uma
família e de seu movimento por meio do ciclo de vida, ajudando o médico (e
também a família) a analisar o contexto presente e as transformações
familiares longitudinalmente; o genograma pode ser interpretado tanto na
forma horizontal, olhando a situação-problema por meio do contexto familiar,
quanto na forma vertical, ou seja, das gerações, tentando desvendar padrões
que se repetem ao longo do tempo que possam explicar a origem de alguns
problemas.
No genograma, são representados os diferentes membros da família, padrão
de relacionamento e principais morbidades. Ainda se podem adicionar dados
como ocupação, hábitos, grau de escolaridade, entre outros. Os componentes
do genograma devem incluir:

1 - Utilizar simbologia-padrão, utilizando símbolos e siglas (Figuras 4 e


5).
2 - Representar pelo menos 3 gerações (Figura 4).
3 - Iniciar com a representação do casal e seus filhos.
4 - Indicar o ciclo vital da família.
5 - Representar as relações familiares.
6 - Indicar os fatores estressores, como doenças e condições.
7 - Obedecer à cronologia de idade − dos mais velhos para os mais novos
(da esquerda para a direita).
O genograma está indicado em situações que apresentem: sintomas
inespecíficos, utilização excessiva dos serviços de saúde, doenças crônicas,
isolamento, problemas emocionais graves, situações de risco familiar
(violência doméstica, drogadição) e mudanças no ciclo de vida. Seu valor é
diagnóstico e terapêutico.
Figura 4 - Exemplo de genograma

Dica
A criação de um genograma está indicada quando se verificam situações
em que o paciente apresenta sintomas inespecíficos e faz uma utilização
excessiva do serviço de saúde, quando se apresentam doenças crônicas,
isolamento, problemas emocionais graves, risco familiar por violência ou
drogadição e, ainda, quando há mudança no ciclo de vida do paciente.

b) Ecomapa

O ecomapa é um desenho complementar ao genograma na compreensão da


composição e estrutura de relações intrafamiliares e, principalmente, com o
meio que cerca a família. Isso é realizado ao colocar todos os pontos de
suporte da família: trabalho, igreja, amigos, grupos comunitários, vizinhos
etc. Assim como no genograma, linhas demarcam os tipos de relação entre a
família e os grupos destacados.
Figura 5 - Exemplo de esquematização de um ecomapa

c) F.I.R.O.

F.I.R.O. (Fundamental Interpersonal Relations Orientations) é a sigla para


“Orientações Fundamentais nas Relações Interpessoais”, ferramenta que
procura avaliar sentimentos de membros da família nas relações do cotidiano.
Pode ser usada em situações em que as interações na família possam ser
categorizadas nas dimensões de inclusão (dinâmica de relações), controle
(exercício do poder na família) e intimidade (união entre membros para
compartilhar sentimentos).
Essa ferramenta é útil quando, por qualquer motivo, há mudança de papéis na
família. Por exemplo: quando o chefe da família perde seu emprego e passa a
ser sustentado pela esposa. Essa proposta de modelo é bastante difundida no
Brasil, principalmente por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF), mas
ainda não temos nenhum estudo de validação no Brasil.

d) P.R.A.C.T.I.C.E.

O modelo P.R.A.C.T.I.C.E. auxilia o médico na estruturação do seu


atendimento às famílias e na avaliação do funcionamento das mesmas,
facilitando a coleta de informações e o entendimento do problema, de ordem
clínica, comportamental ou relacional. Deve ser aplicado em reuniões
familiares, e o profissional deve ter a clareza de que só uma entrevista
familiar será insuficiente para construir com a família soluções para a
resolução do problema apresentado.
e) A.P.G.A.R. familiar

Reflete a satisfação de cada membro da família (estado funcional familiar),


representado pela sigla APGAR, que significa: Adaptation (adaptação),
Partnership (participação), Growth (crescimento), Affection (afeição) e
Resolve (resolução). Cinco perguntas (Tabela 10) são realizadas e pontuadas,
para posterior análise.

7. Atenção domiciliar
O Ministério da Saúde brasileiro utiliza o termo Atenção Domiciliar para
designar o conjunto de ações integradas em saúde que ocorrem no domicílio
destinadas à população em geral.
A atenção domiciliar é, em outras palavras, o cuidado prestado no domicílio,
para qualquer pessoa em qualquer situação. É uma categoria de atendimento
estudada e amplamente treinada na MFC, muito presente em toda a APS por
meio, mas não exclusivamente, da Estratégia Saúde da Família. Nesse
contexto, é utilizada para conhecer e avaliar o território onde o médico de
família e comunidade está inserido, para cadastro dos pacientes de uma
determinada área, para análise de situações relacionadas ao ambiente
domiciliar (estruturas de risco para quedas em idosos, por exemplo), para
fazer a busca ativa de pacientes em situação de vulnerabilidade (risco de
suicídio, abandono do tratamento de tuberculose, por exemplo) e para
entender melhor o contexto de determinados pacientes (má adesão ao
tratamento).
Por via de regra, em função da alta demanda, são visitadas as pessoas que,
permanente ou temporariamente, estão impossibilitadas de comparecer à
Unidade de Saúde.
É importante que o paciente atendido more na área adscrita da unidade de
saúde, que a equipe tenha o devido consentimento para que ele receba
cuidados domiciliares e, caso seja idoso frágil, tenha um cuidador
responsável.

Dica
As visitas domiciliares são ações realizadas pela Estratégia Saúde da
Família que possibilitam o maior conhecimento do ambiente de vida do
indivíduo e facilitam a formação de vínculo entre o paciente e a equipe de
saúde.

A atenção domiciliar é subdividida em:


Assistência domiciliar: ocorre no âmbito da APS, vinculada ou não à ESF.
Destinada a pessoas com perdas funcionais e dependência para as atividades
de vida diária. Subdivide-se em:

Vigilância domiciliar: decorre do comparecimento de um integrante da


equipe até o domicílio para realizar ações de promoção, prevenção
(visitas a puérperas, busca de recém-nascidos), educação e busca ativa da
população de sua área de responsabilidade;
Atendimento domiciliar: voltado a pessoas com problemas agudos,
temporariamente impossibilitadas de comparecer ao serviço de saúde;
Acompanhamento domiciliar (ou monitoramento domiciliar):
dirigido a pessoas que necessitem de contatos frequentes com os
profissionais de saúde, como portadores de doença crônica que
apresentem dependência física, pacientes terminais, idosos com
limitação da mobilidade.

Internação domiciliar: conjunto de atividades prestadas no domicílio para


pessoas clinicamente estáveis, mas que exijam intensidade de cuidados maior
que das modalidades ambulatoriais, desde que com equipe profissional
voltada para esse fim. Sendo assim, é oferecida aos pacientes com problemas
agudos ou egressos hospitalares, que exijam cuidado mais intenso, mas que
possam ser mantidos em casa. São realizadas em comum acordo entre o
paciente, a família e a equipe de saúde, desde que haja condições físicas e
psicológicas para tanto.
Alguns critérios de inclusão utilizados pelas equipes de saúde para fornecer
assistência domiciliar continuada incluem:

Idosos sem condições de locomoção;


Paciente terminal;
Possuidor de deficiência física;
Possuidor de distúrbios psicológicos;
Pacientes egressos de internação hospitalar;
Pacientes orientados a permanecer em repouso absoluto;
Impossibilidade de comparecer à unidade de saúde por questões
anatômicas, sociais ou ambientais.

A Atenção Domiciliar, no âmbito do SUS, é organizada em 3 modalidades:

AD1: estarão os usuários com problemas de saúde


controlados/compensados com algum grau de dependência para as
atividades da vida diária (não podendo se deslocar até a unidade de
saúde). Essa modalidade tem as seguintes características:
Permite maior espaçamento entre as visitas;
Não necessita de procedimentos e técnicas de maior complexidade;
Não necessita de atendimento médico frequente;
Possui problemas de saúde controlados/compensados.
AD2: destina-se aos usuários com problemas de saúde e dificuldade ou
impossibilidade física de locomoção até uma unidade de saúde que
necessitam de maior frequência de cuidado, recursos de saúde e
acompanhamento contínuo, até a estabilização do quadro. A frequência
das visitas deve ser semanal. A prestação de assistência à saúde na
modalidade AD2 é de responsabilidade da Equipe Multiprofissional de
Atenção Domiciliar (EMAD) e da Equipe Multiprofissional de Apoio
(EMAP), ambas designadas especialmente pelo município para esta
finalidade;
AD3: destina-se aos usuários com problemas de saúde e dificuldade ou
impossibilidade física de locomoção até uma unidade de saúde, com
necessidade de maior frequência de cuidado; é semelhante ao da AD2,
mas aqui os pacientes precisam de equipamentos especializados
(oxigenoterapia, por exemplo) e procedimentos especiais.

Para a admissão de usuários nas modalidades AD2 e AD3, é fundamental a


presença de um cuidador identificado e devem ser garantidos, se necessário,
transporte e retaguarda de unidades assistenciais de funcionamento 24 horas,
definidas previamente como referência para o usuário, nos casos de
intercorrências.

Resumo
Sistema de saúde suplementar
– Agência Nacional de Saúde
Suplementar
Edson Lopes Mergulhão
Thaís Minett
Marcos Rodrigo Souza Fernandes
Fábio Roberto Cabar
Anderson Sena Barnabe
Fernando Starosta de Waldemar
Jeane Lima e Silva Carneiro

1. Histórico
O desenvolvimento do sistema suplementar teve origem no surgimento das
instituições previdenciárias do último século (institutos de aposentadoria e
pensão) durante a conformação mais consistente de um sistema de saúde no
Brasil. Essas instituições previdenciárias eram representadas pelas diferentes
categorias profissionais de trabalhadores urbanos que, para a organização da
oferta de saúde, compravam a prestação de serviços médicos ambulatoriais ou
de hospitais. Nesse mesmo período, surgiram as caixas de assistência,
dirigidas a funcionários de determinadas empresas e cujos benefícios
ocorriam por meio de empréstimos ou reembolsos pela utilização de serviços
de saúde.
Com a instalação de empresas estatais e multinacionais na década de 1950,
surgiram os sistemas assistenciais patronais, prestadores diretos de
cuidadosmédicos aos funcionários. Na década de 1960, houve a unificação
dos institutos e caixas de assistência, que originou o INPS (Instituto Nacional
de Previdência Social), aumentando significativamente a cobertura de
beneficiários e configurando uma rede de serviços julgada insuficiente por
usuários das categorias profissionais de maior poder aquisitivo.
Esse fato levou à ampliação do credenciamento de prestadores de serviços
privados, principalmente por meio do financiamento de grupos médicos (que,
gradativamente, se transformaram em empresas médicas), e à organização da
rede de serviços próprios e credenciados em 2 subsistemas, um voltado aos
trabalhadores urbanos, e outro, aos trabalhadores rurais. Tal ampliação gerou
conflitos entre a categoria médica, configurando-se uma disputa por um grupo
que pretendia preservar a prática liberal da Medicina e por outro que
considerava mais importante adaptar a prática médica às necessidades do
mercado que se constituía. Assim, surgiam as cooperativas médicas (que
atendiam a demanda nos consultórios de cada profissional) e as medicinas de
grupo (responsáveis pelo atendimento hospitalar).
Conformava-se, portanto, um sistema de saúde com intensa relação público-
privada, cuja assistência médica tinha o apoio da rede do INPS com unidades
próprias e credenciadas, além de contratos coletivos de serviços credenciados
de empresas e cooperativas médicas e empresas com planos próprios (as
autogestões). Em geral, a cobertura prestada era igual para todos os
empregados, sem diferenciação por nível hierárquico nas categorias
profissionais, até começar a haver a segmentação dos planos, criada por uma
lógica de benefício e mérito (quem paga valor mais alto tem direito a um
leque maior de serviços).
Com o advento do Sistema Único de Saúde (SUS), previsto na Constituição
de 1988, ocorreu a definição da participação livre à iniciativa privada, de
forma complementar, na execução de serviços de saúde no Brasil. No entanto,
esse setor somente foi regulamentado 10 anos depois, em 1998.

Importante
O sistema de saúde brasileiro é híbrido, isto é, composto por serviços
públicos garantidos por legislação pelo Estado e um sistema privado que o
complementa, chamado saúde suplementar.

O setor de saúde suplementar tem, como marcos legais:

1 - A Lei dos Planos de Saúde – Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998 – é


o marco histórico da regulação sobre o mercado dos planos de saúde.
Delibera, dentre os pontos principais, sobre a restrição da liberdade das
operadoras e ampliação da cobertura mínima (Plano Referência), sobre a
cobertura parcial temporária de lesões e doenças preexistentes, carência,
reembolso, vigência mínima e renovação automática do contrato,
vedação de discriminação por idade ou portadores de deficiência,
redação do contrato (instituindo regras gerais com o objetivo de
favorecer a interpretação e reduzir os conflitos), coberturas obrigatórias,
condições especiais e vedações aos contratos anteriores à promulgação
da lei.
2 - A criação da ANS, Lei nº 9.661, de 28 de janeiro de 2000.
3 - A Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001, que incluiu e revogou
diversos artigos da Lei nº 9.656.
4 - A Lei nº 10.185/01, que instituiu a figura da seguradora
especializada.

Vinculada ao Ministério da Saúde, a ANS tem como missão promover a


defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regular as
operadoras setoriais – inclusive quanto às suas relações com prestadores e
consumidores – e contribuir para o desenvolvimento das ações de saúde no
país. Dessa maneira, a atuação da ANS deve contribuir para que as
operadoras aumentem sua eficiência e capacidade de gestão, os prestadores
qualifiquem a assistência e os beneficiários tenham seus direitos respeitados e
o seu bem-estar garantido.
A ANS desenvolve ações em todo o território nacional como órgão de
regulação e caracteriza-se como uma autarquia especial com autonomias
administrativa, financeira, patrimonial e de gestão de recursos humanos e de
decisões técnicas. Cinco diretorias formam a diretoria colegiada, instância de
decisão deliberativa da Agência.

2. Atualidades
Hoje em dia, aproximadamente 25% da população brasileira é coberta por
planos privados de assistência médica e 11,6% de planos privados de
assistência exclusivamente odontológica.
A seguir, apresentaremos uma evolução em números absolutos (Tabela 1 e
Figura 1) de beneficiários de planos privados de assistência médica com ou
sem Odontologia.
Figura 1 - Número de vinculações a planos privados de saúde conforme a cobertura assistencial
(Brasil, 2000 a 2016)
Fonte: Agência Nacional de Saúde Suplementar, 2016.

Em todos os estados, a taxa de cobertura na capital é maior do que no interior.


No conjunto das capitais, 43% da população é coberta por plano de
assistência médica, enquanto no interior a taxa é de 19%. Vitória (ES) é a
capital com maior cobertura (67%).

Figura 2 - Taxa de cobertura dos planos privados de assistência médica por Unidades da Federação
(Brasil, junho/2016)

3. Modalidades de empresas prestadoras de


serviços na saúde suplementar

Importante
As diferentes modalidades de serviços prestados na saúde suplementar
incluem autogestão (serviços patrocinados diretamente pela empresa
interessada), medicina de grupo (usuários fazem contribuição mensal com
valor fixo), cooperativas médicas (constituídas por médicos e que
funcionam em sistema assistencial de pré-pagamento) e seguro-saúde
(sistema de reembolso das despesas dos segurados).

A - Autogestão

Trata-se de um plano de assistência médico-hospitalar patrocinado


diretamente pela empresa interessada, que fornece e administra os serviços
exclusivos a seus funcionários e respectivos dependentes, sem a interferência
de intermediários. É, portanto, um tipo de plano exclusivo a pessoas jurídicas
(empresas). De acordo com a política de benefícios da empresa, a prestação
de serviços médicos cobertos pode ser mista ou de 3 formas distintas: serviços
próprios, credenciados e de livre escolha.

Vantagens

Há flexibilidade da empresa em definir a representação do plano, com a


possibilidade de atuar diretamente sobre o sistema, corrigindo eventuais
desvios e lançando alternativas que beneficiem a empresa e o
funcionário;
Maior facilidade de comunicação entre o beneficiário e os gestores do
plano, que podem ser empresas privadas, autarquias, sindicatos etc.

Desvantagem
O serviço de saúde não se relaciona com a atividade-fim (core business)
da empresa e tem necessidade de elevado investimento, dirigido para a
criação e manutenção de uma estrutura administrativa de controle do
plano. Em acréscimo ao poder de negociação com a rede credenciada,
esse sistema provoca elevação do custo, em comparação com os demais
planos disponíveis no mercado.

B - Medicina de grupo
São empresas constituídas, especificamente, para a prestação de assistência
médica, em que seus usuários, empresas ou indivíduos contribuem
mensalmente com um valor fixo (sistema de pré-pagamento). Costumam ter
prestadores e locais predefinidos para o atendimento, determinando que seus
usuários se mantenham em sua rede própria de ambulatórios, prontos
atendimentos, hospitais e serviços de exames complementares. Nesse tipo de
plano, o valor garante assistência nos termos do contrato assinado,
repassando, assim, os riscos à empresa contratada.
Vantagem

Várias empresas oferecem maiores alternativas de preço, qualidade do


produto e abrangência de atendimento, além de o preço ser competitivo.

Desvantagem

Não disponibilizam a livre escolha de serviços (algumas empresas estão


mudando esse perfil), e a distribuição geográfica de atendimento é mais
restrita.

C - Cooperativas médicas
Constituídas por médicos, garantem um plano de assistência no sistema de
pré-pagamento e atuam nos segmentos individual e coletivo, tendo como
diferencial a prestação de serviços feita por médicos da região onde se tornam
cooperados. Algumas cooperativas possuem hospitais próprios. Os
cooperados têm participação nos resultados obtidos, caracterizando a relação
como uma espécie de sociedade exclusivamente formada por médicos. As
cooperativas exigiam que o cooperado não fosse credenciado a outros tipos de
planos de saúde, o que dificultava a entrada de outros planos privados de
assistência médica na região. Nos últimos anos, os tribunais superiores têm
determinado que essa exigência seja abandonada, por cercear a liberdade de
trabalho do médico. A administração dos planos é descentralizada, levando a
grande variedade tanto dos produtos quanto da abrangência de local de
atendimento.
Vantagem

Extensão da rede de prestadores de serviços e, inicialmente, preços


competitivos em função do tamanho da carteira, já que outros planos têm
dificuldade para entrar na região.

Desvantagem

Conforme o porte da cooperativa, pode haver menor flexibilidade na


escolha de prestadores. Em alguns casos, o âmbito regional da cobertura
pode ser restrito.

D - Seguro-saúde

Trata-se de um plano privado de assistência médico-hospitalar que tem, como


principal característica, o reembolso das despesas efetuadas pelos segurados,
de acordo com o limite do plano contratado. Proporciona a livre escolha de
médicos, clínicas e hospitais e pode ser oferecida, como recurso adicional,
uma rede referenciada, que, se utilizada, dispensa o usuário de qualquer
pagamento no ato da utilização. Essa modalidade, além de estar submetida a
regulação da ANS, está subordinada à Superintendência de Seguros Privados
(SUSEP).
Vantagem

Como as doenças são incertas quanto à data de sua ocorrência e ao custo


de seu tratamento, o seguro torna esse risco e seu custeio previsíveis,
pois seus fundamentos possibilitam tal aferição. Além disso, proporciona
a livre escolha de médicos e hospitais.

Desvantagem

A existência de poucas seguradoras atuando no mercado afeta a


competitividade quanto a preços e qualidade de produtos.

4. Classificação dos planos de assistência


privada

A - Quanto à forma de contratação


Importante
Independentemente da forma de contratação do plano de saúde (contrato
individual ou coletivo), desde a entrada em vigor da Lei nº 9.656/98, para
evitar futuras negativas de assistência, é obrigatório constar no contrato, de
forma clara, a cobertura assistencial oferecida.

B - Quanto ao tipo de cobertura assistencial

Cobertura assistencial é a denominação dada ao conjunto de direitos


(tratamentos, serviços, procedimentos médicos, hospitalares e/ou
odontológicos) a que um usuário faz jus pela contratação de um plano de
saúde.

C - Quanto à abrangência geográfica

O termo “cobertura” também é utilizado para especificar a abrangência


geográfica onde o beneficiário pode ser atendido. A cobertura geográfica –
que deve ser especificada no contrato – pode alcançar um município
(abrangência municipal), um conjunto de municípios, um estado (cobertura
estadual), um conjunto de estados ou todo o país (cobertura nacional).

5. Atividade das operadoras


Em março de 2017, 780 operadoras médico-hospitalares e 296
exclusivamente odontológicas estavam registradas na ANS. Nos anos de 2015
e 2016, houve um decréscimo de 2,3 e 3,1% de beneficiários em planos
privados de assistência médica com ou sem Odontologia em relação a
dezembro do ano anterior. No ano de 2017, até março, houve mais um
decréscimo de 0,3% em relação a dezembro de 2016, reflexo do cenário
político-econômico nacional. O número de operadoras ativas, com ou sem
beneficiários, é decrescente desde 2001.

Figura 3 - Operadoras de planos privados de saúde em atividade no Brasil, de dezembro/1999 a


junho/2016
Fonte: Agência Nacional de Saúde Suplementar, 2016.

6. Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/1998


modificada pela Medida Provisória nº 2.177-44,
de 2001)

Importante
Dentre os principais pontos da lei que rege os planos de saúde, estão:
proibição da comercialização de qualquer plano de saúde com redução ou
exclusão de coberturas assistenciais; cobertura de todas as doenças listadas
na CID-10; controle dos reajustes de preço; proibição da seleção de risco e
do rompimento unilateral do contrato; proibição do aumento por faixa
etária de planos para aqueles com mais de 60 anos, sendo que seu valor não
pode exceder 6 vezes o menor preço.

Da legislação dos planos de saúde, destacam-se os seguintes pontos:

Proibiu-se a comercialização de qualquer plano de saúde com redução ou


exclusão de coberturas assistenciais;
A permissão de comercialização de planos exclusivamente ambulatoriais
ou hospitalares não abdica da cobertura integral no segmento;
Cobrem-se todas as doenças listadas na CID-10;
Permitiu-se a comercialização de planos exclusivamente ambulatoriais
ou hospitalares.

São regras de proteção ao consumidor definidas pela legislação:

Controle dos reajustes de preço, inclusive por faixa etária;


Proibição da seleção de risco e do rompimento unilateral do contrato
com os usuários de planos individuais;
É vedado o aumento por faixa etária de planos para aqueles com mais de
60 anos, e seu valor não pode exceder 6 vezes o menor preço;
Não pode haver limitação do número de consultas, de cobertura para
exames e de prazo para internações, mesmo em leitos de alta tecnologia
(UTI/CTI).

7. Características do setor antes e depois da


regulamentação
Figura 4 - Características do setor antes e depois da regulamentação
Fonte: Agência Nacional de Saúde Suplementar.

Uma análise, mesmo superficial, das mudanças evidencia o desafio da


regulamentação. Das empresas que antes se organizavam livremente para
atuar no setor, submetendo-se, unicamente, à legislação do tipo societário
escolhido, foi exigido o cumprimento de medidas específicas, desde o registro
de funcionamento até a constituição de garantia financeira. A regulamentação
determinou a sujeição das operadoras a processos de intervenção e liquidação.
Foi estabelecido um prazo para a migração de todos os contratos antigos para
as novas regras: dezembro de 1999. A resistência do mercado à fixação dos
preços dos planos novos e o questionamento da retroatividade inviabilizaram
a cobrança do cumprimento desse dispositivo da legislação, que foi revogado.
Os usuários mantiveram o direito de permanecer com seu plano antigo por
tempo indeterminado e o de exigir a adaptação – a qualquer tempo – para um
contrato novo.

Importante
Principais alterações após a regulamentação: quanto à empresa, há uma
atuação controlada por meio de autorização de funcionamento, regras de
operação uniformes e empresas sujeitas a intervenção, com exigência de
reserva ou garantias financeiras; quanto à saúde e acesso, a mudança prevê
assistência integral à saúde obrigatória, com proibição da rescisão
unilateral dos contratos, definição e limitação das carências, reajustes
controlados e proibição de limites para internação.
8. Classificação quanto à época da contratação

Dica
Dependendo da época em que o plano de saúde foi contratado, pode ser
considerado antigo, novo ou adaptado, tendo como referência a plena
vigência da Lei nº 9.656/98, em 02.01.1999.

A - Planos antigos

São os contratados antes de 02.01.1999. Como são anteriores às regras da Lei


nº 9.656/98, a cobertura é exatamente aquela que consta no contrato, e as
exclusões estão nele expressamente relacionadas.

B - Planos novos

São os contratados a partir de 02.01.1999 e comercializados de acordo com as


regras da Lei nº 9.656/98.

C - Planos adaptados

São os firmados antes de 02.01.1999 e posteriormente adaptados às regras da


Lei nº 9.656/98, passando a garantir ao consumidor a mesma cobertura dos
planos novos. Os consumidores do plano antigo podem adaptá-lo à lei,
bastando solicitar à sua operadora uma proposta. A operadora é obrigada a
oferecer-lhes essa proposta (inclusive com novo valor de mensalidade), mas,
como os consumidores não são obrigados a aceitá-la, podem permanecer com
o plano antigo, caso seja mais conveniente. Aos contratos antigos, o ponto
crítico da legislação, foram garantidos alguns dos direitos da nova
regulamentação:

Proibição de limites de consultas e suspensão de internação, inclusive em


UTI;
Proibição de rompimento unilateral para os contratos individuais;
Controle dos reajustes para os contratos individuais. Em adição, os
usuários de planos antigos passaram a beneficiar-se do maior controle
sobre as operadoras.

O número de beneficiários em planos novos é crescente desde a edição da Lei


nº 9.656/98. Em junho de 2016, eram 43,4 milhões, ou 89,5% do total de
beneficiários vinculados a planos de assistência médica. Ainda há, contudo,
5,1 milhões do total de beneficiários (10,5%) com planos antigos, contratados
antes de 1º de janeiro de 1999 e ainda não adaptados.

Figura 5 - Beneficiários em planos privados de assistência médica por época de contratação do plano
(Brasil, junho/2016)

Nos últimos 10 anos, observa-se uma tendência de diminuição no número de


contratos antigos, como se pode observar na Figura 6.
Figura 6 - Porcentagem dos beneficiários de planos de assistência médica antigos por modalidade da
operadora, de junho/2006 a junho/2016

9. Classificação quanto à cobertura

A - Cobertura assistencial obrigatória

Conforme preconizado pela lei, as regras da legislação de saúde suplementar


definem a cobertura obrigatória em função da assistência prestada, gerando
segmentos específicos. Ficou, então, permitido contratar 1 ou mais segmentos
(independentemente da modalidade do seu plano de saúde –
individual/familiar ou coletivo).
As operadoras podem oferecer combinações de diferentes segmentos, como
plano com cobertura ambulatorial + cobertura hospitalar com Obstetrícia ou
plano com cobertura ambulatorial + cobertura odontológica. Cabe ao
consumidor escolher o mais conveniente e o que oferece maiores vantagens,
sempre devendo ser fornecida a opção do Plano Referência, que oferece
cobertura total.

B - Cobertura assistencial para plano novo e adaptado

Para conhecer a listagem completa de procedimentos com cobertura


obrigatória para os consumidores de Planos Novos e Adaptados, pode-se
consultar o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, disponível no Disque
ANS (0800-701-9656) e no site da ANS, na área sobre planos e
operadoras/espaço do consumidor.

a) Plano ambulatorial

O plano ambulatorial compreende os atendimentos realizados em consultório


ou em ambulatório, definidos e listados no Rol de Procedimentos e Eventos
em Saúde, não incluem internação hospitalar ou procedimentos para fins de
diagnóstico ou terapia, serviços que demandem o apoio de estrutura hospitalar
por período superior a 12 horas, ou serviços como Unidade de Terapia
Intensiva e unidades similares, observadas as exigências relacionadas na
Tabela 5.

b) Plano hospitalar

O plano hospitalar compreende os atendimentos realizados em todas as


modalidades de internação hospitalar e os atendimentos caracterizados como
de urgência e emergência, não incluindo atendimentos ambulatoriais para fins
de diagnóstico, terapia ou recuperação.

C - Coberturas proporcionadas

São as previstas na legislação e no Rol de Procedimentos Médicos para o


segmento hospitalar (sem Obstetrícia), incluindo, entre outras:

Internações em unidades hospitalares, inclusive em UTI/CTI, sem


limitação de prazo, valor máximo e quantidade;
Honorários médicos, serviços gerais de enfermagem e alimentação;
Exames de diagnóstico e de controle da evolução da doença;
Fornecimento de medicamentos, anestésicos, gases medicinais,
transfusões, sessões de quimioterapia e radioterapia durante o período de
internação;
Qualquer taxa, incluindo os materiais utilizados;
Remoção do paciente, quando comprovadamente necessário, dentro dos
limites da cobertura geográfica previstos em contrato;
Despesas do acompanhante para pacientes menores de 18 anos;
Cirurgias, mesmo as passíveis de realização em consultório, quando, por
imperativo clínico, necessitem ser realizadas durante a internação
hospitalar, como as cirurgias odontológicas bucomaxilofaciais;

Procedimentos considerados especiais, cuja necessidade esteja relacionada à


continuidade da assistência prestada em regime de internação hospitalar,
como:

Hemodiálise e diálise peritoneal;


Quimioterapia;
Radioterapia, incluindo radiomoldagem, radioimplante e braquiterapia;
Hemoterapia;
Nutrições parenteral e enteral;
Procedimentos diagnósticos e terapêuticos em hemodinâmica;
Embolizações e radiologia intervencionista;
Exames pré-anestésicos e pré-cirúrgicos;
Fisioterapia;
Cirurgia plástica reconstrutiva de mama para tratamento de mutilação
decorrente de câncer;
Acompanhamento clínico no pós-operatório, imediato e tardio, dos
submetidos a transplantes de rim e córnea, exceto medicação de
manutenção.
D - Plano hospitalar com Obstetrícia

Engloba os atendimentos realizados durante internação hospitalar e os


procedimentos relativos ao pré-natal e à assistência ao parto.

a) Coberturas proporcionadas

São as previstas na legislação e no Rol de Procedimentos Médicos para o


segmento hospitalar com Obstetrícia, além das coberturas elencadas para o
plano hospitalar, incluindo, entre outras:

Procedimentos relativos ao pré-natal, inclusive consultas obstétricas de


pré-natal;
Exames relacionados, ainda que realizados em ambiente ambulatorial;
Partos.

b) Coberturas e benefícios para o recém-nascido

Atendimento a recém-nascido, filho natural ou adotivo do consumidor ou de


seu dependente, durante os primeiros 30 dias após o parto;
Inscrição assegurada do recém-nascido no plano, como dependente, isento do
cumprimento de carência, desde que a inscrição seja feita no prazo máximo
de 30 dias do nascimento;
A assistência e a inscrição com isenção de carência só alcançam o recém-
nascido após o cumprimento de 300 dias de carência pelo titular do plano.

c) Exclusões

Consultas ambulatoriais e domiciliares, tratamentos e procedimentos


ambulatoriais não ligados ao pré-natal.

E - Plano odontológico
Inclui, apenas, procedimentos odontológicos realizados em consultório,
incluindo exame clínico, radiologia, prevenção, dentística, endodontia,
periodontia e cirurgia.

a) Coberturas proporcionadas

São as previstas na legislação e no Rol de Procedimentos Odontológicos,


incluindo, entre outras:

Consultas e exames auxiliares ou complementares, solicitados pelo


odontólogo assistente;
Procedimentos preventivos, de dentística e endodontia;
Cirurgias orais menores, assim consideradas as realizadas em ambiente
ambulatorial e sem anestesia geral.

b) Exclusão

Tratamento ortodôntico e demais tratamentos não relacionados na cobertura


obrigatória.

F - Plano Referência

Constitui o padrão de assistência médico-hospitalar, pois conjuga as


coberturas ambulatorial, hospitalar e obstétrica. A Lei estabelece que a
operadora de plano de saúde deva oferecer aos consumidores,
obrigatoriamente, o Plano Referência, que garante assistência nesses 3
segmentos.

a) Coberturas proporcionadas

São as relacionadas para o plano com cobertura ambulatorial somadas às


previstas para o plano com cobertura hospitalar com Obstetrícia, constantes
da legislação e do Rol de Procedimentos Médicos.
b) Exclusões

Aquelas excluídas dos planos ambulatorial, hospitalar com Obstetrícia e sem


Obstetrícia.

G - Exclusões para todos os tipos de planos

Os procedimentos que, de acordo com a Lei nº 9.656/98, não são


obrigatoriamente cobertos pelas operadoras de planos de saúde, são:

Transplantes, à exceção de córnea e rim;


Tratamento clínico ou cirúrgico experimental;
Procedimentos clínicos ou cirúrgicos para fins estéticos;
Fornecimento de órteses, próteses e seus acessórios, não ligados ao ato
cirúrgico ou para fins estéticos;
Fornecimento de medicamentos importados, não nacionalizados
(fabricados e embalados no exterior);
Fornecimento de medicamentos para tratamento domiciliar;
Inseminação artificial;
Tratamentos ilícitos, antiéticos ou não reconhecidos pelas autoridades
competentes;
Casos decorrentes de cataclismos, guerras e comoções internas
declarados pelas autoridades competentes;
Tratamento em clínicas de emagrecimento (exceto para tratamento de
obesidade mórbida);
Tratamentos em clínicas de repouso, estâncias hidrominerais, clínicas
para acolhimento de idosos ou internações que não necessitem de
cuidados médicos em ambiente hospitalar.

Importante
Não pode haver limitação do número de consultas, da cobertura para
exames e do prazo para internações, mesmo em leitos de alta tecnologia
(Unidade de Terapia Intensiva/Centro de Terapia Intensiva), salvo na
assistência relacionada a transtornos psiquiátricos.
10. Carências
Carência é o tempo que o usuário tem de esperar para ser atendido pelo plano
de saúde em um determinado procedimento, a partir da assinatura do contrato
e seu respectivo pagamento.

É comum que as operadoras ofereçam prazos de carência inferiores ao


máximo autorizado pela ANS.
Para as doenças e lesões preexistentes, o consumidor tem cobertura parcial
temporária até cumprir 2 anos de ingresso no plano. Durante esse período, ele
não tem direito à cobertura para procedimentos de alta complexidade, leitos
de alta tecnologia – CTI e UTI – e cirurgias decorrentes dessas doenças.

11. Prazos máximos para atendimento


Após o prazo de carência, o beneficiário terá direito ao atendimento,
conforme segmentação do plano (se odontológico ou médico-hospitalar;
ambulatorial ou hospitalar com ou sem Obstetrícia; referência). Esse
atendimento deverá ocorrer dentro dos prazos máximos conforme resolução
normativa nº 259 a seguir.

12. Evolução da regulamentação


A regulamentação do setor de saúde suplementar compõe um sistema, mas
sua evolução pode ser mais bem analisada em 6 dimensões capazes de
expressar as ações normativas e fiscalizadoras para garantir o cumprimento da
legislação:

1 - Cobertura assistencial e condições de acesso.


2 - Condições de ingresso, operação e saída do setor.
3 - Regulação de preço.
4 - Fiscalização e efetividade da regulação.
5 - Comunicação e informação.
6 - Ressarcimento ao SUS.

A - Cobertura assistencial e condições de acesso


Configuram-se como dimensão essencial e, talvez, o maior desafiador da
regulação devido à sua importância e ao absoluto ineditismo. Não havia
paradigma nacional ou internacional de regulação do setor privado de saúde
com as características adotadas pela nossa legislação: cobertura assistencial
integral, proibição de seleção de risco, limite de 24 meses para alegação de
doença e lesão preexistente com fixação de conceito jurídico para sua
definição e proibição de rompimento unilateral do contrato individual ou
familiar. São pontos de destaque na regulamentação da ANS:

1 - Plano Referência.
2 - Registro de Produtos.
3 - Rol de Procedimentos Médicos.
4 - Rol de Procedimentos Odontológicos.
5 - Urgência e Emergência.
6 - Coordenador de Informações Médicas.
7 - Definição de Faixas Etárias.
8 - Regulamentação do Acesso nos Casos de Doença e Lesão
Preexistente.

Dica
Deve-se notar que o impacto dessa regulamentação, exceto quanto ao
Coordenador de Informações Médicas, ocorreu apenas sobre os planos
novos, contratados a partir de janeiro de 1999, posto que, nos contratos
antigos, prevalece a cobertura assistencial constante no contrato.

B - Condições de ingresso, operação e saída do setor

A ANS foi responsável por toda a regulamentação das condições de ingresso,


funcionamento e saída de operação do setor de saúde suplementar.
C - Regulação de preço
Diferentemente dos setores regulados que operam em regime de concessão e
tarifação, no setor de saúde suplementar é livre a determinação do preço de
venda dos planos. A regulamentação estabelece somente a necessidade de
registro de uma nota técnica atuarial, que define, na verdade, o custo do plano
a ser oferecido, impede sua comercialização abaixo desse patamar e garante
sua operacionalidade.
Também estão estabelecidas as exigências para a fixação de preços
diferenciados por faixa etária. Desde 2004, após a implementação do estatuto
do idoso, são admitidas 10 faixas etárias com intervalos de 5 anos – exceto
quanto à 1ª faixa, que vai de 0 a 18 anos. O valor fixado para a última faixa
etária (59 anos ou mais) não pode ser superior a 6 vezes o valor da 1ª faixa (0
a 18). Além disso, proíbe-se a variação de preços para usuários com mais de
60 anos e mais de 10 anos de plano.
Os reajustes dos planos individuais e familiares são controlados pela ANS,
que fixa, em conjunto com os Ministérios da Saúde e da Fazenda, a política
anual a ser adotada – o percentual máximo permitido – para posterior
aprovação caso a caso, até o limite estabelecido. Desde 2000, foram fixados
tetos máximos para os reajustes, calculados pela média ponderada dos
reajustes coletivos livremente negociados e informados à ANS. O reajuste
aplicado a contratos individuais/familiares dos planos antigos (realizados
antes de 1º de janeiro de 1999 e não adaptados à Lei nº 9.656/98) fica
limitado ao que estiver estipulado no contrato. Caso o contrato não seja claro
ou não trate do assunto, o reajuste anual de preços deverá estar limitado ao
mesmo percentual de variação divulgado pela ANS para os planos novos.
Os preços dos planos antigos foram calculados com base no contexto do setor
antes da Lei nº 9.656/98: preço de venda livre, reajustes anuais automáticos e
indexados (em geral, pelo IGP-M), cláusulas de reequilíbrio econômico-
financeiro com aplicação automática a critério da operadora, periodicidade
anual dos contratos e possibilidade de não renovação e de rompimento a
qualquer tempo. As operadoras que assinaram o Termo de Compromisso com
a ANS para estabelecer a forma de apuração do percentual de reajuste a ser
aplicado aos contratos dos planos antigos têm os percentuais autorizados para
o reajuste anual, por variação de custos e são diferenciados por operadora.

Importante
Na saúde suplementar, é livre a determinação do preço de venda dos
planos. No entanto, os reajustes dos planos individuais e familiares são
controlados pela ANS.

As Figuras 7 e 8 apresentam os índices de reajuste aplicados de 2000 a 2016.

Figura 7 - Índices de reajuste aplicados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar


Figura 8 - Evolução dos índices dos planos de saúde (individual) da Agência Nacional de Saúde
Suplementar em relação à inflação (IPCA) acumulados entre 2006 e 2016

D - Fiscalização e efetividade da regulação

A fiscalização, uma ação central da ANS, desenvolve-se de 2 formas:


fiscalização direta e fiscalização indireta.
A fiscalização direta é exercida pela apuração de denúncias e representações
(Programa Cidadania Ativa) e por diligências nas operadoras – preventivas e
programadas (Programa Olho Vivo).
A aplicação das multas contra a operadora infratora busca inibir sua repetição,
mas, não sendo uma instância do Poder Judiciário, a ANS não tem
instrumentos para garantir a reparação do dano individual, que deve ser
buscada na esfera judicial. Isso significa que uma denúncia à ANS de recusa
de atendimento por parte de um usuário gera, após o devido processo, multa
pecuniária, e a reincidência caracteriza insubmissão, o que permite a
intervenção da agência. Em casos extremos, a ANS pode optar pela
liquidação extrajudicial da operadora.
A fiscalização indireta é exercida por meio do acompanhamento e da
monitorização das operadoras, com base nos dados fornecidos aos sistemas de
informações periódicas – assistenciais, econômico-financeiras e cadastrais – e
no cruzamento sistemático das informações disponíveis, inclusive a
incidência de reclamações e as multas aplicadas.
Os instrumentos de ação da fiscalização indireta e dos atos decorrentes dela
estão na esfera da regulamentação do setor e, em geral, produzem impacto
protetor sobre todos os usuários da operadora.

Dica
A fiscalização dos planos de saúde pode ser feita de 2 formas: direta ou
indireta. A primeira é feita por meio de denúncias e representações
(exemplo Programa Cidadania Ativa) e por diligências nas operadoras
(Programa Olho Vivo); já a última é feita por meio do acompanhamento e
da monitorização das operadoras realizados a partir dos dados fornecidos
ao sistema de informações periódicas e com base no cruzamento das
informações disponíveis (reclamações e multas).

A partir de fevereiro de 2012, observou-se tendência de aumento no índice de


reclamações, demonstrando o crescimento da procura pela ANS. Destaca-se,
como principal motivo desse crescimento, a entrada em vigor, em dezembro
de 2011, da resolução normativa nº 259, que dispõe sobre a garantia de
atendimento aos beneficiários de planos privados de assistência à saúde.

Figura 9 - Percentuais dos motivos de reclamação dos planos de saúde


Fonte: Agência Nacional de Saúde Suplementar, 2017.
E - Ressarcimento ao SUS

A legislação estabelece que devem ser ressarcidos pela operadora, em valores


superiores aos pagos pelo SUS, os atendimentos feitos pelo SUS a usuários de
planos privados de assistência à saúde – procedimentos com cobertura
prevista nos respectivos contratos. Nos contratos novos, as exclusões ao
ressarcimento estão limitadas ao período de carência, à cobertura parcial
temporária, à área de abrangência do contrato e à segmentação (ambulatorial
ou hospitalar). Nos contratos antigos, as exclusões ao ressarcimento abrangem
as próprias exclusões de cobertura dos contratos anteriores à Lei nº 9.656/98
que ainda estão em vigor.
O ressarcimento é cobrado com base na Tabela Única Nacional de
Equivalência de Procedimentos (TUNEP), com valores, em média, 1,5 vez
superiores à Tabela SUS. Desses valores, o Fundo Nacional de Saúde é
reembolsado no montante pago pelo SUS, e o prestador de serviço do SUS
recebe a diferença entre a TUNEP e a Tabela SUS.
O processamento é feito sem qualquer envolvimento direto ou indireto do
usuário de plano privado que foi atendido pelo SUS: a ANS, com o apoio do
Departamento de Informática do SUS (DATASUS), compara o cadastro de
beneficiários de planos de saúde com as Autorizações de Internação
Hospitalar (AIHs) processadas para pagamento pelo SUS, identifica os
usuários atendidos e informa às operadoras o valor a ser ressarcido.

Importante
É obrigação legal das operadoras de planos privados de assistência à saúde
restituir as despesas do SUS no eventual atendimento de seus beneficiários
que estejam cobertos pelos respectivos planos. Entre os anos de 2001 e
2014, mais de 3 milhões de consumidores tiveram internações no SUS
identificadas pela ANS. O valor das AIH/APAC cobradas foi de R$74,3
milhões em 2001 e R$212,5 milhões em 2014.

Atualmente, a efetividade do ressarcimento está comprometida por um


conjunto de fatores:

Faltam informações completas nas AIHs, com a ocorrência de


homônimos e falhas no preenchimento dos campos relativos a
procedimentos e valores, o que impede a correta identificação do usuário
e do motivo da internação e, portanto, a cobrança à respectiva operadora;
Cerca de 20% de operadoras ativas não fornecem seus cadastros de
beneficiários, em descumprimento sistemático da legislação ou
amparadas por medidas judiciais. Há operadoras que obtiveram liminares
judiciais contra a cobrança do ressarcimento. É conveniente lembrar que
o ressarcimento ao SUS é objeto de uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADIn) ainda não julgada pelo Supremo Tribunal
Federal;
Há um elevado número de operadoras que não pagam os valores
cobrados e estão em processo de inscrição na dívida ativa da União.

13. Pagamento ou reembolso dos serviços


médicos
Os valores de pagamento ou reembolso dos serviços prestados são negociados
diretamente entre operadoras e prestadores. A tabela utilizada no passado foi
conhecida como AMB92, pois foi elaborada pela Associação Médica
Brasileira (AMB) com atualização do Rol de Procedimentos em 1992. Em
2003, o Conselho Federal de Medicina, a AMB e a FENAM (Federação
Nacional dos Médicos) definiram uma nova lógica de hierarquização de
procedimentos médicos, criando a Classificação Brasileira Hierarquizada de
Procedimentos Médicos (CBHPM). Essa classificação teve sua edição mais
atual publicada em 2015 e tem substituído a tabela anterior como referência
para remuneração médica.

Importante
Os valores de pagamento ou reembolso dos serviços prestados são
negociados diretamente entre operadoras e prestadores. Desde 2003, as
entidades representativas dos médicos defendem a adoção da Classificação
Brasileira Hierarquizada de Procedimentos Médicos.

14. Desafios atuais


Ampliação da cobertura assistencial dos planos antigos – migração dos
contratos antigos para contratos regulamentados: boa parte dos problemas
apontados no setor de saúde suplementar hoje está ligada a usuários de planos
antigos, principalmente os usuários de planos individuais. A não extensão a
esses usuários da cobertura assistencial integral garantida aos contratos novos
é a origem da maior parte das denúncias e reclamações – desde a exclusão de
doenças e lesões preexistentes até os reajustes abusivos por faixa etária;
Contratos novos: neles se enfrentam problemas de descumprimento da
legislação. Essa situação exige o cumprimento irrestrito da lei, o que tem sido
obtido e, certamente, pode ser melhorado;
Repactuação da relação operadoras x prestadores (médicos, laboratórios,
clínicas e hospitais): a sistemática atualmente adotada, de pagamento
exclusivamente por procedimento, tem acirrado as tensões entre operadoras e
prestadores. Também o fato de que essa relação se transformou, na prática, no
único ponto de gerenciamento das operadoras não submetido à regulação, fez
que se transferissem para ela os muitos abusos antes praticados na relação
operadora x consumidores;
Mobilidade dos consumidores de planos individuais (“portabilidade da
carência”): o desenvolvimento de mecanismos que permitam ao consumidor
maior mobilidade no sistema seria fator fundamental de controle de qualidade
e preço, pela competitividade;
Resseguro/cosseguro: a maior disseminação de mecanismos de resseguro
(operação pela qual o segurador, com o objetivo de diminuir sua
responsabilidade na aceitação de um risco considerado excessivo ou perigoso,
cede a outro segurador uma parte da responsabilidade e do prêmio recebido) e
cosseguro (divisão de um risco segurado entre vários seguradores, ficando
cada um responsável direto por uma quota-parte determinada do valor total do
seguro) poderia reduzir significativamente os custos dos planos e aumentar a
viabilidade das operadoras de menor porte;
Integração ao SUS: é necessário aprofundar a discussão quanto aos
prestadores e à incorporação tecnológica, além de ampliar a discussão sobre o
ressarcimento ao SUS;
Assistência farmacêutica: a parcela significativa dos usuários de planos,
principalmente coletivos, que não dispõe de recursos para a aquisição dos
medicamentos prescritos seria favorecida no caso da introdução desse
benefício, cuja discussão, sistêmica, deve avançar;
Garantia de continuidade de atendimento: esgotados os mecanismos da
regulamentação – alienação compulsória e leilão –, não há instrumentos na
legislação que garantam a continuidade do atendimento aos usuários de
operadoras liquidadas extrajudicialmente;
Segurança jurídica: há 2 ADIns ainda sem julgamento no STF, ambas de
grande impacto sobre a regulação. Uma se refere ao ressarcimento ao SUS; a
outra, talvez de maior impacto, refere-se à extensão de direitos da legislação
atual aos contratos antigos;
Previsibilidade e segurança regulatória: toda a base jurídica do atual
modelo regulatório, inclusive a exigência de cobertura assistencial integral,
está prevista na Medida Provisória nº 2.177-44, a qual não tem prazo para
conversão em lei, fator de instabilidade no marco regulador. Também é
importante concluir o processo de revisão do modelo das agências
reguladoras, fator decisivo em todos os setores regulados;
Preocupação com a transparência das ações: desenvolver instrumentos
sólidos de avaliação do agente regulador, ampliar o conhecimento dos
consumidores sobre seus direitos e aumentar a taxa de conhecimento da ANS
são alguns desafios nesse campo.

- Desafios conjunturais

Coibir falsos planos de saúde – cartões-desconto: é necessário concluir a


ação iniciada para coibir os sistemas de cartão de desconto. Quanto às
operadoras, a ação, nesse momento, é de fiscalização para garantir o
cumprimento da regulamentação que as proíbe de operar esse tipo de sistema.
A preocupação maior é com as empresas que atuam à margem do sistema e
oferecem um produto sem qualquer garantia real de assistência à saúde;
Agilizar a aplicação de multas: é necessário rever a legislação atual, a fim
de permitir maior agilidade nos processos de punição das empresas que
operam em setores regulados. As agências reguladoras atuam sobre um
número limitado e conhecido de operadoras, o que permitiria que meios de
comunicação mais rápidos fossem reconhecidos como válidos na esfera do
Judiciário, sem prejuízo do direito de defesa. A atual precariedade dos
quadros de recursos humanos impacta, negativamente, todas as atividades das
agências, mas certamente é na área de fiscalização direta que ela mais
compromete a efetividade das ações. É importante definir o quadro de
carreiras das agências;
Coibir falsa coletivização de planos individuais: crescem as denúncias
relativas ao crescimento de uma falsa coletivização de contratos, para fugir às
regras mais rígidas dos contratos individuais quanto à proibição de
rompimento e controle de reajustes;
Concluir saneamento do mercado: ampliar as ações contra as operadoras
que se mantêm à margem da regulamentação, buscando, inclusive, parceria
com o Ministério Público e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica
(CADE).

Resumo
Programa Mais Médicos
Marina Gemma
Jeane Lima e Silva Carneiro
Edson Lopes Mergulhão

1. O contexto de surgimento do Programa Mais


Médicos
A Constituição de 1988 reconheceu o direito à saúde como um direito
fundamental, exigindo do Estado a garantia da sua efetividade. A criação do
Sistema Único de Saúde (SUS), também estabelecida pela Constituição de
1988, produziu o desafio da universalização e da integralidade da saúde, com
vistas à promoção, prevenção e recuperação da saúde dos cidadãos
brasileiros. Para isso, desde a década de 1990, o SUS opta por um modelo de
saúde organizado a partir da Atenção Básica (AB), a qual deve ordenar o
acesso aos demais serviços e níveis de cuidado da rede de saúde de forma
equânime, oportuna, integral e com qualidade (Brasil, 1988, 1990a, 1990b,
1990c, 2011).

Importante
O PMM objetiva resolver a questão emergencial do atendimento básico,
além de criar condições para um atendimento qualificado no futuro àqueles
que acessam cotidianamente o SUS.

A AB é a porta de entrada preferencial do SUS, organizada prioritariamente


pelo modelo Estratégia Saúde da Família (ESF) (Brasil, 2011, 2012). É na AB
que podem ser solucionados cerca de 80% dos problemas de saúde da
população. Nesse contexto, entre 2011 e 2014, foi realizada uma série de
medidas que reforçam o seu papel central e a sua importância dentro da rede
de atenção à saúde (Brasil, 2015).
Dentre as medidas estabelecidas nesse processo de valorização e
fortalecimento da AB no país, destacam-se: a Resolução nº 439/11, do
Conselho Nacional de Saúde, que tratou de diretrizes para a AB, demandando
um conjunto de ações; o Decreto nº 7.508/11, que regulamentou a Lei
Orgânica nº 8.080/90 e, em geral, dispôs sobre a organização do SUS; a
Portaria nº 2.488/11, que aprovou a Política Nacional de Atenção Básica
(PNAB); o Programa de Requalificação das Unidades Básicas de Saúde
(Requalifica UBS), instituído em 2011 com o objetivo de melhorar as
condições de trabalho dos profissionais de saúde, bem como modernizar e
qualificar o atendimento à população; o Programa Nacional de Melhoria do
Acesso e da Qualidade (PMAQ), que propõe um conjunto de estratégias de
qualificação, acompanhamento e avaliação do trabalho das equipes de saúde;
a Portaria nº 1.412/13, que instituiu o novo Sistema de Informação em Saúde
para a Atenção Básica (SISAB), integrante da estratégia e-SUS AB, que visa
informatizar e melhorar a gestão da informação e dos processos de trabalho;
entre outras (Brasil, 2015).
Como resultado das discussões e medidas instituídas pelo Governo Federal e
pelo Ministério da Saúde, foram identificados os principais desafios que
condicionavam o desenvolvimento da AB e que deveriam ser considerados na
definição das ações e dos programas em saúde propostos pelos entes
federativos (Tabela 1).

Nesse contexto, apesar do aumento de recursos e dos esforços implementados


em função da AB a partir de 2011, a cobertura da ESF representou um
incremento de somente 1,5% ao ano na cobertura da população durante os
últimos 7 anos, o que equivale a um crescimento médio de 1.141 equipes de
ESF. Segundo estudos da Rede de Observatórios de Recursos Humanos do
SUS, um dos maiores condicionantes da expansão da ESF é a disponibilidade
de médicos para compor as equipes (Pinto et al., 2014; Brasil, 2015). Essa
opinião é compartilhada pela população: de acordo com os dados do Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 58% dos entrevistados
consideravam um problema a quantidade insuficiente de médicos para atender
à demanda de trabalho no SUS e defendiam que a medida mais importante a
ser tomada pelo governo para melhoria do atendimento público de saúde era o
aumento do número de médicos nos serviços (IPEA, 2011; Brasil, 2015).
Assim, ainda em 2011, o Governo Federal definiu que o problema prioritário
a ser enfrentado era o “déficit de provimento de profissionais de saúde”, de
forma a garantir acesso aos serviços de saúde para a população. A definição
dessa prioridade foi seguida por inúmeros debates e eventos que abordaram o
tema da atração, provimento e fixação dos profissionais de saúde. Além disso,
foram reunidos estudos de todo o mundo para compreender como os diversos
países lidavam com essa questão. Dessa forma, no fim de 2011, o governo
brasileiro implementou 2 ações para enfrentar o problema: regulamentou a
Lei nº 12.202/2010 e lançou o Programa de Valorização dos Profissionais da
Atenção Básica – PROVAB (Tabela 2). Ambas as medidas tiveram efeito no
provimento de médicos para a AB, mas em quantidade inferior à que o
sistema demandava (Pinto et al., 2014; Brasil, 2015).

Embora sejam importantes, essas medidas de incentivo não tiveram volume e


abrangência para enfrentar o problema da falta de médicos. Tal problema foi
reforçado no início de 2013 pelo movimento “Cadê o médico?”, organizado
pelos prefeitos eleitos em 2012, que demandou que o Governo Federal
tomasse medidas para enfrentar o problema da falta de profissionais (FNP,
2013; Pinto et al., 2014; Brasil, 2015). Somando-se a isso, em junho de 2013,
as massivas manifestações de rua que tinham entre suas pautas a exigência de
melhores condições e serviços de saúde para a população levaram o Governo
Federal a concluir a política pública que estava sendo formulada desde o
início do ano: o Programa Mais Médicos (Pinto et al., 2014; Brasil, 2015).

2. Lei nº 12.871/2013: Programa Mais Médicos


O PMM foi instituído em 8 de julho de 2013 e é composto por medidas que
buscam intervir de forma quantitativa e qualitativa na formação de médicos
brasileiros, com efeitos sinérgicos às demais ações da PNAB (Pinto et al.,
2014; Brasil, 2015). Foi criado por meio de Medida Provisória nº 621/2013,
convertida em Lei (nº 12.871/2013) em outubro desse mesmo ano, após
diversos aperfeiçoamentos decorrentes de amplo debate público e tramitação
no Congresso Nacional (Brasil, 2015).
O PMM é composto por uma dimensão de resposta imediata e emergencial e
por outra de medidas estruturantes de médio e longo prazo, que serão
detalhadas a seguir. Por ora, vale destacar que o Programa está articulado a
um conjunto de ações associadas à qualificação da estrutura dos serviços, à
melhoria das condições de atuação das equipes e ao funcionamento das UBSs,
de forma a consolidar um novo padrão de qualidade para a AB brasileira
(Pinto et al., 2014; Brasil, 2015). Nesse contexto, o PMM apresenta, como
objetivos:

- I: diminuir a carência de médicos nas regiões prioritárias para o SUS, a


fim de reduzir as desigualdades regionais na área da Saúde;
- II: fortalecer a prestação de serviços de AB em saúde no país;
- III: aprimorar a formação médica no país e proporcionar maior
experiência no campo de prática médica durante o processo de formação;
- IV: ampliar a inserção do médico em formação nas unidades de
atendimento do SUS, desenvolvendo o seu conhecimento sobre a
realidade da saúde da população brasileira;
- V: fortalecer a política de educação permanente com a integração
ensino-serviço, por meio da atuação das instituições de educação
superior na supervisão acadêmica das atividades desempenhadas pelos
médicos;
- VI: promover a troca de conhecimentos e experiências entre
profissionais da saúde brasileiros e médicos formados em instituições
estrangeiras;
- VII: aperfeiçoar médicos para atuação nas políticas públicas de saúde
do país e na organização e no funcionamento do SUS;
- VIII: estimular a realização de pesquisas aplicadas ao SUS.

Para a consecução dos objetivos do PMM, destaca-se a adoção das seguintes


ações:

- I: reordenação da oferta de cursos de Medicina e de vagas para


Residência Médica, priorizando regiões de saúde com menor relação de
vagas e médicos por habitante e com estrutura de serviços de saúde em
condições de ofertar campo de prática suficiente e de qualidade aos
alunos;
- II: estabelecimento de novos parâmetros para a formação médica no
país;
- III: promoção, nas regiões prioritárias do SUS, de aperfeiçoamento de
médicos na área de AB em saúde, mediante integração ensino-serviço,
inclusive por meio de intercâmbio internacional.

Dessa forma, considerando o conjunto da Lei do PMM, pode-se dizer que o


Programa é constituído por 3 grandes eixos: o eixo de Provimento
Emergencial de médicos, o eixo de Investimento na Infraestrutura da rede de
serviços da AB e, por fim, o eixo Educacional, relacionado à formação
médica no Brasil (Brasil, 2015). Logo, dentre os desafios condicionantes do
desenvolvimento da AB, apresentados na Tabela 1, o PMM dirige-se
especialmente ao cumprimento dos itens 2, 4, 8 e 9.

3. Eixos constituintes
Como dito, o PMM reúne um conjunto de iniciativas de curto, médio e longo
prazos com efeitos sinérgicos às demais ações da PNAB. Em síntese, o
Programa recruta médicos graduados no Brasil e fora do país, brasileiros ou
estrangeiros, para atuar nos serviços de AB em áreas com maior necessidade e
vulnerabilidade. De forma concomitante à atuação assistencial, os
profissionais selecionados participam de uma série de atividades de educação
e ensino-serviço, de forma a desenvolver competências importantes para a
prática profissional na AB e promover a implantação de melhorias no serviço
de saúde (Brasil, 2013). Antes de nos debruçarmos sobre a forma como o
PMM funciona, nos deteremos na compreensão do contexto que embasa cada
um de seus eixos constituintes.

A - Provimento Emergencial: o Projeto Mais Médicos


para o Brasil

Correspondendo à dimensão de resposta imediata e emergencial, este eixo é


denominado na Lei que institui o Programa de “Projeto Mais Médicos para o
Brasil” (PMMB). Como já explicitado, o Provimento Emergencial, além de
recrutar e alocar profissionais para a AB, disponibiliza aos participantes um
conjunto de incentivos educacionais, monetários e formativos que envolvem
treinamento em serviço, curso de especialização e supervisão com a
participação das principais instituições de ensino do país, pontuação adicional
na nota de exames de Residência Médica, entre outros (Brasil, 2015).
O SUS, desde a sua criação, enfrenta obstáculos em sua gestão decorrentes do
baixo investimento e escassez de recursos. Somado a isso, houve, nas últimas
décadas, em nível mundial, profundas mudanças provocadas por transições
demográficas, epidemiológicas, nutricionais e econômicas (Paim et al., 2011).
Nesse contexto, o déficit de provimento de profissionais era expressivo, sendo
considerado, a partir de 2011, o problema prioritário a ser enfrentado com
vistas a garantir o direito social fundamental à saúde, previsto na Constituição
de 1988 (Brasil, 2015).
No ano de lançamento do PMM, o Brasil apresentava uma proporção de 1,8
médico por 1.000 habitantes, número muito aquém de diversos países das
Américas e da Europa (Argentina: 3,9 médicos/1.000 habitantes; Uruguai: 3,7
médicos/1.000 habitantes; Portugal: 3,8 médicos/1.000 habitantes; Espanha:
3,5 médicos/1.000 habitantes; Reino Unido: 2,7 médicos/1.000 habitantes).
Não há um parâmetro de proporção ideal de médico por habitante que seja
reconhecido e validado internacionalmente, logo, recomenda-se que cada
contexto seja individualizado, com base no modelo assistencial adotado.
Dessa forma, o antigo Reino Unido foi considerado a referência para essa
situação, visto que, depois do Brasil, é o país que apresenta o maior sistema
público de saúde de caráter universal e orientado pela AB (Brasil, 2015).
Além de o Brasil apresentar uma proporção insuficiente de médicos, esses
profissionais estão mal distribuídos pelo território, de modo que as áreas e
populações mais pobres são as que contam proporcionalmente com o menor
número de médicos por habitantes. Outro agravante, que será detalhado
adiante, consiste no fato de o país formar menos médicos do que a criação
anual de empregos para a categoria nos setores público e privado. Todos esses
pontos assinalados prejudicam o acesso e a qualidade da AB.
Essa insuficiência de médicos leva a uma disputa por esses profissionais entre
os municípios, gerando, entre outras irregularidades e ilegalidades, um alto
índice de rotatividade nas equipes de ESF. Tal rotatividade prejudica o
trabalho multiprofissional, o vínculo entre as equipes de ESF e a população e,
consequentemente, a resolubilidade da AB. A falta de profissionais e sua má
distribuição são evidenciadas no baixo crescimento da cobertura populacional
da ESF nos últimos anos, conforme aspectos já mencionados (média anual de
1.141 equipes de ESF; incremento de 1,5% ao ano na cobertura da população)
(Brasil, 2015).
Não há resposta simples para o problema da escassez de profissionais. De
acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), as estratégias para
enfrentar essa problemática incluem, pelo menos, 4 dimensões: políticas
educacionais, como mudanças nos currículos de Medicina e admissão de
estudantes provenientes de áreas rurais; políticas de regulação, como serviço
civil e incentivo para o ingresso na formação especializada para quem
trabalha em áreas remotas; incentivos monetários, como bolsas de estudo e
salários mais elevados; incentivos não monetários, como extensão de visto de
permanência para estrangeiros e supervisão com apoio entre pares. O Brasil,
no entanto, até a instituição do PMM, era um dos países com regras mais
restritivas à atuação, no território nacional, de médicos graduados no exterior,
fossem brasileiros ou não (Brasil, 2015).
De 2011 a 2013, políticas públicas foram formuladas e implantadas, mas sem
resultar em avanço efetivo na superação da falta de recursos humanos para a
ocupação dos postos de trabalho na AB e para a expansão de novos postos
(Lei nº 12.202/2010 e PROVAB). Todo esse cenário, somado à pressão
popular e dos demais entes federativos, culminou na criação do PMM em
julho de 2013 (Pinto et al., 2014; Brasil, 2015).

B - Infraestrutura
A Lei do PMM delimitou um prazo de 5 anos, a partir da data de sua
publicação, para “dotar as Unidades Básicas de Saúde com qualidade de
equipamentos e infraestrutura, a serem definidas nos planos plurianuais”
(Brasil, 2013). No entanto, vale ressaltar que, no momento de promulgação da
Lei, já havia um Programa dirigido à qualificação da infraestrutura dos
serviços de saúde, o Programa Requalifica UBS.
Tal iniciativa já vinha apresentando resultados efetivos na melhoria da
infraestrutura e modernização das Unidades Básicas de Saúde (UBSs). Em
2013, no lançamento do PMM, o Requalifica UBS apresentou uma nova etapa
de adesão a todos os seus componentes (Construção, Reforma e Ampliação),
e novas propostas foram autorizadas e tiveram recursos alocados para iniciar
sua execução. O PMM possibilitou que o número de reformas e ampliações
saltasse de aproximadamente 9.800 para 15.300 UBSs reformadas/ampliadas
e o de construções, de 2.400 para 7.900 UBSs. Além disso, as UBSs Fluviais
atingiram o número de 45 novas unidades, em comparação às 28 unidades
criadas antes da instituição do PMM (Brasil, 2015).
Esses números correspondem a um total de mais de R$5 bilhões investidos no
financiamento de obras em quase 5.000 municípios brasileiros, das quais
aproximadamente 46% (em torno de 10.500 obras) foram concluídas em 2
anos de Programa. A esse eixo também estão associadas iniciativas como a
informatização das UBSs com o Plano Nacional de Banda Larga e a
implantação do novo SISAB e a estratégia e-SUS AB (Brasil, 2015). Todos
esses esforços visam garantir a estrutura necessária para que os profissionais
atendam a população com o máximo de qualidade e motivação, de forma a
possibilitar o enfrentamento do problema da alta rotatividade de médicos nas
equipes de ESF.

C - Educação
Esse eixo corresponde a um conjunto de medidas estruturantes de médio e
longo prazo que visam intervir na formação médica e solucionar o problema
da insuficiência de médicos nos serviços de saúde brasileiros. O PMM
determina a expansão de vagas de graduação em Medicina e a universalização
da Residência Médica. Além disso, propõe uma formação baseada em novas
diretrizes, instrumentos e metodologias, de forma a diplomar profissionais
mais capacitados para a AB (Brasil, 2013). É por meio dessa expansão
planejada que o governo almeja superar a proporção de 1,8 médico/1.000
habitantes, atingindo, até 2026, a mesma marca do Reino Unido, de 2,7
médicos/1.000 habitantes (Brasil, 2015).

Importante
Os eixos do PMM são Provimento Emergencial, Infraestrutura e Educação.

O contexto desse eixo corresponde ao desequilíbrio entre o número anual de


graduados em Medicina em relação à demanda de médicos no mercado de
trabalho. De acordo com um estudo conduzido pela Estação de Pesquisa de
Sinais de Mercado em Saúde, do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da
Universidade Federal de Minas Gerais, de 2003 a 2012 o mercado de trabalho
abriu 143.000 novas vagas de emprego formal para médicos. No entanto,
durante esse mesmo período, as escolas médicas do país formaram somente
93.000 médicos. Em outras palavras, nos 10 anos que antecederam a criação
do PMM, o Brasil atendia somente 65% da demanda de médicos do mercado
de trabalho, o que representa um déficit acumulado de 50.000 médicos
(UFMG, 2009; Brasil, 2015). Para fins deste capítulo, esse eixo será tratado
em 2 partes: a graduação em Medicina e, posteriormente, a formação de
especialistas.

a) Formação médica (graduação em Medicina)

Com relação à graduação, o PMM determinou mudanças importantes na


orientação da formação médica e na lógica da expansão de vagas nas escolas
brasileiras. A Lei nº 12.871/2013 instituiu que o Conselho Nacional de
Educação (CNE) discutisse e aprovasse novas Diretrizes Curriculares
Nacionais (DCNs) para os cursos de Medicina do país, de modo que a
formação médica fosse dirigida fundamentalmente para as reais necessidades
de saúde da população e do sistema de saúde brasileiro, com ênfase na
atuação do médico na AB. A Lei exige que todos os cursos de Medicina, tanto
os já existentes quanto aqueles em implantação, se adaptem às novas DCNs e
determina que essa implantação seja avaliada e auditada pelo Ministério da
Educação – MEC (Brasil, 2013, 2015).
Além disso, o PMM determina que no mínimo 30% do internato – que deve
corresponder a pelo menos 2 anos da formação médica – ocorra na AB e em
serviços de urgência e emergência do SUS. Essa maior aproximação com o
sistema de saúde tem em vista o desenvolvimento, por parte dos alunos, de
atitudes e habilidades necessárias para atuação em equipe, bem como uma
formação mais adequada e contextualizada à realidade de saúde brasileira. Por
fim, o PMM determina uma avaliação a todos os alunos dos 2º, 4º e 6º anos
de Medicina, de forma a contrabalançar seus estados momentâneos de
conhecimento com o perfil esperado pelas novas DCNs, além de acompanhar
a evolução desses educandos, permitindo identificar insuficiências e
fragilidades relacionadas à instituição formadora (Brasil, 2013, 2015).
Considerando a meta do PMM de alcançar a proporção de 2,7 médicos/1.000
habitantes, o Programa propõe a ampliação das vagas de graduação em
Medicina. A expansão de escolas públicas passa a ter maior acompanhamento
do MEC e intenso movimento de interiorização dos cursos, exigindo a
implantação de novos campi para universidades já existentes ou mesmo a
criação de novas universidades. Para as instituições privadas, o Ministério da
Saúde, com base em parâmetros públicos (rede de serviço, demanda
populacional, oferta de vagas e médicos na região etc.), indica quais regiões
de saúde têm necessidade de expansão de vagas e define os padrões exigidos
em termos de rede de saúde para oportunizar campo de prática adequado.
Dessa forma, há a abertura de um edital para as instituições privadas
concorrerem entre si e ganharem o direito de abrir um curso de Medicina em
um dos municípios selecionados (Brasil, 2013, 2015).

b) Formação de médicos especialistas

Com relação à Residência Médica e à formação de especialistas, o PMM


institui o Cadastro Nacional de Especialistas, o qual deve reunir informações
de todos os especialistas do país sobre o local em que atuam e o local/modo
como se formaram ou foram reconhecidos como especialistas (Brasil, 2013,
2015). Tal medida tem como objetivo permitir ao Estado brasileiro melhor
planejamento, dimensionamento e regulação da quantidade e formação de
médicos especialistas, atendendo, assim, o artigo constitucional que atribui ao
SUS a responsabilidade de “ordenar a formação de recursos humanos em
saúde” (Brasil, 1988, 1990a).
A Lei nº 12.871/2013 também determinou mudanças na formação dos
especialistas, visando a uma formação mais adequada às necessidades da
população. Em 1º lugar, o Programa determinou que até o fim de 2018
houvesse o mesmo número de vagas de Residência Médica de acesso direto
que o número de egressos em Medicina (universalização da Residência
Médica). Em 2º lugar, a Lei alterou as especialidades que são de acesso
direito – programas de residência para os quais o candidato pode concorrer
sem o pré-requisito de ter concluído outra residência.

Tal mudança está associada a uma terceira, que estabeleceu uma especialidade
central na formação da maioria dos especialistas do país: a Medicina Geral de
Família e Comunidade – MGFC (Brasil, 2013, 2015). A residência em MGFC
terá duração mínima de 2 anos, sendo o 1º ano obrigatório para o ingresso em
programas de Residência Médica em: Clínica Médica, Pediatria, Ginecologia
e Obstetrícia, Cirurgia Geral, Psiquiatria e Medicina Preventiva e Social. Para
as demais especialidades, exceto as de acesso direto, será necessário cumprir
1 ou 2 anos de MGFC, conforme disciplinado pela Comissão Nacional de
Residência (Brasil, 2013). O objetivo dessa medida é exigir que, antes de
focarem em um universo restrito de problemas de saúde (especialização), os
médicos tenham experiência e consolidem seus conhecimentos em relação aos
cuidados básicos em saúde (Brasil, 2015).
4. Funcionamento
Como apresentado até aqui, o PMM visa enfrentar a falta de médicos no
Brasil de forma permanente e estrutural, por meio da melhoria da
infraestrutura e das condições de trabalho, bem como do aprimoramento da
formação médica. Paralelamente, o Programa trabalha para preencher as
lacunas emergenciais de demanda por médicos da população brasileira, por
meio do PMMB e seu recrutamento de profissionais, brasileiros ou
estrangeiros, para atuar nas regiões prioritárias do SUS.
Essas regiões são definidas em função de um conjunto de critérios
inicialmente definidos com base no que estabelece a Portaria interministerial
nº 1.377, de 13 de junho de 2011, como áreas de difícil acesso, de difícil
provimento de médicos ou que tenham populações em situação de maior
vulnerabilidade. Delimitadas as áreas com maior necessidade e
vulnerabilidade, abre-se um edital para que os municípios possam aderir
voluntariamente, mediante a assinatura de um termo de compromisso com
ações e responsabilidades de curto e médio prazos. Esse termo responsabiliza
os municípios de garantir condições específicas, como o funcionamento das
Unidades Básicas de Saúde, a inserção do médico para atuação em uma
equipe de ESF, benefícios (moradia, alimentação e deslocamento) aos
médicos selecionados, a gestão dos sistemas de informação previstos etc.
(Brasil, 2015).
Assinado o termo de compromisso, os municípios solicitam as vagas de
acordo com o número máximo definido pelo Programa em função da
demanda populacional, rede de saúde disponível e quantidade de
equipes/serviços para receber o profissional. Todo esse processo de adesão é
realizado exclusivamente pela internet, e, ao seu fim, são conhecidos o
número total de vagas solicitadas e a distribuição delas (Brasil, 2015).
O próximo passo consistiu na abertura de um edital para o recrutamento dos
médicos. Nessa etapa, podem se inscrever médicos brasileiros ou estrangeiros
com registro no Brasil conferido por um Conselho Regional de Medicina e
médicos brasileiros ou estrangeiros formados no exterior e sem registro no
país. No entanto, o Programa estabelece uma ordenação para a escolha de
vaga. Só é vedada a inscrição de profissionais, brasileiros ou estrangeiros, que
se formaram ou atuam em países com proporção de médicos por habitantes
menor do que a do Brasil, de forma a cumprir a regra de equidade e
solidariedade internacional, que busca atrair médicos somente de países que
têm mais profissionais por habitantes do que o país solicitante (Brasil, 2015).
As chamadas seguem a ordem de prioridade, sendo o próximo grupo
recrutado somente se as vagas não forem preenchidas. O último grupo de
prioridade diz respeito a um acordo de cooperação internacional firmado, em
agosto de 2013, com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Nesse
acordo, a OPAS é responsável por trazer médicos para atuação específica no
PMM. Essa Organização, por sua vez, estabeleceu cooperação com o governo
cubano, que disponibilizou médicos com experiência e formação para atuação
na AB. Por isso, esses profissionais são chamados de médicos cooperados,
pois não se inscreveram no PMM individualmente, mas foram recrutados pela
OPAS (Brasil, 2015).
Para todos os médicos sem diploma revalidado no Brasil e,
consequentemente, sem registro junto ao Conselho de Classe, o Ministério da
Saúde concede o Registro Único, que permite ao médico exercer a Medicina
exclusivamente no âmbito das atividades do Programa e na localidade
específica definida por ele. Esse registro dispensa a necessidade de revalidar o
diploma somente no período em que participar do PMM, que tem
durabilidade de até 3 anos, prorrogável por mais 3. Todos esses médicos
precisam, obrigatoriamente, realizar um processo de acolhimento, no qual são
orientados e avaliados nos quesitos comunicação em português, legislação e
características e especificidades para atuação nos serviços de AB do SUS
(Brasil, 2015).

Importante
O acompanhamento dos médicos recrutados pelo PMM foi atribuído a
tutores (médicos) ligados a instituições de ensino, que coordenam a
atuação de supervisores (também médicos), que deverão estar ligados a
instituições de ensino, hospitais-escola, escolas do SUS, programas de
Residência Médica etc.
Para todos os profissionais cuja inserção ocorre individualmente, são
previstas bolsas e garantidos todos os direitos previstos na legislação para
bolsistas em processos de formação. Para os profissionais cooperados, são
cumpridas as regras da cooperação internacional, com respeito, obviamente, a
toda legislação nacional. Da mesma forma, a Lei do PMM prevê o
acompanhamento dos médicos recrutados, de forma a apoiar e orientar seus
processos de educação permanente.

5. Resultados alcançados
Em julho de 2017, o PMM completou 4 anos de existência. Ao final dos 2
primeiros anos, o Programa já atendia toda a demanda emergencial das
prefeituras por médicos, por meio do PMMB. Isso significava, em 2015, um
contingente de 18.240 médicos em 4.058 municípios (73% dos municípios
brasileiros) e em 34 distritos de saúde indígena, representando atendimento
médico na Atenção Primária à Saúde para 63 milhões de brasileiros, com a
estimativa de, até o final de 2018, chegar a 70 milhões (Brasil, 2015). A
concretização do intercâmbio de médicos estrangeiros resultou de um trabalho
conjunto dos seguintes órgãos federais: Ministérios das Relações Exteriores,
do Planejamento, da Defesa, da Previdência e da Educação, além da Casa
Civil, Polícia Federal, Receita Federal e Banco do Brasil (Brasil, 2015).
Em 2016, o PMMB foi prorrogado por mais 3 anos. Contudo, entre 2016 e
2017, passou a apresentar instabilidades, mediante atrasos salariais e anúncios
de mudanças, por parte do Ministério da Saúde, chegando a ser suspenso o
envio de 710 médicos cubanos em abril de 2017, sob a alegação de Cuba de
descumprimento dos termos do acordo de cooperação internacional por parte
do Brasil. Em janeiro de 2017, dos 18.240 médicos do PMMB, 62,6% eram
cubanos, 29% brasileiros formados no Brasil e 8,4% brasileiros e estrangeiros
formados no exterior. Conforme divulgado pelo Ministério da Saúde, em
março de 2018, o número de brasileiros formados no Brasil que atuam no
PMM aumentou 38% em 1 ano: passou de 3,8 mil, em 2016, para 5,2 mil, em
2017. Do total de participantes, 8,5 mil (47%) são profissionais cubanos da
cooperação com a OPAS, 8,4 mil (46%) são brasileiros formados no Brasil ou
no exterior, e 483 (3%) são intercambistas estrangeiros.
As ofertas educacionais do PMMB têm sido realizadas por 11 instituições
públicas de ensino superior por meio da rede da Universidade Aberta do SUS
(UNA-SUS). As ações de educação permanente ocorrem por meio da
integração ensino-serviço e são ofertadas por 74 instituições supervisoras
(universidades públicas, escolas públicas de saúde pública e programas de
Residência Médica), perfazendo um contingente de mais de 200 tutores
responsáveis pelo acompanhamento de mais de 2.000 supervisores, que, por
sua vez, são responsáveis por visitas periódicas in loco para todos os
profissionais que atuam no PMM (Brasil, 2015).
Em relação ao eixo Educacional, em 2014 foram aprovadas as novas DCNs
para os cursos de Medicina, que têm até 2018 para adequarem seus currículos.
Até 2015, foram abertas no país 5.300 vagas de graduação (1.690 em
universidades federais e 3.616 em instituições privadas), com a projeção de
criar 11.550 novas vagas até 2017. Pela 1ª vez, as cidades do interior
passaram a ter mais vagas do que as capitais: o número de vagas nestas
corresponde a 10.637 e, no interior, a 14.522. Entretanto, segundo a Lei de
Acesso à Informação, até dezembro de 2016 foram criadas 7.732 vagas, muito
aquém das prometidas até 2017.
Além da graduação, o PMM criou 4.742 vagas de Residência Médica em todo
o país e tinha a meta de triplicar esse número até 2017 e universalizar a
Residência Médica até 2019 (Brasil, 2015; Santos et al., 2015). Segundo
informações do Ministério da Saúde, entretanto, o número de vagas em 2017
não conseguiu chegar ao esperado, alcançando 7.652 vagas.
Com relação ao Investimento em Infraestrutura, o Requalifica UBS,
articulado ao PMM, possibilitou, até o fim de 2015, a construção de
aproximadamente 9.000 UBSs e a reforma e a ampliação de
aproximadamente 17.000, em 5.000 municípios do país, totalizando um
investimento superior a R$5 bilhões de reais (Brasil, 2015; Santos et al.,
2015). Verifica-se, nesse momento, uma escassez de dados oficiais sobre o
PMM relativos ao período 2016-2017 que permita avaliação do desempenho
do Programa.
Desde o 1º momento, houve resistência por parte de alguns setores da
sociedade, principalmente quanto à vinda de médicos estrangeiros. Apesar da
discussão acalorada que envolveu o PMM e a Saúde no Brasil em seu início,
os primeiros impactos do Programa são positivos no sentido de reduzir as
iniquidades em saúde. As evidências científicas, produzidas por diversos
pesquisadores e instituições brasileiras, apontam redução importante do
número de municípios com escassez de médicos; implantação
predominantemente orientada para os que apresentam maior vul¬nerabilidade
social; aumento do acesso aos serviços de Atenção Primária, impacto positivo
em indicadores de saúde; satisfação de usuários. Assinado em março de 2018,
o 12º termo de ajuste ao 80º termo de cooperação técnica formaliza a
prorrogação por mais 5 anos das ações voltadas à AB, inclusive a atuação de
profissionais de Cuba. Atualmente, o programa está presente em mais de 4
mil municípios e 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas.
É necessário acompanhar o desenvolvimento do Programa, de forma a
identificar a necessidade de formulação de ações que se desdobrem das atuais,
especialmente em relação ao eixo Educacional, além de estudar alternativas
que permitam o avanço na construção de uma solução definitiva para o
desafio da atração e da fixação de profissionais de saúde para as áreas hoje só
preenchidas graças ao PMM (Pinto et al., 2014; Brasil, 2015; Santos et al.,
2015).

Resumo
O Programa Mais Médicos

Instituído em 8 de julho de 2013;


Criado por meio de Medida Provisória (nº 621/2013);
Convertido em Lei (nº 12.871/2013) em outubro de 2013;
Constituído por 3 eixos: o eixo de Provimento Emergencial, o de
Investimento em Infraestrutura e o Educacional.

Objetivos

I - Diminuir a carência de médicos nas regiões prioritárias para o SUS, a


fim de reduzir as desigualdades regionais na área da Saúde.
II - Fortalecer a prestação de serviços de AB em saúde no país.
III - Aprimorar a formação médica no país e proporcionar maior
experiência no campo de prática médica durante o processo de formação.
IV - Ampliar a inserção do médico em formação nas unidades de
atendimento do SUS, desenvolvendo seu conhecimento sobre a realidade
da saúde da população brasileira.
V - Fortalecer a política de educação permanente com a integração
ensino-serviço, por meio da atuação das instituições de educação
superior na supervisão acadêmica das atividades desempenhadas pelos
médicos.
VI - Promover a troca de conhecimentos e experiências entre
profissionais da saúde brasileiros e médicos formados em instituições
estrangeiras.
VII - Aperfeiçoar médicos para atuação nas políticas públicas de saúde
do país e na organização e no funcionamento do SUS.
VIII - Estimular a realização de pesquisas aplicadas ao SUS.
Ações adotadas para alcançar os objetivos

I - Reordenação da oferta de cursos de Medicina e de vagas para


Residência Médica, priorizando regiões de saúde com menor relação de
vagas e médicos por habitante e com estrutura de serviços de saúde em
condições de ofertar campo de prática suficiente e de qualidade para os
alunos.
II - Estabelecimento de novos parâmetros para a formação médica no
país.
III - Promoção, nas regiões prioritárias do SUS, de aperfeiçoamento de
médicos na área de Atenção Básica em Saúde, mediante integração
ensino-serviço, inclusive por meio de intercâmbio internacional.

Funcionamento

Definição das regiões com maior necessidade e vulnerabilidade pelo


Ministério da Saúde;
Abertura de edital para os municípios: assinatura do termo de
compromisso e solicitação de vagas;
Abertura de edital para os médicos: seleção ordenada:
1º: profissionais, brasileiros ou estrangeiros, com registro no Brasil;
2º: brasileiros formados no exterior sem registro no Brasil;
3º: estrangeiros formados no exterior sem registro no Brasil;
4º: médicos cooperados (acordo OPAS-Cuba).
Atuação assistencial e atividades de educação e ensino-serviço;
Efeito sinérgico às demais ações da PNAB;
Duração: 3 anos, prorrogáveis por mais 3.

Eixo de Provimento Emergencial

Objetivo: recrutar e alocar profissionais para áreas prioritárias do SUS e


qualificar profissionais para atuação na AB;
Lidar com o problema da baixa proporção de médico por habitante,
distribuição desigual pelo país e alta rotatividade nas equipes de ESF;
Garantiu 18.240 médicos em 4.058 municípios e nos 34 distritos de
saúde indígena;
Em 2 anos de Programa, garantiu atendimento médico a 63 milhões de
brasileiros.

Eixo de Infraestrutura

Objetivo: garantir a estrutura necessária para que os profissionais


atendam a população com o máximo de qualidade e motivação;
Possibilitar o enfrentamento do problema da alta rotatividade de médicos
nas equipes de ESF;
Articulação ao Programa de Requalificação das Unidades Básicas de
Saúde (Requalifica UBS);
Efeito sinérgico a outras medidas governamentais (Plano Nacional de
Banda Larga, SISAB, e-SUS AB etc.);
Investimento em 26.000 UBS, totalizando mais de R$ 5 bilhões
investidos em 5.000 municípios do país.

Eixo de Educação

Objetivo: intervir na formação médica e solucionar em definitivo o


problema da insuficiência de médicos no SUS;
Proposta de uma formação médica com maior enfoque na capacitação
para atuação na AB;
Determinação da expansão de vagas de graduação em Medicina e a
universalização da Residência Médica;
Formação médica:
Novas DCNs;
No mínimo 30% do internato devem ocorrer na AB e em serviços
de urgência e emergência do SUS;
Avaliação de todos os alunos do 2º, 4º e 6º anos de Medicina;
Expansão das vagas de graduação.
Residência Médica:
Cadastro Nacional de Especialistas (planejamento e gestão de
especialistas para o SUS);
Universalização da Residência Médica;
Alteração das especialidades de acesso direito;
Especialidade central na formação da maioria dos especialistas do
país: Medicina Geral de Família e Comunidade.
Medicina do Trabalho
Edson Lopes Mergulhão
Thaís Minett
Marcos Rodrigo Souza Fernandes
Fábio Roberto Cabar
João Victor Fornari
Jeane Lima e Silva Carneiro

1. Conceito e importância
A Medicina do Trabalho é, segundo a Associação Nacional de Medicina do
Trabalho, a especialidade médica que lida com as relações entre homens e
mulheres trabalhadores e seu trabalho, visando não somente à prevenção dos
acidentes e das doenças do trabalho, mas à promoção da saúde e da qualidade
de vida. Tem por objetivo assegurar ou facilitar aos indivíduos e ao coletivo
de trabalhadores a melhoria contínua das condições de saúde, nas dimensões
física e mental, e a interação saudável entre as pessoas e, estas, com seu
ambiente social e o trabalho (ANAMT, 2017).
A Medicina do Trabalho surgiu na 1ª metade do século XIX na Inglaterra, no
contexto da Revolução Industrial, para recuperar a força de trabalho cuja
sobrevivência nas indústrias estava ameaçada pelas péssimas condições de
trabalho. Tem, como características, a prevenção de danos à saúde resultantes
dos riscos do trabalho, a responsabilidade pelos problemas de saúde ocorridos
nos ambientes de trabalho das empresas, a centralidade na figura do médico e
a relação de confiança deste com os empregadores, contratantes de seus
serviços (Mendes; Dias, 1991).
As mudanças no mundo do trabalho, oriundas dos processos produtivos e dos
movimentos sociais, impulsionaram transformações nessas práticas, de modo
que estas incorporaram novos enfoques e instrumentos de trabalho, em uma
perspectiva interdisciplinar, o que culminou na delimitação posterior da
chamada “Saúde Ocupacional” e, mais recentemente, do campo da “Saúde do
Trabalhador” (ANAMT, 2017; Mendes; Dias, 1991).
A Saúde do Trabalhador desenvolveu-se no Brasil acompanhando a Reforma
Sanitária Brasileira, a partir do início da década de 1980, sob a influência de
uma concepção ampliada de saúde ancorada na Teoria da Determinação
Social do Processo Saúde-Doença. Com isso, a relação trabalho e saúde
passou a ser compreendida com base no social, como uma categoria que diz
respeito às formas de produção e reprodução da sociedade. Portanto, pauta
intervenções não somente na recuperação biológica da saúde dos
trabalhadores doentes e acidentados, ou em modificações de seu ambiente de
trabalho a fim de preveni-las, mas também nas condições de trabalho e seus
determinantes e condicionantes. A Saúde do Trabalhador foi incorporada ao
Sistema Único de Saúde (SUS), abrindo novas possibilidades e novos
desafios para a atuação médica e multiprofissional diante dos problemas de
saúde relacionados ao trabalho, nos diversos âmbitos do sistema de saúde.
A relevância do campo de atuação pode ser expressa a partir dos dados da
Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2013), os quais mostram que
2,34 milhões de mortes relacionadas ao trabalho ocorrem por ano, 321 mil
decorrentes de acidentes de trabalho, e os 2,02 milhões restantes, causados
por diversos tipos de enfermidades relacionadas com o trabalho, o que
equivale a uma média diária de mais de 5.500 mortes. Países em
desenvolvimento, como o Brasil, possuem elevados indicadores de mortes e
lesões, pois uma grande parte de suas populações está empregada em
atividades perigosas, como a agricultura, a construção civil, a pesca e a
mineração.

2. Políticas da saúde do trabalhador no Brasil


A Saúde do Trabalhador é, segundo a Constituição de 1988, uma atribuição
do SUS. Em 2002, foi criada no Brasil a Portaria nº 1.679, de 19 de setembro
de 2002, a Rede de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST) com
o objetivo de implementar a Saúde do Trabalhador nos diversos níveis de
atenção à saúde (Atenção Primária, Secundária e Terciária), tendo os Centros
de Referência em Saúde do Trabalhador (CERESTs) como eixo articulador
(Evangelista et al., 2011). Em 2012, foi estabelecida pela Portaria nº 1.823, de
23 de agosto de 2012, a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da
Trabalhadora (PNSTT) com a finalidade de definir princípios, diretrizes e
estratégias para a Atenção Integral à Saúde do Trabalhador, com ênfase na
vigilância em saúde, visando à promoção e proteção da saúde dos
trabalhadores e redução da morbimortalidade decorrentes dos modelos de
desenvolvimento e dos processos produtivos (Brasil, 2012).
São objetivos da PNSTT: I - fortalecer a Vigilância em Saúde do Trabalhador
e a integração com os demais componentes da Vigilância em Saúde; II -
promover a saúde e ambientes e processos de trabalho saudáveis; III - garantir
a integralidade na atenção à saúde do trabalhador; IV - ampliar o
entendimento de que a Saúde do Trabalhador deve ser concebida como uma
ação transversal, devendo a relação saúde-trabalho ser identificada em todos
os pontos e instâncias da rede de atenção; V - incorporar a categoria trabalho
como determinante do processo saúde-doença dos indivíduos e da
coletividade, incluindo-a nas análises de situação de saúde e nas ações de
promoção em saúde; VI - assegurar que a identificação da situação do
trabalho dos usuários seja considerada nas ações e serviços de saúde do SUS e
que a atividade de trabalho realizada pelas pessoas, com as suas possíveis
consequências para a saúde, seja considerada no momento de cada
intervenção em saúde; VII - assegurar a qualidade da atenção à saúde do
trabalhador usuário do SUS (Brasil, 2012).
Para fins de intervenção, consideram-se trabalhadores todos os homens e
mulheres, independentemente da localização (urbana ou rural), da forma de
inserção no mercado de trabalho (formal ou informal), do vínculo
empregatício (público ou privado, assalariado, autônomo, avulso, temporário,
cooperativados, aprendiz, estagiário, doméstico, aposentado ou
desempregado), que são sujeitos dessa Política (Brasil, 2012).
Segundo a PNSTT, os CERESTs têm o papel de realizar suporte técnico,
educação permanente, assessoria ou coordenação de projetos de assistência,
promoção e vigilância à saúde dos trabalhadores, no âmbito da sua área de
abrangência (lembrar que os CERESTs são regionais, englobando municípios
circunvizinhos de uma mesma região); articular e organizar ações intra e
intersetoriais de saúde do trabalhador, realizando a retaguarda técnica para o
conjunto de ações e serviços da rede; e irradiar experiências de vigilância em
saúde do trabalhador. Esta retaguarda deve ser organizada segundo o método
do apoio matricial às equipes de referência, mediante trabalho
multiprofissional e práticas interdisciplinares, na perspectiva da clínica
ampliada, da promoção e vigilância em saúde do trabalhador (Brasil, 2012).
O Ministério da Saúde é o coordenador Nacional da Política de Saúde do
Trabalhador (Brasil, 2012), mas outros órgãos executivos, o Ministério do
Trabalho e o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), atuam na Saúde do
Trabalhador. O Ministério do Trabalho é responsável pela normatização de
toda atividade laborativa, fiscalização e investigação de denúncias e de
acidentes graves e óbitos. O INSS é o responsável pelos benefícios
pecuniários dos trabalhadores (acidentados e/ou aposentados) com registro
em Carteira Profissional. O Ministério da Saúde é responsável pelo cuidado à
saúde de todos os trabalhadores, desde a prevenção do adoecimento ao seu
tratamento, como um direito garantido pelo SUS a toda a população. De
acordo com a Lei nº 13.341/2016, o Ministério do Trabalho e a Previdência
Social foram convertidos em Ministério do Trabalho.
Nesse contexto, desde 1978 o Ministério do Trabalho publica normas
relativas à segurança e saúde do trabalho, as chamadas Normas
Regulamentadoras (NRs), as quais obrigam empresas privadas e públicas, e
pelos órgãos públicos da administração direta e indireta, bem como pelos
órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, que possuam empregados regidos
pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a regular seus ambientes e
suas condições para o exercício do trabalho, de modo a observar a segurança
e saúde de seus trabalhadores.

- As Normas Regulamentadoras

As NRs são normas relativas à Segurança e à Medicina do Trabalho,


aprovadas pela Portaria nº 3.214, de 8 de junho de 1978, que devem ser
cumpridas pelas empresas privadas e públicas que tenham empregados
regidos pela CLT. As NRs são elaboradas por uma comissão tripartite,
composta por representantes do governo, dos empregadores e dos
empregados. Além de regulamentarem, fornecem parâmetros e instruções
sobre Saúde e Segurança do Trabalho. Existem NRs gerais e rurais.
3. Atuação médica na Medicina do
Trabalho/saúde do trabalhador
Um dos campos mais visíveis e tradicionais da Medicina do Trabalho tem
sido nas empresas, no âmbito dos SESMTs e dos PCMSOs, conforme
estabelecem as NR 04 e pela NR 07, respectivamente.
Os SESMTs devem ser compostos por Médicos do Trabalho, Engenheiros de
Segurança do Trabalho, Técnicos de Segurança do Trabalho, Enfermeiros do
Trabalho e Auxiliares ou Técnicos em Enfermagem do Trabalho, a depender
do número de empregados e do Grau de Risco (GR) da atividade econômica
da empresa. Sua obrigatoriedade também ocorre de acordo com o número de
empregados e o GR da atividade econômica, que varia de 1 (menor risco) a 4
(maior risco), conforme a NR 04. Por exemplo, empresas com atividades
econômicas de GR 01 possuem obrigatoriedade desse serviço apenas quando
têm mais de 501 empregados. Já empresas com GR 04 devem dispor desse
serviço já a partir de 50 empregados.
A NR 07 estabeleceu a obrigatoriedade de elaboração e implementação, por
parte de todos os empregadores e instituições que admitam trabalhadores
como empregados, do PCMSO, com o objetivo de promoção e preservação da
saúde do conjunto dos seus trabalhadores. Esse programa deve ser parte do
conjunto mais amplo de iniciativas da empresa no campo da saúde dos
trabalhadores. Devem-se considerar as questões de risco coletivo e individual,
utilizar abordagem epidemiológica e ter caráter de prevenção, rastreamento e
diagnóstico precoce dos agravos à saúde relacionados ao trabalho. No caso de
a empresa estar desobrigada de manter médico do trabalho, de acordo com a
NR 04, deverá o empregador indicar médico do trabalho, empregado ou não
da empresa, para coordenar o programa, o qual deve incluir, entre outros, a
realização obrigatória dos exames médicos: admissional, periódico, de retorno
ao trabalho, de mudança de função e demissional.

Importante
PCMSO são as iniciais do Programa de Controle Médico de Saúde
Ocupacional. Trata-se de uma legislação federal, especificamente a Norma
Regulamentadora nº 07, emitida pelo Ministério do Trabalho e Emprego no
ano de 1994, que determina a obrigatoriedade de elaboração e
implementação, por parte de todos os empregadores e instituições que
admitam trabalhadores como empregados, com base no programa, com o
objetivo de promoção e preservação da saúde do conjunto dos seus
trabalhadores.

Com a criação do SUS, na Constituição de 1988, abriram-se novos espaços de


atuação para médicos e outros profissionais de saúde em saúde do
trabalhador, compondo as ações e os serviços desse sistema. Com o avanço
normativo e legislativo do SUS nessa área (RENAST, em 2002; Pacto Pela
Saúde, 2006; PNSTT, 2012 etc.), tem se ampliado a compreensão de que os
serviços de saúde do trabalhador devem ser ofertados em todos os níveis
(Atenção Primária, Secundária e Terciária), criando-se a necessidade de os
médicos atuantes em todas as partes do sistema possuírem conhecimentos e
habilidades para reconhecer e lidar com os problemas de saúde decorrentes do
trabalho, reportando-os aos serviços especializados, quando necessário, ou
pedindo apoio a eles. O CEREST, por exemplo, funciona como retaguarda
técnica e apoiador matricial dos demais serviços.
Há várias possibilidades de atuação médica nessa área. Em geral, podem ser
assim resumidas (ANAMT, 2017):

Nos espaços do trabalho ou da produção (as empresas), como empregado


nos SESMTs, como prestador de serviços técnicos, para a elaboração do
PCMSO ou de consultoria;
Na normalização e fiscalização das condições de Saúde e Segurança no
Trabalho (SST) desenvolvidas pelo Ministro do Trabalho e Emprego;
Na rede pública de serviços de saúde e no desenvolvimento das ações de
saúde do trabalhador;
Na assessoria sindical em saúde do trabalhador, nas organizações de
trabalhadores e de empregadores;
Na perícia médica da Previdência Social, enquanto seguradora do
acidente do trabalho;
Na atuação junto ao Sistema Judiciário como perito judicial em
processos trabalhistas, ações cíveis e ações da promotoria pública;
Na atividade docente e na formação e capacitação profissional;
Na atividade de investigação no campo das relações entre saúde e
trabalho;
Em consultoria privada no campo da SST.

A - Atribuições do médico

Há atribuições mais gerais que o médico compartilha com as equipes de saúde


em que se integra nos diversos espaços onde atua e há aquelas atribuições que
lhes são privativas. Ambas variam em razão da instituição e parte do sistema
de saúde em que ele realiza suas atividades. De modo geral, são algumas
dessas atribuições:
Avaliar as principais consequências ou danos para a saúde dos
trabalhadores, bem como identificar os principais fatores de risco
presentes no ambiente de trabalho decorrentes do processo de trabalho e
das suas formas de organização;
Controlar os fatores de risco presentes nos ambientes e nas condições de
trabalho e identificar as principais medidas de prevenção, inclusive a
correta indicação e os limites do uso dos EPIs;
Efetuar exames (admissionais, periódicos, demissionais), considerando a
história médica e ocupacional, a avaliação clínica e laboratorial, a
avaliação das demandas profissiográficas e o cumprimento dos requisitos
legais vigentes – Ministério do Trabalho (NR 07); Ministério da Saúde
(SUS); Conselhos Federal/Regional de Medicina etc.;
Tratar e diagnosticar as doenças e os acidentes relacionados com o
trabalho, incluindo as providências para a reabilitação física profissional,
e prover atenção médica de emergência na ocorrência de agravos à
saúde, não necessariamente relacionados ao trabalho;
Juntamente aos trabalhadores e empregadores, implementar atividades
educativas;
Organizar e participar da inspeção e da avaliação das condições de
trabalho com vistas ao seu controle e à prevenção dos danos para a saúde
dos trabalhadores;
Opinar sobre o potencial tóxico de risco e avaliar o perigo para a saúde
de produtos químicos mal conhecidos ou insuficientemente avaliados
quanto à sua toxicidade;
Cumprir e interpretar regulamentos legais e normas técnicas,
colaborando, sempre que possível, com os órgãos governamentais, no
desenvolvimento e no aperfeiçoamento dessas normas;
Em acidentes de grandes proporções ou situações de desastres, planejar e
implantar ações;
Participar da implementação de programas de reabilitação de
trabalhadores com dependência química;
Para fins da vigilância da saúde e do planejamento, implementar e
avaliar programas de saúde;
Gerenciar as informações estatísticas e epidemiológicas relativas à
mortalidade, morbidade e incapacidade para o trabalho, bem como
planejar e implementar outras atividades de promoção da saúde,
priorizando o enfoque dos fatores de risco relacionados ao trabalho;
Programar e realizar ações de assistência básica e de vigilância em saúde
do trabalhador;
Realizar inquéritos epidemiológicos em ambientes de trabalho;
Realizar vigilância em ambientes de trabalho com outros membros da
equipe ou com órgãos que atuem no campo da saúde do trabalhador;
Notificar acidentes e doenças do trabalho, mediante instrumentos de
notificação do SUS.

B - Exames médicos do Programa de Controle Médico


de Saúde Ocupacional
a) Admissional

É uma avaliação médica antes do registro em carteira e do efetivo início de


suas atividades, direcionada para riscos específicos como esforço ou
características próprias do trabalho. O médico deve averiguar se o candidato
não apresenta patologia que pode ser agravada pelo trabalho, se não apresenta
doenças ou condição física que possam colocar terceiros em risco e se está
fisicamente capacitado às tarefas a ele propostas.

b) Outros exames

Periódico, de retorno ao trabalho, de mudança de função e demissional –


todos esses exames devem compreender avaliação clínica, abrangendo
anamnese ocupacional, exames físico e mental e exames complementares.
Para cada um desses exames médicos, será emitido um Atestado de Saúde
Ocupacional (ASO), em que deverão constar a identificação do trabalhador e
do profissional, os riscos ocupacionais específicos existentes ou a ausência
deles, a indicação dos procedimentos médicos a que foi submetido, incluindo
os exames complementares e a definição de apto ou inapto para a função
específica que o trabalhador vai exercer, exerce ou exerceu. Todos esses
dados, além das informações de doenças não relacionadas ao trabalho, devem
estar presentes no prontuário da saúde do trabalhador, cuja guarda é
obrigatória pela empresa até 20 anos após o seu desligamento.
4. Riscos ocupacionais
Cabe ao profissional envolvido na saúde do trabalhador:

Reconhecer o risco, o que significa identificar, no ambiente de trabalho,


fatores ou situações com potencial de dano;
Avaliar o risco, o que significa estimar a probabilidade e a gravidade de
que o dano ocorra.

A - Físicos
B - Químicos

Poeiras: partículas sólidas produzidas mecanicamente por ruptura de


partículas maiores;
Fumos: partículas sólidas produzidas por condensação de vapores metálicos;
Névoas: partículas líquidas produzidas mecanicamente, por exemplo, em
processo spray;
Neblinas: partículas líquidas produzidas por condensações de vapores;
Gases: dispersões de moléculas no ar, misturadas completamente com este;
Vapores: são, também, dispersões de moléculas no ar que, ao contrário dos
gases, podem condensar-se para formar líquidos ou sólidos em condições
normais de temperatura e pressão.

Dica
Toda vez que nos deparamos com uma questão de riscos ocupacionais de
natureza química devemos lembrar que químicos se referem a partículas
e/ou moléculas de dispersão como fatores de risco ocupacional.
C - Biológicos
D - Ergonômicos

Esforço físico e intenso;


Levantamento e transporte manual de peso;
Exigência de postura inadequada;
Controle rígido de produtividade;
Imposição de ritmos excessivos;
Trabalho em turno e noturno;
Jornadas de trabalho prolongadas;
Monotonia e repetitividade;
Outras situações causadoras de estresse físico e/ou psíquico.

E - Riscos de acidentes

Arranjo físico inadequado;


Máquinas e equipamentos sem proteção;
Ferramentas inadequadas ou defeituosas;
Iluminação inadequada;
Eletricidade;
Probabilidade de incêndio ou explosão;
Armazenamento inadequado;
Animais peçonhentos;
Outras situações de risco que podem contribuir para a ocorrência de
acidentes.

5. Acidentes de trabalho
Afetam o empregado segurado, o trabalhador avulso, bem como o segurado
especial, provocando lesão corpórea ou perturbação funcional que cause a
morte, a perda ou redução, temporária ou permanente, da capacidade para o
trabalho.
Os acidentes de trabalho, típicos e de trajeto, geralmente se constituem de
fenômenos traumáticos e são, respectivamente, os que ocorrem a serviço da
empresa ou no percurso da residência ou da refeição para o local de trabalho e
vice-versa. Também se incluem nessa categoria a doença profissional, isto é,
aquela produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a
determinada atividade, constante da relação publicada pelo Ministério da
Saúde, e a doença do trabalho, assim entendida como aquela adquirida ou
desencadeada em função de condições especiais em que é realizado e com ele
se relacione diretamente, desde que também constante em regulamentação.

Importante
Os acidentes em que profissionais de saúde se expõem a sangue e outros
fluidos biológicos devem ser considerados emergência médica. Há,
portanto, necessidade de priorizar o atendimento a eles no mais curto
espaço de tempo possível. As condutas específicas visam evitar a
disseminação do HIV e dos vírus das hepatites B e C no ambiente de
trabalho.

São tipos de exposição que envolvem material biológico considerados de


risco:

Exposições percutâneas: lesões provocadas por instrumentos perfurantes


ou cortantes (exemplo: agulhas, lâminas de bisturi, vidrarias etc.);
Exposições de mucosas: ocorrência de respingos na face, no olho, nariz
ou na boca; ou exposição de mucosa genital;
Exposição de pele não íntegra: contato com locais onde a pele apresenta
dermatites ou feridas abertas;
Arranhaduras e/ou mordeduras: são consideradas de risco quando
envolvem a presença de sangue.

Acompanhamento pós-exposição:

Coleta e realização das sorologias para HIV e hepatites B e C do


profissional acidentado e do paciente-fonte. Outras sorologias podem ser
solicitadas, de acordo com a situação epidemiológica, como sorologia
para doença de Chagas, HTLV, sífilis;
Indicação de profilaxia quando recomendada.

Caracterização do acidente:

Acidente leve: contato com secreções, urina ou sangue em pele íntegra;


Acidente moderado: contato com secreções ou urina em mucosas; sem
sangue visível;
Acidente grave: contato de líquido orgânico contendo sangue visível
com mucosas ou exposição percutânea com material perfurocortante.

Profilaxia:
Logo após o acidente deverá se proceder à descontaminação do sítio exposto,
limpando a ferida com água e sabão ou irrigando as membranas mucosas com
água limpa.

Acidente leve: solicitar sorologias de HIV e hepatites virais do


profissional acidentado e sorologia de HIV do paciente-fonte. Não
prescrever antirretroviral. Encaminhar à Coordenadoria de DST/AIDS
para acompanhamento;
Acidente moderado: comunicar a enfermeira para proceder à notificação
do caso. Solicitar sorologias de HIV e hepatites virais do acidentado e
sorologia de HIV do paciente-fonte. Prescrever: AZT (zidovudina),
100mg, 2cps, VO, a cada 12 horas; e Epivir® (lamivudina), 150mg, 1cp,
VO, a cada 12 horas;
Acidente grave: seguir as recomendações do acidente moderado e
prescrever: AZT (zidovudina), 100mg, 2cps, VO, a cada 12 horas;
Epivir® (lamivudina), 150mg, 1cp, VO, a cada 12 horas; Viracept®
(nelfinavir), 250mg, 3cps, VO, a cada 8 horas.
A - Equiparam-se também a acidente de trabalho

Acidente ligado ao trabalho que, embora não tenha sido a causa única,
tenha consequência significativa de saúde;
Acidente sofrido pelo segurado no local e no horário do trabalho por
causas diversas às laborais;
Doença proveniente de contaminação acidental do empregado no
exercício de sua atividade;
Acidente sofrido, ainda que fora do local e do horário de trabalho, desde
que a serviço da empresa ou durante o trajeto de ida e volta do trabalho.

B - Não são consideradas doenças de trabalho

Doença degenerativa;
Inerente a grupo etário;
Aquela que não produz incapacidade laborativa;
Doença endêmica adquirida por segurados habitantes de região onde ela
se desenvolva, salvo se comprovado que resultou de exposição ou de
contato direto determinado pela natureza do trabalho.

C - Comunicação de Acidente de Trabalho

As ocorrências de acidentes de trabalho são comunicadas ao INSS pelo


documento de registro oficial desse tipo de ocorrência no Brasil, denominado
Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT). Esse documento deve ser
preenchido pelo departamento de pessoal da empresa ou empregador e
entregue ao posto do seguro social até o 1º dia útil após a ocorrência do
acidente. No caso de morte, a comunicação deve ser feita imediatamente. Na
falta de comunicação por parte da empresa, podem preencher a CAT o próprio
segurado acidentado ou seus dependentes, sindicato a que seja filiado, o
médico que o atendeu ou qualquer autoridade, sem que isso, no entanto, isente
a empresa da sua responsabilidade.
Nos casos de doença ocupacional, o médico do trabalho responsável
comunica o caso ao INSS após constatação da doença e emissão da CAT.
Então, o trabalhador é encaminhado ao INSS para perícia e estabelecimento
do nexo causal. Este se refere ao estabelecimento de uma relação de causa e
consequência entre as condições e histórico de trabalho e o quadro clínico
apresentado. Em caso de incapacidade, deverá ser feito o encaminhamento ao
auxílio-doença.

Importante
Em caso de suspeita de doença ocupacional, deve-se realizar um
acompanhamento médico do trabalhador para avaliar se é realmente uma
doença ocupacional. Caso seja constatada a doença, é preciso fazer a
emissão da CAT e o encaminhamento ao INSS. Depois disso, é realizada
uma avaliação pericial e, em caso de incapacidade, é feito o
encaminhamento ao auxílio-doença.

Em caso de acidentes típicos e de trajeto, é emitida a CAT e estabelecido o


tempo de afastamento para tratamento e recuperação. Se esse tempo for
menor que 15 dias, o pagamento do auxílio-doença será de responsabilidade
da empresa. Caso seja maior que 15 dias, esse benefício é de responsabilidade
do INSS.
Em caso de doença não ocupacional, deverá ser estabelecido o tempo de
afastamento para tratamento e recuperação. Se esse tempo for menor que 15
dias, o pagamento do auxílio-doença será de responsabilidade da empresa. A
partir do 16º dia, o benefício é de responsabilidade do INSS, em semelhança
ao acidente de trabalho.

A comunicação será feita ao INSS por intermédio do formulário CAT,


preenchido em 6 vias, com a seguinte destinação:

1ª via: ao INSS;
2ª via: à empresa;
3ª via: ao segurado ou dependente;
4ª via: ao sindicato de classe do trabalhador;
5ª via: ao SUS;
6ª via: à Delegacia Regional do Trabalho (DRT).

É importante ressaltar que a CAT deve ser emitida para todo acidente ou
doença relacionados ao trabalho, ainda que não haja afastamento ou
incapacidade.

Importante
Dos itens que mais são cobrados nas provas, no que se refere ao
preenchimento da doença que levará ao afastamento do trabalho, podemos
citar o agente causador, a situação geradora do acidente e se houve
afastamento.

6. Doenças do trabalho e profissionais


A doença profissional é aquela produzida ou desencadeada pelo exercício do
trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação
elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego e pela Previdência Social.
Exemplos: saturnismo (intoxicação provocada pelo chumbo) e silicose
(sílica).
Já a doença do trabalho é aquela adquirida ou desencadeada em função de
condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione
diretamente (também constante da relação supracitada). Exemplo: disacusia
(surdez) em trabalho realizado em local extremamente ruidoso.
A Tabela 7 resume e exemplifica os grupos das doenças relacionadas, de
acordo com a classificação proposta por Schilling (1984).
São apresentados a seguir exemplos de doenças que têm, como causa
necessária, fatores de exposição relacionados ao trabalho.

A - Perda auditiva induzida por ruídos

A Perda Auditiva Induzida por Ruído (PAIR) é o agravo mais frequente à


saúde dos trabalhadores, presente em diversos ramos de atividade,
principalmente siderurgia, metalurgia, gráfica, têxteis, papel e papelão,
vidraria, entre outros. Atualmente, tem sido utilizado um novo termo: Perda
Auditiva Induzida por Níveis de Pressão Sonora Elevados (PAINSPE).

Dica
Entende-se por limite de tolerância a concentração ou intensidade máxima
ou mínima, relacionada com a natureza e o tempo de exposição ao agente,
que não causará dano à saúde do trabalhador durante a sua vida laboral.
Dica
Para não esquecer, um esquema é memorizar que, para 85dB, o tempo
máximo de exposição é de 8 horas e, acima de 100dB, o tempo de
exposição é reduzido para minutos. Muitas provas colocam esses períodos
como tempos de corte em relação à exposição em dB.

O manual técnico sobre o assunto, publicado pelo Ministério da Saúde em


2006, indica os sinais e sintomas da PAIR a seguir.

a) Auditivos

Perda auditiva;
Zumbidos;
Dificuldades no entendimento da fala;
Outros sintomas auditivos menos frequentes: algiacusia (sensação
dolorosa a ruído de alta intensidade), sensação de audição “abafada”,
dificuldade na localização da fonte sonora.

Dica
Uma regra mnemônica para gravar os sintomas de PAIR é o “PAZA”, que
representa, respectivamente, Perda auditiva, Algiacusia, Zumbidos e
Abafada.

b) Não auditivos

Transtornos da comunicação;
Alterações do sono;
Transtornos neurológicos;
Transtornos vestibulares;
Transtornos digestivos;
Transtornos comportamentais.

O mesmo documento aponta, como características importantes da PAIR:

Ser sempre neurossensorial, uma vez que a lesão está localizada no


órgão de Corti da orelha interna;
Normalmente bilateral, com padrões similares. Em algumas situações,
observam-se diferenças entre os graus de perda em cada orelha;
A sua progressão cessa com o fim da exposição ao ruído intenso;
A perda tem início e predomínio nas frequências de 3, 4 ou 6kHz,
progredindo, posteriormente, para 8, 2, 1, 0,5 e 0,25kHz.

B - Silicose
A mais antiga, mais grave e mais prevalente das doenças pulmonares
relacionadas à inalação de poeiras minerais é a silicose. As pneumoconioses
são definidas pela OIT como “doenças pulmonares causadas pelo acúmulo de
poeira nos pulmões e reação tissular à presença dessas poeiras”. E, por não ser
passível de tratamento e totalmente irreversível, pode cursar com graves
transtornos à saúde do trabalhador.
É vasta a relação das atividades de risco: mineração subterrânea e de
superfície; corte de pedras, britagem, moagem, lapidação, cerâmicas,
fundições que utilizam areia no processo, vidro industrial de abrasivos,
marmorarias, corte e polimento de granito, cosméticos, protéticos, cavadores
de poços; artistas plásticos e jateadores de areia. Dentre as principais
atividades, com respectivos registros de prevalência de silicose, podemos citar
indústria cerâmica (3,9%), atividades em pedreiras (3 a 16%), jateamento de
areia na indústria naval (23,6%) e perfuração de poços no Nordeste (17%).

Dica
Boa parte dos casos só será diagnosticada anos depois de o trabalhador
estar afastado da exposição, já que a silicose é, em geral, uma doença de
desenvolvimento lento, com progressão independente do término da
exposição, praticamente assintomática na fase inicial.

Os sintomas característicos e predominantes começam a aparecer com a


progressão da doença:

Fase inicial: dispneia de esforço, astenia, tosse e/ou expectoração


constantes e dor torácica à inspiração profunda e aos esforços;
Fase avançada: insuficiência respiratória grave, dor torácica
progressiva, dispneia aos mínimos esforços e até em repouso,
comprometimento cardíaco, astenia grave e até cor pulmonale crônico.

Importante
Caso os sintomas da fase inicial da silicose se apresentem antes de 10 anos
de exposição à sílica cristalina, podem ser atribuídos ao tabagismo ou a
outras doenças associadas, como a silicotuberculose.

Em conjunto com a história clínica ocupacional (inquérito rigoroso sobre


profissão, ramo industrial, atividades específicas detalhadas, presentes e
passadas) coerente, o diagnóstico da silicose se baseia na radiografia de tórax
– específico, recomendado pela OIT, que permite identificar pequenas lesões
no pulmão.
Figura 1 - Silicose

C - Asbestose

O Brasil é um dos grandes produtores mundiais de asbesto, principalmente na


fabricação de produtos de cimento-amianto; materiais de fricção, como
pastilhas de freio; materiais de vedação, piso e produtos têxteis, como mantas
e tecidos resistentes ao fogo.

Importante
Considerada uma doença eminentemente ocupacional, a asbestose é a
pneumoconiose associada ao asbesto ou amianto. A doença, de caráter
progressivo e irreversível, pode se manifestar alguns anos depois de
cessada a exposição, com período de latência superior a 10 anos.
Clinicamente, caracteriza-se por dispneia de esforço, estertores crepitantes
nas bases pulmonares, baqueteamento digital, alterações funcionais e
pequenas opacidades irregulares na radiografia de tórax.

É a partir da história ocupacional, do exame físico e das alterações


radiológicas que o diagnóstico é realizado. A radiografia de tórax, assim como
a sua leitura, deverá ser feita de acordo com o preconizado pela OIT.

- Procedimento

Afastamento imediato e definitivo da exposição, mesmo nas formas


iniciais;
Notificação e investigação do caso;
Solicitação de emissão de CAT pela empresa e preenchimento do Laudo
de Exame Médico (LEM) pelo médico.

Importante
Além da asbestose, a exposição às fibras de asbesto está relacionada ao
surgimento de outras doenças, como as alterações pleurais benignas, o
câncer de pulmão e os mesoteliomas malignos, que podem acometer a
pleura, o pericárdio e o peritônio.
Figura 2 - Corpos de asbesto do tipo anfibólio: fibras finas e retas no tecido pulmonar

D - Lesões por esforços repetitivos/distúrbios


osteomusculares relacionados ao trabalho

As Lesões por Esforços Repetitivos (LERs) e os Distúrbios Osteomusculares


Relacionados ao Trabalho (DORTs) abrangem diversas patologias; dentre as
mais conhecidas, a tenossinovite, a tendinite e a bursite.
Trata-se da 2ª causa de afastamento do trabalho no Brasil. As LERs/DORTs
atingem o trabalhador no auge de sua produtividade e experiência
profissional. A maior incidência está na faixa etária de 30 a 40 anos, e as
mulheres são as mais atingidas.
As categorias profissionais que encabeçam as estatísticas são bancários,
digitadores, operadores de linha de montagem, operadores de telemarketing,
secretárias, jornalistas, entre outros. Não há uma etiologia única e
determinada para a ocorrência de LERs/DORTs. Vários fatores existentes no
trabalho contribuem para a sua existência:

Repetitividade de movimentos;
Manutenção de posturas inadequadas por tempo prolongado;
Esforço físico;
Invariabilidade de tarefas;
Pressão mecânica sobre determinados segmentos do corpo, em particular
membros superiores;
Trabalho muscular estático;
Choques e impactos, vibração, frio e fatores organizacionais.

São caracterizadas pela exigência de ritmo intenso de trabalho, existência de


pressão, autoritarismo das chefias e mecanismos de avaliação de desempenho
com base em produtividade.

E - Intoxicações exógenas

a) Agrotóxicos

Todo produto agrotóxico é classificado, pelo menos, quanto a 3 aspectos,


apresentados a seguir.

- Quanto aos tipos de organismos que controlam

Inseticidas, acaricidas, fungicidas, herbicidas, nematicidas, moluscicidas,


raticidas, avicidas, columbicidas, bactericidas e bacteriostáticos são termos
que se referem à especificidade do agrotóxico com relação aos tipos de pragas
ou doenças.

- Quanto à toxicidade da substância

Quanto ao grau de toxicidade, a classificação adotada é aquela preconizada


pela OMS, que distingue os agrotóxicos em classes I, II, III e IV. A
classificação utilizada na definição da coloração das faixas nos rótulos dos
produtos agrotóxicos é: vermelho, amarelo, azul e verde, respectivamente.
Temos, assim, a classificação presente na Tabela 8.
- Quanto ao grupo químico ao qual pertencem

Organofosforados;
Carbamatos;
Organoclorados;
Piretroides;
Dietilditiocarbamatos;
Derivados do ácido fenoxiacético.

No grupo dos inseticidas, os organofosforados e carbamatos, inibidores das


colinesterases, têm causado o maior número de intoxicações (agudas,
subagudas e crônicas) e mortes no Brasil e no mundo.
Os organofosforados penetram por vias dérmica, pulmonar e digestiva,
causando sudorese, sialorreia, miose, hipersecreção brônquica, colapso
respiratório, tosse, vômitos, cólicas, diarreia, miofasciculações, hipertensão
arterial fugaz, confusão mental, ataxia, convulsões e choque
cardiorrespiratório, podendo levar a coma e óbito.
A ação tóxica e a sintomatologia dos carbamatos são semelhantes às dos
organofosforados.
Os organoclorados penetram no organismo pelas vias dérmica, gástrica e
respiratória, são lipossolúveis (contraindicado o uso de leite nas intoxicações)
e eliminados pela urina e pelo leite materno. Em sua ação tóxica,
comprometem a transmissão do impulso nervoso nos níveis central e
autônomo, provocando alterações comportamentais, sensoriais, do equilíbrio,
da atividade da musculatura voluntária e de centros vitais, principalmente do
bulbo respiratório.
Os inseticidas piretroides causam irritação nos olhos, nas mucosas e na pele.
São muito utilizados em “dedetizações” de domicílios e prédios e têm sido
responsabilizados pelo aumento de casos de alergia em adultos e crianças. Em
altas doses, podem levar a neuropatias (agem na bainha de mielina e a
desorganizam, promovendo a ruptura de axônios).
Os fungicidas do grupo dietilditiocarbamatos são proibidos no exterior, mas
aqui são usados na cultura do tomate, do pimentão e de frutas. A absorção
ocorre pela via dérmica. Alguns contêm manganês, o que possibilita o
surgimento de sintomas de parkinsonismo. Sua impureza, ETU (etileno-
etilureia), é tida como carcinogênica, teratogênica e mutagênica. A exposição
intensa provoca dermatite, conjuntivite, faringite e bronquite.
Os herbicidas são produtos de uso crescente, por serem substitutivos de mão
de obra. O produto mais conhecido e usado é o paraquat (Gramoxone®), que
provoca lesões hepáticas e renais e fibrose pulmonar (insuficiência
respiratória e óbito). Ainda nesse grupo estão o ácido 2,4-diclorofenoxiacético
(2,4-D) e o 2,4,5-triclorofenoxiacético (2,4,5-T). A mistura de 2,4-D e 2,4,5-T
representa o principal componente do agente laranja, utilizado como
desfolhante na guerra do Vietnã.
São bem absorvidos pelas 3 vias já citadas. O primeiro produz neurite
periférica e diabetes transitório; o segundo leva a abortamentos, teratogênese,
carcinogênese (está relacionado à dioxina, que aparece como impureza do
processo de fabricação) e cloroacnes. Provocam, ainda, neurite periférica
retardada, lesões do sistema nervoso central e lesões degenerativas –
hepáticas e renais.

Importante
Dentre as intoxicações químicas relacionadas ao trabalho, podemos citar,
como de maior importância, os organofosforados e carbamatos, tendo,
como sintomatologia, sudorese, sialorreia, miose, hipersecreção brônquica,
colapso respiratório, tosse, vômitos, cólicas, diarreia, miofasciculações,
hipertensão arterial fugaz, confusão mental, ataxia, convulsões e choque
cardiorrespiratório, podendo levar a coma e óbito. Lembrando que o
carbamato se diferencia por apresentar sintomatologia mais leve.

- Procedimento

Estabelecido o nexo pela avaliação clínico-ocupacional, os casos devem ser


notificados ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) e
encaminhados à rede de referência para atendimentos especializados, quando
necessário. Os exames laboratoriais, como dosagem de colinesterase, deverão
ser realizados em função do produto ao qual esteve exposto o trabalhador.
Caso o trabalhador intoxicado tenha carteira de trabalho assinada, deverá ser
solicitada a emissão da CAT pela empresa, sendo o médico responsável pelo
preenchimento do LEM. Deverá ser procedida a notificação nos instrumentos
do SUS e ser feita a investigação da situação que ocasionou a intoxicação; a
partir de então, deverão ser desencadeadas as medidas de controle.

b) Chumbo (saturnismo)

As principais fontes de contaminação ocupacional e/ou ambiental são as


atividades de mineração e industriais, especialmente fundição e refino.
A doença causada pelo chumbo é chamada saturnismo. A exposição
ocupacional ao chumbo inorgânico provoca, em sua grande maioria,
intoxicação em longo prazo, podendo ser de variada intensidade. As
principais atividades profissionais em que ocorre exposição ao chumbo são:
fabricação e reforma de baterias; indústria de plásticos; fabricação de tintas;
pintura à pistola/pulverização com tintas à base de pigmentos de chumbo;
fundição de chumbo, latão, cobre e bronze; reforma de radiadores;
manipulação de sucatas; demolição de pontes e navios; trabalhos com solda;
manufatura de vidros e cristais; lixamento de tintas antigas; envernizamento
de cerâmica; fabricação de material bélico à base de chumbo; usinagem de
peças de chumbo; manufatura de cabos de chumbo; trabalho em joalheria etc.
As intoxicações podem causar danos aos sistemas sanguíneo, digestivo, renal,
nervoso central e, em menor extensão, ao nervoso periférico. O contato com
os compostos de chumbo pode ocasionar dermatites e úlceras na epiderme.

- Sinais e sintomas na intoxicação crônica

Cefaleia, astenia;
Alterações do comportamento (irritabilidade, hostilidade, agressividade,
redução da capacidade de controle racional);
Alterações do estado mental (apatia, obtusidade, hipoexcitabilidade,
redução da memória);
Alteração da habilidade psicomotora, com redução da força muscular,
dor e parestesia nos membros;
Queixas de impotência sexual e diminuição da libido (comuns);
Hiporexia, epigastralgia, dispepsia, pirose, eructação;
Dor abdominal aguda, às vezes confundida com abdome agudo, pode ser
sintoma de intoxicação crônica por chumbo;
Modificação da frequência e do volume urinários, das características da
urina, aparecimento de edema e hipertensão arterial;
O exame oral pode revelar a existência da orla gengival de Burton. É um
sinal relativamente frequente e constitui-se numa linha azulada da
gengiva imediatamente por cima da implantação dos dentes. Aparece
mais nas áreas dos caninos, mas nos casos de má higiene (tártaro) ou
cáries junto ao colo costuma incidir mais nas áreas correspondentes aos
dentes com patologia. A orla azulada é ocasionada pelo sulfeto de
chumbo formado nos intoxicados pela presença do chumbo eliminado na
saliva, que age com o ácido sulfídrico normalmente existente na boca,
vindo a formar o sulfeto de chumbo. Esse sulfeto, que tem a coloração
azulada, deposita-se na gengiva (Figura 3).

Figura 3 - Orla gengival de Burton (linha azulada na gengiva, próxima à região de implantação dos
dentes)

c) Mercúrio (hidrargirismo)

O mercúrio e os seus compostos tóxicos ingressam no organismo por


inalação, absorção cutânea e pela via digestiva. O mercúrio metálico é
utilizado principalmente em garimpos, na extração do ouro e da prata, em
células eletrolíticas para a produção de cloro e soda, na fabricação de
termômetros (no Brasil será proibida sua fabricação, importação e
comercialização a partir de 2019), barômetros e aparelhos elétricos e em
amálgamas para uso odontológico. Os compostos inorgânicos são utilizados
principalmente em indústrias de compostos elétricos, eletrodos, polímeros
sintéticos e como agentes antissépticos. Já os compostos orgânicos são
utilizados como fungicidas, fumigantes e inseticidas.
Assim, os trabalhadores expostos são aqueles ligados à extração e à
fabricação do mineral, na fabricação de tintas, barômetros, manômetros,
termômetros, lâmpadas, no garimpo, na recuperação do mercúrio por
destilação de resíduos industriais etc.
Os vapores de mercúrio e seus sais inorgânicos são absorvidos,
principalmente, pela via inalatória. A absorção cutânea tem importância
limitada. Sua principal ação tóxica se deve à sua ligação com grupos ativos da
enzima monoaminoxidase (MAO), resulta no acúmulo de serotonina
endógena e na diminuição do ácido 5-hidroxindolacético, com manifestações
de distúrbios neurais.
Em exposições prolongadas, em baixas concentrações, produz sintomas
complexos, incluindo cefaleia, redução da memória, instabilidade emocional,
parestesias, diminuição da atenção, tremores, fadiga, debilidade, perda de
apetite, perda de peso, insônia, diarreia, distúrbios de digestão, sabor
metálico, sialorreia, irritação na garganta e afrouxamento dos dentes. Podem
ocorrer proteinúria e síndrome nefrótica. De maneira geral, a exposição
crônica apresenta 4 sinais, que se destacam, entre outros, gengivite, sialorreia,
irritabilidade e tremores.

d) Solventes orgânicos

Neste grupo químico, estão os hidrocarbonetos alifáticos (n-hexano e


benzina), os hidrocarbonetos aromáticos (benzeno, tolueno, xileno), os
hidrocarbonetos halogenados (di/tri/tetracloroetileno, monoclorobenzeno,
cloreto de metileno), os álcoois (metanol, etanol, isopropenol, butanol, álcool
amílico), as cetonas (metilisobutilcetona, ciclo-hexanona, acetona) e os
ésteres (éter isopropílico e éter etílico).
Ocupacionalmente, as vias de penetração são a pulmonar e a cutânea. A
primeira é a mais importante, pois, ao volatilizarem-se, os solventes podem
ser inalados pelos trabalhadores expostos e atingir os alvéolos pulmonares e o
sangue capilar. Havendo penetração e, consequentemente, biotransformação e
excreção, os efeitos tóxicos dessas substâncias nos níveis hepático, pulmonar,
renal, hemático e do sistema nervoso podem manifestar-se.

- Benzenismo
É o nome dado às manifestações clínicas ou alterações hematológicas
compatíveis com a exposição ao benzeno. Os processos de trabalho que
expõem trabalhadores ao benzeno estão presentes no setor siderúrgico, nas
refinarias de petróleo, nas indústrias de transformação que utilizam o benzeno
como solvente ou nas atividades em que se utilizem tintas, vernizes,
seladores, tíneres etc.
Os sintomas clínicos são pobres, mas pode haver queixas relacionadas às
alterações hematológicas, como fadiga, palidez cutânea e de mucosas,
infecções frequentes, sangramentos gengivais e epistaxe. Podem ser
encontrados sinais neuropsíquicos, como astenia, irritabilidade, cefaleia e
alterações da memória. Laboratorialmente, esses quadros podem se
manifestar por meio de mono, bi ou pancitopenia, caracterizando, nesta última
situação, quadros de anemia aplástica.
Vários estudos epidemiológicos demonstram a relação do benzeno com
leucemia mieloide aguda, leucemia mieloide crônica, leucemia linfocítica
crônica, doença de Hodgkin e hemoglobinúria paroxística noturna.

- Procedimento

Estabelecer o nexo causal pela investigação clínico-ocupacional, fazer no


mínimo 2 hemogramas com contagem de plaquetas e reticulócitos no
intervalo de 15 dias, dosar ferro sérico, capacidade de ligação e saturação do
ferro e, ainda, 2 amostras de fenol urinário, uma no fim da jornada e outra
antes dela (no momento da consulta).

e) Cromo

As maiores fontes de contaminação no ambiente de trabalho são as névoas


ácidas, que acontecem principalmente nas galvanoplastias (cromagem), na
indústria do cimento, na produção de ligas metálicas, na soldagem de aço
inoxidável, na produção e na utilização de pigmentos nas indústrias têxtil, de
cerâmica, vidro e borracha e fotográfica.
Os sintomas associados à intoxicação são prurido nasal, rinorreia e epistaxe,
que evoluem com ulceração e perfuração de septo nasal; irritação de
conjuntiva com lacrimejamento e irritação de garganta; na pele, observam-se
prurido cutâneo nas regiões de contato, erupções eritematosas ou vesiculares e
ulcerações de aspecto circular com dupla borda, a externa rósea e a interna
escura (necrose), o que lhe confere o aspecto característico de “olho de
pombo”; a irritação das vias aéreas superiores também pode manifestar-se
com dispneia, tosse, expectoração e dor no peito. O câncer pulmonar é,
porém, o efeito mais importante sobre a saúde do trabalhador.
- Procedimento

Havendo suspeita de intoxicação por cromo, os trabalhadores devem ser


encaminhados ao serviço especializado em saúde do trabalhador para
monitorização biológica – pesquisa do cromo no sangue e tecidos – e
tratamento especializado. Uma vez detectada a presença do cromo no
ambiente, se não houver segurança quanto ao limite legal para a duração da
exposição, a vigilância ou os trabalhadores poderão pedir a verificação do
nível de exposição. Os trabalhadores com intoxicação devem ser
acompanhados por longos períodos, uma vez que o câncer pulmonar se
desenvolve de 20 a 30 anos após a exposição.

F - Síndrome do túnel do carpo


O túnel do carpo é um canal situado ao nível do punho e formado, em sua
base, pelos ossos do carpo, e em sua parte superior ou teto, pelo ligamento
transverso do carpo. É através dele que passa o nervo mediano, responsável
pela inervação do polegar (1º dedo), do indicador (2º dedo), do dedo médio
(3º dedo) e a face interna do anular (4º dedo).
Pelo interior do canal do carpo, passam os tendões flexores dos dedos e o
nervo mediano.
A Síndrome do Túnel do Carpo (STC) é a neuropatia de origem compressiva
mais frequente, incidindo em cerca de 1% da população geral. Os pacientes
são predominantemente do sexo feminino, à proporção de 4:1, geralmente na
faixa etária entre 40 e 60 anos. Em cerca de 50% dos casos, a STC é bilateral,
iniciando-se na mão dominante, na qual os sintomas geralmente são mais
intensos.
As manifestações iniciais são dor, queimação, formigamento e dormência na
mão, geralmente de evolução insidiosa, acometendo território de inervação do
nervo mediano. De forma clássica, os sintomas acentuam-se no período
noturno, por vezes de forma intensa, chegando a despertar o paciente.
Movimentos repetitivos também podem exacerbar os sintomas.
São fatores ocupacionais contribuintes para a STC fadiga de baixa frequência,
esforço e repetitividade, postura e fatores mecânicos externos. Assim, vários
fatores associados ao trabalho concorrem para a ocorrência dessa síndrome,
como a repetitividade de movimentos, a manutenção de posturas inadequadas,
o esforço físico, a invariabilidade de tarefas, a pressão mecânica sobre
determinados segmentos do corpo, o trabalho muscular estático, impactos e
vibrações.
- Diagnóstico

Teste de Phalen:

Posição do paciente: sentado ou em pé, com os cotovelos fletidos a 90° e


os punhos e o dorso em contato e a 90° de flexão;
Descrição do teste: o terapeuta instrui o paciente a realizar uma flexão do
punho e colocar o dorso da mão em contato com a outra mão,
permanecendo assim por 1 minuto;
Sinais e sintomas: o aparecimento de formigamento ou dormência na
mão, principalmente na região que vai até o 3º dedo, demonstra
positividade do teste.

O sinal de Tinel, obtido a partir da percussão leve sobre a prega flexora do


punho, tem valor diagnóstico questionável devido ao elevado índice de
resultados falsos positivos. O sinal da compressão geralmente é positivo e é
obtido por meio da compressão da região do punho na altura do osso
pisiforme, o que piora os sintomas.
Embora as alterações na eletroneuromiografia sejam consideradas importantes
na definição da STC, esse exame pode ser normal em cerca de 5 a 8% dos
pacientes.

G - Outras patologias

Podemos citar, ainda, patologias desencadeadas por fatores ocupacionais:

Distúrbios mentais;
Alcoolismo;
Dermatoses ocupacionais: dermatite de contato;
Radiações ionizantes: catarata, neoplasias;
Pressão atmosférica: osteonecrose;
Picadas por animais peçonhentos.

7. Benefícios

A - Previdência Social

Os beneficiários do Regime Geral de Previdência Social são os segurados e os


dependentes. Os primeiros são as pessoas físicas: empregado pela CLT,
empregado doméstico e contribuinte individual (atividade agropecuária ou
pesqueira, mineradora, religioso, sócio-empresário e autônomo). Os
benefícios do Regime Geral de Previdência Social para o segurado são:

Aposentadoria por invalidez;


Aposentadoria por idade;
Aposentadoria por tempo de serviço;
Aposentadoria especial;
Auxílio-doença;
Salário-família;
Salário-maternidade;
Auxílio-acidente.

a) Benefícios para o dependente

Pensão por morte;


Auxílio-reclusão.

b) Benefícios para ambos

Serviço social;
Reabilitação profissional.

A aposentadoria por invalidez será devida ao segurado que, em gozo ou não


de auxílio-doença, for considerado incapaz e insuscetível de reabilitação para
o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, e lhe será paga
enquanto permanecer nessa condição. A doença ou lesão preexistente somente
garantirá o benefício em caso de progressão ou agravamento.
O auxílio-doença será devido ao segurado se ficar incapacitado para o seu
trabalho ou para a sua atividade habitual por mais de 15 dias consecutivos,
por acidente de trabalho ou doença não relacionada ao trabalho.
O auxílio-acidente será concedido como indenização ao segurado quando,
após consolidação das lesões decorrentes de acidente de qualquer natureza,
aparecerem sequelas que impliquem redução da capacidade para o trabalho
que habitualmente exercia.
A quantificação da incapacidade laboral é realizada por uma perícia. A tabela
da SUSEP (Superintendência de Seguros Privados) é uma das utilizadas para
quantificar a perda da capacidade laboral.
O segurado pode, também, obter isenção de carência para concessão de
aposentadoria por invalidez caso sejam constatadas, em perícia médica, as
seguintes doenças: tuberculose ativa, hanseníase, alienação mental, neoplasia
maligna, cegueira, paralisia irreversível e incapacitante, cardiopatia grave,
doença de Parkinson, espondilite anquilosante, nefropatia grave, estado
avançado da doença de Paget (osteíte deformante), síndrome da deficiência
imunológica adquirida (AIDS) e contaminação por radiação.

B - Centro de Referência em Saúde do Trabalhador

Os CERESTs promovem ações para melhorar as condições de trabalho e a


qualidade de vida do trabalhador por meio da prevenção e vigilância. Existem
os CERESTs estaduais e os regionais, e cabem a eles capacitar a rede de
serviços de saúde, apoiar as investigações de maior complexidade e apoiar a
estruturação da assistência de média e alta complexidades para atender aos
acidentes de trabalho e agravos.
A equipe de profissionais dos CERESTs regionais é composta por, pelo
menos, 4 profissionais de nível médio (2 auxiliares de enfermagem) e 6
profissionais de nível universitário (2 médicos e 1 enfermeiro). No caso dos
estaduais, a equipe é integrada por 5 profissionais de nível médio (2 auxiliares
de enfermagem) e 10 profissionais de nível superior (2 médicos e 1
enfermeiro).

Resumo
A organização política da área de saúde do trabalhador é regida pelo:
Ministério do Trabalho e Emprego;
Ministério da Previdência Social;
Ministério da Saúde.
A saúde do trabalhador é um conjunto de ações de promoção, proteção,
recuperação e reabilitação dos trabalhadores submetidos aos riscos e
agravos advindos das condições de trabalho;
As normas regulamentadoras:
São responsáveis por regulamentar e fornecer parâmetros e instruções
sobre Saúde e Segurança do Trabalho:
NR 04 - SESMT: o SESMT tem a finalidade de promover a saúde e
proteger a integridade física dos trabalhadores no local de trabalho.
O seu dimensionamento depende do GR e do número de
empregados da empresa;
NR 05 - CIPA:
No geral, empresa com 20 ou mais funcionários;
Representantes do empregador (inclui-se o presidente) e dos
empregados, conforme o dimensionamento da empresa;
Reuniões ordinárias mensais;
SIPAT (Semana Interna de Prevenção de Acidentes do
Trabalho) e campanhas de prevenção de AIDS;
Elaboração do Mapa de Risco;
Ligação com SESMT, quando houver, e PCMSO e PPRA.
NR 06 - EPI: é todo dispositivo de uso individual, de fabricação
nacional ou estrangeira, destinado a proteger a saúde e a integridade
física dos trabalhadores. Todo trabalhador exposto a riscos é
obrigado a utilizá-lo corretamente, responsabilizando-se por sua
guarda e conservação e devendo avisar o empregador sempre que
apresentar defeitos ou problemas;
NR 07 - PCMSO: visa promover e preservar a saúde do conjunto
dos seus trabalhadores. Consultas ocupacionais (admissionais,
periódicas, demissionais, de mudança de função e de retorno ao
trabalho);
NR 09 - PPRA:
Prevenção da saúde e segurança dos trabalhadores;
Levantamento dos riscos ambientais existentes nos locais de
trabalho;
Medidas para neutralização;
Engenheiro do trabalho/técnico de segurança.
NR 17 - Ergonomia: visa estabelecer parâmetros que permitam a
adaptação das condições de trabalho às características
psicofisiológicas dos trabalhadores, de modo a proporcionar um
máximo de conforto, segurança e desempenho eficiente.
Riscos ocupacionais:
Químicos: exposição a substâncias tóxicas por intermédio de gases,
fumos, névoas, poeiras, contato térmico ou ingestão;
Físicos: ruídos, vibração, calor, frio, luminosidade, ventilação,
umidade, pressões anormais, radiação etc.;
Biológicos: bactérias, fungos, vírus, contato com lixo e esgotos;
Ergonômicos e psicossociais: divisão do trabalho, pressão da chefia
por produtividade ou disciplina, jornada, ritmo, pausas, trabalho
noturno ou diurno, organização dos espaços físicos, esforço físico
intenso, levantamento manual de peso, postura e posições
inadequadas, repetitividade de movimentos;
Mecânicos e de acidentes: arranjo físico inadequado, falta de
proteção em máquinas perigosas, ferramentas defeituosas,
possibilidade de incêndios e explosão, presença de animais
peçonhentos.
Patologias ocupacionais:
Pneumoconioses: deposição de partículas sólidas no parênquima
pulmonar, levando ao quadro de fibrose, isto é, ao endurecimento
intersticial do tecido pulmonar;
PAIR;
Silicose;
Asbestose;
LERs;
DORTs;
Intoxicações exógenas.
Acidente de trabalho:
É o agravo à saúde pelo exercício do trabalho e serviço da empresa,
afetando o empregado segurado, o trabalhador avulso, bem como o
segurado especial, provocando lesão corpórea ou perturbação funcional
que cause a morte, a perda ou a redução, temporária ou permanente, da
capacidade para o trabalho:
Acidente típico decorrente das características da atividade
profissional por ele desempenhada;
Acidente de trajeto ou percurso da residência e do local de trabalho.
Doença do trabalho desencadeada em função de condições especiais em
que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente;
Doença profissional produzida ou desencadeada pelo exercício do
trabalho, peculiar a determinado ramo de atividade constante de relação
existente no Regulamento dos Benefícios da Previdência Social;
Previdência Social: os beneficiários do Regime Geral de Previdência
Social são os segurados e os dependentes;
Segurados (pessoas físicas):
Empregado pela CLT;
Empregado doméstico;
Contribuinte individual.
Auxílio-doença: indivíduo que, após um acidente ou doença, fique
incapacitado para o seu trabalho ou para a sua atividade habitual por
mais de 15 dias consecutivos;
Acidentário/previdenciário;
Aposentadoria por invalidez: indivíduo que, após um acidente, seja
considerado incapaz e insuscetível de reabilitação para o exercício de
atividade que lhe garanta a subsistência, e será paga enquanto
permanecer nessa condição;
Auxílio-acidente: deve-se ao segurado como indenização quando, após
consolidação das lesões decorrentes de acidente de qualquer natureza,
aparecem sequelas que impliquem redução da capacidade para o trabalho
que habitualmente exercia.
CID-10
Marina Gemma
Jeane Lima e Silva Carneiro
Edson Lopes Mergulhão

1. O que é?
A 10ª revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID) é conhecida,
na prática clínica, como CID-10. Embora reconhecida por essa sigla, a
publicação é denominada de Classificação Estatística Internacional de
Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (Laurenti, 1994). A CID é uma
ferramenta diagnóstica padrão para a Epidemiologia, gestão de saúde e
prática clínica, que agrupa doenças análogas, semelhantes ou afins e é
utilizada para monitorizar a incidência e prevalência de doenças e outros
problemas de saúde, de forma a fornecer um panorama da situação de saúde
dos países e das populações (Laurenti, 1991; OMS, 2016).
Além de servir de instrumento estatístico para análises de âmbito nacional, a
CID é cada vez mais utilizada para o cuidado clínico e desenvolvimento de
pesquisas que visam definir doenças e/ou estudar os padrões das doenças,
bem como na gestão dos cuidados em saúde, a fim de monitorizar os
desfechos e a alocação de recursos (OMS, 2016).
Dessa forma, trata-se de uma classificação utilizada por médicos,
enfermeiros, pesquisadores, formuladores de políticas públicas, seguradoras,
gestores de saúde, entre outros profissionais interessados no conhecimento
de uma doença específica quanto a sua história natural e maneiras de
diagnóstico, tratamento e/ou prevenção. A CID foi traduzida em 43 línguas e
teve sua 11ª revisão lançada em 2018.

Importante
Como o próprio nome sugere, a CID não equivale somente a uma
classificação de doenças: consiste em uma sistematização de doenças,
sinais, sintomas e motivos de consultas, englobando, inclusive, definições
usadas em estatísticas vitais e de saúde.

2. Breve histórico
Para cumprir o principal objetivo da Saúde Pública, que é evitar doenças,
prolongar a vida e promover a saúde mediante a atividade organizada da
sociedade, é preciso identificar os problemas de saúde e a forma como estes
se distribuem na população. Nesse contexto, para analisar estatisticamente a
frequência de doenças, é necessário um instrumento que as agrupe ou
classifique segundo determinados critérios. Ao se obter uma uniformização
terminológica (nomenclatura de doenças ou nosografia), é possível ter uma
linguagem comum que favoreça uma melhor troca de informações sobre a
doença, possibilitando, ainda, comparações da sua frequência em áreas
distintas, de forma a contribuir à sua prevenção (Laurenti, 1991).
Nomeadas as doenças, o agrupamento destas segundo características comuns
(nosologia) constitui, então, uma classificação, que serve, basicamente, para
fins estatísticos de análises das situações de saúde das populações. Em uma
classificação estatística de doenças, o interesse principal está, portanto, nos
agrupamentos e não nos casos individualizados (Laurenti, 1991). A busca
por uma classificação ordenada de doenças é secular, mas em meados do
século XVIII e ao longo do século XIX houve um interesse mais expressivo
na obtenção de um instrumento estatístico que sistematizasse as causas de
morte e que fosse de uso internacional, principalmente para possibilitar
comparações (Laurenti, 1991, 1994).
Após diversas tentativas com aceitações bastante limitadas, houve, em 1893,
um acordo internacional para o uso de uma classificação de doenças que
eram causas de morte (77 causas de mortes) e uma recomendação para que
esta fosse revista decenalmente, de modo a incorporar novas causas que
fossem sendo descritas. A 1ª revisão ocorreu em 1900 e, até a 5ª revisão em
1938, havia um reduzido número de códigos, visto que era somente uma
classificação de doenças que causavam morte. A partir da 6ª revisão,
aprovada em 1948, este documento passou a englobar classificações de
doenças, lesões e causas de morte e suas revisões tornaram-se
responsabilidade da Organização Mundial da Saúde – OMS (Laurenti,
1994).
Da 6ª à atual 10ª revisão, a CID ampliou enormemente o número de
categorias e, principalmente, subcategorias, visando satisfazer plenamente
aos seus vários usos em análises de morbidade. Além disso, também foram
incorporadas à Classificação diversas definições usadas em estatísticas vitais
e de saúde (Laurenti, 1991, 1994).
A 10ª revisão da CID foi aprovada em 1989 e recomendada para entrar em
vigor em 1º de janeiro de 1993 pela 43ª Assembleia Mundial de Saúde. No
entanto, por diversos motivos, especialmente de ordem operacional, muitos
países a implementaram entre 1995 e 1997. No Brasil, a CID-10 foi
introduzida em 1º de janeiro de 1996, em cumprimento à Portaria nº
1.832/94 (Grassi; Laurenti, 1998).
Antes da 10ª revisão da CID, não havia atualizações entre as revisões.
Contudo, na Conferência Internacional para a Décima Revisão, de 1989, foi
recomendado que “a OMS endosse o conceito de um processo de
atualização no período entre 2 revisões e considere os mecanismos para que
esta atualização seja colocada em prática”. A partir dessa proposta, 2 grupos
foram estabelecidos para coordenar o processo de atualização: o Grupo de
Referência de Mortalidade (Mortality Reference Group – MRG) e o Comitê
de Referências de Atualizações (Update Reference Committee – URC).
O MRG foi desenvolvido em 1997 e começou suas atividades referentes à
aplicação e interpretação da CID-10 em 1998. O MRG também envia
propostas de atualização para o URC.
O URC foi estabelecido no ano 2000 e recebe propostas do MRG e de
Centros Colaboradores da OMS. O URC avalia essas propostas e submete
recomendações de atualizações aos Diretores dos Centros Colaboradores a
cada ano, que então encaminham sugestões para a OMS.
Para melhor sistematização, foram estabelecidas 2 categorias de atualização:

Principais (major):
Inclusão/exclusão de códigos;
Movimentação de um código para outra categoria ou capítulo;
Alteração numa entrada do índice que muda o código de uma
categoria de 3 caracteres para outra categoria de 3 caracteres
(movimentação de termos);
Alteração de uma regra ou linha de ação que afeta a integridade dos
conjuntos de dados de morbidade e mortalidade; ou introdução de
novos termos no índice.
Secundárias (minor):
Correção ou esclarecimento de uma entrada do índice, alterando o
seu código para outro dentro da mesma categoria de 3 caracteres;
Melhorias na lista tabular ou no índice, como adição de termos de
inclusão ou de exclusão a um código existente ou a duplicação de
uma entrada do índice sob outro termo principal;
Alteração na descrição de um código que a aprimora, sem alterar o
conceito;
Alteração de uma regra ou linha de ação que não afeta a integridade
dos conjuntos de dados de morbidade e mortalidade;
Correção de erros tipográficos.

O ciclo de atualização recomendado passa a ser, então:

Lista tabular: a cada 3 anos para as atualizações principais (major),


anual para atualizações secundárias (minor);
Índice: anualmente para alterações que não impactam na estrutura da
lista tabular.

A CID-11 foi lançada pela OMS em junho de 2018 e deverá ser apresentada
na Assembleia Mundial da Saúde em 2019.

Dica
A CID começou a adquirir as características que possui atualmente a partir
de 1948, com a 6ª revisão, quando incluiu classificações além de doenças
que eram causas de morte e se tornou responsabilidade da Organização
Mundial da Saúde. A 10ª revisão está em vigência, e a 11ª revisão, lançada
em 2018, deverá entrar em vigor em 2022.

3. Apresentação e modo de uso


A CID-10 apresenta 3 volumes, diferentemente das revisões anteriores, que
tinham apenas 2. O Volume I contém a classificação propriamente dita,
chamada de Lista Tabular. Tal lista é formada por categorias (códigos de 3
dígitos – 1 letra e 2 algarismos) e subcategorias (código da categoria
acrescido de 1 ponto e mais 1 algarismo – .0 a .9). Dessa forma, um
conjunto de categorias com doenças semelhantes constitui um agrupamento
e vários agrupamentos formam um capítulo (Figura 1 – CBCD, 2008).

Figura 1 - CID-10: composição da Lista Tabular


Fonte: Centro Brasileiro de Classificação de Doenças.

A CID-10 apresenta, então, 22 capítulos (5 a mais do que a CID-9). Além da


Lista Tabular, o Volume I apresenta a classificação da morfologia de
neoplasias, as listas especiais de tabulação para mortalidade e para
morbidade, bem como as definições e os regulamentos das nomenclaturas
(CBCD, 2008).
O Volume II consiste no Manual de Instruções, contendo toda a parte
referente ao Atestado Médico da Causa de Morte, além de uma breve
descrição da CID, instruções práticas para os codificadores de morbidade e
mortalidade e diretrizes para a apresentação e interpretação dos dados.
Contém, também, as definições relativas a mortalidade fetal, perinatal,
neonatal, infantil e materna (OMS, 2016).
Por fim, o Volume III apresenta o Índice Alfabético, com uma introdução e
maior quantidade de instruções sobre o seu uso. Esse volume está dividido
em 3 seções: a I, que corresponde ao índice alfabético de doenças e natureza
da lesão; a II, que corresponde ao índice alfabético de causas externas da
lesão; a III, que contém a tabela de drogas e compostos químicos (CBCD,
2008).
Em uma nova revisão, novas doenças, quando existentes, são inseridas (por
exemplo, a inclusão da síndrome da imunodeficiência adquirida na 10ª
revisão); determinadas doenças ou agrupamentos de doenças afins podem
ser transferidos para outro capítulo; uma doença com apenas uma categoria
pode passar a ser representada por um agrupamento (por exemplo, o caso da
hipertensão arterial, que passou a ser o agrupamento “doenças
hipertensivas”), dentre outras alterações que podem, consequentemente,
fazer com que as análises de tendência de determinadas doenças sejam
alteradas com a introdução da nova revisão (Grassi; Laurenti, 1998).
As atualizações dos volumes da CID-10 estão disponíveis, em inglês, na
forma de listas anuais de modificações no site da OMS
(http://www.who.int/classifications). A tradução em português da Lista
Tabular pode ser consultada por meio da instalação de programas no
computador ou do navegador da internet
(http://www.datasus.gov.br/cid10/V2008/cid10.htm). Na Tabela 1, é
apresentado um resumo da Lista Tabular, com seus capítulos e
agrupamentos.
Resumo
O que é?

Sistematização de doenças, sinais, sintomas e motivos de consultas,


englobando, inclusive, definições usadas em estatísticas vitais e de
saúde;
Ferramenta diagnóstica padrão para a Epidemiologia, gestão de saúde e
prática clínica.

Objetivo

Uniformização terminológica para fins estatísticos;


Visa possibilitar o registro sistemático, a análise, a interpretação e a
comparação dos dados de morbimortalidade coletados em diferentes
países e regiões e em diferentes momentos no tempo.

Histórico

1893: 1º acordo internacional para o uso de uma classificação de 77


doenças que eram causas de morte;
1900: 1ª revisão da Classificação, de modo a incorporar novas causas de
morte descritas;
1948: aprovação da 6ª revisão, que passou a englobar classificações de
doenças, lesões e causas de morte, além de se tornar responsabilidade da
OMS;
1989: aprovação da 10ª revisão, implementada pelos países em
diferentes anos (entre 1993 e 1997), devido, principalmente, a questões
operacionais;
1996: introdução da CID-10 no Brasil, em cumprimento à Portaria nº
1.832/94.

Organização e modo de uso

Apresenta 3 volumes:
I: contém a classificação propriamente dita, chamada de Lista
Tabular. Além disso, apresenta a classificação da morfologia de
neoplasias, listas especiais de tabulação para mortalidade e para
morbidade, bem como as definições e os regulamentos das
nomenclaturas;
II: consiste no Manual de Instruções, contendo toda parte referente
ao Atestado Médico da Causa de Morte, além de uma breve
descrição da CID, instruções práticas para os codificadores de
morbidade e mortalidade e diretrizes para a apresentação e
interpretação dos dados;
III: apresenta o Índice Alfabético.
Organizada em 22 capítulos, que contêm os agrupamentos de categorias
(códigos alfanuméricos de 3 dígitos) e subcategorias (código da
categoria acrescido de um ponto e mais um algarismo - .0 a .9).
Medicina Legal
André Ribeiro Morrone
Edson Lopes Mergulhão
Thaís Minett
Marcos Rodrigo Souza Fernandes
Fábio Roberto Cabar
João Victor Fornari

1. Introdução
A Medicina Legal compreende o ramo da Medicina que utiliza conhecimentos
das Ciências Médicas para atender às demandas da Justiça, ou seja, realiza as
perícias necessárias para a elucidação de um fato relevante para o Direito. O
médico-legista utiliza conhecimentos da Medicina e de outras ciências
correlatas para fazer as perícias requisitadas pela autoridade competente.

A Tanatologia Forense é o ramo da Medicina Legal que, partindo do exame


do local, oferece informação acerca das circunstâncias da morte e, atendendo
aos dados do exame de necrópsia, procura estabelecer a identificação do
cadáver, o mecanismo da morte, a causa da morte e o diagnóstico diferencial
médico-legal (acidente, suicídio, homicídio ou morte de causa natural).
Esses são os objetivos mais importantes da Tanatologia Forense, nem sempre
fáceis de atingir. Algumas vezes, as dificuldades com que se depara o médico
responsável pela autópsia são muitas e de natureza diversa. Portanto, para se
chegar a uma conclusão correta e com fundamentação científica, o médico-
legista deve utilizar conhecimento amplo nas diversas áreas da Medicina
Assistencial, da Medicina Forense e das Ciências Forenses (Criminalística,
Balística, Toxicologia etc.).

Importante
A Tanatologia Forense é um ramo da Medicina Legal que, por meio do
exame do local, fornece informações acerca das circunstâncias da morte,
além de buscar determinar a identificação do cadáver, o mecanismo da
morte, a causa da morte e o diagnóstico diferencial médico-legal (se
acidente, suicídio, homicídio ou causa natural), por meio de necrópsia.

2. Lesões corpóreas
Estudadas quanto à quantidade e à qualidade do dano, as lesões corpóreas têm
o significado jurídico de configurar, no dolo (o autor tem a intenção de
provocar lesão) ou na culpa (o autor não tem a vontade de lesar, mas por
imprudência, imperícia ou negligência a lesão ocorre na vítima) um crime
contra a pessoa.
As lesões corpóreas dolosas, consideradas quanto à quantidade e à qualidade
do dano, classificam-se em leves, graves e gravíssimas. O crime de lesão
corpórea está previsto no Art. nº 129 do Código Penal (CP).

Importante
As lesões corpóreas podem ser leves (danos com pouca repercussão
orgânica e de fácil recuperação individual), graves (causam incapacidade
para as ocupações habituais por mais de 30 dias, perigo de vida, debilidade
permanente de membro, sentido ou função e aceleração do parto) e
gravíssimas (resultam em incapacidade permanente para o trabalho,
enfermidade incurável, perda ou inutilização de membro, sentido ou
função, deformidade permanente e aborto).

A - Leves

São representadas por danos de pouquíssima repercussão orgânica ou por


perdas superficiais, de fácil recuperação individual.

B - Graves
São as lesões que tiveram, como consequência:

I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de 30 dias.


II - Perigo de vida.
III - Debilidade permanente de membro, sentido ou função.
IV - Aceleração de parto.

C - Gravíssimas

São aquelas que resultaram em:

I - Incapacidade permanente para o trabalho.


II - Enfermidade incurável.
III - Perda ou inutilização de membro, sentido ou função.
IV - Deformidade permanente.
V - Aborto.

3. Traumatologia Forense

A - Conceito

A Traumatologia Forense é o ramo da Medicina Legal que se ocupa das


implicações jurídicas dos traumatismos e trata de todas as energias
potencialmente vulnerantes ao corpo humano. É uma área extensa que
abrange enorme gama de agentes vulnerantes capazes de lesar o organismo ou
prejudicar, de algum modo, o seu funcionamento.
A palavra “trauma”, do ponto de vista semântico, vem do grego trauma
(plural: traumatos, traumas), cujo significado é “ferida”. A terminologia
“trauma”, em Medicina, admite vários significados, todos ligados a
acontecimentos não previstos e indesejáveis que, de forma mais ou menos
violenta, atingem indivíduos neles envolvidos, produzindo-lhes alguma forma
de lesão ou dano. Trauma é definido como “um evento nocivo que advém da
liberação de energia ou de barreiras físicas ao fluxo normal de energia”.
Qualquer forma de energia física em quantidade suficiente pode causar danos
ao tecido. O corpo pode tolerar transferência de energia dentro de certos
limites; se esse limiar for ultrapassado, ocorrerá um trauma cujo resultado
será uma lesão morfologicamente demonstrável.
Em geral, a energia existe em 5 formas físicas: mecânica, química, térmica,
por irradiação ou elétrica. As energias vulnerantes podem ser classificadas,
segundo Borri, em mecânica, física (calor, frio, elétrica etc.), química
(venenos e cáusticos), físico-química (asfixias), bioquímica (intoxicações
alimentares e autointoxicações), biodinâmica (estados de “choque”) e mista.

B - Energia vulnerante mecânica

a) Características

A maior parte das lesões corpóreas é causada pela energia vulnerante


mecânica, a qual modifica o estado inercial (repouso ou movimento) de um
corpo, produzindo lesões em parte ou todo o corpo. Tem-se o contato direto
da energia com área de tegumento corpóreo. São agentes que atuam pela
energia mecânica e abrangem os estudos dos tipos de instrumentos e ações no
organismo, de forma simples e combinada. A energia mecânica pode
apresentar-se em 2 formas:

Instrumento: tem forma definida e pode ser manipulado pelo homem,


de forma que ele consiga gerar, por sua vontade, uma lesão (conceito
específico);
Agente: é tudo que provoca trauma ou lesão (conceito genérico).

Quanto ao modo da ação da energia vulnerante, pode se apresentar como


ativo (ação da energia sobre o corpo da vítima), passivo (ação do corpo da
vítima sobre a energia) e misto (um atua sobre o outro).
A ação da energia pode ser em um ponto, uma reta ou um plano. A partir
desses mecanismos de ação, as lesões podem ser classificadas em simples ou
mistas (combinadas). A lesão tecidual dependerá dos seguintes fatores:

Quantidade de energia transmitida;


Velocidade de transmissão de energia;
Superfície da área corpórea em que a energia é aplicada;
Propriedades elásticas dos tecidos.

O trauma pode ser contuso ou penetrante. A transferência de energia e a lesão


produzida são semelhantes em ambos os tipos de trauma. A única diferença
real é a penetração na pele. Se toda a energia de um objeto está concentrada
numa única área pequena, provavelmente a pele será lacerada e o objeto
entrará no corpo, criando transferência de energia mais concentrada. Isso
poderá resultar em uma força destruidora maior em uma única área. Um
objeto maior, cuja energia é dispersa por uma área muito maior da pele, pode
não penetrar nela. O dano será distribuído por uma área maior do corpo, e o
tipo de lesão será menos localizado.
A transferência de energia está diretamente relacionada com a densidade e o
tamanho da área frontal no ponto de contato entre o objeto e o corpo da
vítima. No trauma contuso (ou fechado), as lesões são produzidas à medida
que os tecidos são comprimidos, desacelerados ou acelerados. No trauma
penetrante, as lesões acontecem conforme os tecidos são esmagados e
separados ao longo do caminho do objeto penetrante. Ambos os tipos criam
cavidade, forçando os tecidos para fora de sua posição normal.
O trauma contuso cria tanto lacerações por cisalhamento quanto por
cavitação. Cavitação é, frequentemente, apenas uma cavidade temporária,
afastada do ponto de impacto. O trauma penetrante cria tanto uma cavidade
permanente (cujo diâmetro é menor do que o do instrumento devido à
elasticidade dos tecidos) quanto uma temporária. A energia de um objeto em
movimento rápido com área de superfície frontal pequena será concentrada
em uma única área e poderá exceder a força extensível do tecido e penetrar
nele. A cavidade temporária criada se dispersará afastando-se do caminho
desse míssil nas direções frontal e lateral.
No trauma contuso, 2 forças estão envolvidas no impacto: cisalhamento e
compressão. Cisalhamento é o resultado da mudança de velocidade mais
rápida de um órgão ou estrutura (ou parte dele) do que de outro órgão ou
estrutura (ou parte dele). Compressão é o resultado de um órgão ou de uma
estrutura (ou parte dele) serem comprimidos diretamente entre outros órgãos
ou outras estruturas.
Importante
As lesões podem ser simples, por instrumentos perfurantes, cortantes e
contundentes, causando feridas punctórias ou puntiformes, incisas e
contusas, respectivamente, ou podem ser lesões mistas causadas por
instrumentos perfurocortantes, perfurocontundentes e cortocontundentes,
que causam lesões perfuroincisas, perfurocontusas e cortocontusas,
respectivamente.

b) Estudo das lesões

- Ferida punctória (puntiforme)

Geralmente é causada pela ação de instrumentos perfurantes, os quais têm as


seguintes características:

Os instrumentos são finos, alongados, pontiagudos, de diâmetro


transversal extremamente reduzido em relação ao seu comprimento;
Podem ser de pequeno ou médio calibre;
Produzem as lesões punctórias ou puntiformes;
Atuam por pressão sobre determinado ponto, em geral afastando as
fibras dos tecidos atingidos, como espinho, agulha, estilete, garfo, espeto
(de churrasco), seta, florete e furador de gelo;
Comumente, causam acidentes e, eventualmente, são usados em
homicídio.

Dica
As feridas punctórias são causadas por agulha, estilete, espinho, espeto etc.
Figura 1 - Feridas punctórias (puntiformes)

- Ferida incisa

A ferida incisa é causada pela ação de instrumento cortante que age por
pressão e deslizamento com “gume afiado” ou fio (bordo de ataque) e atinge a
superfície, em ângulos variáveis. Fibras dos tecidos são seccionadas
(exemplos: navalha, gilete, bisturi, lâminas metálicas afiladas, “papel”,
estilhaços de vidros, capim-navalha). É geralmente de origem homicida, mas
pode ser de origem suicida ou acidental, apresentando as características
relatadas na Tabela 4.
Figura 2 - Características da fenda incisa, como profundidade e comprimento: (A) bordas regulares;
(B) afastamento das bordas da ferida e ausência de trabéculas; (C) extensão maior do que
profundidade

Dica
As feridas incisas são causadas por instrumentos como navalha, gilete,
bisturi, estilhaços de vidro etc.
Figura 3 - Diferentes feridas incisas: (A) agressão; (B) esgorjamento; (C) autoprovocadas no punho
esquerdo (hesitação)

- Lesão contusa

A lesão contusa é causada pela ação de instrumento ou agente contundente


sólido, líquido ou gasoso, sem borda (rombo). Age por pressão (impacto),
torção, percussão, distensão, sucção, deslizamento (arrasto) ou misto. A
grande maioria dos agentes lesivos mecânicos está nesse grupo, como cabeça
e extremidades do homem e dos animais; instrumentos próprios para ataque e
defesa (soco-inglês, borduna, cassetete etc.); ferramentas de trabalho
(martelo, marreta e outros utensílios, desde que utilizados por impacto);
objetos no seu estado natural (pedras, paus etc.); objetos dos mais variados
(qualquer estrutura, pouco importando se é ela que vem de encontro ao corpo
da vítima ou se é este que se choca contra ela, como paredes, solo etc.).

Dica
As lesões contusas são causadas por instrumentos como martelo, pau,
pedra, cassetete, soco-inglês etc.

A lesão contusa produz alteração de cor, volume ou continuidade na


superfície (nesse caso, serão chamadas feridas contusas). As espécies de
lesões contusas são:
Eritema ou hiperemia ou rubefação

Vasodilatação de capilares e vênulas da pele causada pela liberação de


mediadores químicos (histamina);
Ausência de saída de sangue dos vasos;
Desaparecimento à pressão da lesão;
Curta duração (de 10 minutos a 2 horas);
Ausência de marcas.
Figura 4 - Eritema na face lateral da coxa direita: observar a forma do instrumento – chinelo

Edema ou tumefação

Inchaço e elevação;
Palidez da pele na área do impacto;
Surgimento depois de 1 a 3 minutos;
Tríplice reação de Lewis (rubor, tumor e calor);
Coleção de líquido transudato;
Ausência de extravasamento de sangue e de lesão de vasos sanguíneos.
Figura 5 - Edema na face dorsal de pés (A) esquerdo e (B) direito, no qual se pode ver o sinal de
Godet positivo

Escoriação

Arrancamento da camada superior da pele (epiderme) por ação


tangencial da força (atrito) com exposição da derme;
No processo de cicatrização, há a formação de crosta.
Figura 6 - Diferentes níveis de escoriações com formação de crostas: (A) retalho arrancado da
epiderme; (B) direção da força escoriativa; (C) epiderme; (D) derme

Equimose

Ruptura de vasos sanguíneos (capilares, vênulas e arteríolas), com


extravasamento de sangue e infiltração nos tecidos;
Coloração avermelhada no início;
Pele íntegra (sem solução de continuidade);
Forma e tamanho:
Petéquia (forma de ponto ou “cabeça de alfinete”);
Sugilação (pequenos grãos formados pela confluência de numerosas
lesões puntiformes). Exemplo: “chupão”;
Víbices (forma de estrias). Exemplo: cassetete;
Sufusão (hemorragia mais extensa).
Mecanismo de lesão: compressão, tração ou sucção;
Podem surgir de imediato ou mais tardiamente.
Espectro equimótico de Legrand Du Saulle:
Depende das dimensões e da localização das equimoses e de fatores
intrínsecos da vítima;
Em média, as equimoses desaparecem em 15 a 20 dias.

Importante
Esta é a sequência cronológica da equimose: 1º dia, vermelha; 2º e 3º dias,
violácea; do 4º ao 6º dia, azul; do 7º ao 10º dia, esverdeada; e do 11º ao 15º
dia, amarelada.
Figura 7 - (A) Formação de víbices violáceos no dorso e (B) múltiplas fases de equimose no globo e
periocular
Hematoma

“Tumor de sangue”;
Ruptura de um número maior de vasos (mais calibrosos) que forma uma
coleção de sangue afastando os tecidos vizinhos e ocupa espaço próprio
(neocavidade);
Ausência de infiltração do sangue nas malhas do tecido.
Localização:
Superficial (subungueal, subperiostal);
Órgãos e tecidos (fígado, baço, músculo e encéfalo);
Regiões anatômicas (mediastino, retroperitônio, espaços
extradural e subdural do crânio, cervical).
Figura 8 - Formação de hematomas: (A) subgaleal e (B) extradural
Ferida contusa

Compressão da pele entre 2 superfícies rígidas;


Lesão da pele com bordas irregulares (solução de continuidade),
escoriadas e equimosadas;
Fundo e vertente irregulares;
Presença de pontes de tecido íntegro ligando as vertentes;
Pouco sangrante;
Integridade de vasos, nervos e tendões no fundo da lesão;
Ângulos obtusos e irregulares.
Figura 9 - Ferimento contuso com bordas irregulares e equimosadas: (A) bordas irregulares; (B)
margens contundidas; (C) pontes de tecidos; (D) fundo irregular, contuso e hemorrágico
Dica
As feridas contusas envolvem a compressão da pele entre 2 superfícies
rígidas, causando lesões com bordas irregulares, escoriadas e equimosadas.

Fraturas

Solução de continuidade óssea;


Classificação: fechada ou aberta (exposta); completa ou incompleta;
cominutiva ou simples; diafisária ou epifisária;
Cicatrização que produz “calo ósseo”.

Figura 10 - Diferentes níveis de fraturas em ossos longos

Luxações

Deslocamento permanente das superfícies articulares de 2 ossos com


ruptura da cápsula articular e de ligamentos;
Pode ser completa ou incompleta (subluxação);
Comum em homens e nos membros superiores (articulação
escapuloumeral).
Figura 11 - Luxação de articulação umeroulnar

Entorses

Estiramento da cápsula de uma articulação, com ou sem rotura


ligamentar;
Dor intensa, impotência funcional, edema, rubor, equimose, hematomas
e derrame articular.
Figura 12 - Espectro de diferentes lesões no tornozelo

Lesões internas
São causadas por impacto direto, aumento súbito da pressão no interior das
vísceras e cavidades, compressão lenta ou aceleração/desaceleração
(traumatismo cranioencefálico, trauma abdominal, trauma torácico).

Figura 13 - Tomografia que demonstra lesão esplênica após trauma abdominal contuso

- Ferida cortocontusa

A ferida cortocontusa é resultado da ação mista. Os instrumentos


cortocontundentes apresentam um gume que age no 1º momento e um peso
que exerce a ação contundente pelo esmagamento e pela destruição dos
tecidos, podendo causar fraturas e até amputações. A lesão resulta do próprio
peso do agente, intensificada pela força (ativa) de quem o maneja. Exemplos:
foice, facão, machado, enxada, serra elétrica, motosserra, rodas de trem,
dentes.
A ferida cortocontusa tem característica mista, com predomínio muitas vezes
da ação contundente, de bordas irregulares e fundo trabeculado, com
frequência acompanhada de escoriações, equimoses e fraturas. As lesões são
graves, por atingirem planos profundos.
Dica
As feridas cortocontusas são causadas por instrumentos cortocontundentes
como foice, facão, machado, enxada, serra elétrica, dentes etc.
Figura 14 - Ferimento cortocontuso: (A) equimoses em torno da lesão; (B) trabéculas; (C) borda
irregular; (D) fundo anfractuoso

- Ferida perfurocontusa

As feridas perfurocontusas são resultantes da ação de instrumentos


perfurocontundentes que atuam por meio de uma ponta romba e produzem
lesão em forma de túnel. Exemplo: Projétil de Arma de Fogo (PAF), flecha,
lança, tesoura fechada, vergalhas etc. O mecanismo de ação é misto: pressão
contínua e contundente. As feridas perfurocontusas, na maior parte dos casos,
são decorrentes da ação de PAFs. Ao redor do ferimento de entrada por PAF,
teremos as orlas e as zonas, de acordo com a distância do disparo.

Dica
As feridas perfurocontusas são causadas por instrumentos como projétil de
arma de fogo, flecha, lança, tesoura fechada etc.

As orlas, pela ação do PAF perfurando e contundindo os tecidos, dividem-se


em:

Orla de escoriação (contusão): arrancamento da epiderme;


Orla de enxugo: impurezas (sujidades) do PAF que ficam aderidas à
derme;
Orla (auréola) equimótica: na vizinhança da ferida, pela ruptura de
vasos sanguíneos, causada pela onda de choque.

As zonas são formadas pelos resíduos que saem pela boca do cano da arma e
atingem o alvo, dividindo-se em:

Zona de queimadura ou chamuscamento: queimadura causada pelos


gases em combustão. Atinge pele, pelos e roupas;
Zona de esfumaçamento: resíduos da combustão (fuligem) depositados
na pele ou na roupa, de cor acinzentada ou escura;
Zona de tatuagem: grãos de pólvora incombusta que atingem o alvo; na
pele, penetram na derme. Podem ficar na roupa.
Figura 15 - Formação de zonas e orla: (A) orla de contusão; (B) orla de enxugo; (C) zona de
tatuagem verdadeira; (D) zona de esfumaçamento ou zona de tatuagem falsa

Importante
Lesões causadas por projéteis de arma de fogo causam zonas e orlas no
local onde atingem. As orlas dividem-se em orla de escoriação (contusão),
de enxugo (“sujeiras” que ficam aderidas à derme) e equimótica, enquanto
as zonas são divididas em zonas de queimadura ou chamuscamento, de
esfumaçamento (fuligem depositada na pele ou na roupa) e zona de
tatuagem (grãos de pólvora incombusta que penetram a derme, por
exemplo).

De acordo com a distância entre a boca do cano da arma e os vestígios


encontrados no alvo, os disparos de arma de fogo podem ser classificados em:

- Disparo (tiro) encostado (ou de contato)


Figura 16 - Feridas perfurocontusas por disparo encostado no corpo (câmara de mina de Hoffmann)

- Disparo (tiro) a curta distância


Figura 17 - Feridas perfurocontusas por disparo a curta distância

- Disparo (tiro) a longa distância

Figura 18 - Feridas perfurocontusas por disparo a longa distância

O trajeto é o caminho percorrido pelo PAF dentro do corpo da vítima, desde a


entrada até a saída ou até o local de retenção. A trajetória é o caminho
percorrido pelo PAF da boca do cano da arma até atingir o alvo (fora do corpo
da vítima). O estudo é feito pela balística externa. O orifício de saída do PAF
tem as seguintes características: forma irregular e variada (estrelada, “em
fenda” etc.), bordas evertidas, maior sangramento e ausência de orlas e zonas.
Figura 19 - Lesão irregular, sangrante e com bordas evertidas, gerada por projétil de arma de fogo

Os objetivos da perícia médico-legal nos casos de PAF são determinar:

Características, número e localização dos ferimentos;


Individualização dos trajetos;
Análise da letalidade individual de cada PAF no seu trajeto;
Resgate individual dos PAFs;
Radiografias;
Fotografias;
Gráficos;
Outros exames.

- Ferida perfuroincisa

A ferida perfuroincisa decorre da ação mista de instrumento perfurocortante


com “ponta e gume” que age por pressão (perfuração) e corte (bordas afiadas
– deslizamento), atingindo profundidade variável, de acordo com a forma do
agente. Produz feridas perfuroincisas também chamadas “em botoeira” ou
biconvexas, com um ângulo agudo com cauda exígua de escoriação (gume) e
o outro arredondado, nos instrumentos com 1 gume. A profundidade é maior
do que a largura (e pode ser maior do que o comprimento do instrumento),
com bordas regulares e sem trabéculas no fundo da lesão.

Tema frequente de prova


Nas provas, as questões sempre descrevem o tipo de lesão e o material
utilizado; por isso, convém ficar atento ao tipo de material e ao tipo de
lesão que ele mais provoca. Exemplo: a ferida perfuroincisa é mais
provocada por facas e baionetas.

C - Outras energias de ordem física

Dentre as energias físicas mais encontradas na prática da Medicina Legal,


estão a energia térmica e a energia elétrica.

a) Térmica
Tanto o calor como o frio são capazes de lesar o corpo humano. O calor pode
lesar pelo contato direto (ação local): chama ou corpos aquecidos (sólidos,
líquidos e gases); ou pelo calor irradiado (ação difusa): solar (insolação) ou
industrial (intermação). Do ponto de vista médico-legal, as queimaduras
podem ser classificadas em 4 graus, segundo Hoffmann e Lussena:

1º grau: eritema
Vasodilatação com pele vermelha, edemaciada e dolorosa;
Não deixa cicatriz.
2º grau: bolhas (flictena)
Formação de bolhas com conteúdo rico em proteínas;
Eritema, edema e dor;
Não lesa a camada basal;
Não deixa cicatriz.
3º grau: escara
Destruição da epiderme e da derme;
Aspecto endurecido e indolor;
Deixa cicatriz.
4º grau: carbonização
Destruição da pele e de tecidos moles por ação direta do fogo;
Posição “do boxeador” (braços repuxados).

O frio também age de forma local e difusa. Sua ação local se chama geladura
e classifica-se em 4 graus:

1º grau: palidez ou eritema e aspecto anserino da pele;


2º grau: bolhas dolorosas com conteúdo hemorrágico;
3º grau: necrose de tecidos moles;
4º grau: gangrena ou desarticulação.

b) Elétrica

A energia elétrica pode ser dividida em 2 tipos: natural (raios) e artificial


(industrial).
A eletricidade natural pode causar lesões corpóreas (fulguração) ou morte
(fulminação). A ação lesiva da eletricidade natural ocorre pelas ondas de
choque (efeito blast) e pela corrente elétrica, e podem-se encontrar roupas
rasgadas e objetos metálicos derretidos, queimaduras na pele e pelos
enovelados, figuras arborescentes de Lichtenberg e, nos sobreviventes, surdez
e cegueira.
As lesões produzidas pela eletricidade industrial são chamadas eletroplessão.
A corrente flui pelo caminho mais curto entre os 2 polos do circuito, e o efeito
Joule é a transformação da corrente elétrica em calor ao atravessar uma
resistência. A eletricidade artificial produz, no local de contato com o corpo
humano, uma lesão indolor de bordas elevadas e coloração amarelo-
esbranquiçada, denominada marca elétrica de Jellinek.
A energia elétrica artificial pode ser classificada em: baixa voltagem (até
400V); média voltagem (400 a 4.000V); alta voltagem (>4.000V).

Importante
A eletricidade artificial produz, no local de contato com o corpo humano,
uma lesão indolor de bordas elevadas e coloração amarelo-esbranquiçada,
denominada marca elétrica de Jellinek.

O mecanismo de morte nos casos de eletroplessão depende da voltagem a que


o indivíduo foi exposto:

Baixa voltagem: altera o batimento cardíaco, levando a fibrilação


ventricular;
Média voltagem: leva a tetania e parada respiratória periférica;
Alta voltagem: semelhante ao calor, provoca queimaduras
(carbonização) e parada respiratória central.
Figura 20 - Lesão elétrica (marca elétrica de Jellinek) na face plantar do hálux direito

D - Energia vulnerante físico-química (asfixias)

A palavra “asfixia” vem do grego a (falta) + sphyzo (palpitar) e significa


“falta de pulso”. É a síndrome caracterizada pela supressão da respiração e
pela cessação das trocas gasosas por causa patológica (natural ou interna) ou
violenta (externa). A fisiopatologia decorre de ↓O2 e ↑CO2. Os sinais gerais
de asfixias são:

Externos: manchas de hipóstase mais escuras e precoces, cianose e


petéquias na pele e nas mucosas;
Internos: petéquias viscerais (manchas de Tardieu), aspecto do sangue
escuro e fluido, congestão polivisceral e distensão e edema dos pulmões.

As modalidades (espécies) de asfixias são afogamento, soterramento,


confinamento, sufocação direta, sufocação indireta, enforcamento,
estrangulamento e esganadura.

a) Afogamento
Definição: asfixia mecânica, produzida pela penetração de um meio líquido
nas vias respiratórias, impedindo a passagem de ar até os pulmões;
Mecanismo de ação: havendo a submersão, ocorre a morte na sequência das
seguintes fases:
Fase de defesa:

Surpresa ou inspiração inicial;


Dispneia de submersão;
Fase de resistência;
Apneia;
Inspiração profunda;
Fase de exaustão;
Perda da consciência;
Insensibilidade;
Convulsão;
Morte.

Lesões externas:

Hipotermia;
Pele anserina;
Retração do mamilo, do escroto e do pênis;
Maceração da epiderme;
Tonalidade vermelha dos livores cadavéricos;
Cogumelo de espuma;
Erosão dos dedos;
Presença de corpos estranhos sob as unhas;
Equimoses da face e das conjuntivas;
Mancha verde de putrefação (tórax);
Lesões post mortem produzidas por animais aquáticos.

Lesões internas:
Líquidos nas vias respiratórias;
Corpos estranhos no líquido das vias respiratórias;
Lesões dos pulmões: aumentados, distendidos, enfisema aquoso e
equimoses;
Sinal de Brouardel: enfisema aquoso subpleural (“esponja molhada”);
Manchas de Tardieu: equimose subpleural (raras);
Manchas de Paltauf: hemorragias subpleurais (equimoses vermelho-
claras com ≥2cm de diâmetro, devido à ruptura das paredes alveolares);
Diluição do sangue (hidremia);
Crioscopia (temperatura de congelamento): aumentada (água doce) e
diminuída (água salgada);
Sinal de Wydler: presença de espuma, líquido e sólido no estômago;
Sinal de Niles: hemorragia temporal;
Sinal de Vargas Alvarado: hemorragia etmoidal;
Sinal de Étienne Martin: congestão hepática;
Equimoses nos músculos e no pescoço.

- Diagnóstico

O diagnóstico do afogamento torna-se possível pelos exames externo e


interno do cadáver e por exames complementares. A presença de lesões intra
vitam e post mortem concorre para o diagnóstico diferencial entre o afogado
verdadeiro e a simulação de afogamento, assim como a causa jurídica da
morte.

b) Soterramento

Definição: asfixia pela permanência do indivíduo em um meio sólido ou


semissólido, de modo que as substâncias ali contidas penetram na árvore
respiratória, impedindo a entrada de ar e levando à morte;
Mecanismo de ação: a causa da morte varia, portanto é necessário muito
cuidado no exame da vítima para explicar o mecanismo da morte. Pode
ocorrer pela penetração de corpos estranhos do local em que a vítima ficou
soterrada na árvore respiratória, produzindo, então, asfixia mecânica por
mudança do meio gasoso para sólido;
Diagnóstico: obtido pela existência da substância pulverulenta nas vias
respiratórias, sendo indispensável excluir a possibilidade de sua penetração
post mortem, em outras causas de morte. Para isso, têm importância a
penetração profunda dessa substância nas vias respiratórias com indícios de
reação vital e a sua penetração nas vias digestivas, nos movimentos de
deglutição;
Natureza jurídica: pode ser acidente e, com relativa frequência, acidente de
trabalho; pode ser, também, homicídio (praticado, em geral, em casos em que
a vítima não pode se defender ou em casos de infanticídio). O estudo de
reações vitais e o grau de penetração profunda da substância nas vias
respiratórias contribuem para o diagnóstico de soterramento em vida.

c) Confinamento

Definição: asfixia causada pela permanência do indivíduo num ambiente


restrito e/ou fechado, sem condições de renovação do ar respirável, sendo
consumido o oxigênio pouco a pouco, e o gás carbônico, acumulado
gradativamente;
Mecanismo de ação: na respiração normal, exige-se um ambiente externo
contendo ar respirável, com oxigênio em quantidade próxima de 21%.
Quando, no ar atmosférico, o oxigênio atinge 7%, surgem distúrbios
relativamente graves, sobrevindo a morte se essa taxa está em torno de 3%.
No confinamento, há diminuição progressiva do suprimento de oxigênio do
organismo, concomitante ao aumento do teor de anidro carbônico no sangue
(hipercapnia). Simultaneamente, o ar satura-se de vapor de água, dificultando
sua eliminação pelos pulmões e pela transpiração, o que contribui
consideravelmente para que se instale a asfixia;
Lesões externas:

Manchas de hipóstases: precoces, abundantes e de tonalidade escura;


Cianose de face: sinal mais frequente;
Equimoses de pele: arredondadas e de pequenas dimensões, não
maiores do que uma lentilha, formando agrupamento em determinadas
regiões, principalmente na face, no tórax e no pescoço, tomando
tonalidade mais escura nas partes de declive;
Equimoses de mucosas: encontradas, mais frequentemente, nas
conjuntivas palpebral e ocular, nos lábios e, mais raramente, na mucosa
nasal.

Lesões internas:
Equimoses viscerais (manchas de Tardieu);
Congestão polivisceral;
Distensão e edemas dos pulmões;
Sangue: escuro e líquido (fluidez).

Dica
É necessário entender que não existe nenhum sinal que, isoladamente, faça
o diagnóstico das asfixias mecânicas. Portanto, deve-se ter um critério com
base no somatório das lesões estudadas, associando-se sinais e o estudo das
circunstâncias do acontecimento.

d) Sufocação direta

Oclusão direta das narinas e da boca:

Acidental: ocorre em recém-nascidos que, dormindo com as mães, são


sufocados por elas ou por panos que estão sobre o leito. Nos adultos, o
acidente pode resultar de ataques epilépticos, síncopes, embriaguez etc.,
caindo a vítima sobre o leito, com o rosto fortemente apoiado contra o
travesseiro ou contra panos que impeçam a respiração;
Criminosa: mais comum em recém-nascidos, mas pode ser encontrada
também em adultos;
Suicida: o paciente coloca, sobre o corpo e a cabeça, cobertores, panos
etc., até asfixiar-se.

Oclusão direta dos orifícios da faringe e da laringe:

Acidental: modalidade mais frequente, surge especialmente entre


crianças, que levam à boca botões, bolinhas de gude, pedaços de carne e
outros corpos estranhos. Os recém-nascidos podem sufocar-se com
líquido amniótico e restos de membranas. Entre adultos, esse tipo de
morte é encontrado nos que ingerem grandes fragmentos de alimento
sem a devida cautela;
Criminosa: pode ser produzida pela introdução na boca de tampões de
panos, dedos, papel ou qualquer outro objeto. É comum no infanticídio,
mas também pode ser encontrada nos adultos;
Suicida: é um tipo raro, embora a literatura relate casos de indivíduos
que se mataram introduzindo na garganta panos ou objetos.
e) Sufocação indireta

Definição: asfixia mecânica por impedimento dos movimentos respiratórios


devido à compressão do tórax ou do abdome;
Lesões externas: as manifestações de sufocação indireta nem sempre se
apresentam com sinais evidentes de asfixia. Um dos sinais mais importantes é
a máscara equimótica de Morestin, ou cianose cervicofacial, produzida pelo
refluxo sanguíneo da veia cava superior em face da compressão torácica.
Caracteriza-se por cor violácea intensa da face, do pescoço e da parte superior
do tórax;
Lesões internas: os pulmões mostram-se distendidos (sinal de Valentin),
congestos, com sufusões hemorrágicas subpleurais. Podem ocorrer, também,
rupturas. O fígado é congesto; o sangue do coração, escuro e fluido. Pode
ocorrer fratura dos arcos costais;
Diagnóstico: é fornecido pelas lesões externas e internas observadas durante
o exame clínico ou a necrópsia.

f) Enforcamento

Definição: constrição do pescoço causada por um laço acionado pelo peso da


própria vítima;
Sinais externos:

Sulco cervical oblíquo ascendente e interrompido;


Cianose e congestão facial;
Protrusão da língua e dos olhos;
Petéquias conjuntivais;
Hipóstases nas extremidades dos membros.

Sinais internos:

Lesão da parte profunda da pele, do subcutâneo e da musculatura do


pescoço;
Lesão do feixe vasculonervoso do pescoço:
Sinal de Amussat: secção transversal da túnica íntima da artéria
carótida comum;
Sinal de Friedberg: hemorragia na túnica externa da artéria carótida
comum;
Sinal de Ziemke: rotura da túnica interna da veia jugular;
Sinal de Dotto: rotura da bainha de mielina do nervo vago;
Lesão do aparelho laríngeo;
Fratura do enforcado: espondilolistese traumática do áxis,
considerada uma das formas mais frequentes de lesão da coluna
cervical alta. Embora seja popularmente descrita como fratura “do
enforcado”, em alusão ao dano cervical causado pelos
enforcamentos, esse tipo de lesão pode decorrer, também, de
acidentes automobilísticos;
Lesão da coluna vertebral.

g) Estrangulamento

Definição: constrição do pescoço causada por um laço acionado por força


muscular externa;
Sinais externos:

Sulco cervical horizontal e contínuo;


Petéquias conjuntivais;
Cianose e congestão facial.

Sinais internos:

Lesão da parte profunda da pele, do subcutâneo e da musculatura do


pescoço;
Lesão do feixe vasculonervoso do pescoço;
Lesão do aparelho laríngeo.

h) Esganadura

Definição: constrição do pescoço com as mãos (típica) ou outras partes do


corpo, como pés, joelhos e golpes –“gravata”, “mata-leão” (atípica);
Sinais externos:

Marcas ungueais no pescoço;


Equimose no pescoço;
Cianose e congestão facial;
Petéquias conjuntivais.

Sinais internos:

Infiltração hemorrágica das estruturas profundas do pescoço;


Lesão do aparelho laríngeo e fratura do osso hioide;
Lesão do feixe vasculonervoso;
Fratura de processo estiloide do crânio.

4. Aborto
A Organização Mundial da Saúde define abortamento como a interrupção da
gestação antes de 20 a 22 semanas ou feto com peso inferior a 500g. Para o
Direito, aborto é a interrupção da gestação, com a morte do produto
conceptual, haja ou não expulsão, qualquer que seja o seu estado evolutivo,
desde a concepção até o parto; assim, a legislação, ao contrário da Medicina,
não define tempo limite para a ocorrência de aborto, aceitando a denominação
desde a concepção até o termo. No Código Penal Brasileiro, o aborto
provocado é considerado crime, exceto nas situações abordadas a seguir.

A - Aborto praticado por médico (Art. nº 128)

1 - Se não há outro meio de salvar a vida da gestante (aborto terapêutico


– necessário).
2 - Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de
consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante
(aborto sentimental – piedoso ou moral).

B - Resolução nº 1.989/12

Autoriza a interrupção da gestação nos casos de feto anencéfalo.


Para tanto, o diagnóstico de anencefalia deve conter: exame ultrassonográfico
realizado a partir da 12ª semana com 2 fotografias identificadas e datadas,
uma com a face do feto em posição sagital e outra com a visualização do polo
cefálico no corte transversal, demonstrando a ausência da calota craniana e de
parênquima cerebral identificável, e laudo assinado por 2 médicos
capacitados para tal diagnóstico.
Após o diagnóstico e esclarecimentos, a gestante pode optar por manter ou
interromper a gravidez. Em ambos os casos, é assegurada assistência médica e
multiprofissional, se houver disponibilidade local. No caso de antecipação
terapêutica do parto, há que se lavrar ata do procedimento, onde conste
consentimento da gestante e/ou representante legal, se for o caso. É dever
informar a paciente sobre os riscos de recorrência da anencefalia e referenciá-
la para programas de planejamento familiar.
A ata, as fotografias e o laudo integrarão o prontuário da paciente.
A Resolução nº 1.989 foi publicada em maio de 2012, ou seja, no mês
seguinte ao STF ter julgado a ADPF (Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental) 54, em que declara que a interrupção da gravidez de
feto anencéfalo não pode ser conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128,
incisos I e II, do Código Penal Brasileiro, ou seja, exclui a hipótese de crime
de aborto, quando se tratar de feto anencéfalo.

Importante
À luz da legislação atual, só se permite o aborto em casos de estupro ou de
comprovado risco de morte para a mãe, diretamente relacionado às
alterações fisiológicas da gravidez. Com a Resolução nº 1.989/12, o aborto
é consentido quando se tem diagnosticado, por meio de exame
ultrassonográfico, a partir da 12ª semana de gestação, a presença de feto
anencéfalo, com laudo assinado por 2 médicos.
5. Morte encefálica

A - Características clínico-jurídicas

Com o advento dos transplantes de órgãos, o conceito de morte mudou nas


últimas décadas. Antigamente, considerava-se morte como a cessação
definitiva das atividades respiratória e cardíaca; atualmente, o conceito de
morte é a encefálica. A Lei Federal nº 9.434/97, que dispõe sobre a remoção
de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para transplantes e tratamento,
determina em seu Artigo 3º que os parâmetros para determinação da morte
encefálica sejam definidos pelo Conselho Federal de Medicina, e este, por
meio da Resolução CFM nº 2.173/17, definiu tais critérios. Essa resolução foi
publicada após o Decreto nº 9.175/17, que regulamentou esta Lei.
A constatação da morte encefálica é fundamental tanto para a doação post
mortem de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, quanto para a
otimização dos recursos nas UTIs, uma vez que o indivíduo está clínica e
juridicamente morto.

Importante
Os parâmetros clínicos para a definição de morte encefálica são coma não
perceptivo, ausência de reatividade supraespinal e apneia persistente. O
paciente deve apresentar lesão encefálica de causa conhecida, irreversível e
capaz de causar a morte encefálica, ausência de fatores tratáveis que
possam confundir o diagnóstico de morte encefálica, temperatura corporal
superior a 35°, saturação arterial de oxigênio acima de 94% e pressão
arterial sistólica ≥100mmHg para adultos.

O termo de declaração deverá ser arquivado no prontuário do paciente,


juntamente com os exames complementares utilizados para o diagnóstico de
morte encefálica.
A doação dependerá da autorização da família, cônjuge ou parente, maior de
idade, obedecendo à linha sucessória, reta ou colateral, até o 2º grau,
inclusive, firmada em documento subscrito por 2 testemunhas. É proibida a
doação post mortem de pessoas não identificadas.
A doação em vida de órgãos duplos ou de partes de órgãos ou tecidos, cuja
retirada não impeça o organismo do doador de continuar a viver e não
represente comprometimento de suas funções vitais nem cause mutilação ou
deformação inaceitável, é permitida à pessoa juridicamente capaz, para o
cônjuge ou parentes consanguíneos até 4º grau. No caso de doação para
receptor não consanguíneo (sem parentesco), deverá haver autorização
judicial.
A gestante só poderá doar medula óssea (não outros órgãos e tecidos) caso
não ofereça riscos à sua saúde ou ao feto. O doador vivo deverá autorizar por
escrito preferencialmente, e diante de testemunhas, a doação. E o transplante
ou enxerto só serão feitos com o consentimento expresso do receptor ou do
responsável legal.
Todos os estabelecimentos de saúde têm a obrigação legal de notificar todos
os casos com diagnóstico de morte encefálica (notificação compulsória).

B - Resolução CFM nº 2.137/17


Define os critérios do diagnóstico de morte encefálica e, em seus anexos,
regulamenta:

Anexo I: manual de procedimentos para determinação de morte


encefálica;
Anexo II: termo de declaração de morte encefálica;
Anexo III: capacitação para determinação de morte encefálica.
Os procedimentos para determinação de morte encefálica devem ser iniciados
em todos os pacientes que apresentem coma não perceptivo, ausência de
reatividade supraespinal e apneia persistente e que atendam a todos os
seguintes pré-requisitos:

Presença de lesão encefálica de causa conhecida, irreversível e capaz de


causar morte encefálica;
Ausência de fatores tratáveis que possam confundir o diagnóstico de
morte encefálica;
Tratamento e observação em hospital pelo período mínimo de 6 horas.
Quando a causa primária do quadro for encefalopatia hipóxico-
isquêmica, esse período de tratamento e observação deverá ser de, no
mínimo, 24 horas;
Temperatura corpórea >35°C, saturação arterial de oxigênio >94% e
pressão arterial sistólica ≥100mmHg ou pressão arterial média
≥65mmHg para adultos.

É obrigatória a realização mínima dos seguintes procedimentos para


determinação da morte encefálica:

2 exames clínicos que confirmem coma não perceptivo e ausência de


função do tronco encefálico;
Teste de apneia que confirme ausência de movimentos respiratórios após
estimulação máxima dos centros respiratórios;
Exame complementar que comprove ausência de atividade encefálica.

O exame clínico deve demonstrar de forma inequívoca a existência das


seguintes condições:

Coma não perceptivo;


Ausência de reatividade supraespinal manifestada pela ausência dos
reflexos fotomotor, corneopalpebral, oculocefálico, vestibulocalórico e
de tosse.

Serão realizados 2 exames clínicos, cada um deles por um médico diferente,


especificamente capacitado (especialista em uma das seguintes
especialidades: Medicina Intensiva, Medicina Intensiva Pediátrica,
Neurologia, Neurologia Pediátrica, Neurocirurgia ou Medicina de Emergência
ou conforme descrito no Anexo III) a realizar esses procedimentos para a
determinação de morte encefálica. As conclusões do exame clínico e o
resultado do exame complementar deverão ser registrados pelos médicos
examinadores no termo de declaração de morte encefálica (Anexo II) e no
prontuário do paciente ao final de cada etapa. Nenhum desses médicos poderá
participar de equipe de remoção e transplante, conforme estabelecido no Art.
3º da Lei nº 9.434/1997 e no Código de Ética Médica.

a) Anexo I

Manual de procedimentos para determinação de morte encefálica.


Para o diagnóstico de morte encefálica, é essencial que todas as seguintes
condições sejam observadas:

Pré-requisitos:
Presença de lesão encefálica de causa conhecida, irreversível e
capaz de causar a morte encefálica;
Ausência de fatores tratáveis que possam confundir o diagnóstico
de morte encefálica;
Tratamento e observação em ambiente hospitalar pelo período
mínimo de 6 horas;
Quando a causa primária do quadro for encefalopatia hipóxico-
isquêmica, esse período de tratamento e observação deverá ser de,
no mínimo, 24 horas;
Temperatura corpórea (esofágica, vesical ou retal) >35°C, saturação
arterial de oxigênio >94% e pressão arterial sistólica ≥100mmHg ou
pressão arterial média ≥65mmHg para adultos, ou conforme tabela
para menores de 16 anos.

2 exames clínicos para confirmar a presença do coma e a ausência de


função do tronco encefálico em todos os seus níveis, com intervalo
mínimo de acordo com a Resolução;
Teste de apneia para confirmar a ausência de movimentos respiratórios
após estimulação máxima dos centros respiratórios em presença de
paCO2 >55mmHg;
Exames complementares para confirmar a ausência de atividade
encefálica, caracterizada pela falta de perfusão sanguínea encefálica, de
atividade metabólica, encefálica ou de atividade elétrica encefálica.

Na repetição do exame clínico (2º exame) por outro médico, será utilizada a
técnica do 1º exame. Não é necessário repetir o teste de apneia quando o
resultado do 1º teste for positivo (ausência de movimentos respiratórios na
vigência de hipercapnia documentada).
O intervalo mínimo de tempo a ser observado entre o 1º e o 2º exame clínico
é de 1 hora nos pacientes com idade ≥2 anos. Nas demais faixas etárias, esse
intervalo é variável.
Os familiares do paciente ou seu responsável legal deverão ser
adequadamente esclarecidos, de forma clara e inequívoca, sobre a situação
crítica do paciente, o significado da morte encefálica, o modo de determiná-la
e os resultados de cada etapa de sua determinação. Esse esclarecimento é de
responsabilidade da equipe médica assistente do paciente ou, na sua
impossibilidade, da equipe de determinação da morte encefálica.
A decisão quanto à doação de órgãos somente deverá ser solicitada aos
familiares ou responsáveis legais do paciente após o diagnóstico da morte
encefálica e a comunicação da situação a eles.

b) Anexo II

Termo de declaração de morte encefálica.


A equipe médica que determinou a morte encefálica deverá registrar as
conclusões dos exames clínicos e os resultados dos exames complementares
no termo de Declaração de Morte Encefálica (DME) ao término de cada etapa
e comunicá-la ao médico assistente do paciente ou a seu substituto.
Esse termo deverá ser preenchido em 2 vias. A 1ª via deverá ser arquivada no
prontuário do paciente, junto com o(s) laudo(s) de exame(s)
complementar(es) utilizados na sua determinação. A 2ª via ou cópia deverá
ser encaminhada à Central Estadual de Transplantes (CET),
complementarmente à notificação da ME, nos termos da Lei nº 9.434/97, Art.
13. Nos casos de morte por causa externa, uma cópia da declaração será
necessariamente encaminhada ao Instituto Médico-Legal (IML).
A Comissão Intra-Hospitalar de Transplantes (CIHDOTT), a Organização de
Procura de Órgãos (OPO) ou a CET deverão ser obrigatoriamente
comunicadas nas seguintes situações:

Possível morte encefálica (início do procedimento de determinação de


morte encefálica);
Após constatação da provável morte encefálica (1º exame clínico e teste
de apneia compatíveis);
Após confirmação da morte encefálica (término da determinação com o
2º exame clínico e exame complementar confirmatórios).

A Declaração de Óbito (DO) deverá ser preenchida pelo médico-legista nos


casos de morte por causas externas (acidente, suicídio ou homicídio),
confirmada ou suspeita. Nas demais situações, caberá aos médicos que
determinaram o diagnóstico de morte encefálica ou aos médicos assistentes
ou seus substitutos preenchê-la. A data e a hora da morte a serem registradas
na DO deverão ser as do último procedimento de determinação da morte
encefálica, registradas no termo de DME.
Constatada a morte encefálica, o médico tem autoridade ética e legal para
suspender procedimentos de suporte terapêutico em uso e assim deverá
proceder, exceto se doador de órgãos, tecidos ou partes do corpo humano para
transplante, quando deverá aguardar a retirada deles ou a recusa à doação
(Resolução CFM nº 1.826/2007). Essa decisão deverá ser precedida de
comunicação e esclarecimento sobre a morte encefálica aos familiares do
paciente ou seu representante legal, fundamentada e registrada no prontuário.

c) Anexo III

Capacitação para determinação de morte encefálica.


Curso teórico-prático com duração mínima de 8 horas, sendo 4 de discussão
de casos clínicos. Para cada 8 alunos, deve haver no mínimo 1 instrutor, com
capacitação comprovada em determinação de morte encefálica há pelo menos
2 anos e com Residência Médica ou título de especialista em Neurologia,
Neurologia Pediátrica, Medicina Intensiva, Medicina Intensiva Pediátrica,
Neurocirurgia ou Medicina de Emergência. O coordenador deve ter sido
capacitado há, no mínimo, 5 anos. A programação do curso contém:

Conceito de morte encefálica;


Fundamentos éticos e legais (legislação pertinente);
Metodologia da determinação (pré-requisitos, exame clínico, teste de
apneia, exame complementar e conclusão da determinação);
Conduta pós-determinação (comunicação da morte aos familiares,
retirada do suporte vital).

Para ser capacitado, é pré-requisito que o médico tenha experiência no


atendimento de pacientes em coma, de, no mínimo, 1 ano.
C - Resolução CFM nº 1.826/07

Dispõe sobre a legalidade e o caráter ético da suspensão dos procedimentos


de suportes terapêuticos quando da determinação de morte encefálica de
indivíduo não doador.
Art. 1º: é legal e ética a suspensão dos procedimentos de suportes terapêuticos
quando determinada a morte encefálica em não doador de órgãos, tecidos e
partes do corpo humano para fins de transplante, nos termos do disposto na
Resolução CFM nº 1.480, de 21 de agosto de 1997, na forma da Lei nº 9.434,
de 4 de fevereiro de 1997.
1º: o cumprimento da decisão mencionada no caput deve ser precedido de
comunicação e esclarecimento sobre a morte encefálica aos familiares do
paciente ou seu representante legal, fundamentada e registrada no prontuário.
2º: cabe ao médico assistente ou seu substituto o cumprimento do caput deste
artigo e seu parágrafo 1º.
Art. 2º: a data e a hora registradas na DO serão as mesmas da determinação de
morte encefálica.
Art. 3º: esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se
as disposições em contrário.
Ainda não houve atualização do texto desta Resolução, apesar de a Resolução
CFM nº 1.480, de 21 de agosto de 1997, ter sido substituída pela Resolução
CFM nº 2.173/17.
O objetivo é a otimização dos recursos nas UTIs, em vista do diagnóstico de
morte encefálica.

6. Declaração de óbito
A DO é o documento-base do Sistema de Informações sobre Mortalidade do
Ministério da Saúde (SIM/MS). É composta de 3 vias autocopiativas, pré-
numeradas sequencialmente, fornecidas pelo Ministério da Saúde e
distribuídas pelas Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde conforme
fluxo padronizado para todo o país. Além da sua função legal, os dados de
óbitos são utilizados para conhecer a situação de saúde da população e gerar
ações visando à sua melhoria e, para tanto, devem ser fidedignos e refletir a
realidade. As estatísticas de mortalidade são produzidas com base na DO
emitida pelo médico. A emissão da DO é um ato médico, segundo a legislação
do país. Portanto, ocorrida uma morte, o médico tem a obrigação legal de
constatar e atestar o óbito, usando o formulário oficial “Declaração de Óbito”
mencionado. O documento tem, por finalidade:

A inumação (enterramento) do cadáver, pois nenhum enterramento pode


ser feito sem certidão oficial do cartório, extraída após lavratura do
assento de óbito feito à vista do atestado médico (Lei dos Registros
Públicos);
A certidão de óbito é prova cabal e incontestável do desaparecimento do
indivíduo e extingue a personalidade civil da pessoa;
A determinação da causa jurídica da morte (natural ou violenta);
O esclarecimento de questões de ordem sanitária e elaboração de
estatísticas para serem usadas em Saúde Pública.

A - Resolução CFM nº 1.779/05

Regulamenta a responsabilidade médica no fornecimento da DO e revoga a


Resolução CFM nº 1.601/00.
Considerando:

A DO como parte integrante da assistência médica;


A DO como fonte imprescindível de dados epidemiológicos;
A morte natural tendo como causa a doença ou lesão que iniciou a
sucessão de eventos mórbidos que diretamente causaram o óbito;
A morte não natural como aquela que sobrevém de causas externas
violentas;
A necessidade de regulamentar a responsabilidade médica no
fornecimento da DO;
Finalmente, o decidido em sessão plenária realizada em 11 de novembro
de 2005.

Resolve:

Art. 1º: o preenchimento dos dados constantes da DO é de


responsabilidade do médico que atestou a morte;
Art. 2º: os médicos, quando do preenchimento da DO, obedecerão às
normas relatadas a seguir.

a) Morte natural
I - Morte sem assistência médica
a) Nas localidades com Serviço de Verificação de Óbitos (SVO):
A DO deverá ser fornecida pelos médicos do SVO.
b) Nas localidades sem SVO:
A DO deverá ser fornecida pelos médicos do serviço público de saúde mais
próximo do local onde ocorreu o evento e, na sua ausência, por qualquer
médico da localidade.
II - Morte com assistência médica
a) A DO deverá ser fornecida, sempre que possível, pelo médico que vinha
prestando assistência ao paciente.
b) A DO do paciente internado sob regime hospitalar deverá ser fornecida
pelo médico assistente e, na sua falta, por médico substituto pertencente à
instituição.
c) A DO do paciente em tratamento sob regime ambulatorial deverá ser
fornecida por médico designado pela instituição que prestava assistência, ou
pelo SVO.
d) A DO do paciente em tratamento sob regime domiciliar (Programa Saúde
da Família, internação domiciliar e outros) deverá ser fornecida pelo médico
pertencente ao programa ao qual o paciente estava cadastrado, ou pelo SVO,
caso o médico não consiga correlacionar o óbito com o quadro clínico
concernente ao acompanhamento do paciente.

b) Morte fetal

Em caso de morte fetal, os médicos que prestaram assistência à mãe ficam


obrigados a fornecer a DO quando a gestação tem duração ≥20 semanas ou o
feto tem peso corpóreo ≥500g e/ou estatura ≥25cm.

c) Mortes violentas ou não naturais

A DO deverá ser fornecida pelos serviços médico-legais. Parágrafo único: nas


localidades onde existir apenas 1 médico, este será o responsável pelo
fornecimento da DO. Art. 3º: esta resolução entra em vigor na data de sua
publicação e revoga a Resolução CFM nº 1.601/00.
Figura 21 - Fornecimento da declaração de óbito

d) Resolução CFM nº 2.139/16

Altera as normas para a emissão de atestados de óbito fornecidos pelos


médicos intervencionistas do Serviço Pré-Hospitalar Móvel de Urgência e
Emergência (SAMU), pois a Resolução CFM nº 2.110/2014, normatizadora
do funcionamento do SAMU, apresentava inconsistência com normativos do
CFM acerca da emissão do atestado de óbito.
O artigo 23 da Resolução CFM nº 2.110/14 passa a vigorar com a seguinte
redação:
Art. 23. O médico intervencionista, quando envolvido em atendimento que
resulte em óbito de suposta causa violenta ou não natural (homicídio,
acidente, suicídio, morte suspeita), deverá obrigatoriamente constatá-lo, mas
não atestá-lo. Neste caso, deverá comunicar o fato ao médico regulador, que
adotará as medidas necessárias para o encaminhamento do corpo para o IML.
Parágrafo único. Em caso de atendimento a paciente que resulte em morte
natural (com ou sem assistência médica) ou óbito fetal em que estiver
envolvido, o médico intervencionista deverá observar o disposto na
Resolução CFM nº 1.779/05 em relação ao fornecimento da DO.

B - Aspectos éticos

a) O que o médico deve fazer

1 - Preencher os dados de identificação com base em um documento da


pessoa falecida. Na ausência de documento, caberá à autoridade policial
proceder ao reconhecimento do cadáver.
2 - Sempre registrar os dados na DO, com letra legível e sem abreviações
ou rasuras.
3 - Registrar as causas da morte, obedecendo ao disposto nas regras
internacionais, anotando um diagnóstico por linha e o tempo aproximado
entre o início da doença e a morte.
4 - Revisar se todos os campos estão preenchidos corretamente antes de
assinar.

b) O que o médico não deve fazer

1 - Assinar DO em branco.
2 - Preencher a DO sem, pessoalmente, examinar o corpo e constatar a
morte.
3 - Utilizar termos vagos para o registro das causas de morte, como
parada cardíaca, parada cardiorrespiratória ou falência de múltiplos
órgãos.
4 - Cobrar pela emissão da DO.

Dica
O ato médico de examinar e constatar o óbito pode ser cobrado desde que
se trate de paciente particular a quem não vinha prestando assistência.

c) Em que situação emitir

1 - Em todos os óbitos (natural ou violento).


2 - Quando a criança nascer viva e morrer logo após o nascimento,
independentemente da duração da gestação, do peso e do tempo que
tenha permanecido viva.
3 - No óbito fetal, se a gestação teve duração ≥20 semanas, ou feto com
≥500g, ou estatura ≥25cm.

d) Em que situações não emitir

1 - No óbito fetal, com gestação <20 semanas, ou peso <500g, ou


estatura <25cm.
2 - Peças anatômicas amputadas.
Dica
No caso de peças anatômicas retiradas por ato cirúrgico ou de membros
amputados, o médico elaborará um relatório em papel timbrado do hospital
descrevendo o procedimento. Esse documento será levado ao cemitério,
caso o destino da peça venha a ser o sepultamento.

C - Definições
Estas definições foram adotadas pela Assembleia Mundial da Saúde
(resoluções WHA 20.19 e WHA 43.24), de acordo com o Art. nº 23 da
Constituição da Organização Mundial da Saúde, e constam da CID-10.

a) Causas de morte

As causas de morte a serem registradas na DO são todas as doenças, estados


mórbidos ou lesões que produziram a morte, ou que contribuíram para ela, e
as circunstâncias do acidente ou da violência que provocou essas lesões.

b) Causa-base de morte

É a doença ou lesão que iniciou a cadeia de acontecimentos patológicos que


conduziram diretamente à morte; São as circunstâncias do acidente ou a
violência que causou a lesão fatal.

Importante
Segundo a Organização Mundial da Saúde, causa-base da morte é “a
doença ou lesão que iniciou a sucessão de eventos mórbidos, os quais
levaram diretamente à morte, ou as circunstâncias do acidente ou violência
que produziu a lesão fatal”.

c) Definições com relação às mortalidades fetal e neonatal

Nascimento vivo: é a expulsão ou extração completa do corpo da mãe,


independentemente da duração da gravidez, de um produto de concepção
que, depois da separação, respire ou apresente qualquer outro sinal de
vida, como batimentos do coração, pulsações do cordão umbilical ou
movimentos efetivos dos músculos de contração voluntária, estando ou
não cortado o cordão umbilical e desprendida a placenta. Considera-se
cada produto de um nascimento que reúna essas condições uma criança
viva;
Óbito fetal: é a morte de um produto de concepção antes da expulsão ou
da extração completa do corpo da mãe, independentemente da duração
da gravidez; indica o óbito quando o feto, depois da separação, não
respira nem apresenta outro sinal de vida, como batimentos do coração,
pulsações do cordão umbilical ou movimentos efetivos dos músculos de
contração voluntária;
Óbito neonatal: começa no nascimento e termina após 28 dias
completos depois do nascimento. As mortes neonatais, entre nascidos
vivos durante os primeiros 28 dias, podem ser subdivididas em neonatais
precoces, que ocorrem durante os primeiros 7 dias de vida, e neonatais
tardias, que ocorrem após o 7º dia, mas antes dos 28 dias completos.

d) Como preencher o atestado

A DO é formada por 9 partes:

Parte I: cartório;
Parte II: identificação do falecido;
Parte III: residência;
Parte IV: ocorrência;
Parte V: óbito fetal ou menor de 1 ano;
Parte VI: condições e causas de óbito;
Parte VII: médico;
Parte VIII: causas externas;
Parte IX: localidades sem médico.

Deve-se lembrar que o médico é o responsável pelo preenchimento de todas


as partes da DO.
A Organização Mundial da Saúde definiu como causa-base “a doença ou
lesão que iniciou a sucessão de eventos mórbidos, os quais levaram
diretamente à morte, ou as circunstâncias do acidente ou violência que
produziram a lesão fatal”.
Figura 22 - Ficha de declaração de óbito nacional

Na Parte VI, que trata das Condições e Causas do Óbito, o campo 49 é


dividido em Parte I e Parte II.
A Parte I é subdividida em 4 itens (“a”, “b”, “c” e “d”), e seu preenchimento
deve seguir uma ordem lógica e cronológica dos acontecimentos sofridos pelo
paciente, iniciando-se pela causa terminal ou imediata e terminando com
causa-base. Esta deve ser colocada em último lugar, ou seja, deve ser o último
item da Parte I. Antecedendo a causa-base, são colocados os outros eventos
(“devido a ou como consequência de”), até chegar à causa terminal ou
imediata.
A Parte II deve ser usada para informar outras condições significativas que
interferiram no curso do processo mórbido, chamadas de causas contribuintes
ou contributórias.

Figura 23 - Campos das causas de morte primária (parte I) e contribuintes (parte II)

O modelo de DO adotado permite, pelas suas características, facilitar a


seleção da causa-base quando são informados 2 ou mais diagnósticos. Isso
porque o médico, ao registrar os diagnósticos no atestado, deveria colocar a
causa-base em último lugar da Parte I. Assim, a causa-base do exemplo da
Figura 23, registrada dessa forma (último lugar da Parte I, linha “d”), dá
origem a algumas complicações (causas e consequências), que devem ser
registradas nas linhas acima (“c” e “b”). A última causa consequencial,
registrada na linha “a”, é chamada causa terminal ou imediata.
Caso a morte ocorra por causa não natural ou, como mais usualmente se diz,
por causas violentas ou causas externas, também deve constar da última linha
a causa-base, no caso, as circunstâncias da violência (queda, homicídio por
arma de fogo, afogamento etc.) e, acima da causa-base, as consequenciais
(fratura de crânio, rotura de fígado, esmagamento de tórax etc.). As DOs, nos
casos de causa externa, são sempre preenchidas por médicos-legistas.
Alguns exemplos de preenchimento do atestado de óbito:
Exemplo 1 (causa natural): sexo masculino, 65 anos. Há 35 anos, sabia ser
hipertenso e não fez tratamento. Há 2 anos, começou a apresentar dispneia de
esforço. Foi ao médico, que diagnosticou hipertensão arterial e cardiopatia
hipertensiva, e iniciou o tratamento. Há 2 meses, teve insuficiência cardíaca
congestiva e, hoje, edema agudo de pulmão, falecendo após 5 horas. Há 2
meses, foi diagnosticado câncer de próstata.

Figura 24 - Preenchimento da declaração de óbito por causa natural

Exemplo 2 (causa não natural): sexo masculino, 25 anos, pedreiro, estava


trabalhando quando sofreu queda de andaime (altura correspondente a 2
andares). Foi recolhido pelo serviço de resgate e encaminhado ao hospital,
onde fez cirurgia em virtude de traumatismo cranioencefálico. Morreu após 3
dias.

Figura 25 - Preenchimento da declaração de óbito por causa não natural

Exemplo 3: sexo masculino, 42 anos, pedreiro, estava trabalhando em um


andaime, à altura do 12º andar, quando caiu acidentalmente. Teve morte
instantânea. O relatório de necrópsia (IML) evidenciou traumatismos
múltiplos (de crânio, bacia, membros).
Figura 26 - Preenchimento da declaração de óbito acrescentando intervalos enunciados no exemplo
3

Exemplo 4: sexo masculino, 26 anos. Há 3 anos, foi diagnosticado portador


do vírus HIV, não tendo nenhuma manifestação até 10 meses antes, quando
começou a ter febre, emagrecimento intenso e muita tosse. Foi feito
diagnóstico de AIDS com tuberculose pulmonar. Evoluiu muito mal, não
respondendo à terapêutica, e teve o quadro confirmado de broncopneumonia,
vindo a falecer após 4 dias.

Figura 27 - Preenchimento da declaração de óbito considerando apenas causas de morte do exemplo


4

A seguir, alguns exemplos de DOs preenchidas incorretamente e sua correção:


Exemplo 1: uma mulher foi atendida na Emergência às 22 horas, com quadro
de queda da pressão arterial, hemoglobina de 7g/L, volume globular de 28%,
dor à palpação de abdome, distensão abdominal e macicez de decúbito. Às 23
horas, foi encaminhada para laparotomia e recebeu 2 unidades de concentrado
de hemácias. Durante a cirurgia, teve parada cardíaca. Durante a laparotomia,
foi constatado o quadro de gravidez ectópica rota.
Causas da morte na DO:
Parte I (incorreto):
a) Parada cardiorrespiratória.
b) Insuficiência renal aguda.
c) Choque hipovolêmico.
Comentário: nessa situação, ainda que o médico tivesse cuidado do caso e
diagnosticado a gravidez ectópica rota, isso não foi declarado na DO, que
deveria ter sido preenchida da seguinte maneira:
Parte I (correto):
a) Choque hipovolêmico.
b) Abdome agudo hemorrágico.
c) Gravidez ectópica rota.
Exemplo 2: uma parturiente de 23 anos, G3P1A1, fez 10 consultas de pré-
natal desde janeiro. Internada no dia 28.09.97 às 2 horas, com história de
gestação no curso do 9º mês em trabalho de parto, apresentação cefálica,
dilatação cervical de 6cm, PA = 110x60mmHg e deu à luz às 5h45 do mesmo
dia. Às 8 horas, detectou-se hemorragia pós-parto, sendo a puérpera
submetida a histerectomia subtotal e evoluindo para óbito materno às 9h40 no
transoperatório.
Causas da morte na DO:
Parte I (incorreto):
a) Anemia aguda.
b) Hemorragia intensa.
c) Coagulopatia intravascular disseminada.
Comentário: foi omitido, na DO, que a coagulopatia foi decorrente de quadro
grave de hemorragia puerperal. Ela deveria ser preenchida da seguinte
maneira:
Parte I (correto):
a) Choque hemorrágico.
b) Coagulopatia intravascular disseminada.
c) Hemorragia pós-parto.
Parte II: Gestação de 9 meses.
Exemplo 3: uma parturiente de 15 anos, casada há 2 anos, primigesta, fez 9
consultas de pré-natal desde o 2º mês. No final da gestação, diagnosticou-se,
pela ultrassonografia, posição fetal pélvica. A gestante, nessa ocasião,
apresentava quadros hipertensivos. Segundo os familiares, quando as dores se
intensificaram, o marido a levou para o hospital pela madrugada, e a médica
lhe deu uma injeção e disse que ainda não era hora. A gestante passou toda a
madrugada com dor e, como não melhorou pela manhã, retornou ao hospital,
onde ficou em observação. Segundo o prontuário, a parturiente foi admitida,
às 7 horas, em trabalho de parto com idade gestacional de 40 semanas, junto
com doença hipertensiva específica da gravidez leve. Evoluiu, na sala de pré-
parto, apresentando pico hipertensivo de 190x110mmHg, sendo medicada
com Aldomet® 750mg/d e hidralazina. Às 14h15, indicou-se cesárea, devido
à apresentação pélvica, e constataram-se feto morto em primigesta e evolução
de doença hipertensiva específica da gravidez leve para grave. Por ocasião da
indução anestésica, apresentou convulsões generalizadas, que persistiram no
transoperatório, evoluindo com parada cardiorrespiratória irreversível. Foi
encaminhada para o SVO, cujo laudo foi:
Parte I (incorreto):
a) A esclarecer, dependendo de exames complementares.
Comentário: o médico patologista não recebeu as informações médicas sobre
a história de saúde da paciente e, assim, não conseguiu determinar a causa de
óbito. Na realidade, o próprio médico que atendeu a paciente já tinha feito o
diagnóstico. A DO deveria ser preenchida da seguinte forma:
Parte I (correto):
a) Convulsões eclâmpticas.
b) Eclâmpsia grave.
Parte II: Gestação de 9 meses
Feto morto.
Exemplo 4: uma paciente de 19 anos, casada há 1 ano, primigesta, fez pré-
natal desde o 2º mês de gestação. A partir do 4º mês, foi diagnosticada
gestação de alto risco. Esteve internada e, no 5º mês, foi aconselhada a
interromper a gravidez. Antes da data prevista para a interrupção, teve parada
cardíaca. Foi internada com diagnóstico de cardiopatia reumática
descompensada. No 3º dia de internação, teve nova parada cardíaca,
respondendo a manobras de ressuscitação, e foi feita cesárea para a retirada
do feto morto. Às 20 horas, teve outra parada cardiorrespiratória em
assistolia, sem resposta às manobras.
Parte I (incorreto):
a) Edema e congestão pulmonar.
b) Cardiopatia dilatada.
c) Cardiopatia reumática crônica com estenose mitral acentuada.
Comentário: o médico na DO omitiu o estado gestacional. Na realidade,
houve descompensação de seu estado de saúde pela presença da gestação;
assim, o atestado deveria ser preenchido da seguinte forma:
Parte I (correto):
a) Edema e congestão pulmonar.
b) Cardiopatia dilatada.
c) Cardiopatia reumática crônica complicada pela gestação.
Parte II: Cardiopatia reumática crônica com estenose mitral acentuada.
Gestação de 5 meses.
Exemplo 5: uma paciente de 21 anos, branca, solteira, estudante, com última
gestação em 20.08.97, G2A2, usava anticoncepcional hormonal. Admitida em
23.01.98, às 11h30, com 3 a 4 meses de gestação e sangramento vaginal, no
momento da admissão apresentava quadro de choque hipovolêmico, com PA
= 60x30mmHg, pulso = 120bpm, mucosas hipocoradas. Por ocasião do
internamento, negava que estava grávida. Foi diagnosticado aborto
incompleto infectado, sendo indicada curetagem uterina. Sob anestesia
peridural, foram administradas 30 unidades de Syntocinon®. Após a
curetagem, apresentava hemorragia uterina e, às 12h45, perdeu o acesso
venoso, sendo transferida para a UTI do hospital B, com diagnóstico de
choque hipovolêmico e septicemia, por abortamento infectado. O óbito
ocorreu às 15h05.
Parte I (incorreto):
a) Choque septicêmico.
b) Endometrite.
Comentário: o preenchimento da DO foi incorreto: a causa-base do óbito
(aborto não especificado complicado com hemorragia – CID O06.1) não está
referida na letra “c” na DO.
Parte I (correto):
a) Choque septicêmico.
b) Endometrite.
c) Aborto incompleto infectado.

e) Algumas dúvidas mais comuns

1 - Óbito ocorrido em ambulância com médico. Quem deve fornecer a


DO?
A responsabilidade do médico que atua em serviço de transporte, remoção,
emergência, quando dá o 1º atendimento ao paciente, equipara-se à do médico
em ambiente hospitalar e, portanto, se a pessoa vier a falecer, caberá ao
médico da ambulância a emissão da DO, se a causa for natural e se existirem
informações suficientes para tal. Se a causa for externa, chegando ao hospital,
o corpo deverá ser encaminhado ao Instituto Médico-Legal (IML).
2 - Óbito ocorrido em ambulância sem médico é considerado sem
assistência médica?
Sim. O corpo deverá ser encaminhado ao SVO na ausência de sinais externos
de violência ou ao IML em mortes violentas. A DO deverá ser emitida por
qualquer médico em localidades onde não houver SVO, em caso de óbito por
causa natural, sendo declarado na parte I “causa da morte desconhecida”.
3 - Médico do serviço público emite DO para paciente que morreu sem
assistência médica. Posteriormente, por denúncia, surge suspeita de que
se tratava de envenenamento. Quais são as consequências legais e éticas
para esse médico?
Ao constatar o óbito e emitir a DO, o médico deve proceder a cuidadoso
exame externo do cadáver, a fim de afastar qualquer possibilidade de causa
externa. Como o médico não acompanhou o paciente e não recebeu
informações sobre essa suspeita, não tendo, portanto, certeza da causa-base do
óbito, deverá anotar, na variável causa, “óbito sem assistência médica”.
Mesmo se houver exumação e a denúncia de envenenamento vier a ser
comprovada, o médico estará isento de responsabilidade perante a justiça se
tiver anotado, na DO, no campo apropriado, “não há sinais externos de
violência” (campo 59 da DO vigente).
4 - Paciente chega ao pronto-socorro e, em seguida, tem parada cardíaca.
Iniciadas as manobras de ressuscitação, estas não têm sucesso. O médico
é obrigado a fornecer DO? Como proceder com relação à causa da
morte?
Primeiramente, deve-se verificar se a causa da morte é natural ou externa.
Se a causa for externa, o corpo deverá ser encaminhado ao IML. Se for morte
natural, o médico deverá esgotar todas as possibilidades para formular a
hipótese diagnóstica, inclusive com anamnese e história colhida com
familiares. Caso persista dúvida e na localidade exista SVO, o corpo deverá
ser encaminhado para esse serviço. Caso contrário, o médico deverá emitir a
DO esclarecendo que a causa é desconhecida.
5 - Idoso, vítima de queda de escada, sofre fratura de fêmur, é internado e
submetido a cirurgia. Evoluía adequadamente, mas adquire infecção
hospitalar, vindo a falecer 12 dias depois por broncopneumonia. Quem
deve fornecer a DO e o que deve ser anotado com relação à causa da
morte?
Segundo a definição, óbito por causa externa é aquele em consequência direta
ou indireta de um evento lesivo (acidental, não acidental ou de intenção
indeterminada). Ou seja, decorre de lesão provocada por violência
(homicídio, suicídio, acidente ou morte suspeita), qualquer que seja o tempo
decorrido entre o evento e o óbito. O fato de ter havido internação e cirurgia e
o óbito ter ocorrido 12 dias depois não interrompe essa cadeia.
O importante é considerar o nexo de causalidade entre a queda que provocou
a lesão e a morte. O corpo deve ser encaminhado ao IML, e a DO, emitida por
médico-legista. Este deve anotar na DO.

Figura 28 - Preenchimento da declaração de óbito por causa externa

6 - O médico de um município onde não existe IML é convocado pelo juiz


local a fornecer atestado de óbito de pessoa vítima de acidente. O médico
pode se negar a fazê-lo?
Embora a legislação determine que a DO para óbitos por causa externa seja
emitida pelo IML, a autoridade policial ou judicial, com base no Código de
Processo Penal Brasileiro, pode designar qualquer pessoa (de preferência as
que tiverem habilitações técnicas) para atuar pontualmente como perito
legista em municípios onde não existe esse tipo de serviço. Em face de essa
designação não ser opcional, deve-se obedecer à determinação. O perito
eventual (ad hoc) prestará compromisso, e seu exame ficará restrito a um
exame externo do cadáver, com descrição das lesões externas, se existirem, no
laudo necroscópico. Na DO, deverá anotar as lesões, o tipo de causa externa,
fazendo menção ao número do Boletim de Ocorrência Policial e preenchendo
os campos de 56 a 60 do bloco VIII da DO.

7. Legislação
Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei dos Registros Públicos), com as
correções da Lei nº 6.216, de 30 de junho de 1975 – Capítulo IX.

- Relacionado ao óbito

Art. 77º: nenhum sepultamento será feito sem certidão oficial de registro do
lugar do falecimento, extraída após a lavratura do assento de óbito, em vista
do atestado de médico se houver no lugar, ou, em caso contrário, de 2 pessoas
qualificadas que tiverem presenciado ou verificado a morte.
1º - Antes de proceder ao assento de óbito de criança de menos de 1 ano, o
oficial verificará se houve registro de nascimento que, em caso de falta, será
previamente feito.
2º - A cremação de cadáver somente será feita daquele que houver
manifestado a vontade de ser incinerado ou no interesse da saúde pública e se
a DO tiver sido firmada por 2 médicos ou por 1 médico-legista, no caso de
morte violenta, depois de autorizada pela autoridade judiciária.

Resumo
Lesões corpóreas

São consideradas graves as lesões que tiveram, como consequência:


I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de 30 dias.
II - Perigo de vida.
III - Debilidade permanente de membro, sentido ou função.
IV - Aceleração de parto.
São consideradas lesões gravíssimas aquelas que resultaram em:
I - Incapacidade permanente para o trabalho.
II - Enfermidade incurável.
III - Perda ou inutilização de membro, sentido ou função.
IV - Deformidade permanente.
V - Aborto.
A energia existe em 5 formas físicas: mecânica, química, térmica, por
irradiação ou elétrica. As energias vulnerantes podem ser classificadas,
segundo Borri, em mecânica, física (calor, frio, elétrica etc.), química
(venenos e cáusticos), físico-química (asfixias), bioquímica
(intoxicações alimentares e autointoxicações), biodinâmica (estados de
“choque”) e mista;
Quanto ao modo da ação da energia vulnerante, pode se apresentar como
ativo (ação da energia sobre o corpo da vítima), passivo (ação do corpo
da vítima sobre a energia) e misto (um atua sobre o outro);
A ação da energia pode ser em um ponto, uma reta ou um plano. A partir
desses mecanismos de ação, as lesões podem ser classificadas em
simples ou mistas (combinadas);
A lesão tecidual dependerá dos seguintes fatores:
Quantidade de energia transmitida;
Velocidade de transmissão de energia;
Superfície da área corpórea em que a energia é aplicada;
Propriedades elásticas dos tecidos.

Aborto
No Código Penal Brasileiro, o aborto provocado é crime, exceto se não há
outro meio de salvar a vida da gestante; se a gravidez resulta de estupro e o
aborto é precedido de consentimento; e se o feto em questão é diagnosticado
como anencéfalo.
Morte encefálica

A doação post mortem deverá ser precedida de diagnóstico de morte


encefálica feito por 2 médicos (um deles neurologista) não participantes
das equipes de remoção e transplante;
Os parâmetros clínicos da morte encefálica são: coma aperceptivo, com
ausência de atividade motora supraespinal, apneia e ausência de
hipotermia (temperatura ≥32,5°C) ou drogas depressoras do sistema
nervoso central ou bloqueadores neuromusculares;
Os exames complementares para a caracterização da morte encefálica
são EEG, PET, angiografia ou Doppler transcraniano.

Declaração de óbito

Em caso de morte fetal, a DO é fornecida se feto ≥20 semanas, ou peso


corpóreo ≥500g ou estatura ≥25cm;
Causa-base de morte é o agravo que iniciou a cadeia de acontecimentos
patológicos que conduziram diretamente à morte;
Parte VI - Condições e causas de óbito: dividida em I e II.
Parte I: registrar os acontecimentos em ordem lógica e cronológica,
iniciando-se pela causa terminal ou imediata e terminando com a
causa-base;
Parte II: outras condições significativas que interferiram no curso
do processo mórbido.
Nos casos de causa externa, é sempre preenchida por médico-legista;
A causa a ser tabulada nas estatísticas de mortalidade é chamada de
causa-base de morte.
Ética médica
André Ribeiro Morrone
Edson Lopes Mergulhão
Thaís Minett
Marcos Rodrigo Souza Fernandes
Fábio Roberto Cabar
João Victor Fornari
Jeane Lima e Silva Carneiro

1. Introdução
A Ética estuda o comportamento moral dos homens dentro de uma sociedade,
isto é, estuda uma forma específica de comportamento humano. Baseia-se nos
atos humanos voluntários e conscientes e que podem envolver outros
indivíduos, grupos sociais e até mesmo toda a sociedade. Embora estejam
profundamente relacionados, os termos “ética” e “moral” não devem ser
confundidos, mas entendidos como complementares.
“Ética”, do grego ethos, significa “modo de ser”, “caráter”; e “moral”, do
latim mos, significa “costume”, “conjunto de normas adquiridas pelo
homem”. Portanto, esses termos se referem a 2 qualidades especificamente
humanas: o “modo de ser” ou o “caráter” de cada um, sobre o qual se
assentam os “costumes” ou as “normas adquiridas”, plasmando o
comportamento moral do homem.
A Ética Médica é responsável pelo estudo do comportamento moral dos
médicos durante o exercício profissional, ou seja, enquanto estão em
atividade médica. A Deontologia Médica, por sua vez, é responsável pelos
estudos dos deveres dos médicos, enquanto a Diceologia estuda os direitos
dos médicos. Essas 2 vertentes estão ordenadas no Código de Ética Médica
(CEM): os Princípios Fundamentais, os Direitos dos Médicos e os capítulos
relativos às vedações a eles.
A Bioética, termo criado pelo oncologista e biólogo americano Van
Rensselaer Potter em seu livro “Bioethics: bridge to the future”, é o estudo
sistemático da conduta humana na área das Ciências da Vida e dos Cuidados
da Saúde, na medida em que essa conduta é examinada à luz dos valores e dos
princípios morais. Esse conceito é o atualmente empregado e foi lançado pela
Encyclopedia of Bioethics em 1978. Como campo emerso da Ética Médica, a
Bioética é fruto da evolução do saber e de concepções novas geradas pelas
realidades atuais da Medicina, da Biologia, da Sociologia e da Filosofia.
Tema frequente de prova
Devemos lembrar sempre os conceitos de autonomia, beneficência e não
maleficência, uma vez que esses temas são sempre cobrados nas provas.

A Bioética analisa os problemas éticos (dos pacientes, dos médicos e de todos


os envolvidos na assistência) relacionados com o início e o fim da vida, com a
Engenharia Genética, com os transplantes de órgãos, com a reprodução
humana assistida com embriões congelados, com a fertilização in vitro, com o
prolongamento artificial da vida, com os direitos dos pacientes terminais, com
a morte encefálica, com as diversas formas de eutanásia etc.
A atividade médica, assim como todas as demais atividades humanas, é
regulamentada por normas jurídicas. As normas jurídicas gerais são comuns a
todos os cidadãos, dentro do espaço territorial brasileiro, e as normas jurídicas
especiais regulamentam matérias específicas.
Assim, o médico, em sua atividade, está sujeito a diversas normas jurídicas
gerais e especiais. As normas gerais são a Constituição de 1988, o Código
Civil de 2002, o Código Penal, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e
outras leis estaduais e municipais. As normas especiais que regulamentam a
atividade médica são elaboradas pelo Ministério da Saúde, pelo Conselho
Nacional de Saúde, pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e pelos
Conselhos Regionais de Medicina (CRMs), por meio de resoluções e
portarias.
Devemos lembrar que há uma hierarquia entre as normas e que nenhuma pode
ser contrária à Constituição (Lei Magna).
Valor: o conceito está ligado às noções de preferência ou de seleção. Rokeach
(1973) define valor como uma crença duradoura em um modelo específico ou
estado de existência, pessoal ou socialmente adotado e embasado em uma
conduta preexistente. São exemplos de valores individuais: escolha
profissional, autonomia ou paternalismo; são valores universais: religião,
crime, proibição de incesto etc.;
Moral: para Barton e Barton (1984), o estudo da Filosofia Moral consiste em
questionar-se sobre o que é correto ou incorreto, o que é virtude ou maldade
nas condutas humanas. A moralidade é um sistema de valores do qual
resultam normas consideradas corretas por determinada sociedade. Exemplos:
10 mandamentos, Código Penal etc. A lei moral ou os seus códigos
usualmente objetivam ordenar um conjunto de direitos e deveres do indivíduo
e da sociedade; porém, para ser exequível, é necessário que uma autoridade a
imponha e castigue o infrator. A moral pressupõe, além da punição ao
infrator, que seus valores sejam impostos e que não possam ser questionados.
Como em todos os códigos de moral, as proibições vêm sempre precedidas de
um “não”, ficando implícito que todos têm ou podem ter esses desejos e que
estes devem ser reprimidos, senão ocorrerá o castigo.

Dentre os fundamentos formais e obrigatórios relacionados à bioética, à


eticidade e à pesquisa, destacamos os apresentados a seguir.

A - Consentimento livre e esclarecido

Importante
O termo de consentimento livre e esclarecido tem, como finalidade,
documentar as possíveis consequências e complicações do ato médico e
cumpre finalidade ético-jurídica em casos de processos médicos.

O médico tem o dever de informar ao paciente os riscos do ato médico, dos


procedimentos e das consequências dos medicamentos prescritos. Além disso,
tem responsabilidades civil, penal e disciplinar sobre seus atos, devendo essa
responsabilidade ser avaliada em cada caso. O termo de consentimento livre e
esclarecido tem, como finalidade, formalizar ou documentar ao médico e ao
paciente as possíveis consequências do ato médico, inclusive hipóteses de
caso fortuito e de força maior, desconhecidas da Ciência e que fogem ao
controle da Medicina. Dessa forma, o termo não tem a virtude de excluir a
responsabilidade do médico; não pode ser entendido, pois, como excludente
de responsabilidade ou cláusula de não indenização. O documento cumpre
finalidade ético-jurídica e pode ser apreciado como prova da lisura do
procedimento médico. Assim, jamais deve ser de cunho impositivo, devendo
ser grafado em linguagem acessível e simples para o entendimento do
paciente que subscreverá o documento ou de seu representante legal.

B - Comitês de ética em pesquisa

Hospitais e instituições de saúde que realizam pesquisas clínicas devem


atender a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que
traz as normas regulamentadoras de experimentos com seres humanos no
país. Pesquisas envolvendo seres humanos devem ser submetidas à apreciação
do Sistema CEP/CONEP (Comitês de Ética em Pesquisa/ Comissão Nacional
de Ética em Pesquisa). Os CEPs são colegiados interdisciplinares e
independentes, de relevância pública, de caráter consultivo, deliberativo e
educativo, criados para defender os interesses dos participantes da pesquisa
em sua integridade e dignidade e para contribuir no desenvolvimento da
pesquisa dentro de padrões éticos:

As instituições e/ou organizações nas quais se realizem pesquisas


envolvendo seres humanos podem constituir 1 ou mais de 1 CEP,
conforme suas necessidades e atendendo aos critérios normativos;
Na inexistência de um CEP na instituição proponente ou em caso de
pesquisador sem vínculo institucional, caberá à CONEP a indicação de
um CEP para proceder à análise da pesquisa dentre aqueles que
apresentem melhores condições para monitorá-la.

São atribuições dos CEPs: avaliar protocolos de pesquisa envolvendo seres


humanos, com prioridade nos temas de relevância pública e de interesse
estratégico da agenda de prioridades do SUS, com base nos indicadores
epidemiológicos, emitindo parecer, devidamente justificado, sempre
orientado, dentre outros, pelos princípios da impessoalidade, transparência,
razoabilidade, proporcionalidade e eficiência, dentro dos prazos estabelecidos
em norma operacional, evitando redundâncias que resultem em morosidade
na análise; desempenhar papel consultivo e educativo em questões de ética;
elaborar seu Regimento Interno.

2. Conselhos de Medicina
O CFM e os CRMs, em conjunto, constituem uma autarquia dotada de
personalidade jurídica de direito público com autonomia administrativa e
financeira. São os órgãos supervisores da ética profissional em toda a
República e, ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica,
cabendo-lhes zelar e trabalhar, por todos os meios ao seu alcance, pelo
perfeito desempenho ético da Medicina e pelo prestígio e bom conceito da
profissão e dos que a exerçam legalmente. Há, em Brasília, o CFM com
jurisdição em todo o território brasileiro, ao qual ficam subordinados os
CRMs, e, em cada capital de estado e no Distrito Federal, há um CRM, cuja
jurisdição alcançará a do estado ou do Distrito Federal.
Os médicos só poderão exercer legalmente a Medicina, em quaisquer dos seus
ramos ou especialidades, após o prévio registro de seus títulos, diplomas,
certificados ou cartas no Ministério da Educação e de sua inscrição no CRM
sob cuja jurisdição se achar o local de sua atividade. Se o médico exercer sua
atividade por mais de 90 dias em outra jurisdição, ficará obrigado a requerer
inscrição secundária no quadro do CRM dessa jurisdição.

3. Comissões de Ética Médica


As Comissões de Ética Médica compreendem uma extensão do CRM, eleitas
pelo corpo clínico das instituições médicas, estando a ele vinculadas. Devem
ser instaladas em unidades de saúde e são órgãos com funções opinativas,
educativas e fiscalizadoras do desempenho ético da Medicina. São atribuições
das Comissões de Ética Médica:

Orientar e fiscalizar o desempenho ético da profissão dentro da


instituição;
Atuar como controle de qualidade das condições de trabalho e prestação
de assistência médica na instituição, sugerindo e acompanhando as
modificações necessárias;
Denunciar às instâncias superiores, inclusive ao CRM, as eventuais más
condições de trabalho na instituição;
Colaborar com o CRM, divulgando resoluções, normas e pareceres;
Assessorar as diretorias clínica, administrativa e técnica da instituição,
dentro da sua área de competência;
Proceder à sindicância a pedido de interessados, médicos, do próprio
CRM ou por iniciativa própria.

4. Código de Ética Médica


O 1º CEM do Brasil foi elaborado em 1965 pelo CFM e refletia a Medicina
Liberal praticada na época com ênfase nas relações médico-paciente (4
artigos) e médico-médico (12 artigos), além de um capítulo apenas sobre
conferências médicas com 9 artigos, muito semelhante a um código de
etiqueta médica.
Em 1984, esse Código foi substituído pelo Código Brasileiro de Deontologia
Médica, elaborado sigilosa e exclusivamente pelo CFM, o qual enfrentou
resistências generalizadas, tendo vida curta e dando origem ao Código de
1988. Este apresenta, ao todo, 145 artigos, divididos em 14 capítulos, e é mais
extenso e detalhado do que os anteriores.
O CEM, elaborado com a tentativa da participação de vários setores da
sociedade e da classe médica, configura-se como uma mescla de código de
moral com código administrativo que regula aspectos práticos da profissão e
prevê sanções a quem o infringir. O Código está, portanto, subordinado à
Constituição e às leis.
O CFM, no uso de suas atribuições, reuniu sua plenária em 12 de abril de
2010 e aprovou o novo CEM, o qual traz uma série de questionamentos
importantes acerca do exercício profissional no que se refere aos deveres e
aos direitos dos médicos. Pela 1ª vez, temas importantes e polêmicos são
levados em consideração.
O novo CEM é composto de um preâmbulo com 6 incisos, 25 incisos de
princípios fundamentais, 10 incisos sobre “direitos”, 118 artigos de normas
deontológicas (sobre “deveres”) e 4 incisos de disposições gerais. Ou seja, foi
mantido o esquema de Princípios, Direitos e Deveres; preserva a essência do
anterior, em vigor desde 1988, que surgiu na esteira das conquistas da
sociedade brasileira e da convivência democrática que também resultou na
Constituição, na consagração da dignidade humana, dos direitos
fundamentais, do Estado de Direito, da liberdade, da igualdade e da Justiça. O
Código trata, dentre outros temas, dos direitos dos médicos, da
responsabilidade profissional, dos direitos humanos, da relação com pacientes
e familiares, da doação e dos transplantes de órgãos, da relação entre médicos,
do sigilo profissional, dos documentos médicos e do ensino, da pesquisa e da
publicidade médicos.

Importante
O novo CEM, de 2010, além de considerar as mudanças sociais, jurídicas e
científicas, levou em conta os atuais códigos de ética médica de outros
países e considerou elementos de jurisprudência, posicionamentos que já
integram pareceres, decisões e resoluções da Justiça, das Comissões de
Ética locais e resoluções éticas do Conselho Federal de Medicina e dos
Conselhos Regionais de Medicina editadas desde 1988.

Relativamente conciso, o novo CEM não entra em detalhes nem considera


todas as circunstâncias que envolvem a prática e a ética médica: são mantidos
os princípios tradicionais que regem a prática médica, desde o juramento de
Hipócrates – a honestidade e a dedicação do médico, sua obrigação de
preservar a vida, de não prejudicar os pacientes, mas sim respeitar seus
interesses, sua privacidade e a confidencialidade. Foi mantida a dupla
finalidade da Deontologia Médica, que supõe a autonomia da prática
profissional e a sua regulação. O CEM serve de referência para a atuação
judicante dos Conselhos de Medicina, ao mesmo tempo que é o guia dos
médicos em sua prática cotidiana a serviço dos pacientes, bem como enfatiza
que o respeito pela vida não é exclusividade do médico, mas particularmente
aplicável a ele.
O princípio de liberdade do indivíduo é outro pilar do Código atual. O sujeito
é livre para escolher seu médico e aceitar ou rejeitar o que lhe é oferecido:
exames, consultas, internações, atendimento de qualquer espécie, prontuários
médicos, participação em pesquisa clínica, transmissão de dados etc. Mas o
exercício da liberdade depende de o paciente receber informações justas,
claras e adequadas. Daí a importância do consentimento informado, livre e
esclarecido; o princípio de liberdade do médico deve estar concatenado com a
liberdade do paciente. Esse é o contrato tácito e implícito de todo ato médico
e que permeia o novo Código.
O médico deve exercer a Medicina sem discriminação de qualquer natureza,
praticando a solidariedade entre seus companheiros e, pessoalmente
responsável pelos seus atos, preservar a sua independência profissional,
livrando-se, em benefício do paciente, de influências pessoais ou materiais de
empregadores, pagadores, instituições, indústria e outros interesses.
Outra categoria de princípios ressaltada pelo novo Código diz respeito às
habilidades e qualidades exigidas do médico, pois é essa a missão que a
sociedade lhe confere. Para cumpri-la, o médico deve ser competente para
tanto. Daí a relevância da habilidade profissional e do compromisso do
médico com a Ciência, obviamente reconhecendo seus limites. O médico tem
no Código a preservação de sua independência profissional, daí a
preocupação ética de eliminar conflitos, de afastar o médico de influências
desmedidas de empregadores, da indústria e dos interesses puramente
empresariais e mercantis.
Por fim, o novo CEM posiciona-se sobre grandes debates contemporâneos no
campo da Bioética, como a questão dos transplantes de órgãos, os ensaios
clínicos, a eutanásia, a Reprodução Assistida (RA) e a manipulação genética.
Em 15.08.2018, o site do CFM noticiou o encerramento do processo de
revisão do CEM, iniciado em 2016. A previsão de publicação no Diário
Oficial da União é até o fim de 2018, após o trâmite administrativo
necessário. O novo CEM deve entrar em vigor em 2019.

A - Destaques (importantes temas de prova)

A seguir, estão compilados os principais temas abordados nas provas de


concursos médicos. Os artigos em que esses princípios estão inseridos são
citados para possibilitar a consulta do dispositivo legal na íntegra.
Abandono de paciente: o médico não pode abandonar o paciente (Cap. 5,
Art. 36);
Anúncios profissionais: é obrigatório incluir o número do CRM em anúncios
(Cap. 12, Art. 118);
Apoio à categoria: o médico deve apoiar os movimentos da categoria (Cap.
1, XV);
Condições de trabalho: o médico pode recusar-se a exercer a Medicina em
locais inadequados (Cap. 2, IV);
Conflito de interesses: o médico é obrigado a declarar conflitos de interesses
(Cap. 12, Art. 109);
Consentimento esclarecido: o paciente precisa dar o consentimento (Cap. 4,
Art. 22);
Denúncia de tortura: o médico é obrigado a denunciar prática de tortura
(Cap. 4, Art. 25);
Descontos e consórcios: o médico não pode estar vinculado a cartões de
desconto e consórcios (Cap. 8, Art. 72);
Direito de escolha: o médico deve aceitar as escolhas do paciente (Cap. 1,
XXI);
Falta em plantão: abandonar o plantão é falta grave (Cap. 3, Art. 9);
Letra legível: a receita e o atestado médico têm de ser legíveis e com
identificação (Cap. 3, Art. 11);
Limitação de tratamento: nada pode limitar o médico em definir o
tratamento (Cap. 1, XVI);
Manipulação genética: o médico não pode praticar a manipulação genética
(Cap. 3, Art. 16; Cap. 1, XXV);
Métodos contraceptivos: o paciente tem direito de decidir sobre métodos
contraceptivos (Cap. 5, Art. 42);
Pacientes terminais: o médico deve evitar procedimentos desnecessários em
pacientes terminais (Cap. 5, Art. 41; Cap. 1, XXII);
Participação em propaganda: o médico não pode participar de propaganda
(Cap. 13, Art. 116);
Prontuário médico: o paciente tem direito a cópia do prontuário médico
(Cap. 10, Art. 85; Cap. 10, Art. 87; Cap. 10, Art. 89; Cap. 10, Art. 90);
Receita sem exame: o médico não pode receitar sem ver o paciente (Cap. 5,
Art. 37);
Relações com farmácias: o médico não pode ter relação com comércio e
farmácias (Cap. 8, Art. 69);
Responsabilidade: a responsabilidade médica é pessoal e não pode ser
presumida (Cap. 3, Art. 1º);
Segunda opinião: o paciente tem direito a uma 2ª opinião e a
encaminhamento a outro médico (Cap. 5, Art. 39; Cap. 7, Art. 53; Cap. 7, Art.
52);
Sexagem: a escolha do sexo do bebê é vedada na RA (Cap. 3, Art. 15);
Sigilo médico: o sigilo médico deve ser preservado, mesmo após a morte
(Cap. 1, XI; Cap. 9, Art. 73);
Uso de placebo: é proibido em pesquisa quando há tratamento eficaz (Cap.
12, Art. 106).

B - Código de Ética Médica (conteúdo na íntegra)

Resolução CFM nº 1.931, de 17 de setembro de 2009


Diário Oficial da União; Poder Executivo, Brasília, DF, 24 set. 2009. Seção I,
p. 90 a 92
Diário Oficial da União; Poder Executivo, Brasília, DF, 13 out. 2009. Seção I,
p. 173 – retificação:

Aprova o CEM;
O CFM, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº 3.268, de 30 de
setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho
de 1958, modificado pelo Decreto nº 6.821, de 14 de abril de 2009, e
pela Lei nº 11.000, de 15 de dezembro de 2004, e consubstanciado nas
Leis nº 6.838, de 29 de outubro de 1980 e Lei nº 9.784, de 29 de janeiro
de 1999;
Considerando que os Conselhos de Medicina são ao mesmo tempo
julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e
trabalhar, por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho
ético da Medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que
a exerçam legalmente;
Considerando que as normas do CEM devem submeter-se aos
dispositivos constitucionais vigentes;
Considerando a busca de melhor relacionamento com o paciente e a
garantia de maior autonomia à sua vontade;
Considerando as propostas formuladas ao longo dos anos de 2008 e 2009
e pelos CRMs, pelas entidades médicas, pelos médicos e por instituições
científicas e universitárias para a revisão do atual CEM;
Considerando as decisões da IV Conferência Nacional de Ética Médica,
que elaborou, com participação de delegados médicos de todo o Brasil,
um novo CEM revisado;
Considerando o decidido pelo Conselho Pleno Nacional, reunido em 29
de agosto de 2009;
Considerando, finalmente, o decidido em sessão plenária de 17 de
setembro de 2009.

Resolve:

Art. 1º: aprovar o CEM, anexo a esta Resolução, após sua revisão e
atualização;
Art. 2º: o CFM, sempre que necessário, expedirá resoluções que
complementem esse CEM e facilitem sua aplicação;
Art. 3º: o Código anexo a esta Resolução entra em vigor 180 dias após a
data de sua publicação, e, a partir daí, revoga-se o CEM aprovado pela
Resolução CFM nº 1.246, publicada no Diário Oficial da União, no dia
26 de janeiro de 1988, Seção I, páginas 1.574 a 1.579, bem como as
demais disposições em contrário.

Preâmbulo:

I - O presente CEM contém as normas que devem ser seguidas pelos


médicos no exercício de sua profissão, inclusive no exercício de
atividades relativas ao ensino, à pesquisa e à administração de serviços
de saúde, bem como no exercício de quaisquer outras atividades em que
se utilize o conhecimento advindo do estudo da Medicina.
II - As organizações de prestação de serviços médicos estão sujeitas às
normas deste Código.
III - Para o exercício da Medicina, impõe-se a inscrição no CRM do
respectivo estado, território ou Distrito Federal.
IV - A fim de garantir o acatamento e a cabal execução deste Código, o
médico comunicará ao CRM, com discrição e fundamento, fatos de que
tenha conhecimento e que caracterizem possível infração do presente
Código e das demais normas que regulam o exercício da Medicina.
V - A fiscalização do cumprimento das normas estabelecidas neste
Código é atribuição dos Conselhos de Medicina, das Comissões de Ética
e dos médicos em geral.
VI - Este CEM é composto de 25 princípios fundamentais do exercício
da Medicina, 10 normas diceológicas, 118 normas deontológicas e 4
disposições gerais. A transgressão das normas deontológicas sujeitará os
infratores às penas disciplinares previstas em lei.

a) Capítulo I – Princípios fundamentais

I - A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da


coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.
II - O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em
benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor da sua
capacidade profissional.
III - Para exercer a Medicina com honra e dignidade, o médico necessita ter
boas condições de trabalho e ser remunerado de forma justa.
IV - Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da
Medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão.
V - Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar
o melhor do progresso científico em benefício do paciente.
VI - O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre
em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento
físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar
tentativa contra sua dignidade e integridade.
VII - O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a
prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não
deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de
urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do
paciente.
VIII - O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum
pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer
restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de
seu trabalho.
IX - A Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida
como comércio.
X - O trabalho do médico não pode ser explorado por terceiros com objetivos
de lucro, finalidade política ou religiosa.
XI - O médico guardará sigilo a respeito das informações de que detenha
conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos
previstos em lei.
XII - O médico empenhar-se-á pela melhor adequação do trabalho ao ser
humano, pela eliminação e pelo controle dos riscos à saúde inerentes às
atividades laborais.
XIII - O médico comunicará às autoridades competentes quaisquer formas de
deterioração do ecossistema, prejudiciais à saúde e à vida.
XIV - O médico empenhar-se-á em melhorar os padrões dos serviços médicos
e em assumir sua responsabilidade em relação à saúde pública, à educação
sanitária e à legislação referente à saúde.
XV - O médico será solidário com os movimentos de defesa da dignidade
profissional, seja por remuneração digna e justa, seja por condições de
trabalho compatíveis com o exercício ético-profissional da Medicina e seu
aprimoramento técnico-científico.
XVI - Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou de
instituição, pública ou privada, limitará a escolha, pelo médico, dos meios
cientificamente reconhecidos a serem praticados para o estabelecimento do
diagnóstico e da execução do tratamento, salvo quando em benefício do
paciente.
XVII - As relações do médico com os demais profissionais devem basear-se
no respeito mútuo, na liberdade e na independência de cada um, buscando
sempre o interesse e o bem-estar do paciente.
XVIII - O médico terá, para com os colegas, respeito, consideração e
solidariedade, sem se eximir de denunciar atos que contrariem os postulados
éticos.
XIX - O médico se responsabilizará, em caráter pessoal e nunca presumido,
pelos seus atos profissionais, resultantes de relação particular de confiança e
executados com diligência, competência e prudência.
XX - A natureza personalíssima da atuação profissional do médico não
caracteriza relação de consumo.
XXI - No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus
ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de
seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por
eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.
XXII - Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a
realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e
propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos
apropriados.
XXIII - Quando envolvido na produção de conhecimento científico, o médico
agirá com isenção e independência, visando ao maior benefício para os
pacientes e a sociedade.
XXIV - Sempre que participar de pesquisas envolvendo seres humanos ou
qualquer animal, o médico respeitará as normas éticas nacionais, bem como
protegerá a vulnerabilidade dos sujeitos da pesquisa.
XXV - Na aplicação dos conhecimentos criados pelas novas tecnologias,
considerando-se suas repercussões tanto nas gerações presentes quanto nas
futuras, o médico zelará para que as pessoas não sejam discriminadas por
nenhuma razão vinculada a herança genética, protegendo-as em sua
dignidade, identidade e integridade.

b) Capítulo II – Direitos dos médicos

- São direitos do médico


I - Exercer a Medicina sem ser discriminado por questões de religião, etnia,
sexo, nacionalidade, cor, orientação sexual, idade, condição social, opinião
política ou de qualquer outra natureza.
II - Indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas
cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente.
III - Apontar falhas em normas, contratos e práticas internas das instituições
em que trabalhe quando as julgar indignas do exercício da profissão ou
prejudiciais a si mesmo, ao paciente ou a terceiros, devendo dirigir-se, nesses
casos, aos órgãos competentes e, obrigatoriamente, à Comissão de Ética e ao
CRM de sua jurisdição.
IV - Recusar-se a exercer sua profissão em instituição pública ou privada
onde as condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar a
própria saúde ou a do paciente, bem como a dos demais profissionais. Nesse
caso, comunicará imediatamente sua decisão à Comissão de Ética e ao CRM.
V - Suspender suas atividades, individual ou coletivamente, quando a
instituição pública ou privada para a qual trabalhe não oferecer condições
adequadas para o exercício profissional ou não o remunerar digna e
justamente, ressalvadas as situações de urgência e emergência, devendo
comunicar imediatamente sua decisão ao CRM.
VI - Internar e assistir seus pacientes em hospitais privados e públicos com
caráter filantrópico ou não, ainda que não faça parte do seu corpo clínico,
respeitadas as normas técnicas aprovadas pelo CRM da pertinente jurisdição.
VII - Requerer desagravo público ao CRM quando atingido no exercício de
sua profissão.
VIII - Decidir, em qualquer circunstância, levando em consideração sua
experiência e capacidade profissional, o tempo a ser dedicado ao paciente,
evitando que o acúmulo de encargos ou de consultas venha a prejudicá-lo.
IX - Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam
contrários aos ditames de sua consciência.
X - Estabelecer seus honorários de forma justa e digna.

c) Capítulo III – Responsabilidade profissional

- São vedados ao médico


Art. 1º: causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como
imperícia, imprudência ou negligência.

Parágrafo único. A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode


ser presumida.
Art. 2º: delegar a outros profissionais atos ou atribuições exclusivos da
profissão médica.
Art. 3º: deixar de assumir responsabilidade sobre procedimento médico que
indicou ou do qual participou, mesmo quando vários médicos tenham
assistido o paciente.
Art. 4º: deixar de assumir a responsabilidade de qualquer ato profissional que
tenha praticado ou indicado, ainda que solicitado ou consentido pelo paciente
ou por seu representante legal.
Art. 5º: assumir responsabilidade por ato médico que não praticou ou do qual
não participou.
Art. 6º: atribuir seus insucessos a terceiros e a circunstâncias ocasionais,
exceto nos casos em que isso possa ser devidamente comprovado.
Art. 7º: deixar de atender em setores de urgência e emergência, quando for de
sua obrigação fazê-lo, expondo a risco a vida de pacientes, mesmo respaldado
por decisão majoritária da categoria.
Art. 8º: afastar-se de suas atividades profissionais, mesmo temporariamente,
sem deixar outro médico encarregado do atendimento de seus pacientes
internados ou em estado grave.
Art. 9º: deixar de comparecer a plantão em horário preestabelecido ou
abandoná-lo sem a presença de substituto, salvo por justo impedimento.

Parágrafo único. Na ausência de médico plantonista substituto, a direção


técnica do estabelecimento de saúde deve providenciar a substituição.

Art. 10º: acumpliciar-se com os que exercem ilegalmente a Medicina ou com


profissionais ou instituições médicas nas quais se pratiquem atos ilícitos.
Art. 11º: receitar, atestar ou emitir laudos de forma secreta ou ilegível, sem a
devida identificação de seu número de registro no CRM da sua jurisdição,
bem como assinar em branco folhas de receituários, atestados, laudos ou
quaisquer outros documentos médicos.
Art. 12º: deixar de esclarecer o trabalhador sobre as condições de trabalho que
ponham em risco sua saúde, devendo comunicar o fato aos empregadores
responsáveis.

Parágrafo único. Se o fato persistir, será dever do médico comunicar o


ocorrido às autoridades competentes e ao CRM.

Art. 13º: deixar de esclarecer o paciente sobre as determinantes sociais,


ambientais ou profissionais de sua doença.
Art. 14º: praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela
legislação vigente no país.
Art. 15º: descumprir legislação específica nos casos de transplantes de órgãos
ou de tecidos, esterilização, fecundação artificial, abortamento, manipulação
ou terapia genética.

§ 1º: no caso de procriação medicamente assistida, a fertilização não


deve conduzir sistematicamente à ocorrência de embriões
supranumerários.
§ 2º: o médico não deve realizar a procriação medicamente assistida com
nenhum dos seguintes objetivos:
I - Criar seres humanos geneticamente modificados.
II - Criar embriões para investigação.
III - Criar embriões com finalidades de escolha de sexo, eugenia ou
para originar híbridos ou quimeras.
§ 3º: praticar procedimento de procriação medicamente assistida sem que
os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos
sobre ele.

Art. 16º: intervir sobre o genoma humano com vista à sua modificação, exceto
na terapia gênica, excluindo-se qualquer ação em células germinativas que
resulte na modificação genética da descendência.
Art. 17º: deixar de cumprir, salvo por motivo justo, as normas emanadas dos
Conselhos Federal e Regionais de Medicina e de atender às suas requisições
administrativas, intimações ou notificações no prazo determinado.
Art. 18º: desobedecer aos acórdãos e às resoluções dos Conselhos Federal e
Regionais de Medicina ou desrespeitá-los.
Art. 19º: deixar de assegurar, quando investido em cargo ou função de
direção, os direitos dos médicos e as demais condições adequadas para o
desempenho ético-profissional da Medicina.
Art. 20º: permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de
quaisquer outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico ou do
financiador público ou privado da assistência à saúde, interfiram na escolha
dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e
cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente ou da
sociedade.
Art. 21º: deixar de colaborar com as autoridades sanitárias ou infringir a
legislação pertinente.

d) Capítulo IV – Direitos humanos

- São vedados ao médico


Art. 22º: deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante
legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de
risco iminente de morte.
Art. 23º: tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua
dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.
Art. 24º: deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir
livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua
autoridade para limitá-lo.
Art. 25º: deixar de denunciar práticas de tortura ou de procedimentos
degradantes, desumanos ou cruéis, praticá-las, bem como ser conivente com
quem as realize, ou fornecer meios, instrumentos, substâncias ou
conhecimentos que as facilitem.
Art. 26º: deixar de respeitar a vontade de qualquer pessoa, considerada capaz
física e mentalmente, em greve de fome, ou alimentá-la compulsoriamente,
devendo cientificá-la das prováveis complicações do jejum prolongado e, na
hipótese de risco iminente de morte, tratá-la.
Art. 27º: desrespeitar a integridade física e mental do paciente ou utilizar-se
de meio que possa alterar sua personalidade ou sua consciência em
investigação policial ou de qualquer outra natureza.
Art. 28º: desrespeitar o interesse e a integridade do paciente em qualquer
instituição na qual esteja recolhido, independente da própria vontade.

Parágrafo único. Caso ocorram quaisquer atos lesivos à personalidade e à


saúde física ou mental dos pacientes confiados ao médico, este estará
obrigado a denunciar o fato à autoridade competente e ao CRM.

Art. 29º: participar, direta ou indiretamente, da execução de pena de morte.


Art. 30º: usar da profissão para corromper costumes, cometer ou favorecer
crime.

e) Capítulo V – Relação com pacientes e familiares

- São vedados ao médico


Art. 31º: desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de
decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas,
salvo em caso de iminente risco de morte.
Art. 32º: deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e
tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do
paciente.
Art. 33º: deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais
em casos de urgência ou emergência, quando não haja outro médico ou
serviço médico em condições de fazê-lo.
Art. 34º: deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os
riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta lhe
possa provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu
representante legal.
Art. 35º: exagerar a gravidade do diagnóstico ou do prognóstico, complicar a
terapêutica ou exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros
procedimentos médicos.
Art. 36º: abandonar paciente sob seus cuidados.

§ 1º: ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom


relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o
médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que o
comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal,
assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as
informações necessárias ao médico que lhe suceder.
§ 2º: salvo por motivo justo, comunicado ao paciente ou aos seus
familiares, o médico não abandonará o primeiro por ser este portador de
moléstia crônica ou incurável e continuará a assisti-lo ainda que para
cuidados paliativos.

Art. 37º: prescrever tratamento ou outros procedimentos sem exame direto do


paciente, salvo em casos de urgência ou emergência e impossibilidade
comprovada de realizá-lo, devendo, nesse caso, fazê-lo imediatamente após
cessar o impedimento.

Parágrafo único. O atendimento médico a distância, nos moldes da


telemedicina ou de outro método, dar-se-á sob regulamentação do CFM.

Art. 38º: desrespeitar o pudor de qualquer pessoa sob seus cuidados


profissionais.
Art. 39º: opor-se à realização de junta médica ou 2ª opinião solicitada pelo
paciente ou por seu representante legal.
Art. 40º: aproveitar-se de situações decorrentes da relação médico-paciente
para obter vantagem física, emocional, financeira ou de qualquer outra
natureza.
Art. 41º: abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu
representante legal.

Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o


médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis, sem
empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas,
levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na
sua impossibilidade, a de seu representante legal.

Art. 42º: desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre método


contraceptivo, devendo sempre esclarecê-lo sobre indicação, segurança,
reversibilidade e risco de cada método.

f) Capítulo VI – Doação e transplante de órgãos e tecidos

- São vedados ao médico


Art. 43º: participar do processo de diagnóstico da morte ou da decisão de
suspender meios artificiais para prolongar a vida do possível doador, quando
pertencente à equipe de transplante.
Art. 44º: deixar de esclarecer o doador, o receptor ou seus representantes
legais sobre os riscos decorrentes de exames, intervenções cirúrgicas e outros
procedimentos nos casos de transplantes de órgãos.
Art. 45º: retirar órgão de doador vivo quando este for juridicamente incapaz,
mesmo se houver autorização de seu representante legal, exceto nos casos
permitidos e regulamentados em lei.
Art. 46º: participar direta ou indiretamente da comercialização de órgãos ou
tecidos humanos.

g) Capítulo VII – Relação entre médicos

- São vedados ao médico


Art. 47º: usar de sua posição hierárquica para impedir, por motivo de crença
religiosa, convicção filosófica, política, interesse econômico ou qualquer
outro, que não técnico-científico ou ético, que as instalações e os demais
recursos da instituição sob sua direção sejam utilizados por outros médicos no
exercício da profissão, particularmente se são os únicos existentes no local.
Art. 48º: assumir emprego, cargo ou função para suceder médico demitido ou
afastado em represália a atitude de defesa de movimentos legítimos da
categoria ou da aplicação deste Código.
Art. 49º: assumir condutas contrárias a movimentos legítimos da categoria
médica com a finalidade de obter vantagens.
Art. 50º: acobertar erro ou conduta antiética de médico.
Art. 51º: praticar concorrência desleal com outro médico.
Art. 52º: desrespeitar a prescrição ou o tratamento de paciente determinados
por outro médico, mesmo quando em função de chefia ou de auditoria, salvo
em situação de indiscutível benefício para o paciente, devendo comunicar
imediatamente o fato ao médico responsável.
Art. 53º: deixar de encaminhar o paciente que lhe foi enviado para
procedimento especializado de volta ao médico assistente e, na ocasião,
deixar de fornecer-lhe as devidas informações sobre o ocorrido no período em
que se responsabilizou por ele.
Art. 54º: deixar de fornecer a outro médico informações sobre o quadro
clínico do paciente, desde que autorizado por este ou por seu representante
legal.
Art. 55º: deixar de informar ao substituto o quadro clínico do paciente sob sua
responsabilidade ao ser substituído ao fim do seu turno de trabalho.
Art. 56º: utilizar-se de sua posição hierárquica para impedir que seus
subordinados atuem dentro dos princípios éticos.
Art. 57º: deixar de denunciar atos que contrariem os postulados éticos à
Comissão de Ética da instituição em que exerce seu trabalho profissional e, se
necessário, ao CRM.

h) Capítulo VIII – Remuneração profissional

- São vedados ao médico


Art. 58º: o exercício mercantilista da Medicina.
Art. 59º: oferecer ou aceitar remuneração ou vantagens por paciente
encaminhado ou recebido, bem como por atendimentos não prestados.
Art. 60º: permitir a inclusão de nomes de profissionais que não participaram
do ato médico para efeito de cobrança de honorários.
Art. 61º: deixar de ajustar previamente com o paciente o custo estimado dos
procedimentos.
Art. 62º: subordinar os honorários ao resultado do tratamento ou à cura do
paciente.
Art. 63º: explorar o trabalho de outro médico, isoladamente ou em equipe, na
condição de proprietário, sócio, dirigente ou gestor de empresas ou
instituições prestadoras de serviços médicos.
Art. 64º: agenciar, aliciar ou desviar, por qualquer meio, para clínica
particular ou instituições de qualquer natureza, paciente atendido pelo sistema
público de saúde ou dele utilizar-se para a execução de procedimentos
médicos em sua clínica privada, como forma de obter vantagens pessoais.
Art. 65º: cobrar honorários de paciente assistido em instituição que se destina
à prestação de serviços públicos, ou receber remuneração de paciente como
complemento de salário ou de honorários.
Art. 66º: praticar dupla cobrança por ato médico realizado.

Parágrafo único. A complementação de honorários em serviço privado


pode ser cobrada quando prevista em contrato.

Art. 67º: deixar de manter a integralidade do pagamento e permitir descontos


ou retenção de honorários, salvo os previstos em lei, quando em função de
direção ou de chefia.
Art. 68º: exercer a profissão com interação ou dependência de farmácia,
indústria farmacêutica, óptica ou qualquer organização destinada à fabricação,
manipulação, promoção ou comercialização de produtos de prescrição
médica, qualquer que seja sua natureza.
Art. 69º: exercer simultaneamente a Medicina e a Farmácia ou obter
vantagem pelo encaminhamento de procedimentos, pela comercialização de
medicamentos, órteses, próteses ou implantes de qualquer natureza, cuja
compra decorra de influência direta em virtude de sua atividade profissional.
Art. 70º: deixar de apresentar separadamente seus honorários quando outros
profissionais participarem do atendimento ao paciente.
Art. 71º: oferecer seus serviços profissionais como prêmio, qualquer que seja
sua natureza.
Art. 72º: estabelecer vínculo de qualquer natureza com empresas que
anunciam ou comercializam planos de financiamento, cartões de descontos ou
consórcios para procedimentos médicos.
i) Capítulo IX – Sigilo profissional

- São vedados ao médico


Art. 73º: revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de
sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por
escrito, do paciente.

Parágrafo único. Permanece essa proibição:


Mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha
falecido;
Quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o
médico comparecerá perante a autoridade e declarará o seu
impedimento;
Na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de
revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal.

Art. 74º: revelar sigilo profissional relacionado a paciente menor de idade,


inclusive a seus pais ou representantes legais, desde que o menor tenha
capacidade de discernimento, salvo quando a não revelação possa acarretar
dano ao paciente.
Art. 75º: fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir pacientes ou
seus retratos em anúncios profissionais ou na divulgação de assuntos médicos,
em meios de comunicação em geral, mesmo com autorização do paciente.
Art. 76º: revelar informações confidenciais obtidas quando do exame médico
de trabalhadores, inclusive por exigência dos dirigentes de empresas ou de
instituições, salvo se o silêncio puser em risco a saúde dos empregados ou da
comunidade.
Art. 77º: prestar informações a empresas seguradoras sobre as circunstâncias
da morte do paciente sob seus cuidados, além das contidas na Declaração de
Óbito, salvo por expresso consentimento do seu representante legal.
Art. 78º: deixar de orientar seus auxiliares e alunos a respeitar o sigilo
profissional e zelar para que seja por eles mantido.
Art. 79º: deixar de guardar o sigilo profissional na cobrança de honorários por
meio judicial ou extrajudicial.

j) Capítulo X – Documentos médicos

- São vedados ao médico


Art. 80º: expedir documento médico sem ter praticado ato profissional que o
justificasse, que seja tendencioso ou não corresponda à verdade.
Art. 81º: atestar como forma de obter vantagens.
Art. 82º: usar formulários de instituições públicas para prescrever ou atestar
fatos verificados na clínica privada.
Art. 83º: atestar óbito quando não o tenha verificado pessoalmente, ou quando
não tenha prestado assistência ao paciente, salvo, no último caso, se o fizer
como plantonista, médico substituto ou em caso de necrópsia e verificação
médico-legal.
Art. 84º: deixar de atestar óbito de paciente ao qual vinha prestando
assistência, exceto quando houver indícios de morte violenta.
Art. 85º: permitir o manuseio e o conhecimento dos prontuários por pessoas
não obrigadas ao sigilo profissional quando sob sua responsabilidade.
Art. 86º: deixar de fornecer laudo médico ao paciente ou a seu representante
legal quando aquele for encaminhado ou transferido para continuação do
tratamento ou em caso de solicitação de alta.
Art. 87º: deixar de elaborar prontuário legível para cada paciente.

§ 1º: o prontuário deve conter os dados clínicos necessários para a boa


condução do caso, sendo preenchido, em cada avaliação, em ordem
cronológica com data, hora, assinatura e número de registro do médico
no CRM.
§ 2º: o prontuário estará sob a guarda do médico ou da instituição que
assiste o paciente.

Art. 88º: negar ao paciente acesso a seu prontuário, deixar de lhe fornecer
cópia quando solicitada, bem como deixar de lhe oferecer explicações
necessárias à sua compreensão, salvo quando ocasionem riscos ao próprio
paciente ou a terceiros.
Art. 89º: liberar cópias do prontuário sob sua guarda, salvo quando
autorizado, por escrito, pelo paciente, para atender ordem judicial ou para a
sua própria defesa.

§ 1º: quando requisitado judicialmente, o prontuário será disponibilizado


ao perito médico nomeado pelo juiz.
§ 2º: quando o prontuário for apresentado em sua própria defesa, o
médico deverá solicitar que seja observado o sigilo profissional.
Art. 90º: deixar de fornecer cópia do prontuário médico de seu paciente
quando de sua requisição pelos CRMs.
Art. 91º: deixar de atestar atos executados no exercício profissional, quando
solicitado pelo paciente ou por seu representante legal.

k) Capítulo XI – Auditoria e perícia médica

- São vedados ao médico


Art. 92º: assinar laudos periciais, auditoriais ou de verificação médico-legal
quando não tenha realizado pessoalmente o exame.
Art. 93º: ser perito ou auditor do próprio paciente, de pessoa de sua família ou
de qualquer outra com a qual tenha relações capazes de influir em seu
trabalho ou de empresa em que atue ou tenha atuado.
Art. 94º: intervir, quando em função de auditor, assistente técnico ou perito,
nos atos profissionais de outro médico, ou fazer qualquer apreciação na
presença do examinado, devendo reservar suas observações para o relatório.
Art. 95º: realizar exames médico-periciais de corpo de delito em seres
humanos no interior de prédios ou de dependências de delegacias de polícia,
unidades militares, casas de detenção e presídios.
Art. 96º: receber remuneração ou gratificação por valores vinculados à glosa
ou ao sucesso da causa, quando na função de perito ou de auditor.
Art. 97º: autorizar, vetar, bem como modificar, quando na função de auditor
ou de perito, procedimentos propedêuticos ou terapêuticos instituídos, salvo,
no último caso, em situações de urgência, emergência ou iminente perigo de
morte do paciente, comunicando, por escrito, o fato ao médico assistente.
Art. 98º: deixar de atuar com absoluta isenção quando designado para servir
como perito ou auditor, bem como ultrapassar os limites de suas atribuições e
de sua competência.

Parágrafo único. O médico tem direito a justa remuneração pela


realização do exame pericial.

l) Capítulo XII – Ensino e pesquisa médica

- São vedados ao médico


Art. 99º: participar de qualquer tipo de experiência envolvendo seres humanos
com fins bélicos, políticos, étnicos, eugênicos ou outros que atentem contra a
dignidade humana.
Art. 100º: deixar de obter aprovação de protocolo para a realização de
pesquisa em seres humanos, de acordo com a legislação vigente.
Art. 101º: deixar de obter do paciente ou de seu representante legal o termo de
consentimento livre e esclarecido para a realização de pesquisa envolvendo
seres humanos, após as devidas explicações sobre a natureza e as
consequências da pesquisa.

Parágrafo único. No caso de o sujeito de pesquisa ser menor de idade,


além do consentimento de seu representante legal, é necessário seu
assentimento livre e esclarecido na medida de sua compreensão.

Art. 102º: deixar de utilizar a terapêutica correta, quando seu uso estiver
liberado no país.

Parágrafo único. A utilização de terapêutica experimental é permitida


quando aceita pelos órgãos competentes e com o consentimento do
paciente ou de seu representante legal, adequadamente esclarecidos da
situação e das possíveis consequências.

Art. 103º: realizar pesquisa em uma comunidade sem antes informá-la e


esclarecê-la sobre a natureza da investigação e deixar de atender ao objetivo
de proteção à Saúde Pública, respeitadas as características locais e a
legislação pertinente.
Art. 104º: deixar de manter independência profissional e científica em relação
a financiadores de pesquisa médica, satisfazendo interesse comercial ou
obtendo vantagens pessoais.
Art. 105º: realizar pesquisa médica em sujeitos direta ou indiretamente
dependentes ou subordinados ao pesquisador.
Art. 106º: manter vínculo de qualquer natureza com pesquisas médicas,
envolvendo seres humanos, que usem placebo em seus experimentos, quando
houver tratamento eficaz e efetivo para a doença pesquisada.
Art. 107º: publicar em seu nome trabalho científico do qual não tenha
participado; atribuir-se autoria exclusiva de trabalho realizado por seus
subordinados ou outros profissionais, mesmo quando executados sob sua
orientação, bem como omitir do artigo científico o nome de quem dele tenha
participado.
Art. 108º: utilizar dados, informações ou opiniões ainda não publicados, sem
referência ao seu autor ou sem sua autorização por escrito.
Art. 109º: deixar de zelar, quando docente ou autor de publicações científicas,
pela veracidade, clareza e imparcialidade das informações apresentadas, bem
como deixar de declarar relações com a indústria de medicamentos, órteses,
próteses, equipamentos, implantes de qualquer natureza e outras que possam
configurar conflitos de interesse, ainda que em potencial.
Art. 110º: praticar a Medicina, no exercício da docência, sem o consentimento
do paciente ou de seu representante legal, sem zelar por sua dignidade e
privacidade ou discriminando aqueles que negarem o consentimento
solicitado.

m) Capítulo XIII – Publicidade médica

- São vedados ao médico


Art. 111º: permitir que sua participação na divulgação de assuntos médicos,
em qualquer meio de comunicação de massa, deixe de ter caráter
exclusivamente de esclarecimento e educação da sociedade.
Art. 112º: divulgar informação sobre assunto médico de forma
sensacionalista, promocional ou de conteúdo inverídico.
Art. 113º: divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou
descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido
cientificamente por órgão competente.
Art. 114º: consultar, diagnosticar ou prescrever por qualquer meio de
comunicação de massa.
Art. 115º: anunciar títulos científicos que não possa comprovar e
especialidade ou área de atuação para a qual não esteja qualificado e
registrado no CRM.
Art. 116º: participar de anúncios de empresas comerciais, qualquer que seja
sua natureza, valendo-se de sua profissão.
Art. 117º: apresentar como originais quaisquer ideias, descobertas ou
ilustrações que na realidade não o sejam.
Art. 118º: deixar de incluir, em anúncios profissionais de qualquer ordem, o
seu número de inscrição no CRM.

Parágrafo único. Dos anúncios de estabelecimentos de saúde devem


constar o nome e o número de registro no CRM do diretor técnico.

n) Capítulo XIV – Disposições gerais

I - O médico portador de doença incapacitante para o exercício profissional,


apurada pelo CRM em procedimento administrativo com perícia médica, terá
seu registro suspenso enquanto perdurar sua incapacidade.
II - Os médicos que cometerem faltas graves previstas neste Código e cuja
continuidade do exercício profissional constitua risco de danos irreparáveis ao
paciente ou à sociedade poderão ter o exercício profissional suspenso
mediante procedimento administrativo específico.
III - O CFM, ouvidos os CRMs e a categoria médica, promoverá a revisão e a
atualização do presente Código quando necessárias.
IV - As omissões deste Código serão sanadas pelo CFM.

C - Comentários ao Código de Ética Médica


De modo geral, muitos princípios foram mantidos, outros atualizados, e
alguns inovaram no novo CEM, e o conteúdo de algumas resoluções do CFM
também foi trazido ao novo Código. Podemos destacar os seguintes tópicos:

Há a separação clara dos princípios fundamentais e dos direitos dos


médicos em relação aos deveres mandamentais;
Deixa claro que o não cumprimento das normas deontológicas sujeitará
os infratores às penas disciplinares;
A natureza do ato médico é personalíssima e não caracteriza relação de
consumo;
A responsabilidade profissional é pessoal, e a culpa não pode ser
presumida;
Traz, tacitamente, o conceito da ortotanásia e dos cuidados paliativos aos
pacientes em situações clínicas irreversíveis e terminais;
Proíbe o médico de abreviar a vida do paciente mesmo com o
consentimento e limita o uso de ações diagnósticas ou terapêuticas
inúteis ou obstinadas nos casos de doença incurável e terminal, sempre
em sintonia com a vontade do paciente;
No caso da ausência de plantonista substituto, a direção técnica do
estabelecimento de saúde deverá providenciar a substituição;
Regulamenta alguns tópicos da RA e terapia genética;
O atendimento médico a distância por telemedicina ou outro método é
regulamentado pelo CFM;
Veda o mercantilismo na Medicina, a dupla cobrança de honorários, o
vínculo com empresas que comercializem planos de financiamento,
cartões de desconto ou consórcios para procedimentos médicos;
Proíbe a quebra do segredo profissional nos casos de investigação
criminal quando possa expor o paciente a processo penal;
O sigilo profissional só pode ser revelado por motivo justo, dever legal
ou consentimento por escrito do paciente;
Proíbe o médico de fazer referências a casos clínicos identificáveis,
exibir pacientes ou fotos em anúncios ou divulgação de assuntos
médicos nos meios de comunicação em geral, mesmo com autorização
dos pacientes;
Regulamenta o prontuário médico quanto à forma, à guarda e ao
fornecimento de cópias;
Veda a realização de exames médico-periciais de corpo de delito em
seres humanos em delegacias de polícia, unidades militares, casas de
detenção e presídios;
O médico perito ou auditor não pode ter sua remuneração ou gratificação
vinculada à glosa ou ao sucesso da causa;
Nas pesquisas em menor de idade, além do consentimento do
responsável legal, é necessária a concordância do menor na medida de
sua compreensão;
Veda o uso de placebo nas pesquisas envolvendo seres humanos quando
houver tratamento eficaz e efetivo para a doença pesquisada;
O médico nas pesquisas deve zelar pela veracidade, clareza e
imparcialidade, assim como declarar conflitos de interesse com relação a
indústrias de remédios, próteses, equipamentos etc.;
Os anúncios médicos devem conter o número da inscrição no CRM;
Há a suspensão cautelar do exercício profissional nos casos de faltas
graves, para evitar danos irreparáveis ao paciente e à sociedade.

Dica
O que não se pode deixar de atentar é para o fato de que as provas colocam
situações referentes a determinado artigo e perguntam se referem aos
capítulos em específico, como direito médico, disposição geral etc. O
principal não é memorizar cada um dos capítulos, e sim identificá-los no
enunciado.
5. Tópicos relacionados

A - Alta médica

O médico pode negar-se a conceder alta a paciente sob seus cuidados quando
considerar que isso possa acarretar-lhe risco de morte. Se o paciente, os
responsáveis ou os familiares tomarem a decisão de transferência, deverão
responsabilizar-se pelo ato por escrito. Nesse caso, o médico também tem o
direito de passar a assistência que vinha prestando para outro profissional
indicado, ou aceito pelo paciente, ou pela família, documentando as razões da
medida. A decisão sobre a alta é técnica, ou seja, só o médico pode
manifestar-se tecnicamente sobre a necessidade ou não de o paciente
permanecer internado; portanto, o termo “alta a pedido” não tem qualquer
relação com o julgamento técnico do médico, sendo apenas um ato
administrativo.
Ao médico compete fazer o que julgar melhor para assistir o paciente. Porém,
esse poder é limitado e se subordina à aceitação deste, se tiver capacidade de
autodeterminar-se ou de alguém que possa falar por ele – por
consanguinidade ou delegações legítimas de outra natureza, inclusive as
constituídas por decisão judicial. O Código Civil traz no Art. 15 o seguinte
preceito legal: “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de
vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”, que vai ao encontro do
princípio da autonomia da vontade do paciente.

Importante
A questão da alta a pedido deve ser bem discutida, pois no dia a dia vemos
essa situação com frequência e não nos atentamos que, do ponto de vista
do julgamento técnico do médico, ela não tem valor na avaliação, sendo
considerada um problema muito comum na vida médica.

B - Abandono do paciente

Iniciado o tratamento, o médico não pode abandonar o paciente, a menos que


tenham ocorrido fatos que comprometam a relação entre ambos e o
desempenho profissional. Nesse caso, o paciente (ou o responsável) deve ser
informado. O médico, por sua vez, deve expor os motivos do desligamento e
assegurar-se de que haverá continuidade na assistência prestada, sem prejuízo
ao tratamento.
C - Exames compulsórios

Compõem-se de teste sorológico ou outros exames (para HIV ou outro exame


qualquer).
O exame anti-HIV deve ser voluntário, após informações completas e
adequadas ao paciente quanto à finalidade.
O paciente que se recusa a ser testado não deve ter prejuízos em sua
assistência em decorrência de tal decisão.
O CFM decidiu que é vedada a realização compulsória de sorologia para HIV,
em especial como condição necessária a internamento hospitalar, pré-
operatório, ou exames pré-admissionais ou periódicos e, ainda, em
estabelecimentos prisionais.

D - Terapias alternativas

O CEM veda ao médico “usar experimentalmente qualquer tipo de terapêutica


ainda não liberada para uso no país, sem a devida autorização dos órgãos
competentes e sem o consentimento do paciente ou do responsável legal,
devidamente informado da situação e das possíveis consequências”.

E - Sigilo profissional

Este é um tema bastante abordado no CEM no Capítulo IX, bem como no


Código Penal Brasileiro.
É vedado ao médico:
“Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua
profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito,
do paciente.
Parágrafo único. Permanece essa proibição:

Mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha


falecido;
Quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico
comparecerá perante a autoridade e declarará o seu impedimento;
Na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de
revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal.”

“Revelar sigilo profissional relacionado a paciente menor de idade, inclusive


a seus pais ou representantes legais, desde que o menor tenha capacidade de
discernimento, salvo quando a não revelação possa acarretar dano ao
paciente”.
O médico deve manter sigilo quanto às informações confidenciais de que tem
conhecimento no desempenho de suas funções. O mesmo se aplica ao
trabalho em empresas, exceto nos casos em que seu silêncio prejudique ou
ponha em risco a saúde do trabalhador ou da comunidade.
Art. 154 do Código Penal: “revelar a alguém, sem justa causa, segredo de que
tem ciência em razão de função de ministério, ofício ou profissão, e cuja
revelação possa produzir dano a outrem”. A pena compreende detenção de 3
meses a 1 ano ou multa.

a) Código de Processo Penal

Art. 207: “são proibidas de depor as pessoas que, em razão de função,


ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas
pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho”.

b) Código de Processo Civil

Art. 407: “a testemunha não é obrigada a depor de fatos: II – a cujo respeito,


por estado ou profissão, deva guardar sigilo”.

c) Quebra do sigilo

A quebra do sigilo profissional pode ocorrer em 3 situações: motivo justo,


dever legal ou consentimento por escrito do paciente.
O sigilo profissional deve ser rigorosamente respeitado em relação aos
pacientes com HIV. Isso se aplica, inclusive, aos casos em que o paciente
deseja que a condição não seja revelada sequer aos familiares, persistindo a
proibição de quebra de sigilo mesmo após a sua morte. No caso de possível
contaminação de um terceiro (por exemplo, parceiro sexual), podemos
configurar motivo justo e revelar ao contactuante.
O médico que presta serviços a uma empresa está proibido de revelar o
diagnóstico do funcionário ou candidato a emprego, inclusive ao empregador
e à seção de pessoal da empresa, cabendo-lhe informar, exclusivamente,
quanto à capacidade ou não de exercer determinada função.
O dever legal da quebra do sigilo profissional está previsto em lei como nos
casos das doenças de notificação compulsória, declaração de óbito, casos de
morte encefálica (Lei de Transplantes), maus-tratos contra a criança e o
adolescente (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), doenças e
acidentes relacionados ao trabalho, maus-tratos contra idosos (Estatuto do
Idoso) e violência contra a mulher (Lei nº 10.778/03).

Importante
A quebra de sigilo profissional pode ocorrer por motivo justo,
consentimento por escrito do paciente e por dever legal, sendo esses temas
importantes para a sua preparação.

F - Responsabilidade médica

O médico deve ser responsável por todos os seus atos nas esferas ética,
administrativa, cível e criminal, principalmente ao realizar atos médicos e
assinar documentos médicos. Apesar de a assinatura ser atividade rotineira em
sua vida, o profissional não pode se esquecer da responsabilidade que ele
assume com esse ato: um atestado, uma receita ou um laudo.
O novo CEM traz como novidade que a responsabilidade profissional nunca é
presumida, portanto deve ser provada dentre uma das modalidades de culpa
(imperícia, imprudência ou negligência). A atuação profissional do médico
não caracteriza relação de consumo. Exceção se faz aos procedimentos
estéticos (cirurgias plásticas, por exemplo).

6. Documentos médicos

Importante
Os aspectos éticos e legais, como sigilo médico e responsabilidade médica,
também se aplicam aos documentos médicos, porém a Constituição de
1988 permite o habeas data, que é o direito de saber ou ter conhecimento
das informações relativas à pessoa que busca as informações.

Entende-se por documento qualquer base de conhecimento fixada


materialmente e disposta de maneira que se possa utilizar para consulta,
estudo, prova etc. Nessa definição, documentos médicos são todos aqueles
diariamente elaborados e guardados pelo médico.
Os aspectos éticos e legais são muito importantes e devem ser lembrados,
dentre os quais se destacam o sigilo médico e a responsabilidade médica.
As fichas clínicas, os arquivos ou os prontuários médicos constituem
elemento fundamental para a prática clínica cotidiana, pois neles estão
guardadas todas as informações sobre os pacientes. São, portanto,
documentos sigilosos, e todo cuidado tem de ser tomado para que o seu
conteúdo não seja revelado por todos que os manuseiam. Convém lembrar
que a Constituição de 1988 prevê o habeas data, isto é, o direito de conhecer
os elementos relativos à sua pessoa que constem de registros ou banco de
dados.

A - Fichas clínicas

As fichas clínicas são documentos cujas responsabilidades de redigir e de


arquivar são do médico. A utilização é exclusiva deste em nova consulta, em
pesquisa clínica, ou para atestar fatos verificados no atendimento clínico. São
documentos decorrentes, diretamente, da relação médico-paciente, portanto,
em caso de falecimento do médico, devem ser destruídos ou devolvidos ao
paciente.

B - Prontuário clínico

Prontuário clínico é o registro feito pelo(s) médico(s) dos comemorativos do


paciente, de um hospital, de uma clínica ou de grupos de médicos. Estes,
diferentemente do consultório particular, são centralizados na instituição, e
esta é a responsável pela sua guarda. É o conjunto de documentos
padronizados, destinados ao registro da assistência prestada ao paciente desde
a sua matrícula até a sua alta. O médico incorrerá em falta ética grave se
deixar de elaborá-lo.
Atualmente, com a grande quantidade de informações anexadas a tal registro,
muitas instituições se utilizam de registros informatizados, os quais devem
seguir as diretrizes gerais de confidencialidade e armazenagem.

C - Receituários e prescrições médicas

São documentos de que constam os medicamentos utilizados em determinado


quadro, como devem ser ministrados, diretrizes de dietas e orientações gerais
ao paciente.
O receituário comum deve ter um cabeçalho de que constem os dados da
instituição e do médico, o endereço, o número de inscrição no CRM etc.

- Receituários especiais, receita A (amarela) e receita B


(azul)
Além dos itens constantes do receituário comum, o receituário especial deve
ser feito em 2 vias carbonadas, devendo constar nome e endereço do paciente,
e a sua utilização é limitada a 6 caixas por paciente. A receita A, impressa na
cor amarela, é fornecida por autoridade sanitária local (Vigilância Sanitária),
pessoalmente aos profissionais habilitados, e pode conter até 5 ampolas ou
uma apresentação comercial do medicamento receitado. A receita B, na cor
azul, é impressa pelo próprio médico ou instituição segundo modelo
padronizado, e sua numeração de controle é fornecida pela autoridade
sanitária local. Nela poderão ser prescritas até 5 ampolas injetáveis ou 3
unidades de apresentação comercial (3 caixas) para uso oral. Em linhas gerais,
os medicamentos entorpecentes são controlados via receituário amarelo
(morfina, por exemplo), e os psicotrópicos, via receituário azul (como
benzodiazepínicos).

7. Atestados médicos
Trata-se da afirmação simples e por escrito de um fato médico e suas
consequências. São sempre de muita responsabilidade, não importando a sua
finalidade e incorrendo nas penas da lei. Assim, de acordo com o Código
Penal, fica vedado ao médico:
Art. 302: “dar o médico, no exercício de sua profissão, atestado falso”. A pena
compreende detenção de 1 mês a 1 ano.
O novo CEM prevê no Art. 80 que é vedado ao médico “expedir documento
médico sem ter praticado ato profissional que o justificasse, que seja
tendencioso ou que não corresponda à verdade”.

A - Classificação

Idôneo: expedido pelo profissional habilitado, e o seu conteúdo expressa a


veracidade do ato;
Gracioso: fornecido sem a prática do ato profissional que o justifique, não
importando se gratuitamente ou pago, ou ainda por “caridade, humanidade,
amizade, motivos políticos”. É sempre antiético e pode transformar-se em
imprudente ou falso;
Imprudente: fornecido por um médico particular para fins administrativos,
sabendo-se que a empresa ou repartição têm serviço médico próprio;
Falso: aquele que, na sua expressão, falta com a verdade, dolosamente. É
crime previsto no Código Penal como falsidade ideológica.
B - Boletim médico

Consiste em um pequeno escrito noticioso no qual o médico presta


informações sobre a situação de saúde do paciente. Neste tópico, é
fundamental ressaltar os artigos do CEM que regem sobre a revelação do
sigilo médico, sendo a revelação do estado de saúde de imprescindível
autorização do paciente ou seu responsável legal.

C - Notificações compulsórias

São comunicações compulsórias feitas pelos médicos às autoridades


competentes de um fato profissional, por necessidade social ou sanitária,
como acidente do trabalho, doenças infectocontagiosas, uso habitual de
substâncias entorpecentes ou crime de ação pública, de que tiverem
conhecimento, e que não exponham o cliente a procedimento criminal. O não
cumprimento desses dispositivos incorre em infração ética e penal do
profissional passível de punição.

D - Parecer médico

É a resposta à consulta feita por interessado a 1 ou mais médicos, à comissão


de profissionais ou à sociedade científica sobre fatos referentes à questão a ser
estabelecida. Sua resposta visa apresentar fundamentos legais e éticos para
uma conclusão que tenta esclarecer as dúvidas em questão.

E - Perícia e relatório médico-legal

A perícia médico-legal é toda sindicância promovida por autoridade policial


ou judiciária na qual a natureza do exame prescinde de realização por médico.
O Relatório Médico-Legal expressa todas as operações de uma perícia
médica. Receberá o nome de auto quando ditado ao escrivão logo após o
exame ou laudo caso seja redigido pelo próprio perito. Dele devem constar
preâmbulo, quesitos, histórico, descrição, discussão, conclusões e respostas
aos quesitos solicitados.

8. Código de Processo Ético-Profissional


(Resolução CFM nº 2.145/16)

Dica
Os processos ético-profissionais são regidos pelo CEM, e a competência
para julgar infrações éticas será do Conselho Regional de Medicina em que
o médico estiver inscrito.

Assim como no Direito, os processos administrativos contra médicos devem


seguir uma norma estabelecida e amplamente divulgada, na qual se destaca o
direito fundamental da ampla defesa do acusado.
O processo ético-profissional se regerá por esse Código. A competência para
julgar infrações éticas será do CRM em que o médico estiver inscrito. No
caso de a infração ética ter ocorrido em local onde o médico não tenha
inscrição, a apuração será realizada onde ocorreu o fato.
A sindicância é um procedimento informativo com o objetivo de verificar a
ocorrência de uma infração ética. Pode ter início a partir de uma denúncia
escrita ou tomada a termo da qual constem o relato dos fatos e a identificação
completa do denunciante. O CRM pode instaurar a sindicância de ofício (ex
officio) por sua própria deliberação, ao tomar conhecimento de denúncia
formulada por conselheiro. As Comissões de Ética Médica, Delegacias
Regionais ou Representações poderão instaurar sindicância quando tiverem
ciência do fato com supostos indícios de infração ética. Concluída a
sindicância, é elaborado um relatório a ser apresentado ao presidente do
Conselho, que designará a inclusão em pauta de Sessão Plenária para
apreciação do fato. Do julgamento do relatório da sindicância pode resultar
arquivamento da denúncia ou instauração de processo ético-profissional.
O processo ético-profissional segue um rito processual determinado:

O denunciado receberá notificação para apresentar defesa prévia com rol


de testemunhas no prazo de 30 dias. Se o denunciado não for encontrado
ou for revel, o presidente do Conselho designará defensor dativo;
O conselheiro instrutor poderá determinar diligências que julgar
necessárias;
Concluída a instrução, será aberto prazo de 15 dias para a apresentação
das razões finais;
O conselheiro instrutor proferirá relatório circunstanciado, que será
encaminhado ao presidente do CRM;
Depoimento do denunciante;
Oitiva (depoimento) de testemunhas;
Depoimento do denunciado;
O presidente do Conselho, após o recebimento do processo devidamente
instruído, designará o conselheiro relator e o revisor que elaborarão
relatórios;
Sessão de Câmara para julgamento. Após as exposições efetuadas pelo
relator e revisor, o presidente dará a palavra ao denunciante e ao
denunciado, por 10 minutos para sustentação oral. Depois, há a votação;
proferidos os votos, o presidente anuncia o resultado do julgamento, e,
posteriormente, é elaborado o acórdão. O julgamento disciplinar será a
portas fechadas, permitida a presença das partes e dos seus procuradores;
Das decisões da Câmara, cabe recurso ao CFM.

Transitada em julgado a sentença, isto é, quando não couber mais recursos, as


penalidades impostas serão executadas pelos CRMs e pelo CFM.
As penas disciplinares aplicáveis aos infratores de ética profissional estão
previstas no Art. 22 da Lei Federal nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, e
são:

Advertência confidencial, em aviso reservado;


Censura confidencial, em aviso reservado;
Censura pública em publicação oficial;
Suspensão do exercício profissional, por até 30 dias;
Cassação do exercício profissional.

9. Normas de publicidade médica


Conforme a Resolução CFM nº 1.974/11, que estabelece os critérios
norteadores da propaganda em Medicina, os anúncios médicos devem conter
dados referentes à inscrição do profissional no CRM. Só pode ser anunciada
especialidade reconhecida pelo CRM por médicos registrados no quadro de
especialistas do órgão. Por ocasião de entrevistas, comunicações, publicações
de artigos e informações ao público, o médico deve evitar a autopromoção e o
sensacionalismo.
Os boletins médicos devem ser elaborados de modo sóbrio, impessoal e
verídico, rigorosamente fiel ao segredo médico.
É proibido ao médico anunciar cura de determinadas doenças para as quais
não haja tratamento próprio, exercício de mais de 2 especialidades, consultas
por meio de correspondência, imprensa, caixa postal, rádio ou processos
análogos, prestação de serviços gratuitos em consultórios particulares e
especialidade ainda não reconhecida pelo respectivo ensino profissional.
Com a diversificação das redes sociais, houve a necessidade de alterações na
Resolução para atender essa demanda. Assim, a Resolução CFM 2.126/15 e a
Resolução 2.133/15 atualizam a questão.
10. Reprodução humana assistida
No Brasil, até a presente data, não há legislação específica a respeito da RA.
Tramitam no Congresso Nacional, há anos, diversos projetos a respeito do
assunto, mas nenhum deles chegou a termo.
Os aspectos médicos envolvendo a totalidade das circunstâncias da aplicação
da RA são detalhadamente expostos na Resolução CFM nº 2.168/2017.

A - Princípios gerais

As técnicas de RA têm o papel de auxiliar na resolução dos problemas de


reprodução humana, facilitando o processo de procriação;
As técnicas de RA podem ser utilizadas na preservação social e/ou oncológica
de gametas, embriões e tecidos germinativos;
As técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade de
sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para o(a) paciente ou o
possível descendente:

1º - A idade máxima das candidatas a gestação por técnicas de RA é de


50 anos.
2º - As exceções a esse limite serão aceitas com base em critérios
técnicos e científicos fundamentados pelo médico responsável quanto à
ausência de comorbidades da mulher e após esclarecimento ao(s)
candidato(s) quanto aos riscos envolvidos para a paciente e para os
descendentes eventualmente gerados a partir da intervenção,
respeitando-se a autonomia da paciente.

O consentimento livre e esclarecido será obrigatório para todos os pacientes


submetidos às técnicas de RA. Os aspectos médicos envolvendo a totalidade
das circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão detalhadamente
expostos, bem como os resultados obtidos naquela unidade de tratamento com
a técnica proposta. As informações também devem atingir dados de caráter
biológico, jurídico e ético. O documento de consentimento livre e esclarecido
será elaborado em formulário especial e estará completo com a concordância,
por escrito, obtida a partir de discussão bilateral entre as pessoas envolvidas
nas técnicas de RA;
As técnicas de RA não podem ser aplicadas com a intenção de selecionar o
sexo (presença ou ausência de cromossomo Y) ou qualquer outra
característica biológica do futuro filho, exceto para evitar doenças no possível
descendente;
É proibida a fecundação de oócitos humanos com qualquer outra finalidade
que não a procriação humana;
Quanto ao número de embriões a serem transferidos, fazem-se as seguintes
determinações de acordo com a idade:

Mulheres até 35 anos: até 2 embriões;


Mulheres entre 36 e 39 anos: até 3 embriões;
Mulheres com 40 anos ou mais: até 4 embriões;
Nas situações de doação de oócitos e embriões, considera-se a idade da
doadora no momento da coleta dos oócitos. O número de embriões a
serem transferidos não pode ser superior a 4;

Em caso de gravidez múltipla decorrente do uso de técnicas de RA, é proibida


a utilização de procedimentos que visem à redução embrionária.

B - Pacientes das técnicas de reprodução assistida


Todas as pessoas capazes, que tenham solicitado o procedimento e cuja
indicação não se afaste dos limites desta resolução, podem ser receptoras das
técnicas de RA, desde que os participantes estejam de inteiro acordo e
devidamente esclarecidos, conforme legislação vigente;
É permitido o uso das técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e
pessoas solteiras, respeitado o direito a objeção de consciência por parte do
médico;
É permitida a gestação compartilhada em união homoafetiva feminina em que
não exista infertilidade. Considera-se gestação compartilhada a situação em
que o embrião obtido a partir da fecundação do(s) oócito(s) de uma mulher é
transferido para o útero de sua parceira.

C - Referente a clínicas, centros ou serviços que


aplicam técnicas de reprodução assistida

As clínicas, centros ou serviços que aplicam técnicas de RA são responsáveis


pelo controle de doenças infectocontagiosas, pela coleta, pelo manuseio, pela
conservação, pela distribuição, pela transferência e pelo descarte de material
biológico humano dos pacientes das técnicas de RA. Devem apresentar, como
requisitos mínimos:

Um diretor técnico (obrigatoriamente um médico registrado no Conselho


Regional de Medicina de sua jurisdição) com registro de especialista em
áreas de interface com a RA, que será responsável por todos os
procedimentos médicos e laboratoriais executados;
Um registro permanente (obtido por meio de informações observadas ou
relatadas por fonte competente) das gestações, dos nascimentos e das
malformações de fetos ou recém-nascidos provenientes das diferentes
técnicas de RA aplicadas na unidade em apreço, bem como dos
procedimentos laboratoriais na manipulação de gametas e embriões;
Um registro permanente dos exames laboratoriais a que são submetidos
os pacientes, com a finalidade precípua de evitar a transmissão de
doenças;

Os registros deverão estar disponíveis para fiscalização dos Conselhos


Regionais de Medicina.
D - Doação de gametas ou embriões

A doação não poderá ter caráter lucrativo ou comercial;


Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa;
A idade-limite para a doação de gametas é de 35 anos para a mulher e de 50
anos para o homem;
Será mantido, obrigatoriamente, sigilo sobre a identidade dos doadores de
gametas e embriões, bem como dos receptores. Em situações especiais,
informações sobre os doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas
exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do(a)
doador(a);
As clínicas, centros ou serviços onde são feitas as doações devem manter, de
forma permanente, um registro com dados clínicos de caráter geral,
características fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores, de
acordo com legislação vigente;
Na região de localização da unidade, o registro dos nascimentos evitará que
um(a) doador(a) tenha produzido mais de 2 gestações de crianças de sexos
diferentes em uma área de 1 milhão de habitantes. Um(a) mesmo(a) doador(a)
poderá contribuir com quantas gestações forem desejadas, desde que em uma
mesma família receptora;
A escolha das doadoras de oócitos é de responsabilidade do médico assistente.
Dentro do possível, deverá garantir que a doadora tenha a maior semelhança
fenotípica com a receptora;
Não será permitido aos médicos, funcionários e demais integrantes da equipe
multidisciplinar das clínicas, unidades ou serviços participar como doadores
nos programas de RA;
É permitida a doação voluntária de gametas, bem como a situação
identificada como doação compartilhada de oócitos em RA, em que doadora e
receptora, participando como portadoras de problemas de reprodução,
compartilham tanto do material biológico quanto dos custos financeiros que
envolvem o procedimento de RA. A doadora tem preferência sobre o material
biológico que será produzido.

E - Criopreservação de gametas ou embriões

As clínicas, centros ou serviços podem criopreservar espermatozoides,


oócitos, embriões e tecidos gonádicos;
O número total de embriões gerados em laboratório será comunicado aos
pacientes para que decidam quantos embriões serão transferidos a fresco,
conforme determina esta Resolução. Os excedentes, viáveis, devem ser
criopreservados;
No momento da criopreservação, os pacientes devem manifestar sua vontade,
por escrito, quanto ao destino a ser dado aos embriões criopreservados em
caso de divórcio ou dissolução de união estável, doenças graves ou
falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los;
Os embriões criopreservados com 3 anos ou mais poderão ser descartados se
esta for a vontade expressa dos pacientes;
Os embriões criopreservados e abandonados por 3 anos ou mais poderão ser
descartados;

Parágrafo único. Embrião abandonado é aquele em que os responsáveis


descumpriram o contrato preestabelecido e não foram localizados pela
clínica.

F - Diagnóstico genético pré-implantação de embriões

As técnicas de RA podem ser aplicadas à seleção de embriões submetidos a


diagnóstico de alterações genéticas causadoras de doenças – podendo, nesses
casos, ser doados para pesquisa ou descartados, conforme a decisão do(s)
paciente(s) devidamente documentada em consentimento informado livre e
esclarecido específico;
As técnicas de RA também podem ser utilizadas para tipagem do sistema
HLA do embrião, no intuito de selecionar embriões HLA-compatíveis com
algum irmão já afetado pela doença e cujo tratamento efetivo seja o
transplante de células-tronco, de acordo com a legislação vigente.
O tempo máximo de desenvolvimento de embriões in vitro será de até 14 dias.

G - Sobre a gestação de substituição (cessão


temporária do útero)

As clínicas, centros ou serviços de RA podem usar técnicas de RA para


criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que
exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na
doadora genética, em união homoafetiva ou pessoa solteira.
A cedente temporária do útero deve pertencer à família de um dos parceiros,
em parentesco consanguíneo até o 4º grau (1º grau – mãe/filha; 2º grau –
avó/irmã; 3º grau – tia/sobrinha; 4º grau – prima). Demais casos estão sujeitos
à autorização do Conselho Regional de Medicina;
A cessão temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial;
Nas clínicas de RA, os seguintes documentos e observações deverão constar
no prontuário da paciente:

Termo de consentimento livre e esclarecido assinado pelos pacientes e


pela cedente temporária do útero, contemplando aspectos
biopsicossociais e riscos envolvidos no ciclo gravídico-puerperal, bem
como aspectos legais da filiação;
Relatório médico com o perfil psicológico, atestando adequação clínica e
emocional de todos os envolvidos;
Termo de Compromisso entre o(s) paciente(s) e a cedente temporária do
útero (que receberá o embrião em seu útero), estabelecendo claramente a
questão da filiação da criança;
Compromisso, por parte do(s) paciente(s) contratante(s) de serviços de
RA, de tratamento e acompanhamento médico, inclusive por equipes
multidisciplinares, se necessário, à mãe que cederá temporariamente o
útero, até o puerpério;
Compromisso do registro civil da criança pelos pacientes (pai, mãe ou
pais genéticos), devendo esta documentação ser providenciada durante a
gravidez;
Aprovação do cônjuge ou companheiro, apresentada por escrito, se a
cedente temporária do útero for casada ou viver em união estável.

H - Reprodução assistida post mortem

É permitida a RA post mortem desde que haja autorização prévia específica


do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo
com a legislação vigente.

11. Ato médico


Ato médico, ou ato profissional de médico, é a ação ou o procedimento
profissional praticado por um médico com os objetivos gerais de prestar
assistência médica, investigar as enfermidades ou a condição de enfermo ou
ensinar disciplinas médicas. Toda ação ou procedimento deve estar voltado
para a melhoria do bem-estar das pessoas, a profilaxia ou o diagnóstico de
enfermidades, a terapêutica ou a reabilitação de enfermos. O ato médico deve
ser exercido sempre de boa fé e em benefício de quem dele necessita.
O exercício é função privativa de quem é formado em Medicina em
estabelecimento educacional oficial ou oficialmente reconhecido. Exige-se
também a inscrição no CRM da região de exercício profissional. Os atos
médicos podem ser privativos de profissional médico ou compartilhados com
outros profissionais.
Temos 2 características essenciais da atividade médica que a diferenciam das
demais atividades: a vulnerabilidade do paciente diante do médico e a
incerteza deste perante as medidas terapêuticas, que o caracterizam como
profissional responsável pelo empenho, e não pelo resultado que elas
alcançam.
A Medicina deve lidar com 2 complexidades: a do seu objeto (as
enfermidades, os seres humanos e as interações entre eles) e a dos seus
recursos e dos métodos diagnósticos e terapêuticos utilizados.
A relação médico-paciente tem 3 aspectos fundamentais:

Uma relação socioeconômica, pois todo ato profissional presume a


existência de um contrato de prestação de serviço (explícito ou não);
Uma relação técnico-científica, pois todo ato médico deve ser uma
atividade cientificamente fundamentada;
Uma relação intersubjetiva de ajuda, entre alguém que dela necessita e
alguém que pode oferecê-la.

A Medicina tem 5 funções sociais: assistência aos enfermos, pesquisa sobre as


doenças e sobre os doentes, ensino das matérias médicas, exercício da perícia
e supervisão das auditorias técnicas médicas. O CFM, na Resolução nº
1.627/2001, definiu o ato médico como “todo e qualquer procedimento
técnico-profissional praticado por médico legalmente habilitado e dirigido
para:

A promoção da saúde e a prevenção da ocorrência de enfermidades ou


profilaxia (prevenção primária);
A prevenção da evolução das enfermidades ou a execução de
procedimentos diagnósticos ou terapêuticos (prevenção secundária);
A prevenção da invalidez ou reabilitação dos enfermos (prevenção
terciária).”

Em 2013, a então presidente Dilma Rousseff sancionou, com 10 vetos, a lei


que disciplina o exercício da Medicina no país. A questão mais polêmica,
referente à responsabilidade pela formulação do diagnóstico e pela prescrição
terapêutica, foi vetada pela presidente com a justificativa de evitar prejudicar
inúmeros programas do Sistema Único de Saúde. A norma determina que são
privativas do médico atividades como indicação e execução de intervenção
cirúrgica, sedação profunda e procedimentos invasivos (terapêuticos ou
estéticos), como biópsias, endoscopias e acessos vasculares profundos.
Também são privativos do médico perícia e auditoria médicas, ensino de
disciplinas especificamente médicas e coordenação dos cursos de graduação
em Medicina, dos programas de Residência Médica e dos cursos de pós-
graduação específicos para médicos. A direção administrativa de serviços de
saúde, porém, pode ser exercida por outro profissional.
Os vetos permitem que a aplicação de injeção, sucção, punção e drenagem
sejam feitas por outros profissionais, bem como a “invasão da epiderme e
derme com o uso de produtos químicos ou abrasivos” (peeling facial, por
exemplo). A justificativa é que o projeto de lei transformaria a prática da
acupuntura em privativa dos médicos, o que iria contra a Política Nacional de
Práticas Integrativas e Complementares do Sistema Único de Saúde. Além
disso, outros profissionais de saúde podem formular o diagnóstico e a
respectiva prescrição terapêutica, além de indicar o uso de órteses e próteses e
de prescrever órteses e próteses oftalmológicas.

Dica
Os vetos presidenciais sancionados em 2013 para a lei que disciplina o
exercício da Medicina no país preveem que outros profissionais de saúde
formulem o diagnóstico e a respectiva prescrição terapêutica.

12. Programa Nacional de Segurança do


Paciente
Hipócrates (460 a 370 a.C.) cunhou o postulado primum non nocere, que
significa “primeiro não cause dano”. O pai da Medicina tinha a noção, desde
aquela época, de que o cuidado poderia causar algum tipo de dano.
A partir da divulgação do relatório “To Err is Human”, do Institute of
Medicine, o tema segurança do paciente ganhou relevância. Esse relatório se
baseou em 2 pesquisas de avaliação da incidência de Eventos Adversos (EAs)
em revisões retrospectivas de prontuários, realizadas em hospitais de Nova
York, Utah e Colorado. Nessas pesquisas, o termo EA foi definido como dano
causado pelo cuidado à saúde e não pela doença de base, que prolongou o
tempo de permanência do paciente ou resultou em incapacidade presente no
momento da alta. O relatório apontou que cerca de 100 mil pessoas morreram
em hospitais a cada ano vítimas de EAs nos Estados Unidos e que estes
eventos representavam, além do dano para as pessoas, grave prejuízo
financeiro. No Reino Unido e na Irlanda do Norte, o prolongamento do tempo
de permanência no hospital devido aos EAs custou cerca de 2 bilhões de
libras ao ano, e o gasto do Sistema Nacional de Saúde com questões litigiosas
associadas a EAs foi de 400 milhões de libras ao ano. Nos Estados Unidos, os
gastos anuais decorrentes de EAs foram estimados entre 17 e 29 bilhões de
dólares anuais.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2004, demonstrando
preocupação com a situação, criou a World Alliance for Patient Safety. Os
objetivos desse programa (que passou a chamar-se Patient Safety Program)
eram, entre outros, organizar os conceitos e as definições sobre segurança do
paciente e propor medidas para reduzir riscos e mitigar os EAs. Dada a
divergência entre as definições de erro em saúde e EA, a OMS desenvolveu a
Classificação Internacional de Segurança do Paciente (International
Classification for Patient Safety – ICPS). O Centro Colaborador para a
Qualidade do Cuidado e a Segurança do Paciente traduziu os conceitos chave
do ICPS para a língua portuguesa. Vide, na Tabela 4, alguns desses conceitos.
Neste contexto, por meio da Portaria MS/GM nº 529, de 1º de abril de 2013,
foi instituído o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP) e
definido o Comitê de Implementação do Programa Nacional de Segurança do
Paciente – o CIPNSP, colegiado, de caráter consultivo, para promover ações
de melhoria da segurança do cuidado em saúde.
O PNSP apresenta:
Objetivo principal: contribuir para a qualificação do cuidado em saúde em
todos os estabelecimentos de saúde do território nacional, quer sejam
públicos, quer sejam privados.
Objetivos específicos:

Implantar a gestão de risco e os Núcleos de Segurança do Paciente


(NSPs) nos estabelecimentos de saúde;
Envolver os pacientes e familiares nas ações;
Ampliar o acesso da sociedade às informações;
Produzir, sistematizar e difundir conhecimentos;
Fomentar a inclusão do tema segurança do paciente no ensino técnico e
de graduação e pós-graduação na área da saúde.

O PNSP possui 4 eixos que serão detalhados a seguir. A cultura de segurança


do paciente é o elemento que perpassa todos esses eixos, então a Portaria
MS/GM nº 529/2013 dedicou espaço específico para esse conceito (vide
Tabela 5).

O conceito de que o profissional de saúde não comete erros é muito difundido


na sociedade; porém, a partir do entendimento da premissa de que “errar é
humano”, defende-se que não se podem organizar os serviços de saúde sem
considerar que os profissionais irão errar. Cabe ao sistema, contudo, criar
mecanismos para evitar que o erro atinja o paciente. Diversos autores se
dedicaram ao tema, e a definição de erro da OMS – falha na execução de uma
ação planejada de acordo com o desejado ou o desenvolvimento incorreto de
um plano – foi desenvolvida com base nas definições de James Reason.
Associadamente, o entendimento de que os erros podem ser ativos (atos
inseguros cometidos por quem está em contato direto com o sistema, como
uma troca de medicamento no momento da administração) ou latentes (atos
ou ações evitáveis dentro do sistema, que surgem a partir da gestão, como a
falta de medicamento no hospital) justifica o modelo de “barreiras” para
impedir que o erro chegue ao paciente. Esse modelo pressupõe uma
abordagem sistêmica para gerenciar o erro ou a falha em camadas (ou
barreiras). As diversas barreiras que precisam ser atravessadas a fim de que
um erro chegue ao paciente podem ser: profissionais atualizados, uso de
protocolos clínicos, checklists cirúrgicos, protocolos de higiene das mãos,
dose unitária de medicamentos etc. O princípio norteador dessa abordagem é
de que os EAs não são causados por pessoas más, e sim por sistemas que
foram mal desenhados e produzem resultados ruins, mudando o foco anterior
do erro do individual para os defeitos do sistema.
O PNSP possui 4 eixos principais (Figura 1).
Figura 1 - Eixos do Programa Nacional de Segurança do Paciente

De forma mais detalhada:


Eixo 1 – Estímulo a uma prática assistencial segura:
- Os Protocolos:
A Portaria MS/GM nº 529/2013 estabelece que um conjunto de protocolos
básicos, definidos pela OMS, deve ser elaborado e implantado: prática de
higiene das mãos em estabelecimentos de saúde; cirurgia segura; segurança na
prescrição, uso e administração de medicamentos; identificação de pacientes;
comunicação no ambiente dos estabelecimentos de saúde; prevenção de
quedas; úlceras por pressão; transferência de pacientes entre pontos de
cuidado; uso seguro de equipamentos e materiais.
- Planos (locais) de segurança do paciente dos estabelecimentos de saúde:
São planos desenvolvidos pelos NSPs nos estabelecimentos de Saúde. A
Classificação Internacional de Segurança do Paciente da OMS pretende
fornecer uma compreensão global do domínio da segurança do paciente. Tem
como objetivo representar um ciclo de aprendizagem e de melhoria contínua,
realçando a identificação, a prevenção, a detecção e a redução do risco, a
recuperação do incidente e a resiliência do sistema.
Para a organização do plano, é importante conhecer os fatores contribuintes,
que são circunstâncias, ações ou influências que desempenham um papel na
origem ou no desenvolvimento de um incidente ou no aumento do risco de
incidente. Os fatores podem ser:

I - Humanos: relacionados ao profissional.


II - Sistêmicos: relacionados ao ambiente de trabalho.
III - Externos: relacionados a fatores fora da governabilidade do gestor.
IV - Relacionados ao paciente: por exemplo, não adesão ao tratamento.

Conhecer e modificar o fator contribuinte de um incidente é uma ação de


prevenção primária.
Para a elaboração do plano de segurança do paciente dos estabelecimentos de
saúde, os NSPs deverão consultar os programas de saúde do
trabalhador/ocupacionais dos estabelecimentos de saúde. Muitas das medidas
que protegem o profissional da saúde ajudam a proteger o paciente e vice-
versa.
- Criação dos NSPs:
Os NSPs, previstos na Portaria MS/GM nº 529/2013 e na RDC nº
36/2013/Anvisa, são instâncias que devem ser criadas nos estabelecimentos
de saúde para promover e apoiar a implementação de iniciativas voltadas à
segurança do paciente. Os NSPs devem, antes de tudo, atuar como
articuladores e incentivadores das demais instâncias do hospital que
gerenciam riscos e ações de qualidade, promovendo complementaridade e
sinergias neste âmbito.
- Sistema de notificação de incidentes:
Lucian Leape considera que, para um sistema de notificação de incidentes ser
efetivo, são necessárias as seguintes características:

1 - Não punitivo.
2 - Confidencial.
3 - Independente (com dados analisados por organizações).
4 - Resposta oportuna para os usuários do sistema.
5 - Orientado para soluções dos problemas notificados.
6 - As organizações participantes devem ser responsivas às mudanças
sugeridas.

No Brasil, a vigilância de EAs relacionados ao uso dos produtos que estão sob
a vigilância sanitária (incluindo o monitoramento do uso desses produtos)
objetiva a detecção precoce de problemas relacionados a esse uso para
desencadear as medidas pertinentes para que o risco seja interrompido ou
minimizado.
Eixo 2 – Envolvimento do cidadão na sua segurança:
Paciente pela Segurança do Paciente é um programa da OMS que estabelece
que haverá melhora na segurança se os pacientes forem colocados no centro
dos cuidados e incluídos como parceiros. A visão desse programa, segundo a
OMS, é a de “um mundo em que os pacientes devem ser tratados como
parceiros nos esforços de prevenir todo mal evitável em saúde”.
Corresponsabilidade e vínculos solidários são termos utilizados na Política
Nacional de Humanização e correspondem ao termo “parceria” utilizado no
Paciente pela Segurança do Paciente.
Eixo 3 – Inclusão do tema segurança do paciente no ensino:
Envolve a inclusão do tema no ensino técnico e de graduação, na pós-
graduação na área da Saúde e na educação permanente dos profissionais de
saúde.
Eixo 4 – Incremento de pesquisa em segurança do paciente:
O foco na investigação tem se concentrado em 5 componentes (OMS):

1 - Medir o dano.
2 - Compreender as causas.
3 - Identificar as soluções.
4 - Avaliar o impacto.
5 - Transpor a evidência em cuidados mais seguros.

O Ministério da Saúde desenvolve ações que visem à promoção da segurança


do paciente, por meio de medidas de educação e divulgação das boas práticas
para profissionais de saúde, pacientes e acompanhantes e com ações
preventivas, como a implementação das 6 metas da OMS.
O Ministério da Saúde, em parceria com os Hospitais Certificados de
Excelência, via Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Sistema Único de
Saúde (PROADI-SUS), realiza ações, por meio de projetos, para implantação
do PNSP, disseminação da cultura de segurança, melhoria contínua de
processos e implementação de boas práticas. Os projetos fornecem apoio à
implantação dos NSP; à construção dos planos de segurança; à
capacitação/qualificação de profissionais; além de estímulo à promoção da
cultura de segurança com ênfase no aprendizado e aprimoramento
organizacional; ao engajamento dos profissionais na prevenção de incidentes,
com ênfase em sistemas seguros; à implementação de protocolos, guias e
manuais de segurança do paciente, além de estímulo a notificação dos EAs,
com análises dos EAs ocorridos.

Resumo
Conceitos básicos e definições
Marília Louvison
Thaís Minett
Alex Jones F. Cassenote
Marina Gemma
Lucas Primo de Carvalho Alves

1. Introdução
A Epidemiologia agrega variadas linhas de conhecimento, discutidas a seguir,
que emergiram fortemente a partir do século XVII. Naomar de Almeida Filho,
epidemiologista brasileiro de destaque internacional, explica que o século em
questão foi inovador nos sentidos político e social, pois a necessidade de
“calcular” a população passa a ser fundamental para o Estado (por questões
políticas e militares). Nesse contexto, surgem linhas como a “aritmética
política”, de William Petty (1623-1697), e a “estatística médica”, de John
Graunt (1620-1674) (Almeida Filho, 1986).
John Graunt foi o primeiro a quantificar os padrões de natalidade e
mortalidade e a ocorrência de doenças, identificando características
importantes, entre elas a existência de diferenças entre os sexos e na
distribuição urbano-rural, elevada mortalidade infantil e variações sazonais
existentes. Foi ele o responsável pelas primeiras estimativas de população e
pela elaboração de uma tábua de mortalidade, também conhecida como tábua
de vida (procedimento para estimar a expectativa de vida da população).
O trabalho que marcou não somente o início formal da Epidemiologia, como
também uma das mais espetaculares conquistas, foi a descoberta, por John
Snow, de que o risco de contrair cólera estava relacionado ao consumo de
água de uma fonte específica (Beaglehole; Bonita; Kjellström, 2010). Snow
marcou a moradia de cada pessoa que morreu de cólera em Londres entre
1848 e 1849, e 1853 e 1854, analisando a relação entre a distância das fontes
de água e a ocorrência de óbitos (Figura 1). Foi com base nessa investigação
que o médico construiu uma teoria sobre a transmissão das doenças
infecciosas, sugerindo que a cólera fosse disseminada por meio da água
contaminada, fato que antecede a descoberta do Vibrio cholerae e evidencia
que, desde 1850, os estudos epidemiológicos têm indicado as medidas
apropriadas de saúde pública a serem adotadas.
Figura 1 - Mapa de John Snow, que demarca as residências com óbitos por cólera em Londres, no
ano de 1854; os pontos azuis indicam bombas d’água, e os vermelhos, residências com morte por
cólera. Note os pontos vermelhos agrupados no entorno de uma bomba específica
Fonte: adaptado de Don Boyes. John Snow and serendipity.

A insuficiência da explicação unicausal originou as concepções multicausais


dominantes no fim do século XX. Esses conceitos se estendem às moléstias
não infecciosas. Um exemplo é o trabalho coordenado por Joseph Goldberger,
pesquisador do Serviço de Saúde Pública norte-americano. Em 1915 ele
estabeleceu a etiologia carencial da pelagra por meio do raciocínio
epidemiológico e, em contrapartida, expandiu as fronteiras da Epidemiologia
para além das doenças infectocontagiosas.

Importante
Até meados do século XX, a Epidemiologia e a Medicina estiveram
impulsionadas pelo crescente aperfeiçoamento dos métodos diagnósticos,
terapêuticos e estatísticos que proporcionaram a compreensão dos modos
de transmissão e possibilitaram intervenções que contribuíram para o
controle de grande parte das doenças transmissíveis, ao menos nos países
desenvolvidos. A partir da 2ª Guerra Mundial, estabeleceram-se regras
básicas da análise epidemiológica, o aperfeiçoamento dos desenhos de
pesquisa e a delimitação do conceito de risco em associação ao
desenvolvimento das técnicas de diagnóstico, à evolução da Estatística e à
introdução dos computadores. A Epidemiologia sedimenta-se como
disciplina autônoma na década de 1960.

A aplicação da Epidemiologia passa a cobrir um largo espectro de agravos à


saúde. Estudos como os de Doll e Hill, que estabeleceram associação entre o
tabagismo e o câncer de pulmão, e os famosos estudos de doenças
cardiovasculares desenvolvidos na população da cidade de Framingham
(Estados Unidos) são exemplos da aplicação do método epidemiológico em
doenças crônicas.
O movimento a favor da prevenção incorporou à Medicina, além do
diagnóstico e do tratamento das doenças, as áreas de promoção à saúde,
prevenção de doenças e reabilitação. Nas escolas médicas, a
institucionalização desses conteúdos ocorreu com a criação dos
departamentos de “Medicina Preventiva” sob a forma de disciplinas, entre
elas a Epidemiologia. Entretanto, segundo Torres e Czeresnia (2003), tal
especialidade permanece em posição marginal na estrutura curricular da
escola médica em relação às demais (clínicas), apesar da presença constante
de conceitos epidemiológicos na Medicina e no senso comum, tanto para a
explicação da ocorrência das doenças quanto para a justificativa das
intervenções.

2. Definições, conceitos básicos e usos


É necessário discutir alguns aspectos básicos antes de proceder ao seguimento
aprofundado da disciplina; assim, quando o conteúdo abordar os temas mais
profundos, o estudante terá maior facilidade para compreendê-los e aplicá-los
em sua desafiadora jornada.
Beaglehole, Bonita e Kjellström (2010) explicam que a palavra
“epidemiologia” deriva dos vocábulos gregos: (1) prefixo epi, (2) radical
demós e (3) sufixo logos. Seus significados podem ser identificados a seguir
(Tabela 1).
Esta definição permite compreender a Epidemiologia como “estudo sobre a
população”. Porém, a característica dinâmica dessa ciência fez que muitas
definições para esse ramo da Medicina surgissem ao longo do tempo, todas na
tentativa de expressar com maior precisão a sua nova e complexa realidade
(Tabela 2). Nesse sentido, o epidemiologista Evans compilou 23 definições,
contando quantas vezes algumas palavras-chave apareciam, e verificou que,
ao longo dos inúmeros conceitos, “doença” apareceu 21 vezes; “população”,
“comunidade” ou “grupo”, 17 vezes; “distribuição”, 9 vezes; e
“etiologia”/“determinantes”/“causas”/“ecologia”, 8 vezes.
Importante
Definição mais atual de Epidemiologia, de Gordis (2010): “estudo da
distribuição das doenças na população e os fatores que influenciam e
determinam essa distribuição. A premissa fundamental é que a doença,
moléstia ou ausência de saúde não é distribuída ao acaso na população.
Mais exatamente, cada um de nós possui certas características que
predispõem ou protegem contra uma variedade de doenças. Essas
características podem ser primariamente genéticas ou resultado da
exposição a determinados perigos ambientais. Entretanto, frequentemente
estamos interagindo com fatores genéticos e ambientais no
desenvolvimento da doença”.

Devido à complexidade crescente e abrangência da prática atual da


Epidemiologia, não é possível uma definição única e precisa dessa ciência.
Contudo, ela pode ser entendida, em sentido mais amplo, como o estudo do
comportamento do processo saúde-doença nas coletividades, bem como das
formas de prevenção e controle das doenças.
Muitas das conceituações mais conservadoras, como as de Bland e Jones
(1951) e Rouquayrol (1994), tratam da Epidemiologia como uma ciência das
coletividades humanas, entretanto vale ressaltar que a disciplina não está
presente somente no que diz respeito à saúde humana. É sabido que o
raciocínio epidemiológico foi primeiramente desenvolvido no campo da
Medicina Veterinária, segundo o que explica Almeida Filho (1986).
Atualmente, a Epidemiologia aplicada à Veterinária é vastamente utilizada em
questões que envolvem morbidades animais transmitidas a seres humanos
(zoonoses) ou mesmo a questões exclusivas da saúde animal. Para melhor
sedimentar as definições citadas, vale explicar, ainda, alguns termos mais
específicos. Na Tabela 3 encontramos explicações acerca desses conceitos.
A Epidemiologia é uma ciência de ação e, em vista disso, consensualmente de
caráter utilitário. Os seus conhecimentos destinam-se à solução prática de
problemas concernentes à Saúde Pública e à Medicina. É nesse sentido que,
até agora, tem evoluído a pesquisa epidemiológica constantemente alimentada
pela pesquisa básica (Forattini, 1990).
Atualmente, a Epidemiologia tem se destacado no desenvolvimento
metodológico para todas as ciências da saúde, ampliando seu papel na
consolidação de um “saber científico” sobre a saúde, seus determinantes e
suas consequências e subsidiando as práticas de saúde em 3 principais
aspectos, descritos na Tabela 4 (Almeida Filho; Rouquayrol, 2002).
Dica
Passos e Ruffino-Netto (2005) explicam que existem várias outras
tentativas bem-sucedidas de classificação da utilização da disciplina. Uma
das mais completas e simples está apresentada na Figura 2 e parece
englobar todas as ações da Epidemiologia enquanto ciência aplicada, tanto
no planejamento em saúde quanto na educação médica.
Figura 2 - Usos da Epidemiologia
Fonte: adaptado de Epidemiologia: conceitos e usos, em Fundamentos da Epidemiologia, 2005.

Carvalho (2009) descreve que os epidemiologistas brasileiros são, em sua


maioria, médicos e enfermeiros; esse quadro é preenchido com demógrafos,
cientistas sociais, geógrafos, estatísticos, nutricionistas, matemáticos,
historiadores, psicólogos, dentistas, veterinários, economistas e outros. Todos
esses profissionais se dedicam a atividades de pesquisa e de ensino na área da
Saúde, avaliação de procedimentos e serviços de saúde, vigilância
epidemiológica, fiscalização sanitária, diagnóstico e acompanhamento da
situação de saúde das populações.
Em se tratando dos usuários da Epidemiologia, Pereira (2002) descreve que
os profissionais que fazem uso dessa ciência são, principalmente, os descritos
na Tabela 5.

3. Relação entre Medicina Preventiva e


Epidemiologia
Antes de aprofundar as discussões nos aspectos aplicados da Epidemiologia,
vale discutir questões de interface da disciplina com a Medicina Preventiva,
uma vez que, ainda hoje, existe certa confusão quanto à relação entre essas
áreas do conhecimento, até mesmo por profissionais da área da Saúde que
estão mais distantes da prática preventiva e das atividades da Epidemiologia.
Medicina Preventiva ou Medicina Preventiva e Social é uma das 53
especialidades médicas reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina
(Brasil, 2008). Na literatura médica, “Medicina Preventiva e Social” refere-se
a um corpo de conhecimentos, ações e métodos para adquirir conhecimentos e
realizar ações referentes à atenção médica, voltadas para a sociedade no
âmbito da prevenção (Perini et al., 2001).

Dica
Leavell e Clark (1976) explicam que Medicina Preventiva é a
especialidade que se dedica à prevenção da doença em vez de seu
tratamento. Arouca (2003) entende-a como o estudo do processo saúde-
doença nas populações, suas relações com a atenção médica, bem como
das relações de ambas com o sistema social global, visando à
transformação dessas relações para a obtenção de níveis máximos possíveis
de saúde e bem-estar das populações.

Já a Epidemiologia se sedimenta como uma ciência aplicada que se


desenvolveu como “suporte científico” para a Medicina Preventiva e Social,
buscando compreender a distribuição e os processos de determinação da
saúde e da doença nas coletividades (McKeown; Lowe, 1986). Pode-se
afirmar, então, que a Epidemiologia é um pilar concreto do conhecimento
utilizado na Medicina Preventiva e Social, assim como em outras áreas do
conhecimento médico. As Tabelas 6 e 7, apresentadas a seguir, mostram os
objetivos de um curso de Residência Médica em Medicina Preventiva (Tabela
6) e o seu conteúdo curricular (Tabela 7). Verifica-se que a Epidemiologia
consta como uma disciplina da linha de conhecimento desenvolvida no curso
e, além dela, agregam-se à especialidade questões como as políticas de saúde,
demografia, administração e gestão em saúde, entre outras.
4. Relação entre Clínica Médica e
Epidemiologia
A Epidemiologia estabelece inter-relação com várias disciplinas das ciências
biomédicas. Sob a ótica clínica, pode auxiliar na construção de uma hipótese
diagnóstica, sendo uma ferramenta valiosa no atendimento integral do
indivíduo. Para exemplificar, tomam-se as situações descritas na Tabela 8.
Antes de entrar no mérito da questão e diagnosticar os diferentes pacientes,
para o leitor, vale ficar atento ao próprio pensamento clínico e
epidemiológico. A apresentação clínica dos indivíduos é exatamente a mesma,
com sinais e sintomas semelhantes. O que muda é o local em que ele está, ou
seja, uma variável epidemiológica que caracteriza o lugar. Essa diferença
pode mudar completamente a suspeita etiológica da doença, e, desse modo,
seu tratamento deverá ser diferenciado, mesmo que se trate da mesma
síndrome.

Importante
A Clínica Médica, como linha de conhecimento do saber médico, estuda o
processo saúde-doença em “nível individual”, com o objetivo de tratar e
curar casos isolados que apresentem certa característica, como os sinais e
sintomas de determinada doença. A Epidemiologia se preocupa com o
processo de ocorrência de doenças, mortes, quaisquer outros agravos ou
situações de risco à saúde na comunidade, ou em grupos dessa
comunidade, com o objetivo de propor estratégias que melhorem o nível de
saúde das pessoas que a compõem.

Almeida Filho e Rouquayrol (1999) sintetizam pontos importantes sobre os


laços históricos, contratos conceituais e contradições metodológicas dessas
disciplinas. A Clínica Médica e a Epidemiologia estão vinculadas desde o
nascimento da prática médica moderna. Metodologicamente, ambas também
interagem, pois servem como fontes de problemas científicos e modelos
explicativos e levantam hipóteses para pesquisas.
Soares, Andrade e Campos (2001) discutem, com muita simplicidade, que um
dos meios para conhecer como ocorre o processo saúde-doença na
comunidade é elaborar um diagnóstico comunitário de saúde. O diagnóstico
comunitário, evidentemente, difere do diagnóstico clínico em termos de
objetivos, informação necessária, plano de ação e estratégia de avaliação
(Tabela 9) – fato que auxilia na compreensão das diferenças e mesmo da
relação existente entre a Clínica Médica e a Epidemiologia.

Na Tabela 10, apresentam-se algumas das particularidades dessas disciplinas.


Nesse sentido, vale parafrasear os estudiosos do assunto: “a Epidemiologia
não é a Clínica das populações, tanto quanto a Clínica nunca se tornará a
Epidemiologia dos indivíduos”. A melhor afirmativa seria: “A Clínica é
soberana e a Epidemiologia também, governando reinos vizinhos” (Almeida
Filho; Rouquayrol, 1999).

5. Raciocínio, método e prática


A observação está relacionada à identificação, seleção, coleção e ao registro
de forma sistemática de características de um objeto natural, cultural ou
social. Uma célula, uma doença ou um grupo populacional podem ser focos
de observação. Logo, tal fase da cadeia produtiva pode resultar de uma
percepção sensorial (com o sentido da visão, por exemplo) ou ser produzida
como suporte de algum instrumento ou aparelho.
Quando essas percepções sensoriais ganham um significado baseado em
atributos do objeto observado, transformam-se em um dado. Os dados, por
sua vez, podem ser:

1 - Estruturados: existe uma codificação fixa predeterminada.


2 - Semiestruturados: sem um código prévio, porém a própria repetição
das observações resulta em um padrão/sistema de codificação.
3 - Não estruturados: não baseados em qualquer tipo de codificação.
A informação é a análise adequada dos dados, com o objetivo de responder a
um problema, a uma questão ou testar uma hipótese. Nesse contexto, a análise
compreende organização, indexação, classificação, condensação e
interpretação de dados.
A fim de alcançar um grau de universalidade das informações, deve-se buscar
a articulação com marcos conceituais de referência. A transformação da
informação em conhecimento implica sua síntese fora do contexto da
pesquisa, situando os dados de uma forma mais geral.
Concluindo, a tomada de decisão deve privilegiar conhecimentos, pois estes
são hierarquicamente superiores às informações e aos dados. Contudo, para
buscar um conhecimento, é preciso conhecer e definir o objeto em observação
e o referencial teórico utilizado para a interpretação das informações.
Portanto, a Epidemiologia produz conhecimentos originais sobre o processo
saúde-doença e, ao mesmo tempo, interfere no campo profissional,
participante dos esforços pelo cuidado da saúde das populações.

6. As grandes divisões da Epidemiologia


Sob a ótica aplicada, a pesquisa em Epidemiologia tem sido abordada de 2
maneiras diferentes: a Epidemiologia Descritiva e a Epidemiologia Analítica
(Figura 3).

A - Epidemiologia Descritiva

A Epidemiologia Descritiva é vista como uma das etapas fundamentais da


pesquisa epidemiológica, que estuda a distribuição das doenças ao nível
coletivo, em função de variáveis ligadas ao tempo, ao espaço (ambientais e
populacionais) e à pessoa. Seu objetivo é responder “onde?”, “quando?” e
“quem?”, em relação à ocorrência de determinado agravo à saúde, para
identificar subgrupos populacionais mais vulneráveis. Para tanto, envolve
estudos descritivos, os quais são abordados com maior profundidade no
capítulo de estudos epidemiológicos. De modo geral, estudos descritivos são
os chamados estudos de correlação ou ecológicos, relatos de caso ou série de
casos, estudo transversal ou seccional, desde que não exista teste de hipótese.
Figura 3 - Divisão do método aplicado na Epidemiologia

Franco (2005) define que as variáveis relacionadas aos estudos


epidemiológicos descritivos são:

1 - Característica de pessoa: fatores demográficos, como idade, sexo,


etnia, ocupação, estado civil, classe social, procedência, bem como
variáveis ligadas ao estilo de vida, tais como práticas alimentares,
consumo de álcool e de certas medicações ou drogas ilícitas, hábito de
fumar, atividades físicas, entre outras.
2 - Característica de lugar: distribuição geográfica das doenças,
incluindo variações entre países, regiões, municípios, bairros ou entre
zonas urbana e rural, entre outras.
3 - Característica de tempo: podem ser exploradas as variações cíclicas
e sazonais, bem como se pode comparar a frequência atual de doença
com a de 5, 10, 50 ou 100 anos atrás.

Pode-se considerar que a descrição sistemática do comportamento da doença


permite a elaboração de hipóteses “causais” com base na ocorrência usual de
doenças conhecidas e possibilita o uso da analogia tanto no estudo das
doenças novas quanto na explicação daquelas anteriormente conhecidas.
Nesse sentido, essa metodologia se torna bastante útil ao epidemiologista
(Werneck, 2009).
Na área das doenças infecciosas, estudos epidemiológicos descritivos
preocupam-se em descrever características como período de incubação,
infectividade, patogenicidade, virulência e poder imunogênico (Tabela 11).
B - Epidemiologia Analítica

A Epidemiologia Analítica pode ser entendida como a parte do método


epidemiológico que se ocupa de testar hipóteses de associação exposição-
desfecho. Em termos médicos, isso significa definir a existência de associação
entre a exposição a determinado fator e o aparecimento de certa doença ou
condição. Para isso, faz uso de estudos epidemiológicos analíticos, como
estudos ecológicos e transversal ou seccional (quando há teste de hipótese),
coorte, caso-controle, estudos clínicos randomizados e não randomizados.
A definição da associação entre as variáveis é a base da relevância para a
formação biomédica do conhecimento de princípios básicos de Epidemiologia
em geral e dos métodos analíticos em particular, uma vez que com sua
utilização adequada é que são obtidas e estudadas todas as relações
conhecidas de causalidade entre exposição e efeitos, ou seja, entre fatores de
risco e doenças.
Veja, a seguir, um exemplo importante ocorrido na década de 1980, no qual se
pode verificar que a metodologia epidemiológica baseada na observação de
casos com aspectos comuns e na investigação deles encontrou um fator
concomitante que desencadeou a patologia descrita como síndrome da
imunodeficiência adquirida (AIDS) pelo vírus da imunodeficiência humana
(HIV) – Tabela 12.

O exemplo levantou hipóteses posteriormente investigadas em estudos que


puderam identificar a presença de um novo agente patogênico na ocasião: o
vírus da AIDS, bem como grupos, a princípio, com maior chance de adquirir
a doença. A continuidade de estudo e pesquisa e suas descobertas também
caracterizam a metodologia epidemiológica.
Do ponto de vista de delineamentos epidemiológicos na modalidade analítica,
os estudos epidemiológicos são todos aqueles capazes de avaliar algum teste
de hipóteses.
Os principais delineamentos de pesquisa da Epidemiologia Analítica são
descritos com profundidade no capítulo de estudos epidemiológicos. De modo
geral, os estudos analíticos podem ser subdivididos em observacionais ou
experimentais, a depender da hipótese que está sendo testada. Um estudo em
que o pesquisador apenas colhe informações, sem intervir na determinação da
exposição e dos grupos de alocação, recebe o nome de observacional; já a
metodologia em que existe intervenção por parte dos pesquisadores é
chamada de experimental (Franco; Passos, 2005; Medronho, 2009). Assim
como na Epidemiologia Descritiva, estudos com delineamento ecológico ou
transversal podem ser considerados analíticos, caso haja teste de hipóteses.
Além disso, a Epidemiologia Analítica inclui, em seu campo de
conhecimento, os estudos de coorte, estudos de casos e controles, ensaios
clínicos randomizados e ensaios clínicos não randomizados.
Em termos epidemiológicos, o efeito, a predição ou a explicação são
chamados de variável independente, enquanto o fator de interesse, a resposta
ou o desfecho é chamado de variável dependente. Passos e Ruffino-Netto
(2005) explicam que a hipótese a ser testada é que a variável desfecho
(dependente) sofra influência da variável exposição (independente),
caracterizando uma associação entre ambas.
Quando os estudos analíticos, em geral, ensaios clínicos randomizados, se
preocupam em avaliar o benefício de um tratamento específico, muitas vezes
se utilizam dos conceitos de eficácia e eficiência. Segundo o Dicionário de
Epidemiologia da Oxford (Porta, 2008), a eficácia é a extensão do quanto
uma intervenção específica produz um resultado benéfico em condições
ideais. Em contrapartida, a eficiência é o resultado obtido da intervenção
considerando os esforços em termos de custo, recursos e tempo. Desse modo,
2 intervenções com eficácias semelhantes podem, por exemplo, diferir muito
em eficiência, caso uma seja muito mais cara em relação à outra, ou exija
muito mais tempo para a obtenção do resultado.

7. Conquistas e perspectivas da Epidemiologia


Até o momento, foram vistos os principais aspectos da Epidemiologia
aplicada na Medicina e na área de Saúde. Por uma pequena trajetória, pode-se
conhecer o perfil dessa vasta linha de conhecimento, desde seu berço até os
dias atuais. Beaglehole, Bonita e Kjellström (2010) explicam que a
Epidemiologia tem auxiliado a Ciência em enormes conquistas, especialmente
no conhecimento do processo saúde-doença e na possibilidade de controle.
Alguns dos principais eventos amplamente estudados com sucesso foram:
1 - Varíola.
2 - Envenenamento por metilmercúrio.
3 - Febre reumática e doença cardíaca reumática.
4 - Distúrbios por deficiência de iodo.
5 - Tabagismo, asbesto e câncer de pulmão.
6 - Fratura de quadril.
7 - HIV e AIDS.
8 - Síndrome da angústia respiratória aguda.
9 - Sedentarismo e doença cardiovascular.
10 - Hipertensão e doença cardiovascular.

Atualmente, tornaram-se concretas áreas do conhecimento em que a


Epidemiologia está ou logo estará fortemente inserida: Epidemiologia Clínica
(aplicação individual do conhecimento epidemiológico), Epidemiologia
Social, Epidemiologia Aplicada nos Serviços de Saúde (municípios, estados
ou nações), Epidemiologia Molecular, Epidemiologia Genética,
Etnoepidemiologia e Farmacoepidemiologia são algumas das vastas
possibilidades.
A necessidade de conhecer essa ciência com um pouco mais de intimidade
deverá ser levada em consideração por todos os profissionais da área da
saúde, servindo especialmente para situar esse profissional acerca do
conhecimento atual do processo saúde-doença de patologias específicas,
estendendo-se até seu tratamento e controle.

Resumo
História

A Epidemiologia é uma ciência básica que vem servindo variadas linhas de


raciocínio. Tem seu berço na Inglaterra com John Snow e a cólera antes
mesmo de os micro-organismos serem descobertos. Muitas das pesquisas
epidemiológicas realizadas no século passado focavam as doenças
infecciosas. Neste novo século, o conhecimento epidemiológico sobre as
doenças crônico-degenerativas teve um salto considerável. O movimento a
favor da prevenção incorporou-se à Medicina, além do diagnóstico e do
tratamento das doenças, das áreas de promoção à saúde, prevenção das
doenças e reabilitação, em que a Epidemiologia ganhou e vem ganhando
espaço.

Definições, conceitos básicos e usos

Uma das definições mais bem trabalhadas de Epidemiologia refere-se a esta


como o estudo da distribuição das doenças na população e os fatores que
influenciam e determinam essa distribuição. A premissa fundamental é que a
doença, moléstia ou ausência de saúde não é distribuída ao acaso na
população. Mais exatamente, cada um de nós possui certas características que
predispõem ou protegem contra uma variedade de doenças. Essas
características podem ser primariamente genéticas ou resultado da exposição
a determinados perigos ambientais. Entretanto, frequentemente interagimos
com fatores genéticos e ambientais no desenvolvimento da doença. Os
principais usos da disciplina podem ser ressaltados, devido a seu impacto para
a saúde da população:

Diagnósticos dos problemas de saúde da população;


Projeções e avaliações de tendências;
Identificação de grupos de risco.

Relação entre Medicina Preventiva e Epidemiologia

A Medicina Preventiva é uma especialidade médica reconhecida pelo


Conselho Federal de Medicina no Brasil. A Epidemiologia é uma disciplina
básica que oferece muitas ferramentas para auxiliar o trabalho dos
profissionais preventivistas.

Relação entre Clínica Médica e Epidemiologia

A Clínica Médica é uma disciplina fundamental desenvolvida na Medicina,


que se caracteriza por um perfil de raciocínio dedutivo, uma vez que está
centrada no indivíduo. A Epidemiologia é uma disciplina na qual o indivíduo
não é importante, e sim um grupo ou uma população. Nesse sentido, o tipo de
raciocínio desenvolvido é, geralmente, o indutivo.

Raciocínio, método e prática

A transformação em dados e a posterior produção de informação trazem como


produto o conhecimento. O entendimento de tal processo é essencial para a
compreensão do método epidemiológico. Na prática, a Epidemiologia está
dividida em 2 campos diferentes: a Epidemiologia Descritiva (que descreve
situações e formula hipóteses) e a Epidemiologia Analítica (capaz de testar
hipóteses formuladas por meio de cálculos estatísticos). Em cada abordagem
existem tipos de delineamentos utilizados sistematicamente.

Conquistas e perspectivas da Epidemiologia

A aplicação do método epidemiológico tem auxiliado no conhecimento de


processos de saúde-doença de variadas patologias conhecidas. AIDS e câncer
de pulmão são alguns exemplos em que, por meio de estudos
epidemiológicos, conseguiu-se chegar à comprovação dos principais fatores
de risco, do tratamento e da prevenção. Agora, a Epidemiologia poderá se
estender a outros campos de atuação, como a Farmacoepidemiologia e a
Epidemiologia Molecular.
Saúde e doença
Marília Louvison
Thaís Minett
Alex Jones F. Cassenote
Marina Gemma
Lucas Primo de Carvalho Alves

1. Introdução
O conceito de saúde reflete a conjuntura social, econômica, política e cultural.
Ou seja, saúde não representa a mesma coisa para todas as pessoas; depende
da época, do lugar e da classe social. Os valores individuais e as concepções
científicas, religiosas e filosóficas também estão associados a esse conceito.
Inicialmente, para chegar a uma apropriação concreta dos conceitos de saúde
e doença, faz-se necessária uma compreensão etimológica dos 2 vocábulos.
Segundo Reiner (2008), doença provém do latim dolentia, derivado de dolor e
dolore, que querem dizer “dor” e “doer”. Já saúde, também do latim, vem de
salutis, derivado do radical salus, com significação de “salvar”, “livrar do
perigo”, “afastar riscos e/ou saudar”, “cumprimentar”, “desejar saúde”.

2. Conceito de “saúde” e “doença”

A - Saúde

No senso comum, muitas vezes a saúde é definida como ausência de doença,


e doença, inversamente, como falta ou perturbação da saúde. Na prática
clínica, as pessoas são examinadas e rotuladas como doentes ou saudáveis em
função de julgamentos baseados em resultados de exames clínicos e/ou
laboratoriais, que informam a ausência ou a presença de anormalidades
(Pereira, 2002).
Além de estar naturalizado na comunidade, e mesmo na clínica, esse conceito
simplista fez parte da chamada teoria negativa do processo saúde-doença, que
data da década de 1970 e foi escrita por Christopher Boorse (Boorse, 1975,
1976, 1977, 1986). O autor referia que doença seria, por conseguinte, o termo
de referência pelo qual a saúde poderia ser negativamente definida. Almeida
Filho e Jucá (2002) explicam que, no Brasil, o nome de Boorse é praticamente
desconhecido, e não há referências à sua contribuição em quaisquer dos textos
analíticos fundamentais da área de Saúde Coletiva no país.
O conceito de saúde proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em
1948 refere-se a esta não apenas como a ausência de doença, mas como o
completo bem-estar físico, mental e social. Embora seja antiga, uma vez que
data da origem da própria OMS, essa definição continua a ser utilizada pelo
órgão na atualidade (OMS, 2011). Contudo, Segre e Ferraz (1997) avaliam
que essa definição, até avançada para a época em que foi realizada, é, no
momento, qualificada como irreal, ultrapassada e unilateral, uma vez que
atingir o “completo” refere-se a uma utopia. A definição da OMS pode ser
tratada mais como um símbolo ideal, um compromisso ou um horizonte a ser
buscado.
No fim do século XX, o conceito de saúde estava intrinsecamente relacionado
ao modelo biomédico, em que doença era tratada como “desajuste ou falha
nos mecanismos de adaptação do organismo ou ausência de reação aos
estímulos a cuja ação está exposta; processo que conduz a uma perturbação da
estrutura ou da função de um órgão, de um sistema ou de todo o organismo ou
de suas funções vitais” (Jénicek; Cléroux, 1985).
O conceito “ampliado e positivo de saúde” foi defendido e registrado na 8ª
Conferência Nacional de Saúde, denominada Conferência Pré-Constituinte,
realizada de 17 a 21 de março de 1986. Saúde seria, então, a resultante das
condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente,
trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra, bem
como acesso a serviços de saúde. Seria, assim, o resultado das formas de
organização social da produção que podem gerar grandes desigualdades nos
níveis de vida (Brasil, 1987).
O grande mérito da concepção presente na Constituição de 1988 reside,
justamente, na explicitação dos determinantes sociais da saúde e da doença,
muitas vezes negligenciados nas concepções que privilegiam a abordagem
individual e subindividual.

Dica
Segundo a Constituição Brasileira de 1988, “a saúde é direito de todos e
dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal igualitário às ações e aos serviços para sua promoção, proteção e
recuperação” (Brasil, 1988).

B - Doença

O conceito de doença, sob a ótica médica, refere o aposto de saúde da mesma


ideologia, a chamada “teoria negativa do processo saúde-doença”; a distinção
entre o normal e o patológico pode ser vista de maneira quantitativa, tanto
para os fenômenos orgânicos quanto para os mentais. A doença constitui falta
ou excesso de excitação dos tecidos abaixo ou acima do grau que constitui o
estado normal (Coelho; Almeida Filho, 1999). Nessa perspectiva, a doença
está dentro do indivíduo e pode ser definida como um fenômeno isolado, com
causas biológicas e, muitas vezes, a ser tratado com medicamentos.
Do ponto de vista social, a melhor forma de comprovar empiricamente o
caráter histórico da doença não é conferida pelo estudo de suas características
nos indivíduos, mas sim quanto ao processo que ocorre na coletividade
humana. A natureza social da doença não se verifica no “caso clínico”, mas
no modo característico de adoecer e morrer nos grupos humanos. Ainda que
provavelmente a “história natural” da tuberculose, por exemplo, seja diferente
hoje do que era há 100 anos, não é nos estudos dos tuberculosos que se
apreende melhor o caráter social da doença, mas nos perfis patológicos que os
grupos sociais apresentam (Laurell, 1976).
Desse modo, doença não é mais do que um constructo que guarda relação
com o sofrimento, com o mal, mas não lhe corresponde integralmente.
Quadros clínicos semelhantes, com os mesmos parâmetros biológicos,
prognóstico e implicações para o tratamento, podem afetar pessoas diferentes
de forma distinta, resultando em diferentes manifestações de sintomas e
desconforto, com comprometimento diferenciado de suas habilidades de atuar
em sociedade (Evans; Stoddart, 1994; Oliveira; Egry, 2000).
O processo saúde-doença da coletividade pode ser entendido como o modo
específico pelo qual ocorre, nos grupos, o processo biológico de desgaste e
reprodução, destacando como momentos particulares a presença de um
funcionamento biológico diferente, com consequências para o
desenvolvimento regular das atividades cotidianas, isto é, o surgimento da
doença (Laurell, 1983). A seguir, serão apresentados alguns modelos que
auxiliarão no entendimento dos conceitos aqui apresentados.

3. Os modelos explicativos do processo saúde-


doença
São modelos explicativos do processo saúde-doença: biomédico – agentes
físicos, químicos e biológicos que causam doença nos indivíduos,
independentemente do contexto psicossocial; e ecológico (História Natural da
Doença) – considera a interação, o relacionamento e o condicionamento de 3
elementos fundamentais da “tríade ecológica”: o ambiente, o agente e o
hospedeiro, sendo a doença resultante de um desequilíbrio nas
autorregulações existentes nesse sistema, que se desenvolve em 2 períodos
consecutivos, o pré-patogênico e o patogênico.
Historicamente, pode-se dizer que há uma evolução de paradigmas em se
tratando de ensino de modelos explicativos do processo saúde-doença. Mais
recentemente, no Brasil, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de
Medicina (2014) orientam para uma formação que considere as dimensões da
diversidade biológica, subjetiva, étnico-racial, de gênero, orientação sexual,
socioeconômica, política, ambiental, cultural, ética e demais aspectos que
compõem o espectro da diversidade humana que singularizam cada pessoa ou
cada grupo social.

A - O modelo biomédico

O discurso da Medicina apoia suas observações e formulações,


predominantemente, a partir da perspectiva do modelo biomédico. Esse
modelo, refletindo o potencial técnico-instrumental das biociências, exclui o
contexto psicossocial dos significados, nos quais uma compreensão plena e
adequada dos pacientes e de suas doenças depende de alternativas de
compreensão de saúde e doença.
A formação do médico, bem como a de outros profissionais da saúde, esteve
ancorada no modelo biomédico desde sua existência, fato que favoreceu a
construção de uma postura de desconsideração aos aspectos psicossociais
tanto dele quanto do paciente (De Marco, 2006).
De acordo com o modelo biomédico (Figura 1), as doenças advêm de agentes
externos (químicos, físicos ou biológicos) que causam mudanças físicas no
ser humano. O modelo biomédico vê o corpo humano como uma máquina
muito complexa, com partes que se inter-relacionam, obedecendo a leis
naturais e psicologicamente perfeitas, assim pressupõe que a máquina
complexa (o corpo) precise constantemente de inspeção por parte de um
especialista.
Figura 1 - Modelo biomédico de saúde-doença

As perspectivas da doença no modelo biomédico são: a Patologia, que


considera o mecanismo etiopatogênico, e, dessa forma, existiriam 2 categorias
de doenças – infecciosas e não infecciosas; e a Clínica, que privilegia a
abordagem dos sinais e sintomas, caracterizando, por sua vez, as doenças em
agudas e crônicas. Esse modelo remete o pensamento ao início dos estudos
cursados na faculdade. Nesse sentido, o estudante deve conhecer a Anatomia
e a Fisiologia e, depois, a Patologia e a Clínica, pois, sem conhecer os
aspectos fisiológicos ou normais, não seria possível identificar aqueles ditos
patológicos.
Diante da etiologia da doença, o modelo biomédico adota uma lógica
unicausal, também designada lógica linear, procurando-se identificar uma
causa a qual, por determinação mecânica, unidirecional e progressiva,
explicaria o fenômeno do adoecer, direcionando a explicação a se tornar
universal. É nessas condições epistemológicas que o modelo biomédico, nas
ciências da saúde, tende a reproduzir conhecimentos universais relativos aos
seres humanos (Puttini; Pereira Junior; Oliveira, 2010).

B - O modelo ecológico (História Natural da Doença)

Importante
No lugar de considerar saúde e doença como componentes de um sistema
binário, do tipo presença-ausência, pode ser mais adequado concebê-las
como um processo no qual o ser humano passa por múltiplas situações, que
exigem de seu meio interno um trabalho de compensações e adaptações
sucessivas.

Sabe-se que o curso de uma doença não é uniforme no organismo; assim,


pode apresentar grande variabilidade de um caso para outro. Embora essa
variabilidade seja elevada, sugere-se que as doenças progridam segundo
alguns padrões descritos. Donabedian (1973) descreveu 5 das principais
categorias, apresentadas na Figura 2.

Figura 2 - Padrões de evolução das doenças


Fonte: adaptado de Epidemiologia: teoria e prática, 2002.

A - Evolução aguda e rapidamente fatal (exemplo: raiva e meningite


bacteriana).
B - Evolução aguda, clinicamente evidente e com rápida recuperação
(exemplo: viroses respiratórias).
C - Evolução sem alcance do limiar clínico (exemplo: hepatite anictérica
e dengue clássica).
D - Evolução crônica que progride fatalmente após longo período
(exemplo: doenças cardiovasculares e degenerativas).
E - Evolução crônica que intercala períodos assintomáticos com períodos
de exacerbação (exemplo: doenças psiquiátricas).
Para exemplificar essa questão, observe a Figura 3, que trata do padrão de
evolução da infecção por HIV. Atualmente, com a evolução da terapia
antirretroviral, a doença tende a permanecer no estágio C, ou seja, latência
clínica, a depender de vários fatores, como adesão ao tratamento, resistência
viral às drogas e falhas clínicas observadas; esse quadro pode ser alterado, e o
paciente, evoluir para óbito.

Figura 3 - Padrão de evolução da infecção por HIV: (A) infecção primária; (B) síndrome aguda da
infecção por HIV, com ampla disseminação viral em órgãos linfoides; (C) latência clínica; (D)
presença de sintomas constitucionais; (E) doenças oportunistas; (F) óbito
Fonte: site The Naked Scientists.

Após a 2ª Guerra Mundial, os países industrializados começaram a vivenciar


a chamada transição epidemiológica, caracterizada pela diminuição da
importância das doenças infectoparasitárias como causa de adoecimento e
morte em detrimento do incremento das doenças crônico-degenerativas
(Batistella, 2007). Nesse sentido, iniciou-se um período de desvalorização da
teoria da unicausalidade e, consequentemente, do modelo biomédico de
saúde-doença. Surgiram algumas abordagens propostas para compreender o
processo saúde-doença como síntese de múltiplas determinações, entre as
quais está o modelo ecológico, também conhecido como História Natural da
Doença – HND (Leavell; Clark, 1976).
Figura 4 - (A) Interação de eventos no período de pré-patogênese (tríade ecológica); (B) eventos
ocorridos no período de patogênese; (C) níveis de atenção no período de pré-patogênese e de
patogênese
Fonte: adaptado de Medicina Preventiva, 1976.
Figura 5 - Modelo da História Natural da Doença mostrando as etapas, barreiras e posição do
horizonte clínico em relação à evolução da doença
Fonte: adaptado de Educação Profissional e Docência em Saúde. O território e o processo saúde-
doença.

Tema frequente de prova


O modelo de História Natural da Doença segundo Leavell e Clark é tema
frequente nos concursos médicos.

Segundo Leavell e Clark, a HND é o conjunto de processos interativos que


criam o estímulo patológico no meio ambiente ou em qualquer outro lugar,
passando pela resposta do homem ao estímulo até as alterações que levam a
defeito, invalidez, recuperação ou morte.
Batistella (2007) explica ainda que esse modelo considera a interação, o
relacionamento e o condicionamento de 3 elementos fundamentais da
chamada “tríade ecológica” (Figura 4): o ambiente, o agente e o hospedeiro.
A doença seria resultante de um desequilíbrio nas autorregulações existentes
no sistema.
O modelo da HND compreende a determinação das doenças em 2 domínios: o
meio externo e o meio interno. Esses domínios são mutuamente exclusivos,
consecutivos e complementares. Enquanto no meio externo existe a interação
determinante e o agente (desenvolvem-se as etapas necessárias para a
implantação da doença), no meio interno há o locus onde se desenvolve a
doença (onde se processa, progressivamente, uma série de modificações
bioquímicas, fisiológicas e histológicas próprias a cada enfermidade). Em
ambos os meios, há fatores contribuintes com o processo.
O modelo da HND considera ainda 2 períodos consecutivos, articulados e
complementares, nos quais se desenvolvem o processo de instalação, o
desenvolvimento e o desfecho da patologia: período pré-patogênico e período
patogênico (Figura 4 - A e B). Pode-se considerar também que as sequelas
estejam fora do período da patogênese (Figura 5).

a) Período pré-patogênico

Importante
O período pré-patogênico refere-se ao 1º período da História Natural da
Doença, quando os distúrbios patológicos ainda não se manifestaram no
indivíduo. Trata-se da própria evolução das inter-relações dinâmicas, que
envolvem, de um lado, os condicionantes sociais e ambientais e, do outro,
os fatores próprios do suscetível, até que chegue a uma configuração
favorável à instalação da doença.

Nesse período, há a interação entre os fatores que estimulam o


desencadeamento de uma doença no organismo e as condições que permitem
a existência desses fatores, além de sua ação no hospedeiro (início biológico
da doença).
Pessoas com boas condições socioeconômicas e de saneamento, por exemplo,
dificilmente adoecem de cólera (fator socioambiental), enquanto usuários de
drogas injetáveis que compartilham seringas têm maior risco de contrair o
vírus HIV ou hepatite B ou C (fator individual, comportamental). Em ambas
as situações, os indivíduos não estão doentes, contudo esse “risco” pode ser
entendido como uma pressão natural que tende a levar o sujeito para o outro
lado do diagrama (período patológico). Alguns dos fatores que compreendem
a tríade (ambiente, agente e hospedeiro) serão discutidos a seguir.

- Fatores sociais

Incluem as características sociais, econômicas, políticas e culturais das


populações. O componente social das coletividades traz as relações que se
estabelecem entre as pessoas, segundo a sua inserção no processo produtivo.
As pessoas não são iguais em termos de renda, escolaridade, ocupação,
oportunidades de trabalho, hábitos culturais, crenças, entre outros; além da
desigualdade entre as diversas comunidades em relação, por exemplo, à
cobertura por serviços de saúde ou em relação à cobertura por saneamento
básico. A desigualdade social atua não apenas como causa ou associada a
problemas de saúde, mas também como determinante do tipo de intervenção
necessária no processo saúde-doença das comunidades (Tabela 1).

- Fatores ambientais

Incluem tanto o ambiente físico como o representado pelos seres vivos. Na


perspectiva do ambiente físico, têm-se o relevo, a altitude, o clima e a
umidade do ar, que favorecem o desenvolvimento de certas fauna e flora em
detrimento de outras, além de favorecerem ou não a proliferação de agentes
patogênicos, como parasitas ou vetores; também influenciam a distribuição
das populações, com maior ou menor densidade demográfica, contribuindo
para o desenvolvimento de enfermidades.
Com relação ao ambiente representado pelos seres vivos, têm-se agentes
patogênicos e vetores, reservatórios de agentes patogênicos, animais
peçonhentos e plantas venenosas, como agentes que podem influenciar a
saúde das populações e dos indivíduos.
O estudo da influência exercida pelos fatores naturais do ambiente físico na
produção de doenças tornou-se menos importante do que o conhecimento da
ação desenvolvida pelos agentes aí agregados artificialmente. O progresso e o
desenvolvimento industrial criaram problemas epidemiológicos novos,
resultantes da poluição ambiental. O ambiente físico que envolve o homem
moderno condiciona o aparecimento de doenças cuja incidência se tornou
crescente a partir da urbanização e da industrialização. As doenças
cardiovasculares, as alterações mentais e o câncer pulmonar estão também
associados a fatores do ambiente físico (Rouquayrol, 1994).

- Fatores do hospedeiro

Incluem os fatores genéticos que, além de poderem predeterminar algumas


patologias (por exemplo: hemofilia, anemia falciforme), podem apenas tornar
o indivíduo mais ou menos suscetível à ação de agentes patogênicos ou
ambientais que causarão alguma doença (a fenilcetonúria, por exemplo, cujo
diagnóstico precoce, associado à correção da dieta – fator ambiental –,
permite o desenvolvimento adequado do indivíduo); também incluem
aspectos relacionados ao estilo de vida das pessoas. Nesse caso, podem-se
citar, como exemplos, o sedentarismo associado ao estresse, a dieta
hipergordurosa e o hábito de fumar, que, provavelmente, propiciam o
aparecimento de algum distúrbio cardiovascular e, caso haja uma
predisposição genética para essa patologia, maior a chance de o indivíduo
apresentar a enfermidade e talvez mais precocemente.
O modelo da HND exibe abrangência multifatorial. Curiosamente,
multifatorialidade não significa uma simples soma dos diferentes fatores
condicionantes da doença, mas sim um sinergismo ou uma interação desses
fatores. Em outras palavras, 2 fatores condicionantes de determinada
patologia, quando atuam de forma sinérgica, aumentam o risco de
desenvolvimento da doença. Assim, por exemplo, um indivíduo de 40 anos,
que faz atividade física, não é tabagista e tem história familiar de hipertensão
arterial, tem menor risco de desenvolver a doença (ou irá desenvolvê-la mais
tarde) que um indivíduo da mesma faixa etária, com mesma história familiar,
que tenha os hábitos de fumar e de não praticar exercícios.
Uma ferramenta útil para a identificação dos determinantes intergeracionais
(hospedeiro), biomédicos e psicossociais é o genograma. É um mapa gráfico
com a utilização de símbolos que auxiliam a equipe de saúde a interpretar o
contexto familiar do indivíduo. No genograma, é de boa prática que sejam
registradas pelo menos 3 gerações a partir do paciente identificado, pois
modelos de relacionamentos interfamiliares em gerações anteriores podem
estar implícitos no relacionamento atual. Além disso, é fundamental que se
utilizem símbolos reconhecidos pelo serviço de saúde ou internacionalmente,
como a utilização de quadrados para homens e círculos para mulheres, bem
como traços que representem interações entre os indivíduos. No capítulo de
Medicina de Família e Comunidade o genograma é apresentado de forma
mais detalhada.

b) Período patogênico

A HND tem seguimento com sua evolução no homem. O período patogênico


refere-se ao período no qual os distúrbios patológicos se manifestam, ou seja,
quando o indivíduo está doente.

Importante
No período patogênico, a interação entre os fatores condicionantes sociais
e ambientais e os fatores próprios do hospedeiro já causou alterações
bioquímicas em nível celular e distúrbios na forma e na função de órgãos e
sistemas, culminando com a manifestação da doença, que evoluirá para um
defeito permanente (ou sequela), para a cronicidade, para a morte ou para a
cura.

A depender do processo patológico instalado e de condições do próprio


indivíduo, essa etapa pode não ser linear com alteração fisiológica, sinais e
sintomas, morte e/ou invalidez ou recuperação. Poderá ocorrer algo mais
próximo ao apresentado na Figura 2, com alguns casos evoluindo direto para
óbito, ou outros, ditos crônicos, flutuando em torno do limiar clínico sem ou
com evolução para óbito.
Leavell e Clark (1976) consideram 4 níveis de evolução da doença nesse
período (Figura 4 - B e Tabela 2). Na Tabela 3 são apresentados 2 exemplos
de evolução de doença no período patogênico (tuberculose e doença
coronariana), segundo essa mesma ideologia.
Batistella (2007) comenta ainda que o exame dos diferentes fatores
relacionados ao surgimento de uma doença, a utilização da estatística nos
métodos de investigação e os desenhos metodológicos permitiram avanços
significativos na prevenção de doenças. Outra vantagem desse modelo teórico
reside no fato de possibilitar a proposição de barreiras à evolução da doença
mesmo antes de sua manifestação clínica (pré-patogênese), ou mesmo quando
a doença já se estabeleceu (patogênese). Essa ideia também é compartilhada
com os criadores do modelo, Leavell e Clark (Laprega, 2005).

c) Prevenção de doenças da ótica da História Natural da


Doença

Paim (2008) explica que, a partir das influências da Medicina Preventiva, foi
difundido o modelo da HND, estabelecendo 5 níveis de prevenção, cujas
medidas poderiam ser aplicadas de forma integral em distintos momentos do
processo saúde-doença (Figura 4 - C).

Importante
Na 1ª fase de prevenção, na qual haveria a possibilidade de um
desequilíbrio entre o agente, o hospedeiro e o ambiente, cabem medidas de
promoção da saúde e proteção específica, cujos procedimentos foram
chamados de prevenção primária. Já o período patogênico é aquele
destinado a ações diagnósticas e de tratamento precoce, bem como a
limitação da invalidez ou incapacidade, correspondendo à prevenção
secundária ou 2ª fase de prevenção. Ainda nesse período patogênico, seria
possível conseguir a prevenção terciária por meio da reabilitação,
equivalendo à 3ª fase de prevenção.

A seguir, serão detalhadas algumas atividades realizadas em cada um dos 5


níveis de prevenção.

- Prevenção primária

Inclui medidas inespecíficas e específicas de proteção à saúde. As medidas


inespecíficas ou gerais são aquelas de caráter mais amplo, que não visam à
proteção do indivíduo ou das coletividades contra alguma doença em
especial; são ações gerais de promoção da saúde. Já as medidas específicas
estão voltadas a algum problema de saúde em particular ou a uma doença
específica (Tabela 4). As medidas de Promoção da Saúde, justamente por
serem inespecíficas, têm um enfoque mais abrangente, de modo que não se
restringe à preocupação com que os indivíduos fiquem livres de doenças. A
identificação e o enfrentamento de determinantes sociais, por exemplo, fazem
parte de medidas de promoção de saúde. Entretanto, as medidas de proteção
específicas estão voltadas ao não aparecimento de doenças e agravos em
saúde.
Portanto, a prevenção primária atua na fase pré-patogênica da HND, ou seja,
com o foco para o momento anterior à interação entre o agente causador do
distúrbio à saúde e o indivíduo suscetível. Vale lembrar que existe uma
pressão natural (a interação entre os elementos da tríade ecológica) que pode
levar o indivíduo a passar para o período patogênico da HND. O objetivo é
impedir esse fato.

Dica
As medidas de promoção à saúde no Brasil foram regulamentadas pela
Portaria nº 687, de 2006, pelo Ministério da Saúde. Seu objetivo foi
promover mudanças na cultura organizacional do Sistema Único de Saúde,
com vistas à adoção de práticas horizontais de gestão e estabelecimento de
redes de cooperação intersetoriais.

- Prevenção secundária

As medidas estabelecidas na prevenção primária não foram suficientes para


bloquear o desenvolvimento da doença, e o indivíduo passou para o período
patogênico. Assim, a prevenção secundária será utilizada e atuará
interrompendo a evolução da doença, em fase subclínica, ou de evolução
clínica aparente (diagnóstico e tratamento), na tentativa de fazê-la regredir
(cura) ou evitar que o distúrbio ocorrido se complique, deixe sequelas ou leve
o indivíduo a óbito. Uma alternativa é, pelo menos, retardar essa fase de
evolução da patologia (Tabela 5).
Portanto, a prevenção secundária atua na fase patogênica da HND, ou seja, no
momento em que já houve a interação do agente patogênico (meio ambiente-
indivíduo), e o organismo apresenta reações a essa interação. A pressão
natural que existe, nesse momento, diz respeito à evolução do indivíduo para
óbito ou sequela permanente; o objetivo é impedir esse tipo de evolução.

- Prevenção terciária

Se as medidas primárias e secundárias estabelecidas não foram suficientes, e


as reações do organismo ao agente patogênico resultaram em alguma
alteração com sequela permanente ou cronicidade, existe um grupo de
atividades que podem atuar no sentido de reabilitar o indivíduo, buscando sua
readaptação mesmo com o dano coexistente (Tabela 6).
Vale lembrar que as atividades de prevenção apresentadas (Tabelas 4, 5 e 6)
são colocadas em termos genéricos, ou seja, dependem diretamente do tipo de
doença a ser considerada. Poderá ocorrer ocasião em que alguma atividade de
promoção à saúde para uma doença possa ser considerada proteção específica
para outra, e assim por diante.

O Modelo Ecológico do processo saúde-doença é amplamente difundido na


atualidade, sobretudo pela vasta aplicação na prevenção de doenças. Outros
autores complementam essa teoria com alguns níveis de prevenção, como a
prevenção primordial sugerida por Alwan (1997) e a prevenção quaternária de
Jamoulle (2000), completando-se, assim, 5 níveis de prevenção em saúde
(Almeida, 2005).

- Prevenção quaternária e primordial

Norman e Tesser (2009) explicam que o conceito de prevenção quaternária


proposto por Jamoulle, médico de família e comunidade belga, almejou
sintetizar de forma operacional e na linguagem médica vários critérios e
propostas para o manejo do excesso de intervenção e medicalização, tanto
diagnóstica quanto terapêutica. A prevenção quaternária foi definida de forma
direta e simples como a detecção de indivíduos em risco de tratamento
excessivo para protegê-los de novas intervenções médicas inapropriadas e
sugerir-lhes alternativas eticamente aceitáveis.
A conceituação foi proposta no contexto clássico dos 3 níveis de prevenção de
Leavell e Clark, assim a prevenção quaternária surge como 4º e último tipo de
prevenção, não relacionada ao risco de doenças, e sim ao risco de
adoecimento iatrogênico, ao excessivo intervencionismo diagnóstico e
terapêutico e à medicalização desnecessária. É considerada prevenção
quaternária qualquer ação que atenue ou evite as consequências do
intervencionismo médico excessivo que implica atividades médicas
desnecessárias:

Excesso de tratamento;
Excesso de rastreamento;
Excesso de exames complementares;
Medicalização de fatores de risco.

A prevenção quaternária impõe uma estrita necessidade de o profissional estar


atualizado sobre os estudos científicos de boa qualidade voltados para avaliar
a relação risco-benefício do tratamento e rastreamento, o que significa que é
preciso usar a medicina baseada em evidências, inexoravelmente, para bem
embasar, técnica e eticamente, sua decisão.
A prevenção primordial pode ser entendida como o conjunto de atividades
que visam evitar o aparecimento e o estabelecimento de padrões de vida
social, econômica ou cultural que possam estar ligados a elevado risco de
doença. Esse nível de prevenção atua, portanto, antes que surjam fatores de
risco (por exemplo, legislação estabelecendo ambientes livres de tabaco).

4. Outros modelos explicativos do processo


saúde-doença

A - Modelos dos determinantes sociais de saúde

Nos últimos 15 anos, vários modelos têm sido desenvolvidos para demonstrar
os mecanismos por meio dos quais os determinantes sociais de saúde afetam
os resultados na saúde. Nesse contexto, são pontuados os Determinantes
Sociais da Saúde (DSSs): condições socioeconômicas, culturais e ambientais
de uma sociedade que se relacionam com as condições de vida e trabalho de
seus membros (como habitação, saneamento, ambiente de trabalho, serviços
de saúde e educação, além da trama de redes sociais e comunitárias),
influenciando a situação de saúde da população (CSDH, 2005).
Um dos modelos mais importantes de determinantes sociais trata da
influência das camadas, explicando como as desigualdades sociais na saúde
são resultado das interações entre os diferentes níveis de condições, desde o
nível individual até o de comunidades afetadas por políticas de saúde
nacionais (Figura 6). Observe que os indivíduos estão no centro da Figura 6 e
têm idade, gênero e fatores genéticos que indubitavelmente influenciam seu
potencial de saúde final. A camada imediatamente externa representa o
comportamento e os estilos de vida das pessoas. As pessoas expostas a
circunstâncias de desvantagem tendem a exibir prevalência maior de fatores
comportamentais, como fumo e dieta pobre, e se deparam com barreiras
financeiras maiores ao escolherem um estilo de vida mais saudável (CSDH,
2005).

Figura 6 - Modelo de Dahlgren e Whitehead: influência em camadas Fonte: Dahlgren; Whitehead,


1991.

A influência da sociedade e da comunidade é demonstrada na próxima


camada. Essas interações sociais e pressões ocultas influenciam o
comportamento pessoal da camada abaixo, para melhor ou pior. Para os
grupos mais próximos do fim da escala social, compostos por pessoas que
vivem em condições de extrema privação, os indicadores de organização
comunitária registram uma disponibilidade menor de redes e sistemas de
apoio, além de menos serviços sociais e lazer em atividades comunitárias e
modelos de segurança mais frágeis (CSDH, 2005).
No próximo nível, encontramos fatores relacionados a condições de vida e de
trabalho, disponibilidade de alimentos e acesso a ambientes e serviços
essenciais. Nessa camada, as pessoas em desvantagem social correm risco
diferenciado criado por condições habitacionais mais humildes, exposição a
condições mais perigosas ou estressantes de trabalho e acesso menor aos
serviços (CSDH, 2005).
O último dos níveis inclui as condições econômicas, culturais e ambientais
prevalecentes na sociedade como um todo. Essas condições, como o estado
econômico e as condições do mercado de trabalho do país, influenciam todas
as demais camadas. O padrão de vida de uma dada sociedade, por exemplo,
pode influenciar a escolha de um indivíduo acerca de habitação, trabalho e
interações sociais, assim como hábitos alimentares. Da mesma forma, alguns
fatores podem influenciar o padrão de vida e a posição socioeconômica,
dependendo das crenças culturais sobre a posição das mulheres na sociedade
ou da atitude geral sobre as comunidades étnicas minoritárias (CSDH, 2005).

B - Modelo biopsicossocial

O modelo biopsicossocial (ou holístico) permite que a doença seja vista como
um resultado da interação de mecanismos celulares, teciduais, organísmicos,
interpessoais e ambientais. Assim, o estudo de qualquer doença deve incluir o
indivíduo, seu corpo e seu ambiente circundante como componentes
essenciais de um sistema total (único ou particular).

Dica
A teoria do modelo biopsicossocial, na qual há a interação de 3 fatores no
processo saúde-doença, foi formulada por Engel e considera que os fatores
psicossociais podem operar para facilitar, manter ou modificar o curso da
doença, embora o seu peso relativo possa variar de doença para doença, de
um indivíduo para outro e até mesmo entre 2 episódios diferentes da
mesma doença no mesmo indivíduo (Fava; Sinino, 2010).

Vários autores explicam que o sofrimento e a doença, bem como o processo


de envelhecimento e a morte, fazem parte da existência humana. Com relação
a esses fenômenos naturais, os significados e os sistemas de explicação não se
reduzem a eventos clínicos que podem ser detectados no organismo humano,
mas estão intimamente relacionados às características de cada sociedade e a
cada época (Boltanski, 1989; Canguilhem, 1990; Rogers, 1991; Radley, 1994;
Traverso-Yépez, 2001).
De Marco (2005) explica ainda que esse modelo proporciona uma visão
integral do ser e do adoecer que compreende as dimensões físicas,
psicológicas e sociais. Quando incorporado ao modelo de formação do
médico, ressalta a necessidade de que o profissional, além do aprendizado e
da evolução das habilidades técnico-instrumentais, evolua também nas
capacidades relacionais, que permitem o estabelecimento de um vínculo
adequado e uma comunicação efetiva.

Resumo
Medidas de frequência I:
morbidade
Alex Jones F. Cassenote
Marina Gemma
Lucas Primo de Carvalho Alves

1. Introdução
Após a conceituação de saúde e doença, pode-se partir para questões mais
aplicadas da Epidemiologia. A rigor, neste capítulo, serão abordados os
aspectos básicos da ocorrência de doenças, aqui denominados “medidas de
frequência”. A problemática de interesse do capítulo é a presença de
determinado evento e a possibilidade de repetição desse evento; à medida que
ele ocorre repetidas vezes, pode ser reconhecido um padrão de ocorrência
que, muitas vezes, traz informações importantes sobre a sua prevenção e o seu
controle.
Compreender as medidas de frequência pode ser importante tanto para a
população geral quanto para os profissionais de saúde. Pode-se imaginar uma
situação em que exista uma epidemia de dengue, por exemplo; para saber o
estado evolutivo dessa epidemia, se as atividades de prevenção vêm surtindo
o efeito esperado, se o tratamento existente tem aumentado a sobrevida dos
afetados ou se as políticas adotadas para o controle da doença têm sido
adequadas (Costa; Kale, 2009), é preciso avaliar as medidas de frequência de
doenças e compará-las ao longo do tempo.
Assim como todo o restante da Epidemiologia, as medidas de frequência de
doença são avaliadas a partir de indicadores, que, como regra geral, são
calculados a partir da divisão entre números. As características específicas
dos diferentes tipos de indicadores (razões, proporções, coeficientes e índices)
são aprofundadas no capítulo de mortalidade e outros indicadores; porém,
devido à importância e às características particulares das medidas de
frequência, costuma-se estudá-las em um capítulo à parte, como é o caso
deste livro. As “medidas de frequência”, portanto, são definidas a partir de 2
indicadores que fazem parte da categoria “coeficientes”, que são a prevalência
e incidência (Medronho, 2008).

Importante
De maneira geral, a prevalência expressa o número de casos existentes de
uma doença ou um fenômeno de interesse em um dado momento, ao passo
que a incidência se refere à frequência com que surgem novos casos de
uma doença, num intervalo de tempo.

É fundamental realizar essa discussão de maneira mais ampla, pois ela será
importante para compreender a aplicação dos estudos epidemiológicos e dos
estimadores de risco vastamente utilizados na análise desses estudos.
Antes de iniciar essa discussão, é importante lembrar que, na maioria das
vezes, há interesse em conhecer a frequência de determinadas doenças para
que sejam estruturadas as medidas de controle. Contudo, as moléstias são
apenas um dos desfechos mensuráveis, podendo-se medir a frequência de
fatores de risco ou determinantes, eventos adversos à saúde, ou outros que
não são necessariamente uma doença. Além de medidas como prevalência e
incidência, existem diversas medidas de frequência, como as de mortalidade,
letalidade ou sobrevivência, que, segundo Costa e Kale (2009), podem ser
compreendidas como variações dos conceitos de incidência e prevalência.

2. Incidência
Incidência pode ser definida como a frequência de casos novos de uma
determinada doença ou problema de saúde de uma população com risco de
adoecimento, ao longo de um determinado período (o conceito de tempo está
envolvido). Casos novos, ou incidentes, podem ser compreendidos como
indivíduos que não estavam enfermos no início do período de observação, ou
seja, sob risco de adoecimento, e se tornaram doentes ao longo deste. É
necessário que cada indivíduo seja observado, pelo menos, em 2 ocasiões,
portanto só pode ser obtida em estudos longitudinais, como ensaios clínicos
ou estudos de coorte. A incidência é, então, uma medida dinâmica, pois
expressa mudanças no estado de saúde. Além disso, o conceito de incidência,
em Epidemiologia, é sinônimo do conceito de risco. Assim, o risco de um
indivíduo do sexo masculino, tabagista, com 60 anos de idade, desenvolver
câncer de pulmão é a incidência de câncer de pulmão em uma população de
indivíduos do sexo masculino, tabagistas e com 60 anos de idade.
Incidência é definida, segundo Gordis (2010), como o número de casos novos
de uma doença que ocorreu durante determinado período, em uma população
sob risco de desenvolvimento dessa enfermidade. Além do termo “taxa de
incidência”, que se refere à ocorrência em função do tempo, existem autores
que utilizam o termo “coeficiente de incidência”, uma vez que é uma medida
que expressa a probabilidade de ocorrência da doença. Sendo assim, o
denominador dessa divisão deve trazer todos os indivíduos que estão sob risco
de desenvolver a doença.
Está claro, então, que o numerador dessa fração considera as pessoas
acometidas, ou seja, os novos doentes. Contudo, no denominador do
indicador pode haver 2 tipos de números que dividem o coeficiente de
incidência em 2 tipos: incidência acumulada e densidade de incidência.

A - Incidência acumulada

O 1º tipo de incidência, a incidência acumulada, ou incidência cumulativa, é


utilizado quando todos os indivíduos do grupo representado pelo
denominador foram acompanhados por todo o período. A equação a seguir
apresenta como se calcula a incidência acumulada.

Importante
Muitos livros de Epidemiologia, na tentativa de simplificar o entendimento
das fórmulas dos indicadores, afirmam que, após a divisão do numerador
pelo denominador, devemos multiplicar essa divisão por um múltiplo de 10
(como 100, 1.000 ou 10.000) para obter o valor do indicador. Por exemplo,
caso haja 2 casos incidentes de coqueluche em uma creche com 100
crianças, a incidência seria 2/100 = 0,02*100 = 2%. Entretanto, esse
conceito é ilusório e matematicamente equivocado, pois não podemos
“inventar” um número para multiplicar. Na verdade, como demonstra a F1,
para facilitar a interpretação do indicador, multiplicamos a divisão por
10n/10n; ou seja, multiplicamos por 1, que não altera a fórmula original,
mas torna o número mais inteligível. Ao longo deste e dos outros livros,
utilizaremos a fórmula correta, porém não se surpreenda caso alguma
questão cobre o conceito simplificado de alguns livros de Epidemiologia.

Para exemplificar a incidência acumulada (pessoas sob risco), será utilizada a


representação gráfica da Figura 1, na qual existe um grupo de indivíduos
acompanhados por um período de 5 anos. Nesse caso, não existiu perda de
indivíduos, ou seja, todos foram acompanhados por todo o período estipulado
(5 anos), e a doença em questão deixa a pessoa com imunidade permanente,
então o indivíduo que desenvolveu a doença 1 vez não tem mais risco de
desenvolvê-la.

Figura 1 - Seguimento de uma população de 12 indivíduos para expressar pessoas sob risco de
adoecimento

Para conhecer a incidência da doença nos 5 anos em questão, basta utilizar a


fórmula F1, uma vez que, nesse caso, todos os 12 indivíduos são potenciais
para o desenvolvimento da doença. Então, a incidência desse desfecho, em 5
anos de estudo, foi de 33%.

Até o momento, parece simples a maneira de calcular incidência, contudo é


preciso estar sempre alerta. Veja os exemplos que seguem.
Exemplo 1: utilizando a Figura 1, calcule a taxa de incidência no 2º ano de
observação.
Exemplo 2: utilizando a Figura 1, calcule a taxa de incidência no 5º ano de
observação.

Note que, em ambos os exemplos, o denominador é diferente, pois nas 2


ocasiões o grupo sob risco era distinto. No exemplo 1, existe um caso novo da
doença, o indivíduo número 2. O grupo que estava exposto não era mais de 12
pessoas, e sim de 11, uma vez que o indivíduo número 6 havia ficado doente
no ano anterior e, como a imunidade é permanente, ele não poderia ficar
doente novamente (subtrai-se da população em risco). Da mesma maneira,
ocorreu o exemplo 2; contudo, agora no denominador, existem apenas 9
indivíduos, pois 3 deles ficaram doentes entre os anos 1 e 4 de
acompanhamento.

B - Densidade de incidência, ou incidência-densidade


O 2º tipo de incidência é a densidade de incidência, ou incidência-densidade,
utilizada quando nem todos os indivíduos do denominador foram
acompanhados durante todo o período especificado. Isso pode acontecer por
diversas razões, como perdas no acompanhamento ou morte devido a causas
que não as do estudo. Nesse tipo de incidência, o denominador consiste na
soma das unidades de tempo em que os indivíduos estiveram sob risco e
foram observados. Essa soma de unidades de tempo é chamada de pessoa-
tempo de observação e é, muitas vezes, expressa como pessoa-mês ou pessoa-
ano de observação (depende da variável do que se estuda).

Toma-se a Figura 2 como exemplo desse procedimento. Observe que, além do


fato da perda (alguns indivíduos deixaram de ser acompanhados), os casos
perdidos foram observados por diferentes períodos (indivíduo 5 até 2,5 anos;
9 até 4,0 anos; 12 até 1,5 ano). Outro caso é o dos que ingressaram no estudo
em períodos distintos, que também contribuem com tempos diferentes para o
procedimento de cálculo (indivíduo 11 até 3,0 anos; 2 até 4,0 anos; 1 até 2,5
anos).

Figura 2 - Seguimento de uma população de 12 indivíduos para expressar pessoas-ano de observação

A 1ª questão que deve surgir é: como se calcula pessoa-tempo de observação?


Basta observar pessoa por pessoa quanto ao tempo de observação. Por
exemplo, o indivíduo 1 da Figura 2 foi observado por 2,5 anos de estudo,
contribuindo, assim, com 2,5 pessoas-ano de observação para o total de
pessoas-ano do estudo. Veja agora o indivíduo 5 (perda): foi observado
apenas 2,5 anos, contribuindo com 2,5 pessoas-ano de observação. A seguir, o
cálculo mostrando quanto cada indivíduo contribuiu para o tempo total de
observação do estudo:
Importante
Uma questão importante quando se trata de pessoas-tempo refere-se aos
indivíduos que apresentaram o desfecho. Se não houver reposição e a
doença em questão levar a imunidade permanente, serão observados
somente até o aparecimento do desfecho.

O indivíduo 6 da Figura 2, por exemplo, apresentou o desfecho com 1,5 ano


de observação, contribuindo com 1,5 pessoa-ano de observação para o total.
Então, para saber a incidência da doença por pessoas-tempo de observação,
basta utilizar a fórmula F2, uma vez que, nesse caso, os 12 indivíduos não são
potenciais para o desenvolvimento da doença, pois alguns deixaram de ser
observados e outros não o foram no início do seguimento. Os que
apresentaram o desfecho, na Figura 2, foram 4, e o total de pessoas-tempo
observado é de 41 pessoas-ano. Tem-se, então, uma incidência de 9,75/100
pessoas-ano.

Utilizando esse procedimento, pode-se calcular incidência por período, assim


como realizado no exemplo, quando o denominador era feito com pessoas sob
risco.
Exemplo 3: utilizando a Figura 2, calcule a taxa de incidência até o 3º ano de
observação.

Exemplo 4: utilizando a Figura 2, calcule a taxa de incidência até o 4º ano de


observação.

Observe que o denominador também é diferente para os 2 casos (exemplos 3


e 4). Essa diferença refere-se, principalmente, ao tempo. No exemplo 3, pede-
se a incidência até o 3º ano, no qual existem 2 casos novos da doença
(indivíduos 6 e 10). Se não tivesse ocorrido nenhuma perda, início tardio de
seguimento ou presença do desfecho, seriam 36 pessoas-ano de observação.
Contudo, o total de pessoas-tempo observado foi de 27,5 pessoas-ano (2
perdas – indivíduo 5 e 12 – e 1 caso de doença – indivíduo 6). O mesmo
raciocínio pode ser seguido no exemplo 4: entretanto, trata-se do 4º ano de
observação, e existem 3 casos novos da doença e 36 pessoas-ano de
observação.
Ao calcular coeficientes de incidência para a população de um município, por
exemplo, em geral, admite-se que todos os indivíduos estiveram expostos
igualmente por todo o período de tempo, o que pode não corresponder à
realidade; a saída seria a utilização de pessoas-tempo no denominador, e não
de pessoas sob risco (Franco; Passos, 2005).

Dica
Qual é a vantagem da utilização da densidade-incidência em relação à
incidência acumulativa? Vamos supor que você esteja acompanhando 5
pessoas ao longo de 5 anos, para avaliar a incidência de HIV. A pessoa 1 e
a pessoa 2 desenvolveram HIV após o 1º ano de seguimento, e você
conseguiu acompanhar todas elas por todo o período de tempo. Ou seja,
temos um total de 5 pessoas e um total de 17 pessoas-ano (2 pessoas
duraram 1 ano e 3 pessoas duraram 5 anos). Qual é a incidência acumulada
de HIV nessa população? É 2/5. E qual é a densidade de incidência? É
2/17. Agora, vamos supor que você não conseguiu acompanhar todas as
pessoas por 5 anos, e 2 pessoas foram acompanhadas por apenas 2 anos.
Ou seja, permanecemos com 5 pessoas, porém agora temos um total de 11
pessoas-ano (2 duraram 1 ano; 2 duraram 2 anos; 1 durou 5 anos). Qual é a
incidência acumulada de HIV agora? Permanece sendo 2/5. E a densidade
de incidência? É 2/11. Isso significa que, quando há perdas, a incidência
acumulada subestima a real frequência da doença, pois não sabemos se as
pessoas que foram perdidas desenvolveriam a doença futuramente ou não.
Por isso, nesses casos, a densidade de incidência é um indicador melhor.

3. Taxa de ataque
Um tipo de incidência bastante conhecido, que frequentemente aparece em
provas, é a taxa de ataque. A taxa de ataque significa a incidência de doentes
em uma população previamente exposta a um fator de risco comum e pode ser
calculada com a fórmula a seguir.

Segundo Gordis (2010), na taxa de ataque, o tempo fica especificado


implicitamente ao invés de explicitamente. Um exemplo disso seria um surto
de doença por ingestão de alimentos. Nesse caso, a taxa de ataque pode ser
definida como o número de pessoas expostas (ao alimento suspeito, por
exemplo) que adoeceram dividido pelo número de indivíduos expostos ao
alimento. Note que a taxa de ataque não especifica explicitamente o intervalo
de tempo, pois em muitos surtos ele pode ser de horas ou dias após a
exposição. Por consequência, casos que vierem a ocorrer meses depois
dificilmente serão considerados parte do mesmo surto.

Dica
A taxa de ataque é uma taxa utilizada para situações mais agudas, para
curtos períodos de tempo, geralmente para eventos mais isolados, como um
surto de intoxicação alimentar.

Cassettari et al. (2006) avaliaram um surto por Klebsiella pneumoniae


produtora de betalactamase de espectro estendido no berçário de um hospital
universitário na cidade de São Paulo e verificaram 9 pacientes doentes em
318 internações em 3 meses de observação, sendo a taxa de ataque muito
próxima a 3% (9/318 = 0,028).
Madalosso et al. (2008) estudaram um surto alimentar por Salmonella
enterica sorotipo Enteritidis em um restaurante da cidade de São Paulo. O
período de tempo de exposição foi de 2 dias, e foram identificados 15 doentes
entre os 19 expostos no 1º dia (taxa de ataque de 78,9%) e 9 doentes dos 10
expostos no 2º dia (taxa de ataque de 90%). A taxa de ataque global era de
82,8% (24 doentes/29 expostos = 0,82).

4. Prevalência
Prevalência é uma medida de frequência que revela quantos indivíduos estão
doentes (ou apresentam o desfecho). Pode ser definida como o número de
pessoas afetadas na população em determinado momento, dividido pelo
número de pessoas na população naquele momento – F3 (Pereira; Paes;
Okano, 2000; Gordis, 2010).
Costa e Kale (2009) explicam também que os casos existentes são de
indivíduos que adoeceram em algum momento do passado mais ou menos
remoto, como os casos “antigos” e os “novos”, que estão vivos quando se
realiza uma observação. Desse modo, os que vierem a falecer no período de
observação não devem ser considerados cômputos da prevalência.

Importante
Em Medicina e Saúde Pública, o termo “prevalência” pode ser empregado
para designar “prevalência pontual” ou “prevalência no período”. Quando
não está especificado, faz-se referência à prevalência pontual, que se refere
à frequência de uma doença ou problema de saúde num instante (ponto) do
tempo. Prevalência por período refere-se a um intervalo de tempo, que
pode ser arbitrariamente selecionado, tal como 1 mês, 1 ano ou um período
de 5 anos.
Algumas pessoas podem desenvolver doença em um período, outras
apresentá-la antes e morrer ou ser curadas durante esse período. O importante
é que cada indivíduo representado pelo numerador teve a doença em algum
momento durante o período especificado.
Para exemplificar, toma-se a representação de uma população hipotética de
São Paulo (Figura 3), na qual se deseja saber qual é a prevalência da doença
em janeiro de 2010. Sabe-se que existem 6 indivíduos doentes (6, 9, 13, 14,
22 e 29) para uma população de 35 indivíduos. A prevalência pontual da
doença no ano de 2010 em São Paulo é de 17%.
Figura 3 - População de 35 indivíduos para estudar a prevalência de doença em São Paulo, em
janeiro de 2010

Antes de partir para a próxima questão, vale voltar à questão da prevalência


pontual, em que, na prática, é virtualmente impossível estabelecer um único
ponto e realizar uma pesquisa de prevalência. Imagine uma pesquisa que
investigaria uma cidade inteira em 1 dia. Embora conceitualmente se esteja
pensando em um só ponto no tempo, na verdade as pesquisas podem demorar
muito mais. Gordis (2010) cita um exemplo interessante que engloba as
medidas de frequência estudadas no presente capítulo (Tabela 1).
Toma-se agora a Figura 4. Deseja-se conhecer a prevalência da doença no
mesmo mês do ano seguinte ao exemplo anterior. Existem, nesse caso, 11
pessoas doentes (4, 6, 10, 12, 13, 14, 16, 19, 22, 23 e 29) para população total
de 35 indivíduos. O cálculo de prevalência resulta em 31,4% de doentes
existentes na hipotética São Paulo, em janeiro de 2011.
Figura 4 - População de 35 indivíduos para estudar a prevalência de doença em São Paulo, em
janeiro de 2011

Repare que, para esse exemplo, existe a possibilidade do cálculo de


incidência, pois aparecem os mesmos indivíduos 1 ano depois da medida da
1ª prevalência, contudo não é esse fato que merece discussão, e sim o
aumento da prevalência de um ano para outro. Em janeiro de 2010, a
prevalência da doença foi de 17% (Figura 3) e, em janeiro de 2011, de 31,4%
(Figura 4). Pensando epidemiologicamente, o que pode ter ocorrido para
observar essa elevação da taxa de prevalência? Esse pensamento será
discutido a seguir.

5. Relação entre prevalência e incidência


Franco e Passos (2005) explicam que a prevalência de uma doença pode ser
uma função de sua incidência. Quanto maior a incidência, maior será a
prevalência, dependendo da duração da doença, assim como de curas, óbitos e
perdas de acompanhamentos. Desse modo, a prevalência pode ser entendida
como o resultado, para um período de tempo, da soma das entradas (casos
novos) menos a soma das saídas (curas, mortes e perdas de acompanhamento)
em função da duração da doença sob investigação.
Operacionalmente, tanto a prevalência quanto a incidência são semelhantes,
pois tratam de uma divisão de indivíduos doentes pela população exposta.
Entretanto, conceitualmente, são distintos. A prevalência informa sobre a
situação da doença em um instante ou intervalo de tempo, mas não estima o
risco de adoecimento, pois os casos novos e existentes são considerados um
conjunto.

Importante
A incidência informa sobre a dinâmica de entrada de novos casos,
permitindo estimar o risco de adoecimento de uma população exposta. A
prevalência é uma informação fundamental para a administração e o
planejamento em saúde, uma vez que o número de atendimentos,
medicamentos e pessoas é calculado levando em conta essa medida de
frequência. Porém, a incidência é o elemento que fornece casos novos à
prevalência.

A seguir (Figura 5), existe uma representação da influência da incidência


sobre a prevalência, em que o tanque representa uma população. No cenário
1, observa-se uma situação em que existe a entrada de alguns casos novos,
porém a saída de casos existentes é elevada, logo não existem muitos casos da
doença na população. Veja agora o cenário 2, em que ocorreu a entrada de
casos novos da doença e a saída de casos existentes está mais restrita, assim
os casos prevalentes são consideravelmente importantes. A Tabela 2 também
explicita quais fatores aumentam e diminuem a prevalência de uma doença na
população.
Dica
O aumento da prevalência através de um tratamento que aumente a
sobrevida, mas não cure, tem sido tema frequente de prova. Exemplos
clássicos são aumento da prevalência de HIV após a distribuição de
antirretrovirais e aumento da prevalência de diabetes mellitus com controle
rigoroso de glicemia.

Pereira, Paes e Okano (2000) acrescentam que prevalência e incidência


obedecem a uma relação regulada pelo tempo de duração da doença, assim
expressa:
Prevalência (P) = incidência (i) x duração da doença
Desse modo, uma doença aguda e de curta duração, em geral, é bem avaliada
pela incidência. Durante uma epidemia de dengue, por exemplo, os casos
novos representam a incidência, mas após o período epidêmico a incidência
tende a cair (Figura 6), como já demonstrado no cenário 1 da Figura 5. Se a
avaliação da prevalência for feita após a epidemia, poderá não refletir a real
dimensão da doença (Franco; Passos, 2005).

Figura 5 - Situações para verificação da relação entre prevalência e incidência: (A) entrada de casos
novos (incidência); (B) casos existentes (prevalência); (C) saída de casos (morte, cura ou perda de
acompanhamento em uma coorte)

Figura 6 - Casos de dengue segundo classificação final e semana epidemiológica de início dos
sintomas
Fonte: adaptado de Boletim sobre situação da dengue, febre de chikungunya e febre do zika vírus em
Santa Catarina (atualizado em 06/01/2016).

Franco e Passos (2005) explicam também que, no caso das doenças crônicas e
de longa duração, como o diabetes, mesmo com incidência baixa, a
prevalência tende a ser alta, pois os pacientes tendem a sobreviver por muitos
anos, havendo um acúmulo de casos ao longo do tempo, também
demonstrado no cenário 2 da Figura 5. Um bom programa de controle do
diabetes poderá resultar na elevação da prevalência dessa doença, seja por
melhorar o diagnóstico, seja por aumentar a sobrevida, elevando a duração da
doença.

6. Estimativas por intervalo


Embora esse assunto seja aprofundado no capítulo sobre Bioestatística
aplicada à análise de estudos epidemiológicos, com frequência as provas de
concursos médicos cobram esse conceito em questões que versam
primariamente sobre morbidade.
É comum que, em estudos epidemiológicos, tente-se aplicar o conhecimento
obtido de uma amostra em uma população inteira; por exemplo, selecionar
algumas escolas de São Paulo para tentar estimar a prevalência de transtorno
de déficit de atenção e hiperatividade entre todos os escolares da cidade.
Quando isso acontece, estamos sujeitos ao que se chama de “erro amostral”,
que é um erro de medição que ocorre pelo fato de não avaliar todas as pessoas
da população inteira.
Para estimar esse erro amostral, costuma-se utilizar o conceito de intervalo de
confiança. Assim, caso, no exemplo do estudo descrito anteriormente, você
tenha encontrado uma prevalência de 10%, em vez de afirmar que a
prevalência na cidade foi de 10% na população, você pode calcular o
intervalo de confiança e afirmar que a prevalência está em torno de 10%,
entre um intervalo de valores calculado. O intervalo de confiança é calculado
a partir da média, desvio-padrão e tamanho amostral do estudo. A
interpretação correta de um intervalo de confiança de 95% de uma
determinada prevalência (ou incidência) é que, caso repetíssemos o estudo
infinitas vezes, 95% das amostras incluirão a prevalência (ou incidência) real.
Portanto, há 95% de probabilidade que o seu intervalo inclua a prevalência
real.
Exemplo: Schweitzer (2015) estimou que a prevalência de hepatite B crônica
no Brasil é de 0,65% (IC95% 0,64 a 0,66%). Isso significa que, se repetirmos
o estudo várias vezes no Brasil, 95% das amostras encontrarão valores que
contenham a verdadeira prevalência. Logo, há uma probabilidade de 95% de
que o intervalo de 0,64 a 0,66% inclua a prevalência real de hepatite B
crônica no Brasil.

Importante
Afirmar que há 95% de probabilidade de que o intervalo de confiança
inclui a prevalência (ou incidência) real não significa que:

Há uma probabilidade de 95% que a prevalência esteja dentro do


intervalo;
95% dos dados da amostra estão no intervalo;
A prevalência real varia entre os valores do intervalo.

Resumo
Introdução
As medidas de frequência são definidas a partir de 2 conceitos
epidemiológicos fundamentais, denominados “prevalência” e
“incidência”. De maneira geral, a prevalência expressa o número de
casos existentes de uma doença ou um fenômeno de interesse em um
dado momento, ao passo que a incidência se refere à frequência com que
surgem novos casos de uma doença, num intervalo de tempo. É
fundamental realizar essa discussão de maneira mais ampla, pois ela será
importante para compreender a aplicação dos estudos epidemiológicos,
bem como dos estimadores de risco vastamente utilizados na análise
desses estudos.

Incidência

A incidência pode ser definida como a frequência de casos novos de uma


determinada doença ou um problema de saúde, oriundo de uma
população sob risco de adoecimento, ao longo de um determinado
período de tempo. Casos novos, ou incidentes, podem ser compreendidos
como indivíduos que não estavam doentes no início do período de
observação, ou seja, sob risco de adoecimento. É necessário que cada
pessoa seja observada, pelo menos, em 2 ocasiões. A incidência é,
portanto, uma medida dinâmica, pois expressa mudanças no estado de
saúde. Está claro, então, que o numerador dessa fração trará as pessoas
acometidas pela doença, ou seja, os novos doentes. No denominador,
contudo, pode haver 2 tipos de situações-pessoas, sob risco (F1) e
pessoas-tempo (F2). O primeiro caso é utilizado quando todos os
indivíduos do grupo representado pelo denominador foram
acompanhados por todo o período, enquanto o segundo corresponde à
soma do período de observação de cada participante.

Taxa de ataque

É a incidência de doentes após uma exposição a um fator de risco.


Algumas vezes o tempo pode ser especificado implicitamente ao invés
de explicitamente. Um exemplo seria um surto de doença por ingestão de
alimentos, em que, nesse caso, em vez de incidência, utiliza-se taxa de
ataque, que pode ser definida como o número de pessoas expostas ao
alimento suspeito e que adoeceram, dividido pelo número de indivíduos
expostos ao alimento. Note que a taxa de ataque não especifica
explicitamente o intervalo de tempo, pois em muitos surtos ele pode ser
de horas ou dias após a exposição. Por consequência, casos que
ocorrerem meses depois dificilmente serão considerados parte do mesmo
surto.
Prevalência

Prevalência é uma medida de frequência que revela quantos indivíduos


estão doentes (ou apresentam o desfecho). Pode ser definida como o
número de pessoas afetadas na população em um determinado momento,
dividido pelo número de sujeitos na população naquele momento (F3).

Relação entre prevalência e incidência

Ambas são medidas da frequência de ocorrência da doença. Prevalência


mede quantas pessoas estão doentes, e incidência mede quantas se
tornaram doentes. Ambas as medidas obedecem a uma relação regulada
apenas pelo tempo de duração das doenças (agudas e crônicas), cuja
função fica assim expressa: Prevalência (P) = incidência (i) x duração da
doença. Aumentam a prevalência: aumento da incidência; imigração de
doentes; tratamento que não cure, porém prolongue a sobrevida.
Diminuem a prevalência: mortes; cura; emigração de doentes.
Medidas de frequência II:
mortalidade e outros
indicadores
Marília Louvison
Thaís Minett
Alex Jones F. Cassenote
Marina Gemma
Lucas Primo de Carvalho Alves

1. Introdução
Neste capítulo, serão abordados alguns indicadores mais utilizados no Brasil
para categorizar a qualidade de saúde de um determinado local.
Na área de Saúde, os “indicadores” são parâmetros utilizados
internacionalmente a fim de avaliar, do ponto de vista sanitário, a higidez de
agregados humanos, bem como fornecer subsídios aos planejamentos de
saúde, permitindo o acompanhamento das flutuações e tendências históricas
do padrão sanitário de diferentes coletividades consideradas à mesma época
ou da mesma coletividade, em diversos períodos de tempo (Medronho, 2009).
Diante das inúmeras dificuldades para mensurar a saúde da população, o que
se faz é quantificar e descrever a ocorrência de determinados agravos à saúde,
doenças ou morte. Nesse caso, olha-se, então, a ausência de saúde, ou, como
habitualmente é dito, a saúde pelo seu lado negativo (Medronho, 2009).
Assim, por exemplo, um local cuja população apresente baixa frequência de
doenças e mortalidade por diversos tipos de causas será taxado de saudável.

Importante
Em sentido amplo, qualquer informação que auxilie um gestor ou
profissional da saúde na tomada de decisão em saúde poderá ser um
indicador de saúde. De forma geral, indicadores são expressos por meio da
divisão entre números.

Outra questão importante refere-se ao fato de que os dados epidemiológicos


só se tornarão informações para tomada de decisão por meio dos indicadores
de saúde. Esses dados provêm de fontes primárias (pesquisas) ou secundárias
(sistemas de informação em saúde, por exemplo: SINAN – Sistema de
Informação de Agravos de Notificação –, SIM – Sistema de Informações
sobre Mortalidade – e SINASC – Sistema de Informações sobre Nascidos
Vivos). Então, a validade dos indicadores vai depender, basicamente, da
qualidade dos dados registrados nesses sistemas de informação.
Após os cuidados quanto à qualidade e cobertura dos dados de saúde, é
preciso transformar esses dados em indicadores que possam servir para
comparar o que foi observado em determinado local com o que foi observado
em outros, ou ainda com o observado no mesmo local em diferentes tempos
(Figura 1).

Figura 1 - Principais finalidades dos indicadores


Fonte: adaptado de Epidemiologia para os municípios: manual para gerenciamento dos distritos
sanitários, 1992.

Dica
Com a preocupação de medir o padrão de vida das coletividades humanas,
a Organização das Nações Unidas recomendou a adoção do termo “nível
de vida”, para expressar as condições atuais de vida de uma população, e o
termo “padrão de vida”, para referir-se às aspirações futuras.

No Brasil, a RIPSA (Rede Interagencial de Informações para a Saúde) afirma


que a disponibilidade de informação apoiada em dados válidos e confiáveis é
condição essencial para a análise objetiva da situação sanitária, assim como
para a tomada de decisões baseadas em evidências e para a programação de
ações de saúde (RIPSA, 2008).
A análise de indicadores demográficos e de morbimortalidade tem o objetivo
de elaborar os chamados diagnósticos de saúde da comunidade. Mais
recentemente, a Organização Pan-Americana da Saúde tem buscado retomar
essa prática, incentivando a utilização mais ampla da Epidemiologia por meio
do acompanhamento e da análise sistemática da evolução de indicadores
demográficos, sociais, econômicos e de saúde, para melhor compreensão dos
determinantes das condições de saúde da população.
Esse quadro de contínuas modificações salienta a relevância da capacitação
dos serviços de saúde para a análise e a interpretação desses indicadores à luz,
por exemplo, de conceitos como o da transição epidemiológica. Com
fundamento nesse conceito, busca-se compreender as profundas mudanças
ocorridas nos padrões de morbidade e mortalidade nas últimas décadas.
Os indicadores de saúde são construídos por meio de frequências relativas,
em forma de coeficientes ou taxas, proporções, índices e razões, abordados a
seguir. Para exemplificar a construção desses indicadores, serão utilizados os
dados disponíveis na Tabela 1 (dados reais extraídos de diferentes fontes); as
fórmulas utilizadas serão F1, F2 e F3. Repare na lógica utilizada para chegar
ao indicador.

2. Construção de indicadores

A - Aspectos básicos

A forma mais simples de expressar um dado é o número absoluto; contudo,


esse tipo de expressão apresenta uma limitação importante, não sendo
possível conhecer, por exemplo, a dimensão que ela representa. Veja o
seguinte exemplo: no ano de 2010, foram confirmados 35 casos de hepatite B
em Araçatuba e 262 em São José do Rio Preto. O que esses números
representam depende da relação com o tamanho da população local, assim é
possível que os 35 casos ocorridos em Araçatuba sejam, do ponto de vista
epidemiológico, mais significativos do que os 262 casos ocorridos em São
José do Rio Preto.
Toma-se agora outra situação na Tabela 1. Observe inicialmente a coluna de
óbito por AIDS e repare que as regiões Sudeste e Sul apresentam maiores
números de tais óbitos no ano de 2009. Porém, apesar de esse dado ser
verídico, isoladamente impossibilita a comparação de maneira mais concreta,
não sendo possível saber se os óbitos nas regiões Sul e Sudeste são, de fato,
mais significativos do que nas demais regiões do Brasil, simplesmente pelo
fato de não se conhecer a representatividade desses números em relação à sua
região de origem.

Entretanto, quando se observam outros parâmetros, como o tamanho da


população de cada região, os óbitos totais ocorridos e mesmo os óbitos por
causas externas, ambos para o mesmo ano, a importância dos números de
óbitos de AIDS parece tomar certa dimensão. Essa dimensão ocorre,
justamente, pela relação que a mortalidade por AIDS estabelece junto aos
outros números. Portanto, para realizar a análise epidemiológica do evento
considerado, é necessário transformar os dados expressos em valores
absolutos para valores relativos, ou seja, os valores absolutos devem ser
expressos em relação a outros valores absolutos, que guardem entre eles
alguma forma de relação coerente. Esse fato trará a dimensão que permitirá
comparação e avaliação. A seguir, a construção dos tipos de indicadores.

B - Tipos de indicadores

a) Coeficientes ou taxas

Trata-se da divisão entre o número de vezes que se observou um determinado


evento, pela população que, teoricamente, esteve sujeita a sofrer esse evento.
Globalmente falando, os coeficientes podem ser expressos por meio de
prevalências ou incidências.

Dica
Os coeficientes ou taxas são comumente utilizados para estimar o risco de
ocorrência de um problema de saúde, como adoecimento ou mesmo a
morte, em relação a determinada população suscetível, por unidade de
tempo. Em um sentido epidemiologicamente rigoroso, o conceito de risco
está atrelado (na verdade, é sinônimo) da incidência de uma determinada
condição. Entretanto, para fins de medicina preventiva e descritiva, o
coeficiente de prevalência, por incluir, no denominador, a população que
estaria sujeita a sofrer o evento, também pode trazer a ideia de risco,
embora não seja o risco em si.

Medronho (2009) explica que um coeficiente de mortalidade, por exemplo, é


a razão entre o número de óbitos e a quantidade de indivíduos expostos ao
risco de morrer. Tem a fórmula idêntica ao cálculo de incidência ou
prevalência, mas com o desfecho “morte” em vez de “doença” (ou seja,
expressão de probabilidade).
Para exemplificar, será calculado o coeficiente de mortalidade por AIDS para
o Brasil e suas regiões (F1), conforme os dados que constam na Tabela 1.
Futuramente, esse indicador será chamado de “coeficiente de mortalidade por
causa específica”, AIDS, neste caso.

Repare que foi realizado um cálculo muito simples: o número de mortes por
AIDS em 2014 foi dividido pelo tamanho da população do Brasil e de cada
região, respectivamente (o coeficiente está na base 105/105; ou seja, o
produto dessa divisão foi multiplicado por 100.000/100.000 habitantes). Note,
também, que agora existe uma dimensão bem definida para as mortes, pois
estão relacionadas à população geral do país e de cada região. Um bom
exemplo da aplicabilidade desse indicador pode ser visto a seguir (Tabela 2):
os casos de mortalidade por AIDS no Norte do Brasil têm mais
representatividade do que os do Nordeste, apesar de terem ocorrido mais
óbitos nessa última região. O mesmo fato pode ser observado entre o Sul e o
Sudeste do país.

Nesse caso, existe a possibilidade de inferir que o risco de morrer é


relativamente maior nas regiões Sul e Sudeste do que no Norte, Nordeste e
Centro-Oeste do Brasil.
Deve-se fazer a ressalva de que o coeficiente está para 100.000 habitantes,
não existindo uma regra para tal fato. A multiplicação por 10n/10n deverá ser
sempre para a potência que melhor facilitar a leitura do indicador (100/100,
1.000/1.000, 10.000/10.000 ou 100.000/100.000).

b) Proporções (eventualmente chamadas de índices ou


razões)

Embora a definição de “coeficiente” seja clara na literatura de Epidemiologia,


alguns termos, como índices e razões, são sobrepostos e, muitas vezes,
imprecisos. Índice, do ponto de vista teórico, é uma medida multidimensional,
construída pela relação entre vários atributos (Pereira, 2002). Entretanto,
razões são divisões entre quaisquer números que obedeçam a um sentido
lógico. Em alguns casos (às vezes, em provas de concursos médicos),
utilizam-se os termos índices e razões para referir-se a outro termo que, este
sim, tem um significado bastante preciso: as proporções. Proporções são
indicadores cujos casos incluídos no numerador também estão inseridos no
denominador, obtendo-se, assim, a distribuição proporcional de casos, ou seja,
é uma proporção. A grande diferença das proporções para os coeficientes é
que, nestes, o denominador inclui todas as pessoas que poderiam sofrer o
evento do numerador; em contraste, nas proporções, o denominador inclui
pessoas que já sofreram um evento, e o numerador representa apenas um
subconjunto dessas pessoas.
Exemplo de proporção de óbitos por AIDS no Brasil. Perceba que o número
indicado no numerador é um subconjunto do denominador:

A proporção é a relação (ou o quociente) entre 2 frequências da mesma


unidade. No numerador, são registradas as frequências absolutas de eventos
que constituem subconjuntos daquelas registradas no denominador. Exemplo:
no caso da mortalidade proporcional, divide-se o número de óbitos de uma
determinada causa, ou de pessoas de uma determinada faixa etária, pelo
número total de óbitos (Medronho, 2009).

Dica
Em linhas gerais, as proporções representam a “fatia da pizza” do total de
casos ou mortes, indicando a importância desses casos ou mortes no
conjunto total.

No caso da proporção, será utilizado um exemplo bem simples, que trará uma
nova dimensão para aqueles óbitos por AIDS absolutos apresentados junto à
Tabela 1. Será aplicado o indicador que poderá ser denominado de
mortalidade proporcional por AIDS (F2) – lembre-se de que poderia ser por
qualquer outra causa. O procedimento de cálculo é: divisão do número de
óbitos por AIDS para cada região e para o país pelo total de óbitos ocorridos
em cada região e no país no mesmo ano.

Em se tratando de razão, seu cálculo é simplesmente uma divisão entre 2


números, e pode-se exemplificar sua aplicação do mesmo modo (com dados
da Tabela 2). Assim, pode-se dividir o número de óbitos por causas externas
(para o país e as regiões) pelo número de casos de AIDS (F3). Perceba que
deve haver uma relação lógica entre esses números; pode-se chamar esse
indicador, então, de razão de mortalidade por causa externa/AIDS.

Veja que, no ano de 2009, a proporção de óbitos por AIDS no Brasil foi de
cerca de 1%, relativamente mais relevante nas regiões Sul e Norte do país
(Tabela 3). Já no caso da razão causa externa/AIDS, são 11,7 óbitos por
causas externas para 1 de AIDS no país; a região com maior razão foi o
Nordeste, com 19 mortes por causas externas para 1 de AIDS (Tabela 4).
Para chegar a este último procedimento, partiu-se dos números absolutos de
óbitos por AIDS no ano de 2009, que não tinham valor avaliativo ou
comparativo. Foi feita, então, sob uma ótica mais prática, uma relação desses
números com outros de interesse (por meio de coeficientes e índices), fato que
conferiu um caráter avaliativo e possibilitou a comparação entre as diferentes
regiões do Brasil.
De maneira genérica, assim são planejados e montados os indicadores de
saúde. Vale ressaltar que existe uma diferença considerável entre coeficientes
(ou taxas) e proporções.

Importante
Proporções não expressam uma probabilidade (ou risco) como os
coeficientes, pois o que está contido no denominador não está sujeito ao
risco de sofrer o evento descrito no numerador (Laurenti et al., 1987).

A seguir, serão apresentados os principais indicadores de saúde, bem como


outros correntemente utilizados em Epidemiologia pela Organização Mundial
da Saúde (OMS).

3. Principais indicadores de saúde

Importante
Como o uso de um único indicador não possibilita o conhecimento da
realidade epidemiológica de uma população, a associação de vários deles e,
ainda, a comparação entre diferentes indicadores nos ajuda a compreender
a importância de um processo patológico ou se determinada intervenção foi
positiva.

Para a OMS, esses indicadores gerais subdividem-se em 3 grupos:

Referem-se às condições do meio e têm influência sobre a saúde.


Exemplo: saneamento básico;
Tentam traduzir a saúde ou sua falta em um grupo populacional.
Exemplos: razão de mortalidade proporcional, coeficiente geral de
mortalidade, esperança de vida ao nascer, Coeficiente de Mortalidade
Infantil (CMI) e coeficiente de mortalidade por doenças transmissíveis (o
foco deste capítulo);
Procuram medir os recursos materiais e humanos relacionados às
atividades de saúde. Exemplos: número de Unidades Básicas de Saúde,
profissionais de saúde, leitos hospitalares e consultas em relação a
determinada população.

A - Indicadores expressos por coeficientes

Importante
Os indicadores expressos por coeficientes mais importantes são estatísticas
de mortalidade e permitem inferir as condições de saúde de uma
população, uma vez que possibilitam identificar grupos mais afetados por
determinados agravos à saúde. Diante dessa informação, é possível
reconhecer os problemas prioritários da população e alocar recursos para
ações e intervenções nesses problemas. Permitem, ainda, avaliar a eficácia
dessas ações e intervenções.

Quando o foco de interesse envolve todos os indivíduos da população exposta


ao risco de morrer, fala-se em coeficiente de mortalidade geral. A avaliação
da mortalidade por categorias (idade, sexo, agravo) refere-se aos coeficientes
de mortalidade específicos. Por fim, a avaliação de mortalidade entre doentes
é chamada de coeficiente de letalidade (Tabela 5).
a) Coeficiente de mortalidade geral

O Coeficiente de Mortalidade Geral (CMG) é muito útil para a avaliação do


estado sanitário de determinadas áreas. Associado a outros coeficientes e
índices, permite avaliar comparativamente o nível de saúde dessas
localidades. Operacionalmente, refere-se ao número de óbitos totais em um
dado período dividido pelo tamanho da população no mesmo período. Essa
razão geralmente é multiplicada por 100.000/100.000 (F4).

Em comparações internacionais, por exemplo, quando se observam as taxas


brutas de mortalidade de países desenvolvidos e em desenvolvimento, não é
incomum a falsa impressão de que, nos primeiros, as taxas de mortalidade são
mais elevadas (Tabela 6). Porém, deve-se verificar que, nos países
desenvolvidos, é significativa a parcela idosa da população, e essas pessoas
morrem mais do que jovens (parcela significativa da população em países em
desenvolvimento). Repare, então, que esse coeficiente sofre influência da
estrutura etária da população.

Importante
Para minimizar as distorções em estudos comparativos e evitar
interpretações errôneas, recomenda-se padronizar as taxas. Com o ajuste
das faixas etárias a um padrão estabelecido pela Organização Mundial da
Saúde, fala-se em coeficiente de mortalidade padronizado. Logo, pode-se
afirmar que este, quando disponível, é mais adequado para comparações,
em detrimento do coeficiente de mortalidade geral.

Observe, na Tabela 6, que a porcentagem da população idosa na Suécia, por


exemplo, é maior do que a mesma população no México. Deve-se observar,
também, a população infantil (menor de 15 anos) nesses 2 países.
Considerando, como dito, que a população idosa morre mais do que a jovem,
ao comparar as taxas brutas de mortalidade nesses 2 países, conclui-se que a
mortalidade na Suécia é maior do que no México; porém,
epidemiologicamente falando, essa conclusão é equivocada, uma vez que
altas taxas de mortalidade sugerem regiões com precárias condições de saúde,
entre outros fatores. Assim, ao padronizar essas taxas, têm-se os dados de
forma mais realista.

Alguns problemas do CMG referem-se às distorções relacionadas com os sub-


registros e a qualidade dos registros. Contudo, esse é um problema que afeta
quase todos os indicadores de saúde. Assim, dados do numerador podem ser
prejudicados por sub-registros, e dados do denominador, pela imprecisão na
estimativa da população total da região em estudo. Uma alternativa diante
disso é adotar, no denominador, a população existente na metade do período
considerado (ponto médio), o que, acredita-se, conferiria distorções não
significativas nos resultados. Outra questão comum é que muitas pessoas
procuram assistência médica em centros mais avançados do país e, quando
vêm a falecer, a declaração de óbito é preenchida com o endereço de um
familiar da região, e não com o endereço de origem do paciente falecido,
subestimando a mortalidade de um local e superestimando de outro.

b) Coeficiente de mortalidade por causas (ou mortalidade


específica)

O coeficiente de mortalidade pode expressar a distribuição de óbitos de uma


população segundo alguns parâmetros: causa do óbito (F5) ou grupo (sexo –
F6 –, idade – F7 –, local do óbito, entre outros). Assim, ao calcular as taxas de
mortalidade por sexo, pode-se saber se os homens morrem mais do que as
mulheres, por exemplo; ou, ao calcular as taxas de mortalidade por idade,
pode-se identificar em que grupo etário é maior a mortalidade e, a partir dessa
informação, investigar as causas de óbitos em cada grupo.
O coeficiente de mortalidade por causas pode ser calculado pela razão entre o
número de óbitos por determinada causa (numerador) e a população exposta
ao risco de morrer por aquela causa (denominador), multiplicada pela base
referencial da população – normalmente, 100.000/100.000 (F5).

Tema frequente de prova


A taxa de mortalidade por causas aparece com frequência nos concursos
médicos.

O coeficiente de mortalidade por causas é útil, pois fornece informações que


permitem conhecer o perfil de saúde da população.
Quando uma região apresenta elevada taxa de óbitos por doenças infecciosas
e parasitárias, pode-se esperar que seja economicamente pouco desenvolvida,
com saneamento precário, como em países em desenvolvimento. Da mesma
forma, se a taxa de óbitos por doenças crônico-degenerativas é elevada em
determinada localidade, pode-se esperar que se trate de região com importante
parcela da população composta por idosos, o que acontece em regiões
economicamente mais desenvolvidas, como se observa nos países
desenvolvidos. Apresentam-se, a seguir, os coeficientes de mortalidade
segundo as principais causas para o Brasil em 2014 (Figura 2).

Figura 2 - Exemplo de mortalidade por causas (100.000 habitantes) no Brasil, em 2014


Fonte: TABNET. Mortalidade.

Algumas causas específicas de mortalidade são eventualmente cobradas em


provas. A Figura 3 apresenta causas de mortalidades específicas por sexo e
faixa etária em 2014 divulgadas pelo Ministério da Saúde. Perceba que, nesse
relatório, o Ministério da Saúde não agrupou as diferentes neoplasias em uma
única categoria, portanto essa causa não figura entre as principais causas de
morte. Caso sejam agrupadas, as principais causas de morte em homens são,
em ordem, causas cardiovasculares, neoplasias e causas externas; em
mulheres, causas cardiovasculares, neoplasias e causas respiratórias.
Figura 3 - Mortalidade por causas específicas em diferentes agrupamentos (2014). Nessa estatística,
as neoplasias não foram agrupadas como um único agente, portanto não figuram entre as principais
doenças causadoras de mortalidade
Fonte: Ministério da Saúde, 2014.

c) Coeficiente de letalidade

Dica
O coeficiente de letalidade, também chamado coeficiente de fatalidade,
mede o poder de determinada doença de levar ou não o indivíduo
acometido ao óbito. Permite avaliar, portanto, a gravidade do processo.

Trata-se, então, da proporção de óbitos ocorridos entre os indivíduos afetados


por um dado agravo à saúde. Deve-se estar atento ao fato de que o Coeficiente
de Letalidade (CL) é diferente do coeficiente de mortalidade. A diferença está
no denominador, que é a população total no caso da mortalidade e a
população acometida pela doença estudada no caso da letalidade. Portanto, a
letalidade mostra os óbitos entre os casos que estavam doentes da referida
doença (F8), ao passo que a mortalidade trata dos óbitos totais em relação à
população.

Sabe-se que a raiva humana, por exemplo, é uma doença de taxa de letalidade
superior a 99%, ou seja, morre quase todo indivíduo que apresenta
diagnóstico confirmado de raiva. Porém, trata-se de uma doença rara; logo, há
poucos óbitos, e sua mortalidade, portanto, é baixa. O CL não é estável, ou
seja, apresentará resultados diferentes a depender da população a ser avaliada.
A Tabela 7 traz os CLs para algumas doenças. O coeficiente de acidente por
animais peçonhentos, nesse caso, foi de 0,3%, porém, se não existir
assistência médica adequada e/ou soro para o indivíduo acidentado, até
mesmo os casos menos graves poderão evoluir para morte. Assim, a
letalidade depende de questões como a situação do hospedeiro, a
potencialidade do agente etiológico em levá-lo a óbito e o atendimento à
saúde que o indivíduo receber.

d) Coeficiente de mortalidade infantil

Tema frequente de prova


A taxa de mortalidade infantil é sempre encontrada nos concursos médicos.

O CMI é um dos indicadores de saúde mais utilizados para medir o nível de


saúde e desenvolvimento social de uma região. Esse indicador é calculado
dividindo-se o número de óbitos em menores de 1 ano de idade pelo número
de nascidos vivos no mesmo período, multiplicando o resultado por
1.000/1.000 – F9 (lembre-se de que a unidade de multiplicação não é uma
regra).
Conceitualmente, o termo “nascido vivo” refere-se à expulsão ou à extração
completa de um produto da concepção do corpo materno, independentemente
da duração da gestação, o qual, depois da separação do corpo materno, respire
ou dê qualquer outro sinal de vida, como batimento do coração, pulsação do
cordão umbilical ou movimentos efetivos dos músculos de contração
voluntária, estando ou não cortado o cordão umbilical e estando ou não
desprendida a placenta (IBGE, 2009a).
Com o objetivo de refinar as informações obtidas, o CMI pode ser dividido
em 2 componentes: Coeficiente de Mortalidade Neonatal (CMN – F10) e
Coeficiente de Mortalidade Pós-Neonatal (CMPN) ou de Mortalidade Infantil
Tardia (CMIT – F13). Na Figura 4, apresentam-se os períodos entre o fim da
gestação até o indivíduo completar 1 ano de vida. Esses períodos são
geralmente utilizados na construção desses indicadores de mortalidade
(Laprega; Fabbro, 2005).

Figura 4 - Períodos importantes para a mortalidade infantil

O CMN, também chamado de CMI precoce, é definido como o número de


óbitos de menores de 27 dias sobre o total de nascidos vivos no mesmo
período, multiplicando o resultado por 1.000/1.000. As principais causas são:
baixo peso ao nascer, malformações congênitas, prematuridade, problemas no
parto, pré-natal de pouca qualidade, falha nos cuidados imediatos ao recém-
nascido e dificuldade de acesso das mães aos serviços de saúde após alta da
maternidade, sendo algumas situações de difícil controle e prevenção, o que
se torna um desafio à Saúde Pública.
O CMN pode ser subdividido, ainda, em neonatal precoce (F11) e neonatal
tardia (F12). O primeiro corresponde aos óbitos ocorridos até o 7º dia de vida
(1ª semana de vida), quando as causas de mortalidade estão mais relacionadas
a problemas na gestação e no parto. Já o segundo corresponde aos óbitos
ocorridos nas 2ª, 3ª e 4ª semanas de vida, até os 27 dias, e tem suas causas já
afetadas por questões ambientais, podendo ocorrer óbitos por infecções,
principalmente respiratórias e gastrintestinais.
O CMIT é obtido dividindo-se o número de óbitos em crianças de 28 até 364
dias de vida pelo total de nascidos vivos no mesmo período, multiplicando o
resultado geralmente por 1.000/1.000. Suas principais causas são doenças
infecciosas, diarreias, infecções respiratórias e desnutrição, situações que
iniciativas da Saúde Pública e da Medicina Preventiva têm controlado de tal
forma que a redução desse componente tem contribuído sobremaneira para a
redução das taxas de mortalidade infantil no Brasil.
Importante
Em países e regiões pouco desenvolvidos, a taxa de mortalidade infantil é
alta, com predomínio do componente pós-neonatal em relação ao neonatal.
À medida que ocorre o desenvolvimento econômico e social, há tendência
a queda das taxas de mortalidade infantil e de seus 2 componentes
principais, mas com velocidade maior para a mortalidade pós-neonatal, que
em níveis baixos se torna menor do que a mortalidade neonatal (Laprega;
Fabbro, 2005).

Importante
A divisão da mortalidade infantil em mortalidade neonatal precoce,
neonatal tardia e pós-neonatal é relevante para a identificação dos locais de
atendimento deficitários causadores das mortes. Espera-se que altas taxas
de mortalidade neonatal precoce estejam associadas a uma má qualidade
do pré-natal e do parto; já altas taxas de mortalidade neonatal tardia têm
relação com a qualidade assistencial pediátrica intra e extra-hospitalar; a
mortalidade pós-neonatal, por sua vez, está ligada a alterações
socioeconômicas e ambientais, como saneamento básico e vacinação, por
exemplo.

O Brasil, nos últimos anos, demonstra uma redução da mortalidade infantil


(veja os coeficientes por estado em 2011 na Figura 5), mas não há melhoria
concomitante nas condições materiais de existência. A explicação para a
redução das taxas da mortalidade infantil em países como o Brasil está na
redução das taxas de mortalidade pós-neonatal que, como foi mostrado, tem
como principais causas situações evitáveis.

Figura 5 - Coeficientes ou taxas de mortalidade infantil, neonatal e pós-neonatal (1.000 nascidos


vivos) no Brasil entre 1990 e 2012 Fonte: Ministério da Saúde. Saúde Brasil 2013.

Tema frequente de prova


A situação de melhoria obtida no âmbito da Saúde Pública quanto à
redução nas taxas de mortalidade pós-neonatal é frequentemente cobrada
em concursos médicos.

As melhorias obtidas por meio de ações pontuais da Saúde Pública


(saneamento, vacinação, hidratação oral) promoveram a redução das taxas
pós-neonatais e destacaram a mortalidade neonatal como principal
contribuinte da dificuldade de redução das taxas de mortalidade infantil no
país.

Figura 6 - Coeficientes ou taxas de mortalidade infantil (1.000 nascidos vivos), em 2014


Fonte: Mapa comparativo entre países. Taxa de mortalidade infantil por país.

Em regiões com precárias condições de vida e saúde, como em muitos países


da África e da Ásia, do subcontinente indiano, várias regiões do Brasil e
mesmo da América Latina, chegam a morrer 100 ou 200 crianças, no 1º ano
de vida, de cada 1.000 que nascem, e esses óbitos são consequências de
doenças cuja prevenção e cujo tratamento são possíveis e relativamente
fáceis. Entretanto, países desenvolvidos, como a Suécia e o Japão,
apresentam, como causa de óbito em menores de 1 ano, problemas difíceis de
serem evitados, como malformações congênitas importantes ou crianças
muito prematuras. Nesses países, a mortalidade infantil é de 5 a 6 óbitos por
1.000 crianças nascidas vivas. O UNICEF lançou, em 2010, uma lista com
CMIs para vários países do mundo, alguns deles listados na Figura 7
(UNICEF, 2010).
Existem, pelo menos, mais 2 coeficientes infantis que devem ser destacados:
o de natimortalidade (F14), que é referente às perdas fetais que ocorrem a
partir da 28ª semana de gestação ou em que o concepto tem peso ao redor de
1.000g e cerca de 35cm, e o de mortalidade perinatal (F15), que diz respeito
aos óbitos ocorridos um pouco antes, durante e logo após o parto, e inclui os
natimortos e as crianças nascidas vivas, mas falecidas na 1ª semana de vida.
É necessária uma aplicação precisa da definição de período perinatal,
prejudicada pela omissão frequente do tempo de gestação na declaração de
óbito. Imprecisões são atribuídas, também, ao uso do conceito anterior à
Classificação Internacional de Doenças (CID-10), que considerava 28
semanas de gestação como limite inferior do período perinatal. A OMS
propõe, ainda, o cálculo da razão de mortalidade perinatal, em que o
numerador permanece o mesmo e o denominador se refere apenas aos
nascidos vivos.

É importante ressaltar que o CMI, bem como seus componentes, sofre


distorções devido à qualidade dos registros de informação. Entre essas
alterações, destaca-se o que acontece em regiões mais desfavorecidas do país:
pela situação local e presença de “cemitérios clandestinos”, há perda dos
registros pelos meios oficiais, e, mesmo fazendo uma pesquisa domiciliar,
essa população não identifica a morte de menores de 1 ano como óbito de
uma criança, comumente chamados de “anjinhos”. Dentre as distorções dos
registros, destaca-se o sub-registro de óbitos e de nascimentos, a definição de
nascido vivo no ano, declarações com erro de causa mortis e idade da criança.
Foram apresentados, até aqui, alguns dos coeficientes de mortalidade mais
utilizados em Epidemiologia. Pode-se dizer que esses são os indicadores mais
básicos para expressão de risco de morte (CMG, por causas e CMI). Lembre-
se da estrutura lógica de um indicador de mortalidade do tipo coeficiente ou
taxa (o número de óbitos no numerador e a população exposta ao risco de
morrer no denominador; esse produto pode ser multiplicado por 10n/10n –
100/100, 1.000/1.000, 10.000/10.000 ou 100.000/100.000 –, potência que
melhor apresente o resultado). Conhecendo essa estrutura, o leitor estará apto
a utilizar qualquer indicador desse mesmo gênero.
e) Razão de mortalidade materna

Frequentemente, a razão de mortalidade materna é chamada de “taxa” ou


“coeficiente”. Contudo, só poderia ser designada assim se o seu denominador
fosse o número total de gestações. Na impossibilidade de obtenção desse
dado, utiliza-se por aproximação o número de nascidos vivos, o que torna
mais adequado o uso da expressão “razão”. Morte materna é a morte de uma
mulher durante a gestação ou até 42 dias após o término desta,
independentemente da duração ou localização da gravidez. As mortes que
entram no indicador necessitam ser por causas obstétricas diretas ou indiretas.
Mortes obstétricas diretas são aquelas que ocorrem por complicações
obstétricas durante gravidez, parto ou puerpério devido a intervenções,
omissões, tratamento incorreto ou a uma cadeia de eventos resultantes de
qualquer dessas causas (Brasil, 2012). Mortes obstétricas indiretas são aquelas
resultantes de doenças que existiam antes da gestação ou que se
desenvolveram durante esse período, não provocadas por causas obstétricas
diretas, mas agravadas pelos efeitos fisiológicos da gravidez (Brasil, 2012).
Não é considerada morte materna aquela provocada por fatores acidentais ou
incidentais (Brasil, 2007).
Esta razão expressa o número de óbitos entre mulheres em idade fértil
consequente a complicações no ciclo gravídico-puerperal, isto é, problemas
que podem decorrer desde a assistência ao pré-natal até 42 dias após o parto.
Divide-se esse número pelo total de nascidos vivos no mesmo período e
multiplica-se essa razão, geralmente, por 100.000/100.000.

Importante
A morte materna é considerada “perda evitável”. Elevadas razões desse
indicador refletem o baixo nível de condições da saúde da mulher, e ele é
empregado como “sentinela” para indicar a qualidade dos cuidados
oferecidos à população.

Segundo o Ministério da Saúde, a mortalidade materna é uma das mais graves


violações dos direitos humanos das mulheres, por ser uma tragédia evitável
em 92% dos casos e por ocorrer principalmente nos países em
desenvolvimento. A Figura 7 apresenta a distribuição de mortalidade materna
no mundo, e a Figura 8 mostra a evolução entre 1990 e 2010 desse indicador
no Brasil. A mortalidade materna no Brasil está diminuindo, segundo o
relatório do Ministério da Saúde de 2011. As principais causas de mortalidade
materna no Brasil são, nesta ordem: hipertensão, hemorragia e infecção
puerperal.

Figura 7 - Mortalidade materna (100.000 nascidos vivos) por países, em 2014


Fonte: Mapa comparativo entre países. Taxa de mortalidade materna por país.

Figura 8 - Evolução da mortalidade materna (100.000 nascidos vivos) e suas principais causas
Fonte: Observatório Brasil da igualdade de gênero.

B - Indicadores expressos por proporções


A seguir, serão apresentados alguns índices (razões e proporções)
importantes. Lembre-se de que esse novo tipo de indicador não expressa risco
de morte, e sim a proporção de mortes que ocorreram em relação a outras
variáveis (mortes totais, na maioria das vezes). Os índices de mortalidade
mais utilizados em Epidemiologia são: índice de mortalidade infantil
proporcional em menores de 1 ano, índice de Swaroop-Uemura e curva de
mortalidade proporcional por idade (Nelson de Moraes). Há uma ressalva
importante: esse indicador pode ser estruturado para estudo de mortalidade
por raça, sexo, local de residência, ou seja, para qualquer atributo sobre o qual
se deseja conhecer a proporção de mortes “específicas” no total de mortes.

a) Índice de mortalidade infantil proporcional

O índice de mortalidade infantil proporcional, ou mortalidade proporcional


por idade em menores de 1 ano, indica a proporção de óbitos de crianças
menores de 1 ano no conjunto de todos os óbitos.

Dica
O índice de mortalidade infantil proporcional permite avaliar indiretamente
as condições sanitárias da região estudada.

O Ministério da Saúde sugere que seja realizado para as seguintes faixas


etárias: 0 a 6 dias – período neonatal precoce –, 7 a 27 dias – período neonatal
tardio – e 28 a 364 dias – período pós-neonatal (RIPSA, 2008).

No Brasil, o óbito de indivíduos menores de 1 ano em relação às mortes totais


foi mais elevado para as regiões Norte e Nordeste no ano de 2007 (Tabela 8).
A região Sul apresentou a menor proporção desse tipo de óbito, 2,7%. As
demais colunas apresentam o mesmo indicador por faixas etárias. Repare que,
nesse sentido, não há muita distinção entre as áreas, exceto pelas regiões
Norte e Nordeste: a primeira apresenta maior percentil de óbitos infantis ≥28
dias de vida (influência de questões como diarreia/desidratação e/ou doenças
infecciosas e parasitárias, clássicas do saneamento básico), ao passo que na
segunda os óbitos mais proeminentes são os de 0 a 6 dias (especialmente
relacionados a problemas na gestação e no parto, clássicos de baixa cobertura
pré-natal).

b) Índice de Swaroop-Uemura

O Índice de Swaroop-Uemura (ISU) foi criado pelo indiano Swaroop e pelo


japonês Uemura e também é conhecido como razão de mortalidade
proporcional ou indicador de Swaroop e Uemura.

Tema frequente de prova


O índice de Swaroop-Uemura, suas vantagens e limitações são temas
frequentemente cobrados em concursos médicos.

O ISU refere-se à proporção de óbitos de pessoas com 50 anos ou mais no


conjunto de todos os óbitos. Esse também é um indicador do tipo proporção,
que usualmente recebe o nome de índice.
Os países desenvolvidos apresentam valores de 80 a 90%, significando que,
de cada 100 óbitos na população, de 80 a 90 ocorreram em indivíduos com 50
anos ou mais, ou seja, os indivíduos apresentam uma sobrevida elevada
(expectativa de vida elevada). Já em regiões subdesenvolvidas, esse índice
atinge 50% ou menos, representando que os indivíduos morrem, muitas vezes,
quando são jovens (geralmente por causas evitáveis).

Importante
Quanto maior o valor do índice de Swaroop-Uemura, melhores as
condições socioeconômicas e de saúde de uma população. Esse índice é
um bom indicador das condições de vida de uma população.

O ISU pode ser classificado em 4 níveis, que permitem avaliar as condições


de vida da região estudada. Assim:

1º nível: ≥75%;
2º nível: de 50 a 74%;
3º nível: de 25 a 49%;
4º nível: <25%.

Importante
No último relatório Saúde Brasil (Ministério da Saúde, 2015/2016), o
Ministério da Saúde divulgou que o Brasil apresentou um índice de
Swaroop-Uemura de 75,23%, ou seja, 1º nível, no ano de 2015/2016. Os
relatórios prévios não eram claros quanto ao nível em que o Brasil se
situava, porque os dados de 2007 indicavam que o país estava no 2º nível,
mas acreditava-se já estar no primeiro. Portanto, caso alguma questão
pergunte sobre em que nível o país se situa, fique atento se ela está
questionando sobre os anos de 2015/2016 (1º nível) ou se está se baseando
nos relatórios antigos (2º nível).

Contudo, como existe uma disparidade de mortalidade infantil entre as


regiões e os estados do país, esse indicador pode ser fortemente afetado por
ela e não refletir a realidade para todas as regiões quando se observa o país
como um todo. Novamente, encontra-se o problema da mortalidade precoce
elevada, que, além dos aspectos éticos de ser uma morte evitável, traz
consequências socioeconômicas pela perda de vidas em plena fase produtiva
(RIPSA, 2008). No 1º nível, estão alguns países desenvolvidos, como Suécia,
Estados Unidos e Japão, além de Cuba. Já no 4º nível, estão países com alto
grau de subdesenvolvimento, onde a maioria das pessoas morre muito jovem.
Como vantagens do ISU, citam-se cálculo simples, dados disponíveis na
maioria dos países, comparabilidades nacional e internacional e dispensa de
dados da população. Quanto à limitação, cita-se a dependência da estrutura
etária de uma população.

c) Curvas de mortalidade proporcional

Segundo Laurenti (2006), surgiu, logo a seguir, uma contribuição brasileira


que representava uma variante da razão de mortalidade: proporcional, como
foi chamada pelo autor Nelson de Moraes, ou curva de mortalidade
proporcional, era uma projeção gráfica dos valores da mortalidade
proporcional em 5 grupos etários, sendo o último aquele de 50 anos ou mais,
isto é, o próprio ISU (Moraes, 1959). As faixas etárias utilizadas são:

Grupo infantil: crianças menores de 1 ano;


Grupo pré-escolar: crianças de 1 a 4 anos;
Grupos de escolares e adolescentes: indivíduos entre 5 e 19 anos;
Grupo de adultos jovens: pessoas entre 20 e 49 anos;
Grupo de idosos: indivíduos com 50 anos ou mais.

A mortalidade proporcional é calculada dividindo-se o número de óbitos em


cada grupo etário pelo total de óbitos, como no cálculo do ISU. A partir dos
resultados, é possível construir as curvas de mortalidade proporcional, que
podem ser classificadas conforme a sua apresentação (Figura 9).

A curva de Nelson de Moraes pode assumir diversas formas:

1 - “N” invertido, curva típica de países subdesenvolvidos, com nível de


saúde muito baixo, onde se destaca o elevado número de óbitos no grupo
de adultos jovens. Esse tipo de curva é considerado tipo I.
2 - “L” (ou “J” invertido), curva de países com baixo nível de saúde,
com elevado número de óbitos entre crianças e pré-escolares e poucos
óbitos nas faixas etárias mais elevadas. Esse tipo de curva é considerado
tipo II.
3 - “V” (ou “U”), curva de países com nível regular de saúde, com baixo
número de óbitos no grupo de escolares e adolescentes e elevado número
de óbitos entre idosos e menores de 1 ano. Esse tipo de curva é
considerado tipo III.
4 - “J”, curva típica de países com elevado nível de saúde, com baixo
número de óbitos entre crianças e jovens adultos e predomínio dos óbitos
nas faixas etárias mais elevadas. Esse tipo de curva é considerado tipo
IV.

Figura 9 - Curva de Nelson de Moraes para diferentes situações de saúde


Fonte: adaptado de Estatísticas de saúde, 2ª edição.

Para esse indicador, o Brasil, em geral, apresenta uma curva do tipo III (em
forma de U) em transição para o nível IV, o que sugere nível de saúde regular
(elevada proporção de mortes em menores de 1 ano e acima de 50) evoluindo
para elevado (predomínio da mortalidade acima dos 50 anos). Contudo, existe
uma variação interessante entre as macrorregiões: Sudeste e Sul apresentam
uma tendência a J, ao passo que Norte e Nordeste têm uma característica de U
mais acentuada (Figura 10). A última curva de Nelson de Moraes do Brasil,
juntamente com a curva em indígenas, foi divulgada pelo Ministério da Saúde
em 2017, e seu resultado está representado na Figura 11.

Figura 10 - Curva de Nelson de Moraes, no Brasil e em grandes regiões, para o ano de 2007

Figura 11 - Curva de Nelson de Moraes no Brasil, total e indígenas, em 2015/2016


Fonte: Ministério da Saúde, 2017.
C - Outros indicadores utilizados em Epidemiologia

a) Coeficiente ou taxa de fertilidade, fecundidade e


natalidade

Esses termos, bem como sua materialização em indicadores, serão primordiais


para futuras discussões acerca de um tema importante da Epidemiologia, a
chamada transição demográfica, que é geralmente acompanhada pela
transição epidemiológica. Conceitualmente, tanto “fertilidade” quanto
“fecundidade” se referem à geração de filhos, mas não são sinônimos. Existe
certa confusão sobre os seus significados, em parte devido a diferentes
interpretações desses termos ao serem traduzidos de outro idioma (Pereira,
2002).
O autor explica que fertilidade designa a capacidade das mulheres de gerar
filhos. Toda mulher, teoricamente, apresenta essa capacidade desde a menarca
até a menopausa. Contudo, o potencial de procriar pode, na prática, não se
realizar em algumas mulheres, em razão de infertilidade ou de controle
voluntário desse potencial. A real geração de filhos, isto é, a materialização do
potencial de procriar, é a informação prática de interesse, que é dada pelas
medidas de fecundidade.
Desse modo, o coeficiente de fecundidade trata da relação entre os
nascimentos (dos 2 sexos) e o número de mulheres em idade de procriar,
estatisticamente: mulheres entre 15 e 49 anos completos (entre a menarca e a
menopausa). Assim, o numerador leva em conta os nascimentos (nascidos
vivos), e o denominador, o número de mulheres com potencial de fecundação.
Geralmente esse produto é multiplicado por 1.000/1.000 (F19).

Importante
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2011), o
coeficiente de fecundidade poderia ser visto como uma maneira de
expressar o número médio de filhos que uma mulher teria ao final de sua
idade reprodutiva, além de ser um indicador importante no estudo e na
análise da transição demográfica.
O coeficiente de fecundidade também pode ser especificado por idade, sendo
chamado de coeficiente de fecundidade específico. Este é o indicador que
relaciona o número de nascidos vivos referidos a uma determinada idade da
mãe com o número total de mulheres, na mesma idade (F20). A partir do
coeficiente de fecundidade específico, é estimado o coeficiente de
fecundidade total, muito empregado em comparações populacionais, obtido
pela soma dos coeficientes de fecundidade específicos, por idade, com o
objetivo de eliminar a influência da pirâmide etária no indicador (Pereira,
2002).

O termo “natalidade”, diferentemente de “fecundidade”, traz uma informação


distinta: natalidade refere-se à relação entre nascidos vivos e a população
total. A natalidade é medida por meio da Taxa Bruta de Natalidade (TBN),
que é definida como a relação entre o número de crianças nascidas vivas
durante 1 ano e a população total. Usualmente, essa relação é expressa por
1.000 habitantes (F21).

A TBN depende da maior ou menor intensidade com que as mulheres têm


filhos a cada idade, do número das mulheres em idade fértil como proporção
da população total e da distribuição etária relativa das mulheres dentro do
período reprodutivo. Portanto, não é um bom indicador para analisar
diferenciais de níveis de fecundidade entre populações (Carvalho; Sawyer;
Rodrigues, 1998).

Importante
Em termos comparativos, a taxa de fecundidade geral fornece uma noção
mais apropriada da geração de filhos na população do que a taxa de
natalidade. Contudo, também tem limitações na comparação de populações
cujas estruturas etárias das mulheres em “período reprodutivo” sejam
diferentes – essa é a razão de seu desuso. Na prática, são muito usados os
coeficientes de fecundidade específicos por idade e, principalmente, o
coeficiente de fecundidade total (Pereira, 2002).

b) Esperança de vida

Esse indicador é calculado a partir de tábuas de vida elaboradas para cada


área geográfica e, no Brasil, é divulgado anualmente pelo IBGE.
A esperança de vida ao nascer, também chamada de expectativa de vida ao
nascer, é o número médio de anos que um grupo de indivíduos nascidos no
mesmo ano pode esperar viver, se mantidas, desde o seu nascimento, as taxas
de mortalidade observadas no ano de referência, muito empregado na
avaliação das condições de saúde de uma população. Por não sofrer a
influência da estrutura etária da população, é um bom indicador para
comparações populacionais.

Importante
Sob uma ótica prática, a expectativa de vida ao nascer indica o número
médio de anos que um indivíduo tem de probabilidade de viver, a partir de
determinada idade considerada, supondo que os coeficientes de
mortalidade permaneçam os mesmos no futuro.

Sabe-se que a expectativa de vida é maior quanto melhor a condição


socioeconômica de uma região. Porém, observa-se que, independentemente
do desenvolvimento econômico, a expectativa de vida dos homens é sempre
menor do que a das mulheres, ou seja, estas vivem mais, em qualquer região
do mundo. Costuma-se atribuir essa diferença ao fato de que os homens são
normalmente mais expostos a riscos, como acidentes externos, acidentes de
trabalho, alimentação mais gordurosa, tabagismo, menor cuidado com a
saúde, entre outros.
Pode-se dizer, então, que a esperança de vida entre homens e mulheres teria
uma tendência a aproximar-se, já que, depois da década de 1970, as mulheres
também passaram a se expor a mais riscos; entretanto, o diferente cuidado que
homens e mulheres têm com a saúde, os diferentes hábitos de vida, entre
outros fatores, ainda contribuem para essa importante diferença. Em países
mais desenvolvidos, ela está diminuindo, mas não porque as mulheres têm
vivido menos, e sim porque os homens têm vivido mais.
Na última divulgação do IBGE (dez/2017), a expectativa de vida média no
Brasil em 2016 foi de 75,8 anos; para mulheres a expectativa foi de 79,4 anos,
e para homens, 72,2 anos. A Figura 12 mostra a evolução da expectativa de
vida média no Brasil.
Figura 12 - Expectativa de vida do brasileiro (1940-2016)
Fonte: G1. Expectativa de vida do brasileiro ao nascer foi de 75,8 anos em 2016, diz IBGE.

c) Anos potenciais de vida perdidos

Importante
Os anos potenciais de vida perdidos formam um indicador muito útil na
área de Planejamento em Saúde, pois expressam o efeito das mortes
ocorridas precocemente em relação à duração de vida esperada para uma
determinada população, permitindo comparar a importância relativa que as
diferentes causas de morte têm nessa população. Quanto maior esse índice,
pior a situação de saúde da região ou do país avaliado. No Brasil, a
principal causa de “anos de vida perdidos” na população masculina foram
as causas violentas.

Um dos métodos de cálculo do número de “anos potenciais de vida perdidos”


foi desenvolvido por Arriaga (1996), permitindo relacionar a mortalidade de
determinadas causas de morte (geralmente evitáveis), em determinadas
idades, com a esperança de vida ao nascer, para que se possa chegar a uma
medida de anos de vida perdidos. Nedel, Rocha e Pereira (1999) utilizaram
esse indicador multiplicado por 1.000/1.000 (1.000 habitantes) em estudo
realizado no Sul do Brasil. O estudo do IBGE denominado “Indicadores
Sociodemográficos e de Saúde no Brasil” utiliza porcentagem para esse
mesmo indicador (IBGE, 2009b).
No Brasil, segundo o IBGE (2009b), existe uma diferença significativa entre
os 2 sexos, independentemente da área geográfica e do ano considerado. Para
o Brasil, como um todo, enquanto os homens perdiam, em média, 15,03 anos
de vida, por todas as causas, esse valor era de 9,62 anos entre as mulheres, o
que representa uma diferença de 5,4 anos (Figura 13).

Figura 13 - Número de anos de vida perdidos para homens, segundo grupo de causas no Brasil
(1996-2005)
Fonte: adaptado de IBGE, 2009b.

Dentre as principais causas de morte responsáveis pelos “anos de vida


perdidos” na população masculina brasileira, as violentas foram as que mais
contribuíram em 1996: 3,4, num total de 15,03 anos; no período considerado
até 2005, observa-se uma leve redução nesse valor, que passa a ser de 3,2
anos. O indicador reflete os efeitos de uma leve queda na incidência das
causas violentas no país, durante o período considerado (IBGE, 2009b).

Resumo
Dinâmica de transmissão e
distribuição de doenças
Alex Jones F. Cassenote
Marina Gemma
Lucas Primo de Carvalho Alves

1. Introdução
As doenças humanas provenientes da relação entre hospedeiro (pessoa),
agente (bactéria, vírus ou outro agente) e meio ambiente (alimentos ou água
contaminados) resultam de uma interação entre fatores biológicos e
ambientais, com o equilíbrio exato variando conforme as diferentes doenças
(embora algumas sejam de origens amplamente genéticas). Muitos dos
princípios subjacentes que fundamentam a transmissão das doenças são mais
claramente demonstrados utilizando-se doenças transmissíveis como modelo.
Contudo, os conceitos discutidos podem ser extrapolados para doenças não
infecciosas ou mesmo para outros agravos à saúde (Gordis, 2010).

Dica
As doenças são descritas como resultado de uma tríade epidemiológica, ou
seja, um produto de interação de um hospedeiro humano, um agente
infeccioso (ou de outro tipo) e um ambiente que promova a exposição.

Vetores, como mosquitos e carrapatos, são frequentemente envolvidos. Para a


interação ocorrer, o hospedeiro deve estar suscetível. A suscetibilidade
humana é determinada por uma infinidade de fatores, incluindo antecedentes
genéticos e fatores nutricionais e imunológicos. O estado imunológico de um
indivíduo é determinado por muitos fatores, incluindo contato prévio com o
agente, por infecção natural ou por imunização.
Os fatores que podem levar ao desenvolvimento de doenças são biológicos,
físicos e químicos, bem como outros tipos, como estresse, que pode ser mais
difícil de classificar (Tabela 1). Pode-se pensar na agregação desses fatores
em, pelo menos, 3 grandes grupos de doenças/agravos à saúde: doenças
infecciosas e parasitárias, doenças crônicas não transmissíveis e causas
externas de morbidade e mortalidade. Todas poderiam ser consideradas, de
algum modo, dentro do modelo clássico da tríade epidemiológica.
Uma doença transmissível (ou infecciosa) é causada pela transmissão de um
agente patogênico específico para um hospedeiro suscetível. Agentes
infecciosos podem ser transmitidos para humanos: diretamente – de outros
humanos ou animais infectados – e indiretamente – por meio de vetores
biológicos ou físicos, partículas aéreas ou outros veículos (Beaglehole;
Bonita; Kjellström, 2010).

Figura 1 - Tríade epidemiológica das doenças


Fonte: adaptado de Epidemiologia, 4ª edição.
As doenças crônicas não transmissíveis (doenças cardiovasculares,
neoplasias, doenças respiratórias crônicas, diabetes e doenças
musculoesqueléticas, entre outras) são multifatoriais e têm em comum fatores
comportamentais de risco modificáveis e não modificáveis. Dentre os fatores
comportamentais de risco modificáveis, destacam-se tabagismo, consumo
excessivo de bebidas alcoólicas, obesidade, hábito alimentar inadequado
(consumo excessivo de gorduras saturadas de origem animal e açúcares
simples), ingestão insuficiente de frutas e hortaliças e inatividade física
(Brasil, 2011). Em 2008, a Organização Mundial da Saúde publicou um plano
de ação para a redução de fatores de risco para as doenças crônicas não
transmissíveis mais prevalentes. Nesse plano, ficou definido que, para as 4
doenças crônicas não transmissíveis mais prevalentes (doenças cardi-
ovasculares, câncer, diabetes e doenças respiratórias crônicas), existem 4
fatores de risco compartilhados, que são tabagismo, sedentarismo, abuso de
álcool e má alimentação (WHO, 2008). A variação temporal dos principais
fatores de risco para doenças crônicas no Brasil está apresentada na Figura 2
(Brasil, 2017). Os fatores de risco que mais cresceram em prevalência foram,
do maior crescimento ao menor, excesso de peso, obesidade, hipertensão
arterial e diabetes. Mais de 50% da população das capitais do Brasil
apresenta, no mínimo, sobrepeso. Em contrapartida, os fatores de risco
consumo de refrigerantes e tabagismo obtiveram uma redução das suas
prevalências, sendo que o consumo de refrigerantes foi a variável com a
maior redução anual da prevalência.
Nas causas externas, estão envolvidos 2 tipos de eventos: a natureza das
lesões que o paciente apresenta (codificadas de acordo com o capítulo XIX da
10ª revisão da Classificação Internacional de Doenças – CID-10) e as
circunstâncias que produziram essas lesões. A CID-10 tem um sistema de
classificação suplementar para a codificação dessas circunstâncias, que
fornece a informação básica necessária à organização de programas
preventivos contra a causa da lesão (Mattos, 2001).

Figura 2 - Evolução temporal dos fatores de risco para doenças crônicas nas capitais brasileiras,
segundo dados do Ministério da Saúde: (v. a.) variação anual média, em pontos percentuais
Fonte: Brasil, 2017.

2. Modo de transmissão de doenças


As doenças podem ser transmitidas direta ou indiretamente. Quando são
transmitidas de indivíduo para indivíduo, fala-se em contato direto. A
transmissão indireta pode ocorrer por meio de um veículo comum, como
contaminação atmosférica ou fonte de abastecimento de água, ou por um
vetor, como um mosquito. Assim, diferentes organismos disseminam-se de
formas variadas, e o potencial de determinados organismos em espalhar-se e
produzir surtos depende de suas características, como taxa de crescimento e
via pela qual são transmitidos de uma pessoa a outra (Gordis, 2010).
É comum, mesmo na área médica, haver confusão entre o conceito de doença
“infecciosa” e “contagiosa”.
Doenças contagiosas são aquelas que podem ser transmitidas por toque,
contato direto entre os seres humanos, sem a necessidade de um vetor ou
veículo interveniente. A malária é, portanto, uma doença transmissível, mas
não contagiosa, enquanto o sarampo e a sífilis são tanto transmissíveis quanto
contagiosas. Alguns agentes patogênicos causam doença não apenas por
infecção, mas também por meio do efeito tóxico de compostos químicos que
produzem. Por exemplo, Staphylococcus aureus é uma bactéria que pode
infectar diretamente os seres humanos, mas a intoxicação estafilocócica é
causada pela ingestão de alimentos contaminados com uma toxina que a
bactéria produz, mesmo na ausência desta (Beaglehole; Bonita; Kjellström,
2010). Com relação às doenças infecciosas, são importantes alguns conceitos
relacionados à cadeia de transmissão (Tabela 2).
Em se tratando do novo hospedeiro, a resistência e a suscetibilidade
dependem de maior ou menor resposta positiva do organismo, ou seja, da
imunidade (produção de anticorpos), que pode ser ativa (natural: infecções
pregressas; ou artificial: vacinas) ou passiva (natural: transplacentária; ou
artificial: soros).
No caso das doenças crônicas não transmissíveis, esse ciclo de
transmissibilidade não fica tão evidente. São variados os estudos que mostram
que os fatores genéticos têm forte influência sobre muitas doenças com essa
classificação. Por exemplo, sabe-se que a hipertensão está associada à herança
genética; contudo, como são inúmeros os fatores de risco ambientais
(alimentação, exercícios, estresse, entre outros) e há interação desses fatores
com a herança genética, é quase impossível atribuir uma parcela de
responsabilidade para cada um deles, como é feito com as doenças
infecciosas. A mesma discussão é válida para as causas externas de
morbimortalidade. Entretanto, nessa modalidade, o ambiente tem mais
influência do que nas anteriores. Nesse sentido, a tríade epidemiológica pode
dar espaço aos determinantes sociais da saúde, que explicam melhor essa
inter-relação (Figura 3).

Figura 3 - Determinantes subjacentes da saúde e seu impacto sobre as doenças não crônicas
transmissíveis
Fonte: adaptado de Epidemiologia Básica, 2ª edição.

3. Distribuição temporal

Importante
O estudo da distribuição temporal pode fornecer inúmeras informações
fundamentais para compreensão, previsão, busca etiológica, prevenção de
doenças e avaliação dos impactos de intervenções em saúde (Medronho;
Perez, 2009).

Já foi comentado que a Epidemiologia se desenvolveu a partir do estudo dos


surtos de doenças transmissíveis e da interação entre agentes, vetores e
reservatórios. A descrição das circunstâncias associadas ao aparecimento de
epidemias nas populações humanas (guerra, migração, fome e desastres
naturais) tem aumentado a capacidade de controlar a dispersão das doenças
transmissíveis por meio de vigilância, prevenção, quarentena e tratamento,
sendo esse o principal objetivo da detecção de uma epidemia (Beaglehole;
Bonita; Kjellström, 2010). A quarentena, um dos métodos de controle da
dispersão das doenças transmissíveis, refere-se ao isolamento de indivíduos
sadios pelo período máximo de incubação da doença, contado a partir da data
do último contato com um caso clínico ou portador da referida doença. Já
isolamento se refere ao isolamento de doentes, para que não transmitam a
doença. Ou seja, a quarentena se aplica a indivíduos que ainda não a
desenvolveram, porém tiveram contato com algum veículo transmissor; o
isolamento se aplica a indivíduos doentes. A distribuição temporal de uma
doença, segundo Medronho e Perez (2009), pode obedecer a determinado
padrão temporal, como no caso da rubéola, que apresenta aumento de sua
ocorrência na primavera. Assim, é possível conhecer os períodos de maior
risco para determinadas doenças, fato que pode contribuir para a sua
prevenção e o seu diagnóstico precoce. Por exemplo, um indivíduo que
apresenta quadro clínico de febre baixa, rash cutâneo e linfadenopatia
generalizada na primavera deve levantar a suspeita de rubéola.

Importante
Embora os estudos de distribuição temporal sejam vastamente discutidos
na área das doenças infecciosas e parasitárias, sobretudo as transmissíveis,
pode-se afirmar que não se trata de uma aplicação exclusiva. A
monitorização e a avaliação de doenças crônicas não transmissíveis, bem
como de outros agravos à saúde (causas externas, como acidentes,
desastres, fatores contribuintes para o aparecimento de doenças), podem
ser uma ótima ferramenta para a vigilância em saúde.

Para Medronho e Perez (2009), a avaliação da evolução temporal de uma


doença, antes e depois de uma intervenção, pode mostrar a efetividade
daquela medida. Um bom exemplo refere-se à evolução da poliomielite no
mundo (Figura 4). A vacinação em massa com a vacina Sabin, iniciada no ano
de 1980, levou a queda nos anos seguintes. No Brasil, o último diagnóstico de
poliomielite foi em 1990.

Figura 4 - Evolução do número de casos de poliomielite e da cobertura vacinal entre 1980 e 2014
Fonte: Família SBIm. Vacinas poliomielite.
A análise de um conjunto de observações sequenciais no tempo pode conter
flutuações aleatórias (ao acaso), de modo que é importante tentar detectar,
além das possíveis variações aleatórias, os 4 tipos de evolução principal das
doenças: tendência histórica, variações cíclicas, variações sazonais e
variações irregulares (Medronho; Perez, 2009).

4. Tendência histórica ou secular


Segundo Medronho e Perez (2009), o estudo de tendência histórica refere-se à
análise das mudanças na frequência (incidência, mortalidade) de uma doença
por um longo período, geralmente décadas. O autor explica que não existe um
critério rígido para a definição de tempo mínimo de observação necessário
para detectar alterações na evolução da doença ou de outro desfecho de
interesse. A Figura 4 mostra essa mudança, no caso da poliomielite, com
bastante clareza.
França Júnior e Monteiro (2000) explicam que a análise da distribuição
temporal de eventos do processo saúde-doença é uma das estratégias de
investigação mais antigas e valiosas para a Epidemiologia e Saúde Pública.
Quando a análise envolve períodos prolongados de tempo, costuma-se
denominá-la de análise de tendência e/ou de mudança secular (Forattini,
1992). Na literatura epidemiológica, é possível observar a utilização de vários
termos para a designação das tendências ou séries temporais de indicadores de
saúde: tendência secular, mudança secular, aceleração secular, variação
secular, mudança temporal e outras.
O 1º investigador a examinar séries temporais de morbimortalidade foi
William Farr (1807-1883). São clássicas suas análises acerca da tendência
secular da mortalidade e da fertilidade na Inglaterra, bem como a análise
temporal de várias epidemias, como as de varíola e cólera. Contudo, Farr
ainda não utilizava o conceito de tendência secular, que surgiria apenas no
século XX (França Júnior; Monteiro, 2000).

Dica
A análise de tendência de uma doença deve levar em consideração as
possíveis modificações nos critérios diagnósticos, na terminologia da
doença, nas taxas de letalidade etc. Entretanto, muitas vezes, é necessária a
observação de uma doença ao longo de décadas para traçar o perfil
esperado para a conjuntura atual (Medronho; Perez, 2009).

Schmidt et al. (2011) estudaram a mudança da mortalidade no Brasil para os


principais tipos de câncer nos últimos 27 anos, concluindo que, nos homens,
as taxas de mortalidade por câncer de pulmão, próstata e colorretal estão
aumentando, as de câncer gástrico estão diminuindo e as de esôfago estão
estáveis. Nas mulheres, as taxas de mortalidade por câncer de mama, pulmão
e colorretal aumentaram, enquanto as de câncer de colo do útero e estômago
diminuíram (Figura 5).

Figura 5 - Mortalidade para os principais locais de câncer em homens e mulheres, de 1980 a 2006

Medronho e Perez (2009) explicam que o movimento observado na tendência


histórica das diversas doenças pode ser explicado por inúmeras razões, como
a melhoria no diagnóstico (em relação à precocidade), melhoria das condições
sanitárias e sociais, técnicas obstétricas mais efetivas etc. Entretanto, muitas
vezes existe dificuldade na interpretação desses dados, pois os métodos
diagnósticos foram se tornando mais precisos ao longo do tempo
(diagnósticos diferenciais), a população foi se modificando (transição
demográfica), com a consequente mudança no perfil epidemiológico, assim
como os fatores ambientais também se alteraram.

5. Variações cíclicas

Importante
As variações cíclicas são aquelas com ciclos periódicos e regulares. As
mudanças cíclicas no comportamento de doenças são recorrências nas suas
incidências, que podem ser anuais ou ter periodicidade mensal ou semanal.
Na variação cíclica, portanto, um dado padrão é repetido de intervalo a
intervalo (Brasil, 2005). Outros autores consideram como variação cíclica
as flutuações na incidência em períodos maiores do que 1 ano (Medronho;
Perez, 2009).
Na Figura 6, apresentam-se as taxas de incidência e mortalidade de sarampo
no estado do Paraná, entre 1965 e 2004. Repare que, entre 1965 e 1988, a
incidência da doença segue um padrão de flutuação que parece se repetir a
cada 3 anos, ao passo que a mortalidade mostra baixa variação.
Esse processo pode ser explicado pelo nascimento de crianças suscetíveis,
cujo acúmulo vai provocar aumento progressivo no número de casos da
doença. Note que, a partir do ano de 1992, quando foi implementado o Plano
Nacional de Eliminação do Sarampo e o Ministério da Saúde utilizou
estratégias para o controle, entre elas a vacinação de crianças e adolescentes
de 9 meses a 14 anos, por intermédio de campanha de vacinação em massa, a
incidência da doença diminuiu significativamente, pois não havia mais
suscetíveis para contrair o vírus e desenvolver a doença.

Figura 6 - Taxas de incidência e de mortalidade de sarampo no estado do Paraná, Brasil, de 1965 a


2004
Fonte: adaptado de Ministério da Saúde, 2005.

6. Variações sazonais
As variações sazonais ocorrem quando a incidência das doenças sempre
aumenta, periodicamente, em algumas épocas ou estações do ano, meses, dias
da semana ou em horas do dia. Por exemplo, a dengue (nas épocas quentes do
ano) e os acidentes de trânsito (horas de muita movimentação urbana –
deslocamento para o trabalho ou para a escola). Com relação às doenças com
variação estacional, deve-se conhecer o nível endêmico: se há aumento
normal em certa época do ano, ele não pode ser confundido com uma
epidemia.
Sabe-se que as doenças infecciosas agudas constituem um exemplo claro
dessas variações. Entretanto, o aparecimento de alguns sintomas de
determinadas doenças crônicas (por exemplo, doença pulmonar obstrutiva
crônica), fenômenos demográficos (nascimentos) e a mortalidade por certas
causas específicas, como acidentes de trabalho, também podem apresentar
variações sazonais (Medronho; Perez, 2009).
Um bom exemplo desse tipo de variação são os acidentes com animais
peçonhentos, sobretudo com ofídicos. A distribuição mensal dos casos (Figura
7) segue padrão encontrado nos demais estados das regiões Sul e Sudeste,
onde é verificada uma sazonalidade marcada pela predominância dos casos
nos meses quentes e chuvosos de setembro a março, confirmando que a
ocorrência do acidente ofídico está, geralmente, relacionada a fatores
climáticos e ao aumento da atividade humana nos trabalhos do campo, nessa
época do ano (Brasil, 2005).

Figura 7 - Número de casos de acidentes ofídicos segundo o mês de ocorrência no estado do Paraná,
Brasil, de 1997 a 2002
Fonte: adaptado de Ministério da Saúde, 2005.

Segundo Medronho e Perez (2009), a variação sazonal depende de um


conjunto de fatores, como temperatura, umidade do ar, radiações solares,
concentração de poluentes no ar, precipitação (chuvas) etc. Além das
condições climáticas, existe o comportamento dos indivíduos nas diferentes
estações do ano. Assim, no inverno, observam-se mais aglomerações (fator
contribuinte para o aparecimento de doenças respiratórias) ou maior consumo
de água no verão (consequentemente, nota-se maior despejo de esgoto), o que
pode favorecer as doenças por contaminação fecal-oral (diarreias,
poliomielite, hepatite A etc.).

7. Variações irregulares

Importante
Existem procedimentos para reconhecer se a variação de determinada
doença está dentro do esperado (variação cíclica e/ou sazonal). Esse fato
pode ser chamado de endemia, ou seja, a doença tem um padrão de
ocorrência endêmico. Caso exista variação irregular, superando a
frequência esperada, poderia ser caracterizada, então, uma epidemia.

A - Casos esporádicos e conglomerado temporal de


casos

Quando, em uma comunidade, surgem casos raros e isolados de certa doença,


podem ser chamados de esporádicos. Trata-se, geralmente, de casos
aleatórios, que de forma imprescindível não guardam nenhuma relação entre
si. O conglomerado temporal de casos refere-se a um grupo de casos para os
quais se suspeita de um fator comum, ou seja, não aleatório, e que ocorre
dentro dos limites de intervalos de tempo, significativamente iguais, medidos
a partir do evento que, supostamente, foi a sua origem (Brasil, 2005).

B - Endemia

Dica
As doenças são chamadas de endêmicas quando, em uma área geográfica
ou um grupo populacional, apresentam padrão de ocorrência relativamente
estável, com incidência ou prevalência acima de zero.

Doenças endêmicas, como a malária, estão entre os principais problemas de


saúde em países tropicais de baixa renda. Se ocorrerem mudanças nas
condições do hospedeiro, agente ou ambiente, uma doença endêmica poderá
se tornar epidêmica (Beaglehole; Bonita; Kjellström, 2010).
Segundo o Ministério da Saúde, quando a ocorrência de determinada doença
apresenta variações na sua incidência de caráter regular, constante e
sistemático, trata-se de uma doença endêmica. Observe, na Figura 8, essa
ocorrência regular com alguma variação. Assim, endemia é a ocorrência de
determinada doença que, durante um longo período de tempo, acomete,
sistematicamente, populações em espaços delimitados e caracterizados,
mantendo incidência constante ou permitindo variações cíclicas ou sazonais,
conforme descrito (Brasil, 2005).

C - Epidemia

Epidemia é definida como a ocorrência em uma região ou comunidade de um


número de casos em excesso, em relação ao que normalmente seria esperado
em um determinado tempo e local. Note, na Figura 8, que existia um padrão
de ocorrência rompido em algum momento, caracterizando uma epidemia
(visto que, depois de algum tempo, ele volta ao normal). É importante
ressaltar, entretanto, que apenas o aumento no número de casos existentes não
é critério suficiente para uma epidemia ser definida, pois essa variação
(mesmo que grande) pode estar dentro do esperado para a doença em questão,
fazendo parte da variação periódica da doença.

Importante
Ao descrever uma epidemia, devem ser especificados o período, a região
geográfica e outras particularidades da população em que os casos
ocorreram. O número de casos necessários para definir uma epidemia varia
de acordo com o agente, o tamanho, o tipo e a suscetibilidade da população
exposta e o momento e o local da ocorrência da doença (Beaglehole;
Bonita; Kjellström, 2010).
Figura 8 - Doença endêmica versus doença epidêmica
Fonte: adaptado de Epidemiologia, 4ª edição.

A identificação de uma epidemia também depende da frequência usual da


doença na região, no mesmo grupo populacional, durante a mesma estação do
ano. Um pequeno número de casos de uma doença que não tinha ocorrido na
região pode ser o suficiente para constituir a ocorrência de uma epidemia. Por
exemplo, o 1º relato da síndrome que ficou conhecida como AIDS, descrita
por Gottlieb et al. (1981), foi baseado em 4 casos de pneumonia por
Pneumocystis jirovecii em jovens homossexuais masculinos.

a) Caracterização numérica de uma epidemia

O procedimento utilizado atualmente em Vigilância Epidemiológica para


monitorizar ocorrência irregular na incidência de uma doença (epidemia) é
chamado de diagrama de controle, cuja ideia básica é manter o processo
(ocorrência) entre um limite mínimo e um limite máximo de controle.
Inicialmente, eram classificados como de médias (mean/average), de limites
(range) ou de Desvio-Padrão (DP). Atualmente, existem inúmeros e variados
tipos de tais diagramas (Alves, 2004).
A autora explica ainda que, no Brasil, o diagrama de controle mais utilizado é
o de Shewhart. Esses diagramas são feitos plotando-se pontos sobre o eixo da
ordenada com o tempo como uma escala horizontal (eixo do X) e o número
de novos casos reportados toda semana ou mês como uma escala vertical (o
eixo do y).
Nesse tipo de gráfico, são observadas as linhas de limite, que caracterizam o
nível endêmico (Figura 9). A linha azul refere-se ao limite inferior de
ocorrência (valor estimado), a linha verde diz respeito ao número de casos ou
à incidência observada dentro do intervalo de tempo considerado, e a linha
vermelha demarca o limite superior de ocorrência endêmica (valor estimado),
também conhecido como limiar epidêmico. Se a frequência da doença em
algum momento estourar esse limite superior, estará caracterizada sua
variação irregular de incidência. Nesse caso, a doença teve um curso
considerado regular no decorrer do ano.

Figura 9 - Controle de nível endêmico (hipotético)

Alves (2004) ressalta que, quando a frequência do evento é relativamente


constante durante o ano, a análise dos dados não requer maior sofisticação.
Valores como a média ou mediana, acompanhados dos seus respectivos
índices de dispersão (DP, desvio interquartil), são suficientes para sintetizar os
eventos e materializar o diagrama de controle.
Há diversas formas de construir um diagrama de controle. Uma das mais
utilizadas refere-se ao uso da média aritmética da incidência e dos respectivos
desvios padronizados para estimar um intervalo de ocorrência regular. Pode-
se trabalhar com o número de casos absolutos por tempo de observação ou
com a medida de incidência, por 100 mil habitantes, por exemplo.
Como as medidas limites que compõem o intervalo de ocorrência regular são
estimativas, é necessário conhecer a distribuição corrente do evento.
Medronho e Perez (2009) sugerem observar a ocorrência mensal ou semanal
de um período de 10 anos (apenas uma sugestão, já que, muitas vezes, esse
período vai depender da disponibilidade de dados). É importante ressaltar
que, nesse período, a incidência pode não ter sofrido nenhuma variação
irregular (epidemia, por exemplo).
A Tabela 3 apresenta um conjunto de dados fictícios para o desenvolvimento
do exercício; são 10 anos de incidência de uma doença (doença
meningocócica), com observação mês a mês. Como exemplo, será
desenvolvido, a seguir, um diagrama de controle para acompanhamento do
ano de 2011. Note que em nenhum dos anos existiu grande variação que
pudesse ser caracterizada como irregular.

Uma forma de estimar os limites superior e inferior endêmicos diz respeito à


iniciativa de estabelecer um Intervalo de Confiança (IC) de 95% em torno das
médias de casos. Desse modo, é necessário utilizar alguma distribuição de
probabilidade para materialização desse intervalo “ótimo”. Usualmente,
utiliza-se a distribuição normal (z), na qual um IC de ±95% equivale a 1,96
unidade de DP. Os passos para chegar à plotagem do diagrama são os
seguintes:
1 - Calcula-se a incidência média aritmética mensal referente aos anos
anteriores ao que se quer analisar (utilizando a fórmula 1 da Tabela 4).
2 - Calcula-se, mês a mês, o DP referente aos anos anteriores, para levar
em conta a dispersão dos valores observados em relação à incidência
média obtida (utilizando a fórmula 2 da Tabela 4).
3 - Com esses valores, incidências médias mensais e DPs, pode-se
estabelecer um intervalo de variação que será considerado normal ou
endêmico (utilizando a fórmula 3 da Tabela 4).

Após a realização desses procedimentos, conseguiu-se chegar às médias (1),


aos DPs (2) e aos limites de incidência normal esperados para cada mês (3).
Observe que, para exemplificação, foram realizados os procedimentos
completos com os meses de janeiro e fevereiro (Tabela 3): inicialmente, a
média aritmética (janeiro – 0,41 – e fevereiro – 0,34); logo após os DPs
referentes a esses mesmos meses (janeiro – 0,21 – e fevereiro – 0,13) e,
estabelecidos esses parâmetros, estimaram-se os limites superior e inferior
com IC de 95%. Os resultados esperados para todos os meses de 2011 estão
dispostos na Tabela 5.
Agora, é necessário plotar o gráfico para estudar alguns de seus elementos
(Figura 10). Repare que a linha vermelha representa o limite superior e a linha
azul, o limite inferior. O espaço entre essas linhas, que varia mês a mês
(estimado dos 10 anos anteriores), pode ser considerado intervalo regular,
também chamado de faixa de incidência normal esperada ou faixa endêmica.
Nesse espaço, a incidência pode variar sem que seja inferida qualquer
alteração na sistemática da estrutura epidemiológica condicionante do
processo saúde-doença. A variação da incidência em faixa endêmica é
chamada de incidência em nível endêmico. A linha vermelha, ou limite
superior endêmico, também é chamada limiar epidêmico, por representar o
limite endêmico. Além dessa linha, está a incidência em nível epidêmico, ou
seja, quando o coeficiente de incidência da doença ultrapassa o limiar
endêmico, está caracterizada a epidemia.
Figura 10 - Estimativa de nível superior e inferior endêmico para o ano de 2011

Esse diagrama de controle é uma possibilidade de conhecer a variação natural


da doença em anos anteriores, a fim de acompanhar ou avaliar a ocorrência
desta no presente, um trabalho muito realizado em Vigilância Epidemiológica.
Alves (2004) explica que essa ferramenta reflete o programa de controle com
base nos bancos de dados existentes no sistema de vigilância de agravos no
país, representando um método de acompanhamento das informações
recebidas constantemente. Geralmente é usado para controle de doenças em
situações de equilíbrio, em que há uma estabilidade espaço-temporal (níveis
endêmicos da doença).
Na Tabela 5, foram sugeridas 2 situações distintas para o ano de 2011
(lembre-se de que nosso diagrama utilizou dados de 2001 a 2010): 2011a e
2011b, consecutivamente, na penúltima e na última coluna. Acompanhe a
plotagem nos gráficos (Figuras 11 e 12) e analise a ocorrência da doença.
Observe a 1ª situação para o ano de 2011 (Figura 11). A incidência da doença,
no decorrer do ano, mostra uma variação, contudo, considerada regular
(dentro do limite endêmico esperado). Não foi observada, então, nenhuma
variação na frequência da doença que pudesse caracterizar uma epidemia. Já
na 2ª situação (2012b), existe uma variação da frequência além do limiar
epidêmico (Figura 12). Observe que a incidência se eleva entre os meses de
abril e maio, atingindo seu ponto máximo nesse último mês (linha preta);
entre maio e junho, a incidência volta ao seu nível normal (incidência em
nível endêmico). Pode-se afirmar então que, no ano de 2012b, houve uma
variação irregular caracterizada como epidemia.
Figura 11 - Estimativa de níveis superior e inferior endêmicos e incidência observada no ano de
2011a

Figura 12 - Estimativa de níveis superior e inferior endêmicos e incidência observada no ano de


2011b

Dica
Graficamente, uma epidemia se expressa como curva anormal em relação à
ocorrência esperada, chamada curva epidêmica.

Sinnecker (1976) discorre sobre alguns elementos dessa curva que merecem
destaque, uma vez que podem auxiliar na classificação do tipo de epidemia e
no seu controle (Figura 13).
Figura 13 - Elementos da curva epidêmica

1 - Incremento inicial dos casos: ocorre nos eventos em que o processo


saúde-doença passa de uma situação endêmica preexistente para uma
situação epidêmica. Com a situação ainda em nível endêmico, observa-se
um incremento do número de casos com o coeficiente de incidência
tendendo para o limite superior endêmico.
2 - Egressão: seu marco inicial ocorre no surgimento dos primeiros
casos (progressão) e termina quando a incidência é nula ou o processo se
estabiliza num dado patamar de endemicidade (regressão),
caracterizando uma endemia.
3 - Progressão: estabelecida a epidemia, o crescimento progressivo da
incidência caracteriza a fase inicial do processo. Essa 1ª etapa, descrita
pelo ramo ascendente da curva epidêmica, termina quando o processo
epidêmico atinge seu clímax.
4 - Incidência máxima: é o clímax. A força de crescimento da epidemia
extingue-se devido à diminuição do número de indivíduos expostos, à
diminuição do número de suscetíveis, a ações nacionais ou
internacionais de vigilância e controle ou ao próprio processo natural de
controle.
5 - Regressão: é a última fase na evolução de uma epidemia. O processo
de massa tende a retornar aos valores iniciais de incidência, estabilizar-se
em patamar endêmico, abaixo ou acima do patamar inicial ou regredir
até incidência nula, incluída aí a erradicação.
6 - Decréscimo endêmico: quando o processo regride em nível
endêmico e as ações de controle e vigilância continuam, a endemicidade
pode ser levada a patamares bastante baixos, mais do que aqueles
vigentes antes da eclosão da ocorrência epidêmica; pode-se pensar,
inclusive, na erradicação da doença (pode ou não ocorrer).

b) Caracterização temporal e espacial de uma epidemia

Importante
Uma endemia caracteriza-se por ser temporalmente ilimitada; a epidemia,
ao contrário, é restrita a um intervalo de tempo marcado por começo e fim
– bem definidos – com retorno das medidas de incidência aos patamares
endêmicos observados antes da ocorrência epidêmica. Esse intervalo de
tempo pode abranger poucas horas ou estender-se a anos ou décadas.

Segundo o Ministério da Saúde, as epidemias podem ser classificadas,


também, pela abrangência espacial. Tais quais as situações endêmicas, as
ocorrências epidêmicas são limitadas não somente a um tempo definido, mas
também a um espaço delimitado, desde os limites de um surto epidêmico até a
abrangência de uma pandemia (Brasil, 2005).
Costuma-se designar surto epidêmico (Figura 14 – círculo vermelho) quando
2 ou mais casos de determinada doença ocorrem em locais circunscritos,
como instituições, escolas, domicílios, edifícios, cozinhas coletivas, bairros
ou comunidades, aliados à hipótese de que existia, como relação entre eles, a
mesma fonte de infecção ou de contaminação ou os mesmos fatores de risco,
o mesmo quadro clínico e ocorrência simultânea.
Denomina-se pandemia (Figura 14 – círculo verde) a ocorrência epidêmica
caracterizada por uma larga distribuição espacial que atinge várias nações.
São exemplos clássicos de pandemias a epidemia de influenza de 1918 e a
epidemia de cólera, iniciada em 1961, que alcançou o continente americano
em 1991, no Peru. Mais recentemente, no ano de 2009, foi vista a pandemia
de influenza (H1N1), que se iniciou no México e se espalhou rapidamente
pelo mundo.
Figura 14 - Classificação espacial de uma epidemia: surto epidêmico (círculo vermelho) e pandemia
(círculo verde)

c) Fatores condicionantes do surgimento das epidemias

Alguns fatores são imprescindíveis para o surgimento de uma epidemia. Em


linhas gerais, o aumento do número de indivíduos suscetíveis destaca-se como
um dos mais importantes. Quando o número desses indivíduos em um local
for suficientemente grande, a introdução de um caso (alóctone ou importado)
de uma doença transmissível gera diversos outros, configurando um grande
aumento na incidência. O aumento do número de suscetíveis pode apresentar
diversas causas, como os nascimentos de novos indivíduos, migrações e
baixas coberturas de vacinas imunizantes.
Alterações no meio ambiente favorecem a transmissão de doenças infecciosas
e auxiliam na propagação dos agravos não infecciosos. Destacam-se, entre
eles, os seguintes fenômenos: contaminação da água potável por dejetos,
favorecendo a transmissão de doenças de contaminação fecal-oral;
aglomeração de pessoas em abrigos provisórios, em situações de calamidade,
facilitando a eclosão de surtos de doenças respiratórias agudas; aumento no
número de vetores infectados, responsáveis pela transmissão de algumas
doenças em razão de condições ambientais favoráveis e/ou inexistência ou
ineficácia de medidas de controle; contaminação de alimentos por micro-
organismos patogênicos, ocasionando surtos de intoxicação, toxinfecção e
infecção alimentar; extravasamento de produtos químicos poluindo ar, solo e
mananciais, podendo levar a intoxicações agudas na comunidade local;
emissão descontrolada de gás carbônico por veículos motorizados, que pode
levar ao desenvolvimento de problemas respiratórios agudos na população.
Na prática, o Ministério da Saúde ressalta que uma epidemia pode surgir
quando inexiste uma doença em determinado lugar e aí se introduz uma fonte
de infecção ou contaminação (por exemplo, um caso de cólera ou um
alimento contaminado), dando início ao aparecimento de casos ou epidemia;
quando ocorrem casos esporádicos de uma determinada doença e logo se
configura uma inter-relação que contribui para o aumento na incidência além
do esperado; a partir de uma doença que ocorre endemicamente e alguns
fatores desequilibram a sua estabilidade, iniciando uma epidemia (Brasil,
2005).

d) Aspectos diferenciais das epidemias

Foi visto, até aqui, que uma epidemia se refere a uma alteração, espacial e
cronologicamente delimitada, do estado de saúde-doença de uma população,
que se caracteriza pelo aumento progressivo, inesperado e descontrolado dos
coeficientes de incidência de determinada doença, ultrapassando o limiar
epidêmico preestabelecido.

Dica
Existem 2 aspectos básicos para a diferenciação das epidemias: o primeiro
diz respeito à velocidade com a qual ocorre o processo epidêmico,
classificando estas em epidemias lentas e explosivas; e o segundo se refere
à fonte ou origem da contaminação e divide-as em fonte comum (pontual
ou persistente) ou fonte progressiva ou propagada (Brasil, 2005).

Também denominada brusca, instantânea ou maciça, a epidemia explosiva


caracteriza-se por um aumento expressivo do número de casos em curto
espaço de tempo, compatível com o período de incubação da doença. Nesse
tipo de epidemia, quase todos os indivíduos expostos e suscetíveis são
acometidos em pouco tempo, e a incidência máxima é alcançada rapidamente.
Citam-se, como exemplo, as intoxicações decorrentes da ingestão de água,
leite ou outros alimentos contaminados.
Na epidemia lenta, o critério diferenciador é a velocidade com a qual ela
ocorre na etapa inicial do processo, que é lenta e gradual e progride durante
um longo tempo. Acontece, em geral, nas doenças de curso clínico longo,
principalmente as não transmissíveis, podendo ocorrer, também, com doenças
cujos agentes apresentam baixa resistência ao meio exterior ou para os quais a
população seja altamente resistente ou imune. Será lenta, ainda, se as formas
de transmissão e os meios de prevenção forem bem conhecidos pela
população, como AIDS, exposição a metais pesados ou agrotóxicos.
Quando não há um mecanismo de transmissão de hospedeiro para hospedeiro
na epidemia, por fonte ou veículo comum, o fator extrínseco (agente
infeccioso, fatores físico-químicos ou produtos do metabolismo biológico)
pode ser veiculado pela água, por alimentos, pelo ar ou introduzido por
inoculação. Todos os suscetíveis devem ter acesso direto a uma única fonte de
contaminação, podendo ser por curto espaço de tempo (fonte pontual) ou um
espaço de tempo mais longo (fonte persistente). Trata-se, geralmente, de uma
epidemia explosiva e bastante localizada, em relação a tempo e lugar, como a
intoxicação alimentar.
Na epidemia gerada por uma fonte pontual (no tempo), a exposição ocorre
durante um curto intervalo de tempo e cessa, não ocorrendo novamente.
Exemplos disso são as exposições a alimentos contaminados em eventos. Já
na epidemia ocasionada por uma fonte persistente (no tempo), a fonte tem
existência dilatada e a exposição da população prolonga-se. Destacam-se,
neste último caso, as epidemias de febre tifoide devido a fonte hídrica,
acidentalmente contaminada pela rede de esgoto.
Epidemia de fonte progressiva ou propagada, de contato ou contágio, ocorre
quando o mecanismo de transmissão for de hospedeiro-hospedeiro em cadeia,
por via respiratória, anal, oral ou genital (gripe, meningite meningocócica,
doenças sexualmente transmissíveis e raiva canina, por exemplo). Muitas
vezes sua progressão é lenta, contudo não se descarta a possibilidade de
epidemias explosivas por esse tipo de fonte.
O descontrole nos fatores determinantes da doença pode ocasionar uma
situação epidêmica. Esse descontrole deve ser detectado pelo Sistema de
Vigilância, classificado como uma situação de emergência, e medidas
circunstanciais devem ser tomadas para a sua correção (Alves, 2004).

Resumo
Vigilância em saúde com ênfase
em vigilância epidemiológica
Marília Louvison
Thaís Minett
Alex Jones F. Cassenote
Marina Gemma
Lucas Primo de Carvalho Alves

1. Introdução
A vigilância em saúde visa à observação e análise permanentes da situação de
saúde da população, articulando-se em um conjunto de ações destinadas a
controlar determinantes, riscos e danos à saúde de populações que vivem em
determinados territórios e garantindo a integralidade da atenção, o que inclui
tanto a abordagem individual quanto coletiva dos problemas de saúde. O
conceito de vigilância em saúde inclui:

Vigilância e controle das doenças transmissíveis;


Vigilância das doenças e agravos não transmissíveis;
Vigilância da situação de saúde;
Vigilância ambiental em saúde;
Vigilância da saúde do trabalhador;
Vigilância sanitária.

Antes da criação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) e


do Sistema Único de Saúde (SUS), na década de 1980, a cisão, do ponto de
vista político e organizacional, estava bem estabelecida: de um lado, sob a
responsabilidade do extinto Instituto Nacional de Assistência Médica da
Previdência Social (INAMPS), estavam as ações de assistência à saúde
individual, e do outro, sob o comando do Ministério da Saúde, encontravam-
se as ações de natureza coletiva vinculadas, essencialmente, a vigilância,
prevenção e controle das doenças transmissíveis.
Após a criação do SUS, o planejamento e a execução de um e outro conjunto
de ações passaram a ter um comando único em cada nível de governo,
favorecendo a formulação de políticas de saúde mais efetivas. Além disso,
esse processo tomou como princípios e diretrizes a universalização do acesso,
a descentralização e a integralidade das ações e o controle social. Não
obstante, os avanços obtidos, principalmente na organização dos serviços
assistenciais, a dicotomia e a fragmentação das ações persistiram por longo
tempo, mesmo sob um único comando.
Ocorre, então, a adequação do sistema de vigilância com a nova visão do
processo saúde-doença, em que se pode pensar na assistência em saúde não só
como tratamento e/ou cura de doenças, mas também como um produto de 2
momentos articulados que podem e devem ser distinguidos: ações suscitadas
pela presença da doença em razão de condições de “risco” epidemiológico e
da vulnerabilidade de certos grupos; ações referentes à qualidade de vida, sem
considerar apenas a eliminação de doenças ou mesmo a prevenção delas, mas
uma ideia mais ampla que engloba a questão da promoção da saúde. É
justamente nessa articulação que age a vigilância em saúde.

2. Componentes e ações da vigilância em saúde

Figura 1 - Evolução das formas de vigilância em saúde no Brasil

Sob a ótica estrutural, pode-se falar no resultado de um processo histórico, no


âmbito federal, iniciado pelo Centro Nacional de Epidemiologia (CENEPI),
do qual participaram instituições de saúde e de ensino e pesquisa. A Secretaria
de Vigilância em Saúde (SVS), criada em 2003, congrega tradicionais campos
de atuação e agrega novos. Além da vigilância epidemiológica de doenças
transmissíveis, a SVS incorporou as vigilâncias em saúde ambiental, saúde do
trabalhador, das doenças e agravos não transmissíveis, análise de situação de
saúde e a promoção da saúde (Figura 2). Competem à Secretaria a formulação
de políticas e o aprimoramento e a elaboração de sistemas de informação
dessas áreas (Brasil, 2010b).
Figura 2 - Ações desenvolvidas pela Secretaria de Vigilância em Saúde
Fonte: adaptado de Ministério da Saúde, 2010.

Dica
Os componentes concretos da vigilância em saúde são Vigilância
Epidemiológica, Vigilância da Situação de Saúde, Vigilância em Saúde
Ambiental, Vigilância em Saúde do Trabalhador e Vigilância Sanitária.

Existem várias atividades relacionadas a cada um desses componentes


principais (Tabela 1). Deve-se ressaltar que esses componentes não devem
agir isoladamente. Muitas vezes, a existência da articulação entre eles auxilia
na promoção de um trabalho mais integral à população. Em situações de
surtos ou epidemias de fonte alimentar, é comum observar a Vigilância
Epidemiológica trabalhar lado a lado com a Sanitária, a fim de esclarecer esse
processo.

Importante
Um aspecto fundamental da vigilância em saúde é o cuidado integral com a
saúde das pessoas por meio da “promoção da saúde”, que objetiva
promover a qualidade de vida, criando condições para reduzir a
vulnerabilidade e os riscos à saúde da população, relacionados aos seus
determinantes e condicionantes – modos de viver, condições de trabalho,
habitação, ambiente, educação, lazer, cultura e acesso a bens e serviços
essenciais.
As ações específicas da vigilância em saúde são voltadas para alimentação
saudável, prática corpórea/atividade física, prevenção e controle do
tabagismo, redução da morbimortalidade em decorrência do uso de álcool e
outras drogas, redução da morbimortalidade por acidentes de trânsito,
prevenção da violência e estímulo à cultura da paz, além da promoção do
desenvolvimento sustentável.
No início de 2003, como parte das medidas de reestruturação do Ministério da
Saúde, foi criada a SVS, após a extinção de 3 secretarias cujas atribuições
foram redistribuídas entre as 5 que as substituíram, o que visava reduzir a
fragmentação das ações e conferir maior organicidade à atuação do referido
órgão. As atribuições das novas estruturas foram regulamentadas pelo Decreto
nº 4.726, de 09.06.2003, que estabeleceu a nova Estrutura Regimental Básica
(Brasil, 2003).
A partir de então, a coordenação das atividades de vigilância epidemiológica e
de controle de doenças, anteriormente sob responsabilidade do CENEPI da
Fundação Nacional de Saúde (Sinete/Funasa), foi transferida para a nova
estrutura, vinculada à administração direta do Ministério da Saúde (Figura 3).
Essa nova estrutura reuniu todas as secretarias responsáveis pelos
componentes básicos da vigilância, permitindo maior flexibilidade e
articulação entre eles (Brasil, 2006).

Figura 3 - Organização da Secretaria de Vigilância em Saúde Fonte: adaptado de Ministério da


Saúde, 2006.

A nova denominação adotada – vigilância em saúde – e o fato de a SVS


localizar-se formalmente no mesmo nível organizacional da estrutura
responsável pela área de Assistência à Saúde são indícios do desejo de
superação das dicotomias entre preventivo e curativo e entre individual e
coletivo, e das fragmentações entre práticas que dificultam a construção da
integralidade do modelo assistencial vigente.
Tema frequente de prova
A reestruturação dos órgãos governamentais voltados à vigilância em
saúde, em 2003, é tema encontrado com frequência nos concursos médicos.

Com a criação da SVS, todas as ações de vigilância, prevenção e controle de


doenças, além da promoção à saúde, passaram a se reunir numa única
estrutura do Ministério da Saúde, responsável pela coordenação nacional de
todas as ações executadas pelo SUS, nas áreas de vigilância epidemiológica
de doenças transmissíveis e não transmissíveis, dos programas de prevenção e
controle de doenças, de vigilância em saúde ambiental, informações
epidemiológicas e análise de situação de saúde. Essas responsabilidades são
compartilhadas, segundo as atribuições de cada esfera de governo, com os
gestores estaduais e municipais (Brasil, 2006).
A descentralização das ações de vigilância em saúde para estados e
municípios concretizou um marco dessa área a partir de 1999, quando foi
publicada a Portaria nº 1.399 (Brasil, 1999). A partir do ano 2000, todas as 27
Unidades Federativas foram certificadas para a gestão da vigilância em saúde
e passaram a receber recursos por intermédio do Fundo Nacional de Saúde de
forma regular e automática. Posteriormente, essa Portaria foi atualizada pela
Portaria nº 1.172, de 15 de junho de 2004 (Brasil, 2004).
Em 2009, houve a necessidade de rever a normativa da vigilância em saúde,
tendo em vista o Pacto pela Saúde, o processo de planejamento do SUS e a
definição de estratégias de integração da Vigilância com a Assistência à
Saúde, em especial com a Atenção Primária. Com o objetivo de potencializar
o processo de descentralização, fortalecendo estados, municípios e Distrito
Federal, foi publicada a Portaria GAB/MS nº 3.252, de dezembro de 2009,
que aprova as diretrizes para a execução e o financiamento das ações de
vigilância em saúde pelas 3 esferas de gestão do SUS (Brasil, 2009a). Ela
estabelece o Piso Fixo de Vigilância e Promoção da Saúde como a principal
fonte de financiamento das ações de vigilância em saúde. Esse piso compõe-
se de um valor per capita estabelecido com base na estratificação, população
e área territorial de cada Unidade Federativa. As transferências são realizadas
de forma regular, da União para estados, municípios e Distrito Federal. A
Portaria nº 3.252 cria ainda o Piso Variável de Vigilância e Promoção da
Saúde, constituído por incentivo específico, por adesão ou indicação
epidemiológica, conforme normatização específica (Saúde, 2011).

3. Vigilância Epidemiológica
A - Conceitos e propósitos

Vigilância pode ser entendida como a observação contínua da distribuição e


das tendências da incidência de doenças mediante a coleta sistemática,
consolidação e avaliação de informes de morbidade e mortalidade, assim
como de outros dados relevantes, e a regulação da disseminação dessas
informações a todos os que necessitam conhecê-la (Langmuir, 1971).

Importante
A Vigilância Epidemiológica refere-se a um conjunto de atividades que
proporciona a obtenção de informações fundamentais para o conhecimento
e a detecção ou a prevenção de qualquer mudança que possa ocorrer nos
fatores que determinam e condicionam o processo saúde-doença, em nível
individual ou coletivo, com o objetivo de recomendar e adotar de forma
oportuna as medidas de prevenção e controle dos agravos. Portanto, pode
ser entendida como a obtenção de informação para a ação (Fischmann,
1994; Alvanha et al., 2001).

Originalmente impregnadas pelo conceito de polícia médica vigente no século


XVIII, as ações de controle de doenças estavam limitadas à vigilância de
pessoas, com medidas de isolamento e quarentena aplicadas individualmente,
e não de forma coletiva. Posteriormente, diante da intensificação do
intercâmbio comercial entre os países, surgiu a necessidade de instituir ações
efetivas de caráter coletivo, como a vacinação, o controle de vetores e o
saneamento ambiental (Gaze; Perez, 2009).

Dica
As ações de vigilância epidemiológica aplicam-se, em geral, às doenças
transmissíveis, mas podem ser estendidas às doenças não transmissíveis
(anomalias congênitas, desnutrição, doenças crônico-degenerativas etc.) e a
outros agravos (acidentes e violências).

Pereira (2002) explica que é a forma mais tradicional da utilização da


Epidemiologia nos serviços de saúde, constituindo-se num instrumento
importante para o planejamento, a organização e a operacionalização destes,
além de subsidiar as normatizações das atividades técnicas correlatas
(Waldman; Mello Jorge, 1998; Alvanha et al., 2001).
Segundo o Ministério da Saúde, as competências de cada um dos níveis do
sistema de saúde (municipal, estadual e federal) abarcam todo o espectro das
funções de vigilância epidemiológica, porém, com graus de especificidade
variáveis. As ações executivas são inerentes ao nível municipal, e seu
exercício exige conhecimento analítico da situação de saúde local. Aos níveis
nacional e estadual cabe conduzir ações de caráter estratégico, de
coordenação em seu âmbito de ação e de longo alcance, além da atuação de
forma complementar ou suplementar aos demais níveis.

B - Bases históricas
No Brasil, a preocupação do Estado com doenças transmissíveis e seu
controle ocorreu, primeiramente, no início do século XX, com a realização de
campanhas sanitárias que buscavam combater, principalmente, doenças que
comprometiam a atividade econômica, como febre amarela, peste e varíola.
Foi na década de 1950 que a expressão “vigilância epidemiológica” foi
aplicada ao controle de doenças transmissíveis; significava, originalmente,
“observação sistemática e ativa de casos suspeitos ou confirmados de doenças
transmissíveis e de seus contatos”. Em 1963, a Organização Mundial da
Saúde (OMS) toma partido do assunto, divulgando algumas das principais
ações de vigilância. No Brasil, o desenvolvimento da Vigilância
Epidemiológica como um sistema tem aspectos semelhantes ao entendido
pela OMS (Tabela 2).
A Campanha de Erradicação da Varíola – CEV (1966 a 1973) – é reconhecida
como marco da institucionalização das ações de vigilância no país, tendo
fomentado e apoiado a organização de unidades de Vigilância Epidemiológica
na estrutura das secretarias estaduais de saúde. Tal processo fundamentou a
consolidação de bases técnicas e operacionais que possibilitaram o posterior
desenvolvimento de ações de grande impacto no controle de doenças
evitáveis por imunização. O principal êxito relacionado a esse esforço foi o
controle da poliomielite no Brasil, na década de 1980, que abriu perspectivas
para a erradicação da doença no continente americano, finalmente alcançada
em 1994.
O SUS incorporou o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica
(SNVE), definindo a Vigilância Epidemiológica, em seu texto legal (Lei nº
8.080/90), como “um conjunto de ações que proporciona o conhecimento, a
detecção ou a prevenção de qualquer mudança nos fatores determinantes e
condicionantes de saúde individual ou coletiva, com a finalidade de
recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle das doenças ou
agravos”.

- Evolução conceitual de vigilância

Em 1963, a OMS aponta algumas funções da Vigilância Epidemiológica:


busca de casos, exames complementares, tratamento, investigação
epidemiológica e eliminação de focos; com o Programa de Erradicação da
Varíola (lançado em 1955 e intensificado em 1967), também da OMS, são
salientadas mais 2 importantes funções: a busca de todos os casos e a
aplicação de medidas de controle. Assim, com o tempo, o papel de sistema de
informação que a Vigilância desenvolvia passa a agregar atividades de
controle da doença na população, monitorização, avaliação, pesquisa e
intervenção. A partir de 1968, com a 1ª Assembleia Mundial da Saúde, a
Vigilância passa a englobar o papel de vigiar também outros agravos, além
das doenças transmissíveis.
Posteriormente, a Vigilância assume a característica de se voltar ao aspecto
relacional dos indivíduos com o meio ambiente e com os produtos e serviços
consumidos por eles, ou seja, desenvolve-se a noção de vigilância sanitária.
Logo, não se pode entender como objetivo da Vigilância apenas a mera coleta
de dados e análise das informações, mas também a responsabilidade de
elaborar, com fundamento científico, as bases técnicas que guiarão os serviços
de saúde na elaboração e implementação dos programas de saúde, com a
preocupação de contínua atualização e aprimoramento.

Importante
Cada sistema de vigilância será responsável pelo acompanhamento
contínuo de específicos eventos adversos à saúde, com o objetivo de
estabelecer as bases técnicas e as normas para a elaboração e a
implementação dos respectivos programas de controle.

C - Funções

Importante
A Vigilância Epidemiológica tem como propósito primordial fornecer
orientação técnica permanente para os profissionais de saúde, que têm a
responsabilidade de decidir sobre a execução de ações de controle de
doenças e agravos, tornando disponíveis, para esse fim, informações
atualizadas sobre a ocorrência dessas doenças e agravos, bem como sobre
os fatores que os condicionam, numa área geográfica ou população
definida.

Subsidiariamente, a Vigilância Epidemiológica constitui-se em importante


instrumento para o planejamento, a organização e a operacionalização dos
serviços de saúde, como também para a normatização de atividades técnicas
correlatas (Brasil, 2009b). O sistema de vigilância epidemiológica produz
informações que funcionam como um mecanismo de alerta constante sobre a
incidência de alguns agravos à saúde. A Tabela 3 apresenta os principais
propósitos da Vigilância Epidemiológica nesse sentido.

Portanto, cabe à Vigilância Epidemiológica fornecer orientação técnica sobre


a execução de ações de controle de doenças e agravos e manter atualizadas as
informações destes últimos. Além disso, as informações fornecidas pelo
sistema de vigilância permitem: planejar ações em saúde, desde promoção da
saúde e prevenção de doenças até a recuperação; organizar a melhor forma de
execução dessas ações; operacionalizar essas ações; normatizar as atividades
técnicas a serem adotadas diante de um agravo.
A operacionalização da Vigilância Epidemiológica compreende um ciclo de
funções específicas e intercomplementares, desenvolvidas de modo contínuo,
permitindo conhecer, a cada momento, o comportamento da doença ou agravo
selecionado como alvo das ações, para que as medidas de intervenção
pertinentes possam ser desencadeadas com oportunidade e eficácia. As
funções da Vigilância Epidemiológica serão explicadas a seguir (Figura 4).
Figura 4 - Funções da Vigilância Epidemiológica
Fonte: adaptado de Ministério da Saúde, 2009.

D - Coleta de dados

A coleta de dados ocorre em todos os níveis de atuação do sistema de saúde.


O valor da informação (dado analisado) depende da precisão com que o dado
é gerado. Portanto, os responsáveis pela coleta devem ser preparados para
aferir a qualidade do dado obtido. Tratando-se, por exemplo, da notificação de
doenças transmissíveis, são fundamentais a capacitação para o diagnóstico de
casos e a realização de investigações epidemiológicas correspondentes
(Brasil, 2009b).
O propósito básico da coleta de dados é gerar informação, um poderoso
instrumento capaz de subsidiar um processo dinâmico de planejamento,
avaliação, manutenção e aprimoramento das ações desenvolvidas. Para tal,
são importantes a disponibilidade dos dados coletados e sua qualidade.
Assim, a partir de fontes confiáveis, é possível, sem o conhecimento da
totalidade de casos, acompanhar as tendências do agravo com auxílio de
estimativas de subnumeração de casos.

Dica
De acordo com o método de coleta de dados, podemos realizar inquéritos,
levantamentos ou investigações epidemiológicas. Inquéritos são realizados
quando dados são sistematicamente coletados (por telefone, questionários,
face a face, serviços postais), porém o método experimental não é usado.
Inquéritos são, por definição, um estudo transversal. Levantamentos são
estudos realizados com base nos dados existentes nos registros dos serviços
de saúde ou de outras instituições. Normalmente não são estudos
amostrais, pois envolvem toda uma população específica. Investigações
são, por sua vez, um processo de pesquisa de campo realizado a partir dos
casos notificados (suspeitos ou confirmados). O objetivo é identificar a
fonte de infecção e o modo de transmissão, os grupos expostos a maior
risco e os fatores de risco, bem como confirmar o diagnóstico e determinar
as principais características epidemiológicas.

a) Fonte de dados

Dica
Para obter os dados, a Secretaria de Vigilância em Saúde lança mão de
alguns meios, como a notificação compulsória, os prontuários médicos,
atestados de óbito, resultados de exames laboratoriais e dados dos bancos
de sangue, investigação de novos casos de uma doença e epidemias,
inquéritos comunitários, notícias veiculadas pela imprensa, sistemas-
sentinela, e faz uma busca ativa das doenças ou agravos da saúde.
b) Tipos de dados

Dica
Os tipos de dados obtidos incluem dados demográficos, ambientais e
socioeconômicos, dados sobre morbidade e mortalidade, e as notificações
de emergências de saúde pública, surtos e epidemias.
E - Processamento dos dados coletados

Os dados coletados são consolidados segundo as técnicas da Epidemiologia


Descritiva, ou seja, descrevendo as características de pessoa, tempo e espaço,
em tabelas, gráficos, mapas etc., fornecendo, assim, uma visão global do
evento. Dessa forma, é possível avaliar a ocorrência do evento (“quem?”,
“quando?”, “onde?”) e propor associação causal (“por quê?”). Além disso, os
dados permitem o cálculo de indicadores, que serão muito úteis no processo
de comparação da situação atual do evento com a situação do mesmo evento
em anos anteriores e, até mesmo, de estudos epidemiológicos.

F - Análise e interpretação dos dados processados

Uma vez processados, os dados devem ser criteriosamente analisados,


transformando-se, assim, em informação que orientará as ações de controle.

G - Recomendação das medidas de controle

Definir ações que podem ser realizadas para controlar e/ou eliminar e/ou
erradicar o agravo e/ou reduzir os óbitos por esse agravo e/ou reduzir ou
evitar sequelas por esse agravo etc. Ou seja, a partir da informação, é
elaborada a ação que permitirá o desenvolvimento das funções da Vigilância
Epidemiológica: essencialmente, reduzir as taxas de morbimortalidade pelo
agravo em questão.

H - Promoção das ações de controle indicadas

A partir da decisão tomada, é hora de partir para a ação, ou seja, adotar as


medidas consideradas necessárias para o controle do agravo e a quebra da
cadeia de transmissão, considerando-se, também, possíveis ações para
prevenção do agravo no futuro.

I - Avaliação da eficácia e efetividade das medidas


adotadas

Uma vez adotadas as medidas de controle propostas a partir das informações


obtidas dos dados analisados, é necessário estabelecer um período após a
adoção dessas medidas para realizar nova coleta de dados, novo
processamento e nova análise, a fim de observar se as medidas aplicadas
causaram alguma modificação ou controle do agravo em questão, alterando,
assim, as características de ocorrência do evento. Segundo o Ministério da
Saúde, o sistema de vigilância epidemiológica pode ser avaliado por algumas
medidas quantitativas e qualitativas. As medidas quantitativas são a
sensibilidade (capacidade de detectar casos); especificidade (capacidade de
excluir os não casos); representatividade (possibilidade de identificar todos os
subgrupos da população onde ocorrem os casos); oportunidade (agilidade do
fluxo de sistema de informação). Já as medidas qualitativas são a
simplicidade (facilidade de operacionalização e redução de custos);
flexibilidade (capacidade de adaptação do sistema a novas situações
epidemiológicas ou operacionais); aceitabilidade (disposição de indivíduos,
profissionais e organizações participarem e utilizarem o sistema – Brasil,
2009b).

J - Divulgação de informações pertinentes

A divulgação das ações realizadas pela Vigilância Epidemiológica e dos


resultados consequentes a essas ações é o que se chama de retroalimentação
do sistema, um dos pilares para o adequado funcionamento do sistema de
vigilância. Essa retroalimentação consiste no retorno regular de informações
às fontes produtoras de dados, por meio da disseminação periódica de
informes epidemiológicos sobre as situações local, regional, estadual e
nacional. Tal divulgação pode acontecer por meio de boletins oficiais e de
canais da imprensa, principalmente quando se está diante de um surto ou
epidemia, pois é fundamental retornar à população a situação do agravo
ocorrido e se houve ou não o controle desse agravo e, principalmente, o que
fazer para que ele não volte a ser epidemia.
Desse modo, esse conjunto de atividades, que se inicia com a notificação,
deve ser sequencial, bem desenvolvido e dotado de máxima eficiência, a fim
de chegar à modificação e/ou ao controle do evento notificante (Figura 5).
Figura 5 - Sequência de interação entre as funções da Vigilância Epidemiológica

A eficiência do SNVE depende do desenvolvimento harmônico das funções


realizadas nos diferentes níveis (municipal, estadual e federal). Quanto mais
capacitada e eficiente a instância local, mais oportunamente poderão ser
executadas as medidas de controle. Os dados e as informações aí produzidos
serão, também, mais consistentes, possibilitando melhor compreensão dos
quadros sanitários estadual e nacional e, consequentemente, o planejamento
adequado da ação governamental. Nesse contexto, as intervenções oriundas
do nível estadual e, com maior razão, do federal tenderão a tornar-se seletivas,
voltadas para questões emergenciais ou que, pela sua transcendência,
requerem avaliação complexa e abrangente, com participação de especialistas
e centros de referência, inclusive internacionais (Brasil, 2009b).

4. Doenças de notificação compulsória


Também chamadas de doenças de notificação obrigatória, são eventos cuja
ocorrência deve ser notificada obrigatoriamente (por lei) para o órgão de
vigilância epidemiológica vigente. Em todos os países, a lista de doenças de
notificação é periodicamente revisada e atualizada de acordo com as
necessidades locais, podendo haver a inclusão ou a retirada de algumas
doenças. Em cada país, há 1 órgão central que toma essas decisões.

Importante
No Brasil, a determinação de quais doenças devem estar presentes na Lista
Nacional de Doenças e Agravos de Notificação Compulsória é
responsabilidade do Ministério da Saúde. Habitualmente, essa lista
contempla as doenças sujeitas ao Regulamento Sanitário Internacional
(RSI) e doenças que são objetos de vigilância da Organização Mundial da
Saúde que apresentam importância epidemiológica no país. Além disso,
podem fazer parte dessa lista doenças de particular importância para a
saúde pública (que necessitam de investigação epidemiológica ou medidas
de controle imediatas).

A Lista Nacional de Doenças e Agravos de Notificação Compulsória é


obrigatória em todo o território nacional. Estados e municípios podem
acrescentar doenças que apresentam importância epidemiológica em sua
região. A notificação compulsória é obrigatória a todos os profissionais de
saúde, ou seja, médicos, enfermeiros, odontólogos, médicos veterinários,
biólogos, biomédicos, farmacêuticos e outros, no exercício da profissão, bem
como os responsáveis por organizações ou estabelecimentos públicos e
privados de saúde e de ensino em conformidade com a Lei nº 6.259, de 30 de
outubro de 1975.
O processo de notificação compulsória de doenças no Brasil é vinculado ao
Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), que opera por
meio da alimentação de dados coletados a partir de 2 instrumentos
padronizados e específicos: a ficha de investigação epidemiológica (Figura 6)
e a ficha de notificação (Figura 7). As fichas preenchidas são digitadas em um
software específico e compõem um banco de dados com as informações
clínicas e epidemiológicas das doenças da lista nacional.
Figura 6 - Ficha do SINAN para notificação/investigação individual de caso de AIDS, em adultos
Fonte: SINAN-net.

As fichas de investigação epidemiológica são uma espécie de questionário e


seguem uma estrutura com campos abertos e fechados para a descrição de
dados de identificação, clínicos, epidemiológicos e laboratoriais. Para cada
doença da Lista Nacional de Doenças e Agravos de Notificação Compulsória
existe uma ficha própria com campos específicos.
As fichas de notificação, costumeiramente chamadas de “ficha SINAN”, são
pré-numeradas pelo Ministério da Saúde e enviadas aos demais níveis do
SNVE. Exceto por sua numeração exclusiva, contêm campos idênticos para
qualquer uma das doenças da lista nacional e serão sempre anexadas às fichas
de investigação específicas para cada doença, atribuindo-se, dessa forma, a
numeração da ficha de notificação ao caso suspeito da doença em
investigação.
As fichas preenchidas nos serviços de saúde (Unidades Básicas de Saúde e
hospitais de referência do Subsistema Nacional de Vigilância Epidemiológica
em Âmbito Hospitalar) são encaminhadas para os demais níveis do sistema de
vigilância, seguindo o fluxo estabelecido. Cabe ressaltar que, no caso dos
hospitais de referência, as fichas são diretamente digitadas no software
SINANweb.
Figura 7 - Ficha do SINAN para notificação de quaisquer das doenças da lista nacional
Fonte: SINAN-net.

A - Critérios para a inclusão de doenças

a) Magnitude

Frequência das doenças na população, ou seja, sua incidência e prevalência e


seus índices de mortalidade e anos potenciais de vida perdidos.

b) Potencial de disseminação

Poder de transmissão da doença, por meio de vetores ou outras fontes,


colocando em risco a saúde da população.

c) Transcendência

Existem 3 formas de expressão: severidade (medida por taxas de letalidade,


internações e sequelas da doença); relevância social (avaliação subjetiva
imputada pela reação da sociedade à doença – medo, indignação, repulsa);
relevância econômica (avaliada por taxas de absenteísmo ao trabalho e às
escolas, pelos custos assistenciais e previdenciários etc.).

d) Vulnerabilidade

Existência de instrumentos específicos de controle e prevenção da doença.

e) Compromisso internacional

Compromisso de um país com as metas mundiais de controle, erradicação e


eliminação de doenças, bem como com medidas que devem ser adotadas
diante de agravos inusitados, sob o risco de se transformarem em pandemias.

f) Epidemias, surtos e agravos inusitados

Situações emergenciais em que é obrigatória a notificação imediata dos casos


suspeitos para delimitar a área de ocorrência e adotar medidas de controle
aplicáveis, visando à quebra da cadeia de transmissão da doença.

B - Lista nacional de doenças de notificação


Em 17 de fevereiro de 2016, o Ministério da Saúde aprovou, pela Portaria nº
204, a definição da Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças,
agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados
em todo o território nacional (Tabela 6), revogando a antiga Portaria nº 1.271,
de 6 de junho de 2014.
Nos seus Art. 1º e 2º, a nova Portaria define a Lista Nacional de Notificação
Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de
saúde públicos e privados em todo o território nacional, nos termos do seu
anexo; explica ainda que, para fins de notificação compulsória de importância
nacional, serão considerados os seguintes conceitos:

I - Agravo: qualquer dano à integridade física ou mental do indivíduo,


provocado por circunstâncias nocivas, como acidentes, intoxicações por
substâncias químicas, abuso de drogas ou lesões decorrentes de
violências interpessoais, como agressões e maus-tratos e lesão
autoprovocada.
II - Autoridades de saúde: o Ministério da Saúde e as Secretarias de
Saúde dos estados, Distrito Federal e municípios, responsáveis pela
vigilância em saúde em cada esfera de gestão do SUS.
III - Doença: enfermidade ou estado clínico, independentemente de
origem ou fonte, que represente ou possa representar um dano
significativo para os seres humanos.
IV - Epizootia: doença ou morte de animal ou de grupo de animais que
possa apresentar riscos à saúde pública.
V - Evento de Saúde Pública (ESP): situação que pode constituir
potencial ameaça à saúde pública, como a ocorrência de surto ou
epidemia, doença ou agravo de causa desconhecida, alteração no padrão
clínico e epidemiológico das doenças conhecidas, considerando o
potencial de disseminação, a magnitude, a gravidade, a severidade, a
transcendência e a vulnerabilidade, bem como epizootias ou agravos
decorrentes de desastres ou acidentes.
VI - Notificação compulsória: comunicação obrigatória à autoridade de
saúde, realizada pelos médicos, profissionais de saúde ou responsáveis
pelos estabelecimentos de saúde, públicos ou privados, sobre a
ocorrência de suspeita ou confirmação de doença, agravo ou evento de
saúde pública, descritos no anexo da Portaria (Tabela 6), podendo ser
imediata ou semanal.
VII - Notificação Compulsória Imediata (NCI): notificação
compulsória realizada em até 24 horas, a partir do conhecimento da
ocorrência de doença, agravo ou evento de saúde pública, pelo meio de
comunicação mais rápido disponível.
VIII - Notificação Compulsória Semanal (NCS): notificação
compulsória realizada em até 7 dias, a partir do conhecimento da
ocorrência de doença ou agravo.
IX - Notificação compulsória negativa: comunicação semanal
realizada pelo responsável pelo estabelecimento de saúde à autoridade de
saúde, informando que na semana epidemiológica não foram
identificados nenhuma doença, agravo ou evento de saúde pública
constantes da Lista de Notificação Compulsória.
X - Vigilância-sentinela: modelo de vigilância realizado a partir de
estabelecimento de saúde estratégico para a vigilância de morbidade,
mortalidade ou agentes etiológicos de interesse para a saúde pública,
com participação facultativa, segundo norma técnica específica
estabelecida pela SVS/MS.

Segundo o Art. 3º, a notificação compulsória é obrigatória para os médicos,


outros profissionais de saúde ou responsáveis pelos serviços públicos e
privados de saúde, que prestam assistência ao paciente, em conformidade com
o art. 8º da Lei nº 6.259, de 30 de outubro de 1975.
A notificação compulsória será realizada diante da suspeita ou da confirmação
de doença ou agravo, de acordo com o estabelecido em seu anexo,
observando-se, também, as normas técnicas estabelecidas pela SVS/MS. A
comunicação de doença, agravo ou evento de saúde pública de notificação
compulsória à autoridade de saúde competente também será realizada pelos
responsáveis por estabelecimentos públicos ou privados educacionais, de
cuidado coletivo, além de serviços de hemoterapia, unidades laboratoriais e
instituições de pesquisa.
A comunicação de doença, agravo ou evento de saúde pública de notificação
compulsória pode ser realizada à autoridade de saúde por qualquer cidadão
que deles tenha conhecimento.
A NCI deve ser realizada pelo profissional de saúde ou responsável pelo
serviço assistencial que prestar o primeiro atendimento ao paciente, em até 24
horas desse atendimento, pelo meio mais rápido disponível.
A autoridade de saúde que receber a NCI deverá informar, em até 24 horas
desse recebimento, às demais esferas de gestão do SUS, o conhecimento de
qualquer uma das doenças ou agravos constantes no anexo da Portaria (Tabela
6).
A NCS será feita à Secretaria de Saúde do município do local de atendimento
do paciente com suspeita ou confirmação de doença ou agravo de notificação
compulsória. No Distrito Federal, a notificação será feita à Secretaria de
Saúde do Distrito Federal.
A notificação compulsória, independentemente da forma realizada, também
será registrada em sistema de informação em saúde e seguirá o fluxo de
compartilhamento entre as esferas de gestão do SUS estabelecido pela
SVS/MS.
C - Subnotificação

Ocorre quando o sistema de vigilância não é informado de um caso. Causas


variadas colaboram para a não notificação de casos observados: incerteza do
diagnóstico, questões operacionais, descrença no sistema de vigilância, entre
outras. É muito conhecido, no meio da Saúde, o termo “ponta do iceberg”
(Figura 8) para se referir a uma característica dos dados de notificação, ou
seja, informações de morbidade e mortalidade (especialmente de mortalidade)
representam apenas uma parcela da população (a “ponta do iceberg”): a que
morre ou que chega ao serviço de saúde e tem o seu diagnóstico feito e
registrado corretamente.

Figura 8 - Características da “ponta do iceberg” dos casos conhecidos de doença


Fonte: adaptado de Bases da Saúde Coletiva, 2001.

D - Notificação negativa

Algumas doenças, mesmo na ausência de casos, devem ser notificadas às


autoridades, ao que se denomina notificação negativa. Funciona como um
indicador de eficiência do sistema de informações.

E - Notificação imediata e notificação não imediata

Denominam-se notificações imediatas e não imediatas o que os próprios


nomes dizem, ou seja, respectivamente, notificações feitas no momento da
suspeita diagnóstica (imediata) ou no momento da confirmação diagnóstica
(não imediata). O que define quando realizar um ou outro tipo de notificação
é a rapidez com que a doença pode se espalhar entre as pessoas.

5. Vigilância epidemiológica de agravos não


transmissíveis
Segundo o Ministério da Saúde, nas últimas décadas, as Doenças Crônicas
Não Transmissíveis (DCNTs) passaram a liderar as causas de óbito no país,
ultrapassando as taxas de mortalidade por doenças infecciosas e parasitárias
na década de 1980. Como decorrência da queda da mortalidade e da
fecundidade no país, aumentou o número de idosos, particularmente do grupo
com mais de 80 anos. Nos próximos 20 anos, projeções apontam para a
duplicação da população idosa no Brasil – de 8 para 15%. O Ministério da
Saúde tem desenvolvido várias ações em articulação com diversos setores
governamentais e não governamentais, com o objetivo de promover a
qualidade de vida e prevenir e controlar as DCNTs.

Importante
A Vigilância em Doenças Crônicas Não Transmissíveis reúne o conjunto
de ações que possibilitam conhecer a distribuição, a magnitude e a
tendência dessas doenças e de seus fatores de risco na população,
identificando seus condicionantes sociais, econômicos e ambientais, com o
objetivo de subsidiar o planejamento, a execução e a avaliação da
prevenção e do controle delas. A prevenção e o controle dessas doenças e
dos seus fatores de risco são fundamentais para evitar o crescimento
epidêmico delas e suas consequências nefastas para a qualidade de vida e
para o sistema de saúde no país (Brasil, 2005).

A estruturação da vigilância, do controle e da prevenção de DCNTs no Brasil


insere-se no contexto definido pelo Ministério da Saúde de implementar ações
de intervenção em DCNTs, resultando em investimentos financeiros em
capacitação de recursos humanos, em equipamentos de informática e em
pesquisa epidemiológica contratada junto a centros colaboradores.
Para a vigilância, a Coordenação Nacional para Vigilância de Doenças e
Agravos Não Transmissíveis procurou estabelecer uma estratégia sustentável
centrada nas seguintes ações: monitorização das doenças, vigilância integrada
dos fatores de risco, indução de ações de prevenção e controle e de promoção
à saúde e monitorização e avaliação das intervenções.
A monitorização da morbimortalidade por DCNT é feita de forma contínua e
consta como uma atividade fundamental do sistema de vigilância. Ela é
executada em todos os níveis gestores do sistema, do municipal ao nacional.
A partir dos indicadores pactuados nos Fóruns Regionais de 2004, cada estado
deverá produzir um relatório anual com a descrição e a análise das respectivas
taxas de mortalidade e de morbidade para DCNTs.
A monitorização de fatores de risco é a principal atividade sustentada pelo
sistema de vigilância. Por meio de inquéritos de saúde de diversos formatos, o
Brasil vem constituindo bases de dados que permitem a monitorização
contínua dos fatores de risco para DCNT. A proposta que o Brasil vem
implementando combina grandes inquéritos de fatores de risco de abrangência
nacional com inquéritos locais, em municípios, que possam apreender sobre a
diversidade de realidades locais de nosso país. Também estão sendo
realizados inquéritos com metodologias mais simples e rápidas, como o
Vigitel. Essas medidas são aplicadas em grupos particularmente vulneráveis,
como escolares e idosos, a fim de orientar ou reorientar políticas específicas
de redução de fatores de risco nesses grupos.
O Vigitel tem como objetivo monitorizar a frequência e distribuição de fatores
de risco e proteção para DCNT em todas as capitais dos 26 estados brasileiros
e no Distrito Federal, por meio de entrevistas telefônicas realizadas em
amostras probabilísticas da população adulta residente em domicílios servidos
por linhas fixas de telefone.
A indução das ações de prevenção de DCNT e promoção da saúde constitui
uma das principais atividades da área de Vigilância. A partir da monitorização
contínua da prevalência dos fatores de risco da ocorrência dessas doenças na
população e do impacto econômico e social que elas provocam, é possível
construir uma forte argumentação sobre a necessidade de prevenir DCNTs.
Devem-se mostrar informações e argumentar para convencer os legisladores e
tomadores de decisão de que a prevenção de DCNTs é um investimento de
custo extremamente efetivo.
A monitorização e a avaliação das intervenções também podem ser
consideradas elementos-chave na vigilância das DCNTs. As atividades
atribuídas a essa monitorização permitem retroalimentar os programas e
projetos no sentido de readequar atividades de prevenção e promoção da
saúde.

Resumo
Transição epidemiológica,
demográfica e nutricional
Alex Jones F. Cassenote
Marina Gemma
Lucas Primo de Carvalho Alves

1. Introdução
Neste capítulo, um panorama da situação brasileira será apresentado em 2
aspectos: epidemiológico (frequência de doenças e mortalidade) e
demográfico (perfil da população – idade, fecundidade, entre outros). Estudar
esse panorama é uma possibilidade de compreender não somente o processo
pelo qual passou o perfil de morbimortalidade nesse último século, mas,
sobretudo, de estar preparado para o constante processo de modificação que
continuará a acompanhar a população de maneira variável.
As transformações sociais e econômicas ocorridas no Brasil durante o século
passado ainda provocam mudanças importantes no perfil de ocorrência das
doenças na população (Brasil, 2011). As mudanças nos níveis de mortalidade
têm efeito sobre o ritmo de crescimento populacional e afetam
significativamente a composição etária, levando a um processo de
envelhecimento que aumenta o peso relativo da população idosa. Isso
favorece a ocorrência das doenças crônicas e degenerativas, como as
neoplasias e as doenças de aparelho circulatório, e modifica a estrutura de
mortalidade, segundo a causa de óbito (Monteiro, 2000).

Importante
O processo de transição demográfica, com queda nas taxas de fecundidade
e natalidade, e o progressivo aumento na proporção de idosos (diminuição
das taxas de mortalidade) favoreceram o aumento das doenças crônico-
degenerativas (doenças cardiovasculares, câncer, diabetes, doenças
respiratórias). A transição nutricional, com diminuição expressiva da
desnutrição e aumento do número de pessoas com excesso de peso
(sobrepeso e obesidade), e o aumento dos traumas decorrentes das causas
externas – violências, acidentes e envenenamentos – foram os fatores
responsáveis pelo cenário de mudança que vivenciamos na Epidemiologia
Médica (Brasil, 2011).
Na 1ª metade do século XX, as doenças infecciosas transmissíveis eram as
causas mais frequentes de morte. A partir de 1960, as Doenças e Agravos Não
Transmissíveis (DANTs) passaram a assumir esse papel (Brasil, 2011).
Projeções para as próximas décadas apontam para crescimento epidêmico das
DANTs na maioria dos países em desenvolvimento, em particular das doenças
cardiovasculares, neoplasias e diabetes tipo 2. Essas doenças respondem pelas
maiores taxas de morbimortalidade e por cerca de mais de 70% dos gastos
assistenciais com a saúde no Brasil, com tendência crescente. Assim, o
desenvolvimento de estratégias para o controle das DANTs tornou-se uma das
prioridades para o Sistema Único de Saúde (SUS). A vigilância
epidemiológica das DANTs e dos seus fatores de risco é fundamental para a
implementação de políticas públicas voltadas à prevenção e ao controle
(Brasil, 2011).

2. Transição demográfica
Com os avanços da Revolução Industrial e seus desdobramentos
educacionais, científicos e tecnológicos, ficou claro que o desenvolvimento
econômico produz 2 efeitos sobre a população: a) reduz as taxas de
mortalidade, em geral, e a mortalidade infantil, em particular, e possibilita o
aumento da esperança de vida da população; b) depois de certo tempo do
início da queda da mortalidade, as taxas de fecundidade também começam a
cair, provocando a diminuição do tamanho das famílias (Alves; Cavenaghi,
2008).
Esse fenômeno, típico do século XX, foi chamado de “transição
demográfica”. Um ganho inequívoco foi que a expectativa de vida média da
população mundial dobrou em 10 décadas, passando de cerca de 30 anos, em
1900, para mais de 60 anos, em 2000. Nunca, na história, uma melhora das
condições de saúde dessa magnitude havia acontecido. No mesmo período,
um fenômeno social sem precedentes aconteceu com as taxas de fecundidade
do mundo, reduzidas pela metade, passando de menos do que 6 filhos por
mulher, em 1900, para cerca de 2,8 filhos, em 2000 (Alves; Cavenaghi, 2008).
O modelo de transição demográfica mais difundido foi proposto por Warren
Thompson, em 1929. Com relação a este, Vermelho e Monteiro (2009)
explicam que, inicialmente, ocorre a queda de mortalidade, que irá produzir
ganho de vidas humanas em todas as idades, podendo não alterar a estrutura
etária de uma população. O fator decisivo para o envelhecimento de uma
população é a queda da fecundidade, isto é, a diminuição relativa de
contingentes populacionais nas faixas etárias mais jovens e a ampliação da
população nas faixas etárias mais idosas. Assim, são identificados 4 estágios
da transição demográfica (Tabela 1 e Figura 1).

Figura 1 - Etapas da transição demográfica: a linha verde refere-se à taxa de natalidade; a linha
roxa, à taxa de mortalidade e a linha laranja, à população total. O preenchimento azul entre as
linhas verde e roxa resulta no crescimento natural da população
Fonte: Our World in Data.

Existe, atualmente, a discussão sobre uma possível 5ª etapa, em que a


mortalidade superará a natalidade, devido ao alto custo de criar filhos
(principalmente em países desenvolvidos). As famílias, por essa razão, optam
por um número reduzido de filhos (geralmente 1 ou nenhum). Esse fato levará
a população ao crescimento negativo, que será demarcado por maior
proporção de idosos em relação aos jovens, podendo acarretar sérios
problemas para os planos previdenciários de países nessa fase, além de
demandar uma importante reorganização dos serviços de saúde, a fim de
atender às necessidades de saúde de uma população mais idosa.

- Transição demográfica no Brasil

A transição demográfica é um dos fenômenos estruturais populacionais


importantes que têm marcado a economia e a sociedade brasileira desde a 2ª
metade do século passado. Caracteriza-se pela sua universalidade, mas é
fortemente condicionada ao contexto histórico em que se dá nos vários países.
A diferença com relação aos países desenvolvidos e sua semelhança com os
outros em desenvolvimento não esgotam a sua peculiaridade (Brito, 2008).
O notável crescimento da população brasileira a partir da década de 1950, que
ainda se prolongará na 1ª metade do século XXI, mostra com clareza 2 fases
da transição demográfica. A primeira, com um acelerado crescimento
demográfico em função do declínio da mortalidade e da manutenção da
fecundidade em um patamar extremamente alto, até a 2ª metade da década de
1960. E a segunda, quando a fecundidade começa a declinar e o ritmo de
crescimento da população inicia a sua desaceleração (Brito, 2007).
No Brasil, a transição demográfica tem sido muito mais acelerada do que nos
países desenvolvidos, sem se diferenciar, entretanto, do que têm passado
outros países latino-americanos e asiáticos. Um bom indicador tem sido o
rápido declínio da fecundidade. Comparando o Brasil com a França e a Itália,
observa-se um expressivo diferencial nas respectivas taxas de fecundidade
total, já no início do século passado, e, nos 2 países europeus, um declínio
muito mais suave nos 100 anos seguintes, sendo que as suas transições
demográficas já tinham se iniciado no século anterior (Brito, 2007).
Entre os anos 1940 e 1960, o Brasil experimentou um declínio significativo
da mortalidade, com ênfase para o coeficiente de mortalidade infantil a partir
da década de 1970. Pode-se afirmar que esse fenômeno ocorreu de maneira
desigual nas diferentes grandes regiões do país. Nos últimos anos, por
exemplo, notou-se uma queda brusca nesse indicador para as regiões Sul,
Sudeste e Centro-Oeste, ao passo que o Norte e o Nordeste ainda mantêm
números elevados.
Segundo o IBGE (1999), essa queda parece ser fortemente dependente do
modelo de intervenção na área das políticas públicas adotado principalmente
nos campos da Medicina Preventiva, Medicina Curativa e de Saneamento
Básico e, mais recentemente, na ampliação dos programas de saúde materno-
infantil, sobretudo os voltados para o pré-natal, parto e puerpério. Além disso,
houve a ampliação da oferta de serviços médico-hospitalares em áreas do país
até então bastante carentes, as campanhas de vacinação e os programas de
aleitamento materno e reidratação oral.
Curiosamente, o mesmo fenômeno não ocorreu com a fecundidade, que se
manteve em níveis bastante altos até a década de 1970 e resultou em uma taxa
de natalidade continuamente elevada, produzindo, assim, uma população
quase estável, jovem e com rápido crescimento (Figura 2). Atualmente, a taxa
de fecundidade está em queda.

Importante
No Brasil, a partir do fim da década de 1960, a redução da fecundidade
(que influencia a natalidade), que se iniciou nos grupos populacionais mais
privilegiados e nas regiões mais desenvolvidas, generalizou-se rapidamente
e desencadeou o processo de transição da estrutura etária, que levará,
provavelmente, a uma nova população quase estável, mas dessa vez com
perfil envelhecido e ritmo de crescimento baixíssimo, talvez negativo
(Carvalho; Rodríguez-Wong, 2008). Uma das principais justificativas para
a queda da taxa de fecundidade é a mudança do perfil do público feminino
perante a sociedade, passando do papel predominantemente de mãe/esposa
ao de parte da classe trabalhadora.

Carvalho e Rodríguez-Wong (2008) explicam que essa transformação implica


a diminuição, em termos relativos (e, às vezes, transitoriamente, em termos
absolutos), da população jovem. No caso do Brasil, a porcentagem de
crianças com menos de 5 anos reduziu-se, entre 1970 e 1990, de 15 para 11%.
A participação do grupo etário de 5 a 9 anos declinou de 14 para 12%. A
proporção de crianças nesses 2 grupos de idade continuou a decrescer,
chegando, em 2000, a tamanhos similares (cada um representava cerca de 9%
da população total). Complementarmente, os grupos mais velhos aumentaram
sua participação: a população de 65 anos ou mais, por exemplo, aumentou de
3,1%, em 1970, para 5,5%, em 2000.

Dica
É frequente que as provas de concursos médicos cobrem a tendência dos
principais indicadores demográficos do Brasil. De modo geral, deve-se
ressaltar que a transição demográfica ocorre devido a um aumento da
esperança de vida, do índice de envelhecimento e da população urbana, e
diminuição da taxa de fecundidade, taxa de natalidade e taxas de
mortalidade. Um indicador paradoxal com a transição demográfica do
Brasil, também frequente em provas, é o aumento da gravidez na
adolescência.

Figura 2 - Taxas brutas de natalidade, mortalidade e crescimento populacional. A chave vermelha


representa ponto de elevado crescimento populacional
Fonte: adaptado de Alves, 2008.

Tema frequente de prova


A progressão da estrutura etária no Brasil, com a passagem de um tipo de
pirâmide para outro (pirâmide invertida), é um tema frequente nos
concursos médicos.

Segundo Brito (2007), as modificações na estrutura etária do Brasil têm sido


notáveis, indicando uma aceleração do envelhecimento da população. As
pirâmides etárias, entre 1980 e 2050, mostram, no século XXI, cada vez mais,
a sua passagem de uma forma típica de um país com forte predominância de
sua população jovem (pirâmide com base larga e ápice estreito) para um novo
formato, semelhante ao dos países hoje desenvolvidos, onde a proporção de
idosos tende a superar a dos jovens (base estreitada e ápice alargado). Em um
retrato atual, esse fenômeno já pode ser visto de maneira bem mais clara
(Figura 3).
Figura 3 - Distribuição etária relativa para o Brasil
Fonte: adaptado de IBGE, 2010.

Os resultados do Censo 2010 indicaram o total de 190.732.694 pessoas para a


população brasileira em 1º de agosto, data de referência. Em comparação com
o Censo 2000, houve aumento de 20.933.524 pessoas. Esse número
demonstra que o crescimento da população brasileira no período foi de
12,3%, inferior ao observado na década anterior (15,6% entre 1991 e 2000).
Esse censo mostra, também, que a população é mais urbanizada do que há 10
anos: em 2000, 81% dos brasileiros viviam em áreas urbanas, ao passo que
agora são 84% (IBGE, 2010).
A relação entre os sexos também se modificou, uma vez que existem agora
95,9 homens para cada 100 mulheres, ou seja, existem 3,9 milhões de
mulheres a mais do que homens no Brasil. Em 2000, para cada 100 mulheres,
havia 96,9 homens. A população brasileira é composta por 97.342.162
mulheres e 93.390.532 homens. A expectativa de vida para ambos os sexos
subiu de 70 anos, em 1999, para 73,1 anos, em 2010 (IBGE, 2010).
Figura 4 - Pirâmide etária da população brasileira
Fonte: adaptado do Censo 2010. Distribuição da população por sexo, segundo grupos de idade Brasil
- 2010.

Dica
A estrutura etária atual é marcada por grande proporção de mulheres em
idade reprodutiva, o que favorece o crescimento populacional, apesar dos
baixos níveis de fecundidade atualmente prevalentes (Rodríguez-Wong;
Carvalho, 2006). Devido a isso, ainda se deve esperar um crescimento
expressivo da população brasileira nas próximas décadas, em razão dos
efeitos da fecundidade passada sobre a estrutura etária da população (Brito,
2007).

As projeções para 2050 indicam que a população brasileira será de 253


milhões de habitantes, a 5ª maior do planeta, abaixo apenas da Índia, da
China, dos Estados Unidos e da Indonésia. Da década de 1970 até a atual, a
população brasileira ainda está inserida em seu grande ciclo de crescimento
absoluto, com acréscimos médios anuais superiores a 2,5 milhões de
habitantes. Na próxima década, esses acréscimos serão ainda superiores a 2
milhões. Contudo, como previsto, as taxas de crescimento têm-se reduzido
nesse mesmo período, e espera-se que, na última década da 1ª metade desse
século, ou seja, entre 2040 e 2050, essa taxa seja menor do que 0,5% ao ano e,
na década seguinte, em torno de zero (Brito, 2007).
Importante
A transição demográfica é um dos principais fatores que acarretam a
transição epidemiológica, o que significa que o perfil de doenças da
população muda de modo radical, pois se deve aprender a controlar
primordialmente as doenças do idoso. Em um país essencialmente jovem,
as doenças são caracterizadas por eventos causados por moléstias
infectocontagiosas, cujo modelo de resolução se baseia no dualismo cura-
morte. O perfil de doenças no idoso muda para o padrão de doenças
crônicas.

Nessa situação de transição demográfica, devemos considerar a possibilidade


de compensação/não compensação. O modelo de não compensação da doença
crônica inclui maior disfunção, dependência e quedas em relação ao de
compensação (Nasri, 2008).

3. Transição epidemiológica
Entendem-se por transição epidemiológica as mudanças ocorridas no tempo,
nos padrões de morte, na morbidade e na invalidez que caracterizam uma
população específica e que, em geral, ocorrem em conjunto com outras
transformações demográficas, sociais e econômicas (Santos-Preciado et al.,
2003; Schramm et al., 2004). Essa transição pode ser dividida em 4 principais
estágios, com um 5º em potencial (Vermelho; Monteiro, 2009), conforme
demonstrado na Tabela 2.
Sob a óptica de um dos modelos de transição epidemiológica corrente, a
chamada “transição clássica das sociedades ocidentais”, durante os últimos
200 a 300 anos, os primeiros 4 estágios ocorreram quase sequencialmente nas
sociedades do Ocidente, com apenas pequenas superposições (Vermelho;
Monteiro, 2009).
Segundo Schramm et al. (2004), o processo pode ser sintetizado em 3
mudanças básicas: substituição das doenças transmissíveis por doenças não
transmissíveis e causas externas; deslocamento da carga de morbimortalidade
dos grupos mais jovens aos grupos mais idosos; transformação de uma
situação em que predomina a mortalidade para outra na qual a morbidade é
dominante.

Importante
A definição da transição epidemiológica deve ser considerada componente
de um conceito mais amplo, chamado transição da saúde, que inclui
elementos das concepções e dos comportamentos sociais, correspondentes
aos aspectos básicos da saúde nas populações humanas.

Muitos epidemiologistas compactuam com a ideia de que existe uma


correlação direta entre os processos de transição epidemiológica e
demográfica. Sabe-se que, inicialmente, o declínio da mortalidade se
concentra seletivamente entre as doenças infecciosas e tende a beneficiar os
grupos mais jovens da população, que passam a conviver com fatores de risco
associados às doenças crônico-degenerativas. À medida que cresce o número
de idosos e aumenta a expectativa de vida, as doenças não transmissíveis
tornam-se mais frequentes (Chaimowicz, 1997; Schramm et al., 2004).

- Transição epidemiológica no Brasil

No Brasil, a transição epidemiológica não tem ocorrido de acordo com o


modelo experimentado pela maioria dos países industrializados, nem mesmo
por vizinhos latino-americanos como Chile, Cuba e Costa Rica.

Importante
Há superposição entre as etapas nas quais predominam as doenças
transmissíveis e crônico-degenerativas. A reintrodução de doenças como
dengue e cólera ou o recrudescimento de outras como a malária, a
hanseníase e as leishmanioses indicam uma natureza não unidirecional
denominada contratransição. O processo não se resolve de maneira clara,
criando uma situação em que a morbimortalidade persiste elevada para
ambos os padrões, caracterizando uma transição prolongada.

Schramm et al. (2004) acrescentam que o envelhecimento rápido da


população brasileira a partir da década de 1960 fez que a sociedade deparasse
com um tipo de demanda por serviços médicos e sociais outrora restrito aos
países industrializados. O Estado, ainda às voltas em estabelecer o controle
das doenças transmissíveis e a redução da mortalidade infantil, não foi capaz
de desenvolver e aplicar estratégias para a efetiva prevenção e o tratamento
das doenças crônico-degenerativas e suas complicações, levando à perda de
autonomia e qualidade de vida (Chaimowicz, 1997).
A mortalidade por causas é o indicador que melhor caracteriza a transição
epidemiológica, embora sejam de importância as abordagens por idade e por
sexo. No Brasil, observando-se a evolução da mortalidade proporcional pelas
principais causas, pode-se ter ideia da mudança na estrutura de mortalidade
ocorrida entre 1930 e 2000 (Vermelho; Monteiro, 2009). Repare, sobretudo,
que o comportamento das doenças infecciosas e parasitárias tem mudado ao
longo das décadas, em decorrência do avanço técnico na área de Saúde, de
medidas de controle do meio ambiente e progressos na assistência à saúde. Já
as doenças crônico-degenerativas se destacam, e as doenças do aparelho
circulatório representam, desde a década de 1990, mais de 30% de todos os
óbitos (Figura 5).
Em 1980, a principal causa de morte era a decorrente de doenças do aparelho
circulatório, o que permaneceu em 2000. Dentre os 10 principais grupos de
causas, foram observadas algumas mudanças significativas no ranking entre
1980 e 2000. Uma dessas alterações é o aumento da participação das
neoplasias. Em 1980, essa causa correspondia ao 5º lugar, passando ao 3º
lugar em 2000. Outras mudanças importantes foram o aumento das mortes
por doenças do aparelho respiratório e a redução das infecciosas e parasitárias
(Brasil, 2005 – Tabela 3).

Figura 5 - Mortalidade proporcional por causas no Brasil, entre 1930 e 2009


Fonte: adaptado de Silva et al., 2003.

Em 2008, quase 60% dos óbitos estavam concentrados em causas


relacionadas com o aparelho circulatório, neoplasias e aparelho respiratório.
Causas infecciosas e parasitárias e afecções perinatais representaram, no
mesmo ano, 7,4%, o que corresponde à redução percentual de 64% em
relação a 1980. Afora as 9 maiores causas de óbitos definidas, os demais
capítulos da 10ª edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-10)
representam apenas 5,1% do total. As causas externas continuam a
representar uma importante causa de óbitos no Brasil, com aumento
expressivo de participação de algumas regiões específicas (Tabela 4).
Com relação à idade, a mortalidade proporcional em menores de 1 ano, que
representava, em 1980, cerca de 25% de todos os óbitos, em 2008 caiu para
menos de 5%, enquanto nas idades a partir de 80 anos passou de 10% para
mais de 30%. Para Vermelho e Monteiro (2009), as diferenças regionais
importantes devem ser consideradas como efeitos das crises econômicas e
sociais vividas pela população de cada região brasileira e mesmo em cada
estado e município.
Para o Brasil e todas as regiões, é evidente um pico de mortalidade entre os
homens de idades entre 20 e 29 anos que não é observado entre as mulheres.
Em 2008, os óbitos masculinos nessa faixa etária corresponderam a 7,2% do
total de óbitos de homens no Brasil: 5,8% na região Sudeste, 6,1% na região
Sul, 8,5% na região Centro-Oeste, 9% na região Nordeste e 11% na região
Norte (Brasil, 2010). Esse excesso de mortalidade entre os homens jovens
pode ser atribuído, em grande parte, aos óbitos por causas externas, que
incluem aqueles por violências e acidentes.
A substituição do padrão epidemiológico, por meio da diminuição das mortes
por doenças infecciosas, que determinou quedas drásticas dos coeficientes de
mortalidade por todas as causas, pelo padrão de morte de doenças
cardiovasculares significou ganho de anos de vida potenciais que persistem.
No entanto, para os jovens e adultos do sexo masculino, a transição não
ocorreu da mesma forma, e as grandes epidemias de doenças infecciosas e
parasitárias foram ao longo do tempo substituídas por outras, como a
violência, responsável por grande perda de vida na atualidade (Vermelho;
Monteiro, 2009).

Tema frequente de prova


A mudança do padrão epidemiológico no Brasil, com a consequente queda
das taxas de mortalidade, é tema frequente nos concursos médicos. É
comum que os concursos cobrem que a transição epidemiológica do Brasil
foi e está sendo diferente dos demais países, e tem sido definida como
tripla carga de doenças; ou seja, (1) uma agenda não concluída de
infecções, desnutrição e problemas de saúde reprodutiva; (2) o desafio das
doenças crônicas e de seus fatores de riscos, como o tabagismo, o
sobrepeso, a obesidade, a inatividade física, o estresse e a alimentação
inadequada; (3) o forte crescimento das causas externas (Mendes, 2010).
Guarde bem esse conceito de tripla carga de doenças.

4. Transição nutricional
Tanto o Brasil quanto diversos países da América Latina estão
experimentando, nos últimos 20 anos, uma transição nutricional que
acompanha as transições demográfica e epidemiológica. Chama atenção o
marcante aumento na prevalência de obesidade nos diversos subgrupos
populacionais para quase todos os países latino-americanos. Assim, a
obesidade se consolidou como agravo nutricional associado à alta incidência
de doenças cardiovasculares, câncer e diabetes, influenciando sobremaneira o
perfil de morbimortalidade das populações.
Estudos confirmam a magnitude crescente da obesidade em crianças,
adolescentes, adultos e mulheres em idade reprodutiva. Os determinantes são
o estilo de vida sedentário e o consumo de dietas inadequadas. A obesidade
deixou de ser um problema presente apenas nos países desenvolvidos,
passando a afetar cada vez mais os grupos populacionais menos favorecidos;
assim, passa a demandar intervenções e apoio governamental para a
implementação de ações claras para a promoção da saúde física, do controle
do peso e da ingesta de alimentos saudáveis.

Resumo
Introdução
As transformações sociais e econômicas ocorridas no Brasil durante
o século passado ainda provocam mudanças importantes no perfil
de ocorrência das doenças na população. Os estudiosos da
Epidemiologia acreditam que essa mudança esteja intrincada com
outros processos, sendo a modificação do perfil demográfico da
população e a evolução da Medicina diagnóstica e terapêutica os
melhores exemplos.
Transição demográfica
Com os avanços da Revolução Industrial e seus desdobramentos
educacionais, científicos e tecnológicos, foi ficando claro que o
desenvolvimento econômico produz 2 efeitos sobre a população: a)
reduz as taxas de mortalidade, em geral, e a mortalidade infantil em
particular, e possibilita o aumento da esperança de vida da
população; b) depois de certo tempo do início da queda da
mortalidade, as taxas de fecundidade também começam a cair,
provocando a diminuição do tamanho das famílias.
Transição demográfica no Brasil
A transição demográfica, no Brasil, tem sido muito mais acelerada
do que nos países desenvolvidos, sem se diferenciar, entretanto, do
que têm passado outros países latino-americanos e asiáticos. Entre
1940 e 1960, o Brasil experimentou um declínio significativo da
mortalidade, com ênfase para o coeficiente de mortalidade infantil a
partir da década de 1970. Pode-se afirmar que esse fenômeno
ocorreu de maneira desigual nas diferentes grandes regiões do país.
Nos últimos anos, por exemplo, notou-se uma queda brusca nesse
indicador para as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, ao passo que
o Norte e o Nordeste ainda mantêm concentrações
significativamente elevadas.
Transição epidemiológica
O processo de transição epidemiológica pode ser sintetizado em 3
mudanças básicas: substituição das doenças transmissíveis por
doenças não transmissíveis e causas externas; deslocamento da
carga de morbimortalidade dos grupos mais jovens aos grupos mais
idosos; transformação de uma situação em que predomina a
mortalidade para outra na qual a morbidade é dominante.
Transição epidemiológica no Brasil
No Brasil, a transição epidemiológica não tem ocorrido de acordo
com o modelo experimentado pela maioria dos países
industrializados, nem mesmo por vizinhos latino-americanos, como
Chile, Cuba e Costa Rica. Há uma superposição entre as etapas nas
quais predominam as doenças transmissíveis e crônico-
degenerativas; a reintrodução de doenças como dengue e cólera ou
o recrudescimento de outras como a malária, a hanseníase e as
leishmanioses indicam uma natureza não unidirecional denominada
contratransição; o processo não se resolve de maneira clara, criando
uma situação em que a morbimortalidade persiste elevada para
ambos os padrões, caracterizando uma transição prolongada; as
situações epidemiológicas de diferentes regiões em um mesmo país
tornam-se contrastantes. Atualmente, o Brasil sofre a chamada
tripla carga de doenças, caracterizada por: (1) agenda não concluída
de infecções, desnutrição e problemas de saúde reprodutiva; (2) o
desafio das doenças crônicas e de seus fatores de risco, como o
tabagismo, o sobrepeso, a obesidade, a inatividade física, o estresse
e a alimentação inadequada; (3) o forte crescimento das causas
externas.
Bioestatística aplicada à análise
de estudos epidemiológicos
Valéria T. Baltar
Alex Jones F. Cassenote
Marília Louvison
Marina Gemma
Lucas Primo de Carvalho Alves

1. Introdução
Você já deve ter deparado várias vezes com a seguinte frase: “Fumar causa
câncer de pulmão”. Embora a sentença tenha forte impacto, sabe-se que, do
ponto de vista epidemiológico, essa relação é falsa, uma vez que existem
pessoas que fumam e nunca desenvolverão câncer de pulmão ou qualquer
outra doença associada a esse hábito. De fato, o que existe é uma relação que
começou a ser demonstrada a partir da década de 1950 pelos famosos
trabalhos de Doll e Hill (1950-1954). Esses estudos, além de evidenciarem a
íntima relação tabaco versus câncer de pulmão, demonstraram a
correspondência entre o aparecimento da neoplasia do pulmão e a quantidade
de tabaco nos pacientes.
O pressuposto primordial para entender a discussão que será iniciada é que a
doença não surge ao acaso (aleatoriamente), ou seja, existem fatores
associados a maior ou menor frequência (prevalência ou incidência), alguns
que contribuem para o seu surgimento (fatores de risco) e outros cujo caráter
protege o indivíduo (fatores de proteção).
Para os procedimentos de análise de estudos científicos, a Epidemiologia é
servida por uma disciplina chamada Estatística, ou, mais precisamente,
Bioestatística. Segundo Pereira (2010), a Estatística é uma disciplina das
ciências formais (despida de objeto, tratando apenas de estrutura conceitual,
lógica e epistemológica do conhecimento) à qual diferentes ciências empíricas
(com objeto definido) recorrem para conhecer melhor os assuntos de seu
interesse. O prefixo “bio” para Bioestatística busca apenas dar-lhe o sentido
de aplicação às Ciências Biológicas e da Saúde, não havendo nada
conceitualmente diferente.
Em Epidemiologia, os assuntos nos quais se busca maior entendimento são as
relações que diversas variáveis do indivíduo, do tempo e do espaço
estabelecem com determinados desfechos, que, muitas vezes, são as doenças
de interesse do pesquisador, ficando explícito que o ponto central de uma
avaliação está alocado na investigação da associação e do efeito de variáveis
independentes (fatores ou variáveis de exposição) sobre uma variável
dependente (variável desfecho).
Para ilustrar essa situação, imagine o seguinte: choveu muito a noite toda e o
nível dos rios estará elevado. Existe relação direta entre as águas das chuvas e
as dos rios, ou seja, elas estão associadas. Nesse caso, seria possível, ainda,
medir a influência da variável independente (chuva) sobre a dependente (nível
dos rios) e, de certo modo, conhecer a influência que a variabilidade de uma
exerce sobre a da outra.
A associação, muitas vezes, indica que uma variável possa estar no “caminho
da causalidade” de determinado desfecho, contudo essa relação pode existir
pelo simples acaso ou por alguma distorção, como o efeito de confusão ou
algum erro sistemático. Existem, na atualidade, tratamentos adequados que
possibilitam ao pesquisador fazer essas considerações, embora outras
questões também sejam importantes para abordar em inferência causal.
Tendo em vista que a Bioestatística está servindo a Epidemiologia como uma
ferramenta aplicada, torna-se necessária a utilização de uma estrutura didática
para direcionar o leitor. Almeida Filho e Rouquayrol (2002) sugerem que as
seguintes perguntas sejam realizadas pelos interessados neste momento:

“Em que medida (com que intensidade) ocorre a doença Y?”;


“Na presença de que condições/fatores a doença Y se manifesta?”;
“Qual é a possibilidade de a associação entre a doença Y e o fator X se
dever ao acaso?”.

A organização dessas perguntas, segundo os autores, permite uma discussão


que pode ser sintetizada em 3 etapas: as medidas de ocorrência, as medidas de
associação e as medidas de significância estatística.

2. Classificação de variáveis
Podemos afirmar, de modo geral, que existem 2 funções primordiais da
estatística. A 1ª função é avaliar a magnitude da associação entre variáveis.
Variáveis são atributos que mudam de pessoa para pessoa, como cor dos
olhos, ser tabagista/não tabagista, níveis de colesterol etc. Magnitude da
associação é o quanto uma variável impacta outra. Por exemplo, ter história
familiar de dependência química de drogas de abuso (variável = história
familiar) aumenta em 7 vezes o risco (magnitude da associação) de ser
dependente químico de drogas de abuso (variável = ser dependente químico).
A 2ª grande função da estatística é avaliar o grau de erro amostral dos
resultados obtidos; ou seja, o quanto esses resultados são decorrentes da
aleatoriedade de não se trabalhar com uma população inteira teoricamente
infinita. O 1º passo para obter esses dados é utilizar um linguajar comum, que
permita a realização de testes estatísticos adequados para cada situação. Desse
modo, precisamos classificar as variáveis para a escolha do teste estatístico.
Existem 2 grandes classificações de variáveis, com funções diferentes,
explicitadas nas Tabelas 1 e 2.

Dica
Se você deparar com uma questão que pede a diferenciação entre variáveis
quantitativas ou qualitativas e ficar na dúvida, lembre-se desta dica:
variáveis quantitativas aceitam sua descrição em termos de média e desvio-
padrão. Já as variáveis qualitativas não aceitam a sua descrição dessa
maneira e precisam ser descritas em termos de porcentagem.

3. Medidas de ocorrência
Importante
Para a descrição de variáveis quantitativas contínuas e discretas, são
utilizadas as medidas de tendência central (média, mediana e moda) e de
dispersão (variância e desvio-padrão).

Medidas de ocorrência, ou frequências, são usadas para descrever variáveis


qualitativas. A frequência absoluta é a contagem das ocorrências de uma das
categorias. Para facilitar a interpretação dos resultados, as frequências
relativas (proporção de elementos que pertencem a uma categoria em relação
ao conjunto) são calculadas em termos de percentuais, assim se torna possível
a comparação dos dados.
No tratamento de variáveis quantitativas, o cálculo de frequências pode não
ser viável, visto que o número de categorias pode ser muito elevado. É
possível obter medidas de frequência quando o dado quantitativo é agrupado
em categorias. Outras medidas, como as de tendência central e dispersão, são
úteis para resumir os dados.
Um banco de dados proveniente de uma pesquisa hipotética servirá para
exemplificar a utilização dessas medidas de maneira prática. Imagine que
esses dados são oriundos de pacientes selecionados no serviço ambulatorial
de um hospital e que o objetivo dos pesquisadores era estudar a frequência de
certa lesão cardíaca. Foram avaliadas algumas variáveis do indivíduo e
realizados alguns exames laboratoriais. A presença ou a ausência da doença
foi definida por uma avaliação clínica e um exame de imagem (Tabela 3).
A - Medidas de tendência central

Entre as medidas utilizadas para sintetizar dados, encontram-se as de


tendência central, que indicam o centro de uma distribuição. As principais são
média (média aritmética), mediana e moda.

a) Média (média aritmética)

Dica
A média indica em torno de que valor as observações estão concentradas se
a distribuição for simétrica. Exemplo: média de permanência hospitalar
geral – levará em conta dias ou meses de internação, portanto,
possivelmente, a média não refletirá a realidade da permanência hospitalar.
Nesses casos, utilizar mediana ou quartis.

Trata-se de uma medida de resumo vastamente aplicada a variáveis


quantitativas. Como em medidas quantitativas o atributo é expresso com
intensidade, isso significa que a média é o valor que, multiplicado pelo
número de elementos do grupo, resulta em um total, que é o mesmo da soma
de valores de cada elemento.
A média aritmética é obtida quando se somam os valores de cada um dos
elementos (Xi) e divide-se pelo número de elementos (n), ou seja, a soma dos
valores observados dividida pelo tamanho da amostra (F1). É importante
lembrar que a média sofre a influência de valores extremos.

Toma-se, a seguir, a variável “glicose” para o cálculo de média.


Média aritmética da glicose = 120 + 264 + 172 + …/25 = 124,88
Na prática, não será encontrado nenhum indivíduo com 124,88mg/dL. Isso
ocorre porque a média é uma expectativa ou estimativa, refletindo o ponto
central da distribuição da variável.

b) Mediana

A mediana é o ponto central da distribuição, que é obtido após todas as


observações serem colocadas em ordem crescente (ou decrescente), de acordo
com o seu valor.

Dica
A mediana é o valor que divide uma sequência ordenada de dados em 2
partes iguais.

A mediana traduz o ponto de corte em que estão 50% das ocorrências (acima
ou abaixo) e pode ser obtida por meio da fórmula (F2), em que “n” se refere
ao número de observações ou tamanho da amostra avaliada.
Toma-se, novamente, a variável “glicose” para o cálculo da mediana.
PP50% = (25 + 1)/2 = 13
Sabe-se agora que o valor que corresponde ao meio da distribuição pertence
ao indivíduo 13, e a mediana se refere exatamente ao valor desse indivíduo,
120mg/dL. Repare que, para chegar ao 13º indivíduo, os dados foram
ordenados. Na prática, isso significa que 50% dos valores de glicose
existentes estão aquém e além de 120mg/dL.
Podem ocorrer situações em que o número de observações é par, ou seja, a
distribuição não tem ponto médio. Nesse caso, a média dos 2 valores centrais
resultará na mediana. Imagine que, no exemplo da Tabela 4, o último
indivíduo não existisse; a amostra total seria de 24 indivíduos, a posição
resultante seria 12,5 (24 + 1/2), e a mediana, 117,50 (120 + 115/2).
Por ser uma medida de posição, a mediana é útil em situações em que alguns
valores são muito maiores do que os demais, já que não é influenciada pelos
extremos da variável. Pereira (2010) explica que, entre os tantos percentis que
se podem considerar, além do 50 (mediana), comumente se utilizam o 25 e o
75, também chamados de 1º (Q1) e 3º (Q3) quartis.

c) Moda

Dica
A moda indica o valor que aparece o maior número de vezes na amostra
estudada.

A moda, embora seja simples, é outra medida importante de tendência central,


indicando o valor que aparece com maior frequência na amostra. Não será
necessária uma fórmula para obter a moda; basta observar o valor que aparece
com maior frequência.
A variável idade, disponível na Tabela 3, será utilizada como exemplo.
Observe que o valor mais frequente é o 28, que apareceu 4 vezes. Pode-se
afirmar, então, que a moda das idades dessa amostra é de 28 anos (Figura 1).

Figura 1 - Gráfico de barras para a variável idade (anos), mostrando que a moda é a idade de 28
anos

B - Medidas de dispersão ou variabilidade

As medidas de tendência central fornecem um resumo parcial das


informações de um conjunto de dados. A necessidade de uma medida de
variação é evidente, para que possamos, por exemplo, comparar conjuntos
diferentes de valores.

a) Variância

Importante
As medidas de dispersão ou variabilidade pertencem a outro grupo de
medidas utilizadas para resumir dados. Seu principal objetivo é indicar
quão diferentes são os indivíduos em uma amostra, isto é, como as
informações se distribuem em torno da média/mediana.

Uma das medidas que contemplam a necessidade de expressão de


variabilidade, bastante utilizada, é a variância, representada por 2 símbolos:
σ2 para população (parâmetro) (F3) e S2 para uma amostra (estimador) (F4).
O denominador “n - 1”, na fórmula F4, tem o propósito de tornar a variância
da amostra na estimativa da variância da população. Trata-se de uma correção
do grupo pelos chamados graus de liberdade, que se referem ao número de
determinações independentes (dimensão da amostra) menos o número de
parâmetros estatísticos a serem avaliados na população (Brod, 2004).

Na prática, a variância é uma medida que expressa um desvio quadrático


médio (medida do quadrado da distância do valor observado menos a média).
A unidade da variância é, portanto, o quadrado dos dados originais. Por
exemplo, para dados expressos em centímetros, a variância será expressa em
cm2.
Toma-se, novamente, a variável “glicose” para o cálculo da variância. Como
se trata de medidas provenientes de um grupo de observações, será utilizada a
fórmula F4. Os valores podem ser visualizados na Tabela 5. Seguem os
procedimentos para obtenção da variância:

1 - Calcula-se a média aritmética para a variável glicose (124,88mg/dL).


2 - Calcula-se o desvio médio para cada valor obtendo-se a diferença que
cada indivíduo apresenta em relação à média (Xi - média aritmética).
3 - Note que existem valores negativos (variaram aquém da média) e
valores positivos (variaram além da média). Esses valores tendem à
anulação quando somados. O problema é resolvido ao elevar cada um
deles ao quadrado: (Xi - média aritmética)2.
4 - O que existe, agora, é um valor de variação quadrática individual em
relação à média. A soma desses valores resulta em 34.018,64mg/dL2,
que é a soma dos quadrados geral, de todo o grupo.
5 - É necessário que esse valor seja repartido entre os indivíduos que
contribuíram. Divide-se, então, o valor pelo número de indivíduos
observados, considerando-se os graus de liberdade da amostra “n - 1”. O
resultado é uma variância de σ2 = 1.417,44mg/dL2.
Do ponto de vista prático, a variância torna-se uma medida de difícil
entendimento. O leitor pode ater-se ao fato de a variação estar expressa em
unidades ao quadrado, fenômeno que só pode existir do ponto de vista
matemático. Para dar sentido prático a essa medida, surge o conceito de
desvio-padrão.

b) Desvio-padrão

Dica
O desvio-padrão sugere uma variação aceitável dentro da amostra
analisada, indicando a distância média das observações em relação à
média.

Para resolver o problema da dimensão quadrática vinda do cálculo de


variância, deve-se calcular a raiz quadrada do resultado; o valor obtido será o
desvio-padrão (S). Com esse procedimento, recupera-se a dimensão original
da variável.
Pereira (2010) explica que o desvio-padrão sugere uma variação média da
variável analisada, uma variação esperada, uma variação que seja um padrão
de comportamento no grupo. O cálculo pode ser feito com a fórmula F5.

Aplicando-se para a variável “glicose”, o desvio-padrão resultante é S =


37,64mg/dL. Em outras palavras, em termos de variação, existe um padrão de
37,64mg/dL para além ou aquém da média de 124,88mg/dL.
S = √1.417,44 = 37,64mg/dL
Se a questão do desvio-padrão ainda estiver confusa, acompanhe a seguinte
ilustração proposta por Pereira (2010): um indivíduo vai à feira para comprar
bananas. Contudo, ele não sabe o quanto da fruta quer levar. Com o objetivo
de não errar muito, ele pergunta ao feirante qual é o número de bananas que
as pessoas, em geral, compram. O feirante responde que são, em média, 12
unidades. O cliente, pensativo, acredita que, talvez, 1 dúzia seja um número
elevado, questionando-o novamente se todos aqueles que vêm à sua barraca
levam exatas 12 unidades. O feirante responde que nem todos, alguns levam
meia dúzia, enquanto outros clientes preferem levar 1 dúzia e meia.
Note que estão intrincados, nessa ilustração, os conceitos de média (12
unidades) e de desvio-padrão (6 unidades), que podem ser comparados aos
dos cálculos aqui realizados.
A seguir, na Tabela 6, foram calculadas as medidas de tendência central e
dispersão para as variáveis quantitativas da pesquisa (Tabela 3). Repare que,
ao aplicar essas medidas, pode-se conhecer o comportamento do grupo
avaliado mesmo sem conhecer os dados originais, fato que muito facilita a
interpretação da distribuição de variáveis, que poderão ser chamadas de
fatores de risco ou proteção.
Importante
Devido ao fato de descreverem a posição do conjunto de dados e indicarem
sua variabilidade em relação ao valor central, as medidas de dispersão
auxiliam na análise da homogeneidade dos grupos em se tratando de
variáveis quantitativas, o que é relevante para a análise das diferenças
estatísticas para os diferentes grupos considerados em um estudo
epidemiológico.

Quando se trata de uma variável contínua cuja frequência de distribuição


assuma uma curva de Gauss, a média e desvio-padrão são parâmetros
necessários e suficientes para descrever a forma dessa curva. Quando
somamos 1 desvio-padrão abaixo e acima da média, isso representa que cerca
de 68% da amostra está entre esses valores; quando somamos 1,96 (ou,
arredondando, 2) desvio-padrão acima e abaixo da média, isso representa que
cerca de 95% da amostra está entre esses valores. As Figuras 2 e 3
representam esses 2 conceitos.
Figura 2 - Gráfico da função de Gauss: representação da curva, conforme modificação das variáveis
µ e σ

Figura 3 - Curva de Gauss: em laranja, 1 desvio-padrão; em azul, 2 desvios-padrão

4. Medidas de associação em estudos


epidemiológicos
No item anterior, foi apresentado como se faz uma análise básica de uma
variável quantitativa; contudo, frequentemente, o interesse do pesquisador é
medir a contribuição de um requisito para a ocorrência de determinado
desfecho relacionado à saúde. É importante relembrar que buscar associação é
diferente de afirmar causalidade etiológica.
As medidas de efeito podem ser relativas, do tipo “razão”, ou absolutas, do
tipo “diferença”. Para mensurar a magnitude da associação entre determinado
fator de exposição e quantas vezes a ocorrência da doença é maior no grupo
de expostos em relação ao de não expostos, utilizam-se as medidas de
associação do tipo razão; as medidas de diferença auxiliam na resposta de
quanto a frequência de uma doença no grupo exposto excede em relação ao
grupo não exposto, refletindo, portanto, o número de casos atribuíveis à
exposição (Kale; Costa; Luiz, 2009).
O padrão característico da análise epidemiológica consiste na análise tabular,
com variáveis dicotômicas (sim/não ou presente/ausente). Desse modo, serão
apresentadas as medidas de associação utilizadas em estudos observacionais
(transversal, de coorte e caso-controle). Para facilitar a discussão, deve-se
retomar o modelo de tabela 2x2 (Tabela 7), que representa a distribuição
conjunta das frequências das 2 variáveis estudadas.

Um dos principais objetivos de uma distribuição conjunta é descrever a


associação entre as 2 variáveis e conhecer o grau de dependência entre estas.
Por exemplo, na Tabela 7, pode-se questionar se a ocorrência da doença está
associada a dada exposição. Os valores marginais (fixando os totais das
linhas) podem ajudar na interpretação, uma vez que fica difícil analisar os
valores em forma de frequência absoluta. Desse modo, a proporção de
doentes entre os expostos e a proporção de doentes entre os não expostos
expressam a importância da exposição a determinado fator, dando-se pelas
seguintes relações:

A relação de divisão entre as proporções de indivíduos expostos e não


expostos resultará, também, nas principais medidas de associação do tipo
razão utilizadas para a análise de estudos epidemiológicos.

Dica
As medidas de associação do tipo razão funcionam como uma espécie de
quantificador de risco e apontam se um fator está associado a um desfecho,
podendo aquele ser chamado de fator de risco ou de proteção.

Segundo Luiz e Cohn (2006), o risco, do ponto de vista epidemiológico, pode


ser definido como a probabilidade de ocorrência de determinado evento
relacionado à saúde, estimado com base no que ocorreu no passado recente.
Assim, calcula-se o risco quantificando o número de vezes que o evento
ocorreu, dividido pelo número potencial de eventos que poderiam ter
acontecido. A comparação da frequência do evento entre grupos de indivíduos
expostos em relação aos não expostos retorna como um estimador de risco.
Existem 3 estimadores de uso comum nas análises epidemiológicas: Razão de
Prevalência (RP), Risco Relativo (RR) e razão de chances ou Odds Ratio
(OR). Seu uso depende de algumas situações especiais que serão apresentadas
em momento adequado; a interpretação para os 2 primeiros refere-se ao
quociente de prevalência ou incidência entre expostos e não expostos e, no
caso do OR, de chance de ocorrência da doença entre esses grupos. A
conclusão é a mesma para uns e outros e está apresentada na Tabela 8.
O resultado do estimador não pode depender apenas do seu resultado pontual,
uma vez que existem erros aleatórios que devem ser considerados. Desse
modo, um Intervalo de Confiança (IC) sobre seu resultado auxilia na decisão
de o pesquisador aceitar ou refutar a possível associação entre exposição e
doença.

Importante
Tanto na razão de prevalência quanto no risco relativo ou no odds ratio, a
interpretação dos resultados para avaliar uma associação é a mesma: >1 há
associação, = 1 não há associação, e 0 a <1 há associação entre os eventos
estudados.

Os dados dicotômicos serão organizados na tabela de contingência,


independentemente do tipo de estudo epidemiológico que os originou. Assim,
o procedimento para o cálculo de proporção de doentes entre expostos e não
expostos deve obedecer ao mesmo critério. O tipo de estudo epidemiológico
apontará a maneira como os dados da frequência de doença foram coletados,
e, dependendo desta, a frequência poderá ser denominada como prevalência
ou incidência.
A seguir, serão apresentadas as principais metodologias para estimativas de
associação em estudos epidemiológicos. O pré-requisito principal é a
compreensão das medidas de frequência.

A - Estudos transversais ou de prevalência


Dica
Nos estudos transversais, avaliam-se desfecho e exposição em dada
população em um momento específico de tempo.

Conforme já elucidado, a prevalência representa o “peso” da doença em um


momento específico de tempo. Baseia-se no número total de casos da doença
existentes na população total, mostrando, então, a proporção de indivíduos
doentes nessa população, naquele momento definido. Não mede o risco de se
desenvolver a doença (Kirkwood; Sterne, 2003).
Então, se os dados que estão sendo analisados na tabela 2x2 forem
provenientes de um estudo transversal, as proporções dadas pelas relações R1,
R2 e R3 serão chamadas de prevalência, sendo prevalência da doença entre os
expostos (relação 1), prevalência da doença entre os não expostos (relação 2)
e prevalência da doença no grupo ou população estudada (relação 3).
Seguindo a suposição de que os dados apresentados na Tabela 3 sejam
oriundos de um estudo transversal, a frequência de lesão cardíaca (desfecho)
poderá ser cruzada com a variável “hábito de fumar” (fator); podem-se, então,
calcular as prevalências dadas pelas relações já citadas (Tabela 9).

Em que:
Repare que a prevalência da lesão entre os indivíduos expostos foi de 83%,
enquanto nos não expostos se observou apenas 30%. Pode-se responder,
agora, por meio de uma medida de associação do tipo razão, o quão maior foi
essa relação. O estimador utilizado é denominado RP, uma vez que trata da
razão (divisão) entre as prevalências observadas em ambos os grupos (F6).
Segundo Coutinho, Scazufca e Menezes (2008), esse é o estimador clássico
dos estudos de prevalência.

A medida de RP aplicada sobre os dados de exposição ao tabaco e lesão


cardíaca (Tabela 9) resultou em 2,76, o que sugere que a prevalência da lesão
entre os fumantes tenha sido de 2,76 vezes (ou 1,76 vez maior) em relação
aos não fumantes. Utilizando a Tabela 8 para interpretação, pode-se
considerar que o hábito de fumar é um fator de risco para o tipo de lesão
cardíaca pesquisada.
RP = 0,83/0,3 = 2,76
Chama-se a atenção para a questão do “fator de risco”. Embora a conclusão
tenha sido a de que a exposição testada funcione dessa forma, foram
utilizados parâmetros de prevalência (suposto estudo de prevalência), que
mostra qual é a proporção de estar doente e não de tornar-se doente. Esse fato
impede, sobretudo, uma conclusão acerca do risco de se expor ao fator e
desenvolver a doença.

B - Estudos de coorte ou de incidência


Dica
Nos estudos de coorte, o fator principal a ser avaliado é a incidência do
desfecho na população estudada.

O risco (ou incidência) de uma doença é a probabilidade de ela ocorrer em um


período determinado de tempo. O risco é estimado contando-se o número de
casos novos da doença durante um período específico de tempo, dividido pelo
número específico de pessoas que, no momento inicial, eram não doentes,
porém estavam em risco de contraí-la (Kirkwood; Sterne, 2003).
Nesse caso, se os dados que estão sendo analisados forem provenientes de
estudo de incidência ou coorte, as proporções dadas pelas relações R1, R2 e
R3 serão chamadas de incidência, sendo incidência da doença entre expostos
(relação 1), incidência da doença entre não expostos (relação 2) e incidência
da doença no grupo ou na população estudada (relação 3).
Supõe-se que os dados relacionados na Tabela 10 tenham sido provenientes
de estudo de coorte. Desse modo, a medida de frequência utilizada foi a
incidência. Por exemplo, os pesquisadores suspeitam que o uso de drogas
injetáveis seja fator de risco para contrair hepatite B. Os cálculos sugerem que
a incidência do desfecho entre expostos (20%) é bem superior, quando
comparados a não expostos (5%). O estimador utilizado, agora, é denominado
RR, uma vez que trata da razão (divisão) entre as incidências (risco)
observadas nos grupos que estiveram expostos e não expostos a esse fator
(F7).

Em que:
Repare que, operacionalmente, não existe nenhuma diferença entre o cálculo
de RR e RP. Ambos se referem a uma divisão ou razão (de probabilidades),
contudo o que deve estar totalmente claro é que o RR só será utilizado quando
a medida de frequência da pesquisa for incidência (risco de tornar-se doente)
e o RP quando tratar-se de prevalência (probabilidade de estar doente).
A medida de RR, aplicada sobre os dados hipotéticos de exposição a drogas
injetáveis (Tabela 10), resultou em 4, sugerindo que a incidência de hepatite B
entre os indivíduos que usavam drogas, em relação aos que não usavam, foi
de 4 vezes. Como o estimador resultou em valor superior a 1, pode-se afirmar,
então, que se expor a drogas injetáveis oferece 3 vezes mais risco de contrair
hepatite B do que não se expor ao fator; a exposição pode, então, ser
considerada um fator de risco.
RR = 0,2/0,05 = 4

Dica
Quando se trabalha com incidência, como nos estudos de coorte, as
medidas de associação mais utilizadas são o risco atribuível, o risco
atribuível na população e a fração atribuível na população.

A interpretação do RR em estudos epidemiológicos serve para indicar a força


da associação entre o fator de exposição e a doença. Contudo, quando se
trabalha com incidência, medidas de impacto (do tipo diferença) costumam
ser utilizadas. Segundo Fletcher e Fletcher (2006), as mais comuns são o
Risco Atribuível (RA), Risco Atribuível na população (RAP) e a Fração
Atribuível na população (FAp).
O RA, por sua vez, é a subtração entre o coeficiente de incidência dos
expostos e o coeficiente dos não expostos (F8).

Importante
O risco atribuível sinaliza a parcela do risco a que está exposto um grupo
da amostra e pode ser atribuída somente ao fator estudado, excluindo
outros fatores, sendo por isso um indicador usado no planejamento dos
programas de controle de doenças, bem como na avaliação de impacto
desses programas.

Caso o objetivo seja mensurar o excesso de morbidade que se pode atribuir à


presença de um fator de risco específico na população, recomenda-se o
cálculo do RAP, que mede a margem de excesso de morbidade que há no
conjunto de uma população e é atribuível à presença de determinado fator de
risco. Para isso, é necessária uma estimativa do fator de risco na população –
Prevalência (P) ou Incidência (I) podem ser utilizadas (F9). Na prática, o
estimador mede a incidência de uma doença na população associada à
frequência de um fator de risco.

Pode-se questionar, também, a proporção da doença na população que é


atribuível à exposição; o estimador utilizado é a FAp. Para o cálculo desse
estimador, é necessário que exista o parâmetro de incidência total na
população (F10).

Esses estimadores populacionais (RAp e FAp) não são muito utilizados, uma
vez que são necessárias algumas medidas populacionais. Na prática, podem
ser úteis, porque mostram o impacto de uma exposição da óptica populacional
e, desse modo, podem ser utilizados para estimar a queda no número de casos
da doença ou desfecho, caso seja eliminado (ou neutralizado) o fator de
exposição estudado.
Já com relação aos estimadores individuais, o RR é mais usado do que o RA,
pois ressalta a força da relação em vez de medir a diferença em termos de
riscos. Por outro lado, o RA indica o excesso de risco que poderia ter sido
evitado, caso não houvesse a exposição ao fator de risco.

C - Estudos clínicos
Ao tratar-se de estudos longitudinais de intervenção (ensaios clínicos),
também se pode lançar mão dos cálculos de incidência entre expostos e não
expostos à intervenção. Contudo, como o objetivo é estimar o tamanho do
efeito do tratamento, a nomenclatura deverá ser adaptada: em vez de
incidência no grupo dos expostos (Iexpostos), utilizar-se-á incidência do
evento entre os participantes tratados com a intervenção (Rt) e, no lugar de
incidência no grupo dos não expostos (Inão expostos), toma-se a incidência
do evento no grupo-controle (Rc).
Na prática, faz-se referência ao mesmo estimador utilizado nos estudos de
coorte, com uma interpretação que se adapta à nomenclatura recém-
modificada. Um RR = 1 ocorre quando não há diferença entre grupo tratado e
grupo-controle. Se o RR é superior a 1, o risco entre os tratados supera o risco
entre os controles. Se o RR é inferior a 1, a intervenção é considerada um
fator de proteção.
Outros estimadores de efeito do tratamento são frequentemente utilizados em
estudos clínicos. A Redução do Risco Relativo (RRR), a Redução Absoluta de
Risco (RAR) e o Número Necessário para Tratar (NNT) são os mais
utilizados. Todos são construídos por meio da relação de presença do
desfecho no grupo tratado em relação ao grupo-controle (Coutinho; Cunha,
2005).
A RAR representa a redução, em termos absolutos, do risco no grupo que
sofreu a intervenção de interesse, em relação ao grupo-controle que,
operacionalmente, lembra o RA utilizado em coortes. Pode ser obtida por
meio da subtração da incidência entre o grupo-controle e o tratado (F11).
A RRR é conhecida por indicar a eficácia do estudo. Enquanto a RAR indica
a diminuição absoluta, aquele estimador refere-se à diminuição do RR em
relação ao valor de não associação entre tratamento e desfecho, ou seja, 1
(F12). No caso de o tratamento provocar aumento do risco de algum evento,
tem-se o Excesso Relativo de Risco (ERR), calculado como (RR - 1) x 100.
Um modo adicional de medir o impacto de uma intervenção que vem se
tornando popular nos últimos anos é o NNT. Essa medida representa o
número de pacientes que é preciso tratar para se prevenir um evento
indesejado (como morte ou recaída). O NNT é calculado como o inverso da
RAR.

Raramente se encontra um NNT próximo a 1, o que refletiria uma intervenção


extremamente benéfica. A interpretação do NNT deve sempre ponderar o
tempo de seguimento, isto é, durante qual período o número de pacientes deve
ser tratado a fim de alcançar o benefício. Para os ensaios clínicos preventivos,
pode-se citar o NNS (Number Needed to Screen – número necessário para
rastrear). Benseñor e Lotufo (2005) mencionam o NNEC – número necessário
para causar efeito colateral – como derivação do NNT.

D - Estudos caso-controle

Dica
Nos estudos caso-controle, não são utilizadas medidas de frequência. Nesse
caso, o estimador de associação utilizado é o odds ratio (que é uma razão
de chance, e não probabilidade).

Nos estudos caso-controle, não se trabalha com nenhuma medida de


frequência, visto que os pacientes são incluídos de acordo com a presença ou
não do desfecho. Geralmente, são definidos um grupo de casos (com o
desfecho) e outro de controles (sem o desfecho) e avalia-se a exposição (no
passado) a potenciais fatores de risco neles.
Repare que existe uma peculiaridade na tabela de contingência. Em se
tratando de estudos caso-controle, não há valores marginais das somas de “a +
b” e “c + d”. Isso ocorre devido a tal soma não ter sentido prático, uma vez
que os casos já têm a doença e os controles não, por isso as medidas de
frequência (prevalência ou incidência) também não têm utilidade (Tabela 11).
Apesar de não serem estimadas diretamente as incidências ou prevalências da
doença (desfecho) entre expostos e não expostos em estudos caso-controle, é
possível obter uma medida que se aproxime da razão dessas incidências (RR)
ou prevalências (RP) por meio de uma adaptação do estimador chamado odds
ratio.
Alguns epidemiologistas referem-se ao OR como “razão de chances”, “razão
de produtos cruzados” ou, ainda, “razão de odds”. Em vista disso, optou-se
por ficar com o termo original, odds ratio.
Na prática, a chance de observar casos expostos ao fator de risco (R4) sobre a
chance de observar controles expostos ao fator (R5) resulta no OR (F14). A
interpretação do estimador é similar à utilizada em RR ou RP; contudo, agora,
deve-se falar em “chance”. Assim, se a exposição ao fator for a mesma para
casos e controles, o OR valerá 1, indicando que o fator não está associado à
doença; acima de 1, significará que as chances de doença entre os expostos
são mais elevadas em relação aos não expostos; abaixo disso, se poderá
afirmar que as chances de doença entre os expostos são menores em relação
aos não expostos.

Em que:
Serão utilizados como exemplos os dados da Tabela 10, supondo que sejam
provenientes de estudo caso-controle e, assim, não existam medidas de
frequência. A suposição dos investigadores permanece a mesma, ou seja,
deseja-se verificar se o fator “uso de drogas injetáveis” está associado ao
desenvolvimento de “hepatite B”. As relações de chance resultam em:

Verificou-se que o OR para essa situação foi 4,7, ou seja, a chance de


exposição a drogas injetáveis entre os casos foi de 4,7 vezes em relação aos
controles, fato que indica que esse fator pode ser considerado de “risco” para
contrair hepatite B.
OR = 4/0,84 = 4,7
Note que o valor de OR = 4,7 está próximo do RR calculado anteriormente
(RR = 4). Isso ocorreu porque a incidência da doença foi relativamente baixa,
de 12,5%. Essa aproximação refere-se a um fenômeno comum quando os
eventos são raros e é possível até mesmo inferir risco, nesse caso. Porém,
quando a frequência da doença se eleva, esses 2 valores tendem a ficar bem
distintos e, então, interpretar OR como RR pode levar a grandes prejuízos na
inferência.
Devido à popularidade e à facilidade do uso de regressão logística (modelo
múltiplo) para controlar os chamados fatores de confusão, o OR tornou-se
muito popular, sendo comumente utilizado em estudos transversais, clínicos e,
até mesmo, de coorte. Nessa perspectiva, a limitação dada pela frequência do
desfecho sempre deverá ser levada em conta.
Importante
As medidas de associação baseadas em razões (risco relativo e odds ratio)
fornecem dados sobre a força da associação entre o fator em estudo e o
desfecho, permitindo um julgamento sobre uma relação de causalidade.
Assim, risco relativo e odds ratio são as medidas de escolha para estudar
os possíveis determinantes das doenças, frequentemente utilizadas em
estudos de coorte e caso-controle, respectivamente.

Medidas como a RRR e o NNT auxiliam na avaliação de estudos de


intervenção. Por outro lado, medidas como o RA e suas frações populacionais
apresentam uma perspectiva de saúde pública e planejamento de ações de
saúde, uma vez que são fundamentais para que se possam avaliar o impacto
de um fator de risco sobre uma população e as possíveis repercussões de sua
remoção. Enfim, essas medidas de associação com suas características
específicas são instrumentos essenciais para a realização de estudos
epidemiológicos analíticos (Wagner; Callegari-Jacques, 1998).

5. Variáveis de confusão
As medidas de associação discutidas até aqui são chamadas brutas, pois não
consideram outras variáveis. Apesar de todos os cuidados metodológicos,
essas medidas não terão maior validade para confirmação ou refutação da
hipótese básica, caso não seja ponderada a influência de outras variáveis
capazes de confundir ou modificar a associação investigada.
Uma necessidade básica é verificar se as características entre o grupo exposto
e o não exposto são similares em relação a outros fatores/variáveis que
possam influenciar a variável de interesse (desfecho). Dessa maneira, além
dos cálculos mencionados, muitos estudos optam por estimar as medidas de
associação corrigidas ou “ajustadas” por essas variáveis que podem
influenciar os resultados (variáveis de confusão). Uma maneira simples de
verificar os fatores de confusão é o uso da análise estratificada por níveis dos
fatores de confusão. Outra forma é o uso de modelos de regressão múltiplos
incluindo esses fatores como covariáveis.
A variável de confusão está associada tanto à variável de exposição quanto ao
desfecho (Figura 4). Então, para que os coeficientes não sejam influenciados
por essas relações, é importante garantir que os grupos de expostos e não
expostos estejam equilibrados em relação a essas variáveis de confusão,
justamente o que estudos randomizados tentam fazer.
Figura 4 - Efeito da variável de confusão

Um exemplo simples para entender o efeito de uma variável de confusão


poderia ser explicado pela seguinte situação: um pesquisador verifica que
existe maior frequência de doentes de câncer de pulmão entre indivíduos que
fumam cigarros (tabaco) e tomam café. O hábito de fumar está, de fato, na
cadeia de causalidade do câncer de pulmão; contudo, o de tomar café pode ter
surgido como uma variável de confusão, não estando realmente associado ao
câncer, e sim ao hábito de fumar. Na verdade, a frequência de pessoas que
bebem café entre aquelas que fumam é bem elevada.
Helena et al. (2005) realizaram um estudo de coorte com apresentação de
3.812 nascidos vivos, entre os quais ocorreram 31 óbitos neonatais. As
variáveis de exposição foram agrupadas por 4 blocos de risco:
sociodemográfico, assistência ambulatorial, assistência hospitalar e risco
biológico. Observou-se um OR bruto de 1,98, sugerindo que a maior
frequência do desfecho estava relacionada ao fato de as mães apresentarem
idade inferior a 20 anos (Tabela 12).
Observe a última coluna da Tabela 12, OR ajustado. No cálculo do OR, foram
usados como variáveis de confusão os componentes sociodemográfico,
ambulatorial, hospitalar e biológico. Após o ajuste, os pesquisadores
observaram que o OR diminuiu de 1,98 (valor bruto) para 1,07. Logo, é mais
provável que a verdadeira associação entre a idade materna e a mortalidade
neonatal seja de 1,07. O ajuste, na prática, proporciona correção e, desse
modo, inferência mais adequada.

6. Aplicação da estatística em estudos


epidemiológicos
Caso uma associação tenha sido identificada (há evidências suficientes) com
as medidas de associação discutidas (RP, RR e OR) até aqui, ainda é
necessário determinar o tipo de associação estatística: se foi uma associação
por artefato (viés) ou uma associação verdadeira (entende-se como verdadeiro
o que é plausível acontecer, ou seja, as evidências mostram isso com uma
probabilidade de erro tolerável).
A associação significativa, do ponto de vista estatístico, entre uma exposição
e uma doença é condição necessária para se falar em causalidade. Desse
modo, responde-se à última das perguntas apontadas por Almeida Filho e
Rouquayrol (2002): “Qual é a chance de que a associação entre a doença Y e
o fator X se deva ao acaso?”. O papel do teste é tentar descartar o acaso como
possível explicação para o resultado observado (distinguir diferenças causais
e diferenças reais). Logo, todo teste estatístico tem como resultado um
número que sinaliza a probabilidade de a associação ter ocorrido devido ao
acaso.
Variação randômica, indeterminada, resulta da dispersão inerente de qualquer
medida. É a contribuição do acaso que interfere nas observações de doentes e
não doentes, expostos e não expostos. As formas objetivas para expressar os
erros aleatórios são o valor de p e do IC. Os cálculos matemáticos ou as
consultas às tabelas já não são mais necessários, pois programas estatísticos
executam essas tarefas facilmente.

A - Teste de hipótese
O uso da estatística para testar hipóteses é a maneira pela qual se verifica se o
que acontece na amostra é suficiente para rejeitar uma hipótese de nulidade
(H0, todos são iguais, não há diferença, e a razão de riscos/chances é igual a
1) e substituí-la por uma hipótese alternativa (Ha) que afirme que há
diferença, associação ou aumento/diminuição do risco.

Importante
Deve-se considerar que um teste de hipóteses não é um cálculo ou uma
conta. Há uma proposta que se refere ao fato de orientar a tomada de
decisão de aceitar ou rejeitar uma possível associação.

Existem diversos testes estatísticos nos quais se utiliza a estratégia do teste de


hipótese para a tomada de decisão. Serão apresentados, ainda neste capítulo,
alguns testes estatísticos e suas hipóteses: nula e alternativa.
Um teste de hipóteses pode ser facilmente entendido quando se faz referência
a um julgamento criminal por júri popular, exemplo proposto por Pereira
(2010). A hipótese nula é a presunção de inocência (princípio constitucional:
Art. 5º, inciso LVII). Para alguém ser considerado culpado, há de se provar
que ele(a) não é inocente. Os erros possíveis são condenar alguém que é
inocente, equivalente a rejeitar a hipótese nula (inocência) quando, na
verdade, a pessoa é inocente: erro de rejeição, cuja probabilidade é alfa; e
absolver alguém que é culpado, equivalente a aceitar a hipótese nula
(inocência) quando, na verdade, a pessoa é culpada: erro de aceitação, cuja
probabilidade é beta (Figura 5).
Inicialmente, para examinar a distribuição de probabilidades, parte-se da
suposta verdade, que seria a presunção da inocência. Atribuindo a essa
condição o valor 0 (H0 – linha azul), em torno dele, tem-se uma distribuição
em que se representa a condição de culpado como valor positivo (Ha – linha
vermelha). Pequenos valores positivos podem ser considerados variação
aleatória, e grandes valores positivos podem ser tidos como maior evidência
de culpa, ou seja, será refutada H0 e aceita Ha.
Figura 5 - Aplicação de um teste de hipótese
Fonte: adaptado de Pereira, 2010.

Na prática, poder-se-ia pensar nesses valores positivos como o número de


provas que a acusação apresenta contra o réu e que evidenciam que este
cometeu o crime. Um número satisfatório mudaria sua condição de inocente
(H0) para culpado (Ha). Na prática, nos testes estatísticos, o que será
analisado é a distribuição de frequência e, em seguida, de probabilidade dos
valores da variável. Alguns dos testes estarão baseados na média e no desvio-
padrão desses valores, ao passo que outros tomarão a variância, ou tantos
outros, parâmetros estatísticos existentes.

B - Nível de significância de um teste

É a probabilidade máxima de se rejeitar H0. Se, por exemplo, utiliza-se o


nível de significância de 5%, a hipótese nula (H0) será rejeitada somente se o
resultado da amostra for tão diferente do valor suposto que uma diferença
igual ou maior ocorreria com probabilidade máxima de 0,05.
Desse modo, o valor de p é a probabilidade de se encontrar o resultado
observado, caso a hipótese nula seja verdadeira; isto é, caso se realize um
estudo cujo resultado seja um risco relativo = 5, com um valor p = 0,01, isso
significa que há 1% de probabilidade de encontrar um risco relativo de 5, se a
hipótese nula for verdadeira. Logo, como essa probabilidade é muito baixa
(menor que 5%), pode-se rejeitar a hipótese de nulidade e aceitar a hipótese
alternativa. É um erro afirmar que o valor p é a probabilidade de acaso ou a
probabilidade de que H0 seja verdadeira. Como se pode notar, esse é um
conceito complexo de ser explicado e, por isso, muitos livros de
Epidemiologia acabam simplificando a definição para melhor entendimento.
Assim, algumas questões podem cobrar o conceito de forma equivocada.
Importante
A verdadeira definição do valor de p é a probabilidade de se encontrar o
resultado observado, caso a hipótese nula seja verdadeira. De forma
equivocada, porém condizente com erros em livros clássicos de
Epidemiologia, algumas questões podem cobrar que o valor de p também
pode ser considerado a probabilidade de acaso ou a probabilidade de a
hipótese nula ser verdadeira.

De forma arbitrária, habitualmente se define um nível de significância de 1


em 20 (expressado como alfa = 0,05, ou seja, a decisão é tomada
comparando-se p com alfa; se p <alfa, então se rejeita H0).
Medidas de associação com p ≤0,05 indicam que a probabilidade de se
encontrar a associação observada, caso a hipótese de nulidade seja verdadeira,
é menor do que 5% (rejeitando H0 e substituindo-a por Ha).
Medidas de associação com p >0,05 indicam que a probabilidade de se
encontrar a associação observada, caso a hipótese de nulidade seja verdadeira,
é maior do que 5% (sugerindo que não há evidência de que H0 seja falsa,
então esta não deve ser substituída).
Portanto, há significância estatística quando o valor de p é menor do que o
nível de significância (o erro que está disposto a tolerar) adotado. Apesar da
menor frequência, são usados, ainda, níveis de significância de 0,1 e 1%, o
que implica valores de p menores do que 0,001 (precisão 99,99%) e p = 0,01
(precisão de 99%).

C - Intervalo de confiança

Importante
O intervalo de confiança define os limites inferior e superior de um
conjunto de valores com certa probabilidade de conter o valor verdadeiro,
na população, da medida analisada.

Segundo Coutinho e Cunha (2005), a cada 2 anos somos expostos aos


resultados das pesquisas eleitorais sobre as preferências dos eleitores. O
percentual de votos de cada candidato é apresentado sempre seguido da
seguinte informação: “a margem de erro da pesquisa é de 2% ou de 3%”. Isso
significa que, sempre que fazemos uma pesquisa, seja eleitoral, seja um
estudo epidemiológico, utilizando uma fração da população, existe certo grau
de incerteza sobre o real valor da estimativa que está sendo feita.
O IC define os limites inferior e superior de um conjunto de valores que tem
certa probabilidade de conter, no seu interior, o valor verdadeiro do estimador
de risco que se analisa. Desse modo, o processo pelo qual um IC de 95% é
calculado é tal que ele tenha 95% de probabilidade de incluir o valor real do
estimador de risco (Coutinho; Cunha, 2005). Assim, pode-se dizer que IC é
outra forma de quantificar a incerteza na mensuração, habitualmente relatado
como “IC de 95% (IC95%)”, correspondente a um alfa (nível de
significância) de 0,05 ou 5%. Para o cálculo dessas estimativas, utiliza-se uma
distribuição amostral de probabilidade.
Na aplicação do IC para os estimadores de risco RR, OR ou RP, se o IC
incluir o valor 1 (unidade), não se rejeita a hipótese H0, ou seja, existe a
possibilidade de a associação entre a exposição e o desfecho ter ocorrido por
acaso (afinal, o resultado da medida de associação pode ser = 1). Em
contrapartida, quando se menciona que o IC95% não inclui a unidade, isso
corresponde a afirmar que p ≤0,05. Na Tabela 13, verifica-se que a exposição
à onicofagia não está associada à infecção por Toxocara sp. quando existe
hábito de lavar as mãos antes das refeições, pois para ambas as categorias
(expostos e muito expostos) a unidade 1 está incluída no IC de 95%,
diferentemente do que ocorre com a variável geofagia, em que, para ambas as
categorias, o IC inferior é superior à unidade 1, reforçando que se trata de um
fator de risco para a doença.
Dica
Se o intervalo de confiança inclui o valor 1, não se rejeita a hipótese de
nulidade, o que indica que não há associação entre exposição e desfecho.
Caso não se inclua o valor 1, isso significa p ≤0,05, por isso se pode inferir
uma associação.

Deve-se refletir que um IC95% “estreito” (exemplo: 2 a 2,5), obtido


geralmente em amostras grandes, mostra maior confiança e precisão. Já um
IC95% amplo (1,5 a 5,7) sugere menor precisão, decorrente de amostra
possivelmente pequena para avaliar a associação em estudo. Os cálculos para
ICs também são feitos pelos pacotes estatísticos e podem ser usados para
avaliar diferenças entre médias (variáveis quantitativas) ou entre proporções
(variáveis qualitativas).
Na Figura 6, observa-se um exemplo de estimativa de média e IC para idade
(dados provenientes da Tabela 3). O IC pode ser útil para responder à seguinte
questão: indivíduos afetados pela lesão cardíaca têm idade igual à dos não
afetados? Quando se observa o IC, nota-se que existe sobreposição desses
intervalos, portanto, não se pode concluir, com base no gráfico, que esses
grupos apresentam médias estatisticamente iguais ou diferentes. Assim,
precisará ser realizado algum teste estatístico para calcular a significância da
diferença entre os 2 ICs. Na Figura 7, apresenta-se a estimativa de IC para a
média de colesterol. Nesse exemplo, observa-se que a média no grupo de
indivíduos em que os pesquisadores detectaram lesão no miocárdio é
nitidamente mais elevada do que no grupo sem lesão (média de
aproximadamente 300mg/dL no grupo com lesão e de cerca de 200mg/dL no
grupo sem lesão). Ao verificar os ICs, verifica-se que não existe
sobreposição, então certamente essas médias não são iguais do ponto de vista
estatístico.

Figura 6 - Estimativa de médias e intervalos de confiança para idade em grupo de indivíduos com e
sem lesão no miocárdio
Figura 7 - Estimativa de médias e intervalos de confiança para colesterol em grupo de indivíduos
com e sem lesão no miocárdio

Importante
Quando estamos inspecionando os intervalos de confiança entre 2 ou mais
grupos, 2 situações podem ocorrer:

1 - Os intervalos de confiança não se cruzam. Nesse caso, podemos


afirmar que existe uma diferença estatisticamente significativa entre os
grupos.
2 - Os intervalos de confiança se cruzam. Nesse caso, não podemos
afirmar se existe ou não uma diferença estatisticamente significativa
entre os grupos. Precisaremos, então, lançar mão de um teste estatístico.

D - Algumas considerações sobre os testes de hipóteses

Vários testes estatísticos são bastante comuns na área médica. Todos fazem
uso de uma estatística e de sua respectiva distribuição amostral. O
procedimento geral do teste de hipóteses pode ser resumido nos seguintes
passos (Bussab; Morettin, 1987): Escolha do parâmetro e da hipótese a ser
testada. Por exemplo, toma-se como hipótese nula (H0) que não haja
diminuição do peso após certa dieta. Então, diferença de peso, θ = 0. Como
hipótese alternativa (Ha), tem-se o que se deseja mostrar (diferença de peso
negativa), ou seja, há redução de peso após a dieta, <0;
Escolha de amostra aleatória de indivíduos dessa população que farão a dieta
e terão os pesos avaliados pré e pós-dieta, com intuito de refutação de H0. A
hipótese Ha pode ser de 3 tipos, dependendo do que se busca mostrar: >, < ou
≠;
Qualquer decisão a ser considerada com relação à rejeição ou não de H0 está
sujeita a erros, e, para facilitar o entendimento, definem-se os seguintes:

Erro tipo I (probabilidade de erro tipo I = alfa): é visto como o mais


grave, pois é o que rejeita H0 quando H0 é verdadeira. É o que considera
culpado um inocente, que aponta que há uma diferença quando ela não
existe. Esse erro é chamado de “nível de significância”;
Erro tipo II (probabilidade de erro tipo II = beta): é o erro de não rejeitar
H0 quando ela é falsa. Esse erro é considerado menos grave por manter a
hipótese de nulidade, por não encontrar evidências para colocar na
cadeia um culpado, por não afirmar uma associação quando ela na
verdade existe. O complemento da probabilidade desse erro é chamado
de “poder do teste” (poder = 1 - beta).

A decisão do teste é tomada com base em uma estatística θ obtida de uma


amostra. Essa estatística e sua distribuição são usadas para construir uma
região crítica. Ou melhor, com o valor que é observado e sua distribuição em
torno desse valor, verifica-se qual é a probabilidade de H0 ainda ser
verdadeira (considerando o que foi observado). Se essa probabilidade for
inferior à probabilidade de rejeitar-se H0, dado que H0 é verdadeira, não
existe razão para manter H0, passando-se a considerar Ha como a mais
plausível.

E - Testes estatísticos mais utilizados em


Epidemiologia

A Figura 8 apresenta um fluxograma esquemático sobre os testes estatísticos


mais utilizados em Epidemiologia, e o texto que segue explica-os
individualmente.
Figura 8 - Fluxograma esquemático para escolha dos testes estatísticos mais utilizados em
Epidemiologia

a) Para uma média populacional (variância conhecida) ou


uma proporção

Suponha que se deseja verificar se a média de peso de recém-nascidos de uma


cidade não é considerada baixa. Montam-se, então, as seguintes hipóteses:
H0: µ = 2.500g versus Ha: µ >2.500g (considerando uma variância
conhecida, definida em um estudo anterior). Nesse caso, testa-se a média de
peso. Ou suponha que se queira verificar se a prevalência de bebês nascidos
com baixo peso não supera 5%, mudando-se, então, as hipóteses para a
seguinte forma: H0: p = 0,05 versus Ha: p >0,05. Nesse caso, testa-se a
prevalência de bebês nascidos com peso inferior a 2.500g.
Em ambos os casos, a distribuição das estimativas da média (com variância
conhecida) e da proporção é considerada normal. Por isso, o teste indicado é o
Z (utiliza a distribuição normal padrão, conhecida como Z).

b) Para uma média populacional (variância desconhecida)

Suponha que se deseja verificar se a média de peso de recém-nascidos de uma


cidade não é considerada baixa, montando-se, então, as seguintes hipóteses:
H0: µ = 2.500g versus Ha: µ >2.500g, porém não existe nenhuma informação
sobre a variância dos dados. Nesse caso, é preciso estimar, com base na
estatística S2, a variância amostral.
Quando há necessidade de estimar a variância com base na amostra, a
distribuição Z é substituída pela t de student – para o uso dessa distribuição, é
preciso definir o número de Graus de Liberdade (GLs); como se calcula S2 e
perde-se 1 grau, o número é o tamanho da amostra menos 1; GL = n - 1.

c) Para comparação de 2 médias de populações com


distribuição normal

Se o objetivo é testar a hipótese de que, por exemplo, a média de peso de


recém-nascidos de uma cidade não é igual à de outra cidade, montam-se as
seguintes hipóteses: H0: µ1 = µ2 ou µ1 - µ2 = 0 versus Ha: µ1 ≠ µ2 ou µ1 -
µ2 ≠ 0. Nesse caso, será preciso calcular as 2 estimativas de variância, 1 para
cada amostra respectiva de cada cidade. Então, têm-se S12 e S22 e,
consequentemente, n1 - 1 + n2 - 1 (GL = n1 + n2 - 2) GLs.
Nesse teste se utilizará, então, a distribuição t de student com GL= n1 + n2 -
2. Os softwares estatísticos calculam o valor de p do teste considerando 2
situações, a primeira com 2 variâncias desconhecidas, porém iguais, e a
segunda com 2 variâncias desconhecidas e diferentes. Para testar essas
variâncias, o software calcula uma estatística F (Snedecor) que, quando o
valor de p é muito pequeno, significa que as variâncias não podem ser
consideradas iguais (rejeita-se a hipótese de igualdade de variâncias).

d) Para comparação de mais de 2 médias de populações


com distribuição normal

Se a necessidade é testar a hipótese de que, por exemplo, a média de peso de


recém-nascidos entre mais do que 2 cidades difere, o teste t de student deixa
de ser uma opção. Nesse caso, têm-se várias amostras independentes, e a
análise mais apropriada é a de variância (ANOVA), com um fator (no
exemplo, o fator cidade). As hipóteses são:
H0
Se H0 é rejeitada, há evidências de que pelo menos 1 par de comparação de
médias difira. Para controle do nível de significância, ao rejeitar-se H0, são
feitas as comparações múltiplas, entre pares de médias, considerando alguma
correção. A mais usual é a de Bonferroni, que indicará os pares que diferem
(um valor de p para cada par de comparação, corrigido para manter o nível de
significância geral em alfa).

e) Teste de associação para tabela de contingência

No caso da Tabela 3, como verificar se há relação entre a variável exposição e


a ocorrência da doença? Para esse caso, há a possibilidade de calcular um
valor esperado para cada célula, sob hipótese de independência. Se esses
valores forem muito distantes do que se observa na Tabela, então há razão
para rejeitar a hipótese de independência e substituí-la pela de associação
entre as variáveis. Para isso, utiliza-se uma estatística chamada “qui-
quadrado”, que tem o seu valor de p comparado com o nível de significância
estipulado; mais uma vez, quando esse valor é inferior ao tolerável, há
evidências para se rejeitar H0.
Esse pode ser interpretado, também, como um teste de proporções. Por
exemplo: se existem 2 ou mais categorias de exposição e a ocorrência ou não
de uma doença, é possível calcular o percentual de doentes em cada categoria
de exposição, e o resultado do teste dirá se há alguma categoria de exposição
que não apresenta um percentual similar ao esperado sob hipótese de
independência. A distribuição “qui-quadrado” (χ 2) é aproximada, e é preciso
tomar certo cuidado: todas as células devem ter, pelo menos, 1 valor esperado
de 5. Caso isso não aconteça, é preciso usar o teste exato de Fisher (ambos
são facilmente calculados em qualquer software estatístico).

f) Testes pareados

O teste t de student e a análise ANOVA podem ser usados para comparação


de médias entre amostras dependentes, ou seja, para comparação pré e pós, ou
para comparação entre 3 ou mais momentos. Para tanto, é preciso optar pelo
teste t de student pareado ou pela ANOVA com medidas repetidas.

g) Correlações (Pearson e Spearman)

Algumas vezes, o pesquisador não está interessado em avaliar diferenças de


médias entre 2 ou mais grupos (por exemplo: média de pressão arterial entre
quem tomou algum anti-hipertensivo ou placebo) ou diferenças de proporções
entre 2 ou mais grupos (por exemplo: mortalidade entre quem usou ácido
acetilsalicílico ou placebo após sofrer infarto agudo do miocárdio). Em
contrapartida, o pesquisador quer correlacionar 2 variáveis numéricas como
Índice de Massa Corpórea (IMC) e Pressão Arterial (PA), para verificar se o
aumento do IMC acompanha o aumento de PA.
Nesse caso, o teste estatístico apropriado é realizar uma correlação de Pearson
(caso os dados tenham uma distribuição normal) ou de Spearman (caso os
dados não tenham uma distribuição normal). Em ambos os casos, as
correlações geram resultados cuja interpretação é a mesma. A correlação de
Pearson gera um coeficiente r, e a de Spearman gera um coeficiente ρ (letra
grega “Rô”), cujo valor varia de -1 a 1. Em ambos os testes, um coeficiente de
valor 1 representa uma correlação positiva perfeita (ou seja, no exemplo
citado, a cada aumento de IMC haveria um aumento de PA previsível e sem
erro); já um coeficiente de valor -1 representa uma correlação negativa
perfeita (a cada aumento de IMC, haveria uma diminuição de PA previsível e
sem erro).
Um coeficiente igual a zero significa que não há correlação entre as 2
variáveis. Os valores intermediários significam que haja uma tendência de
correlação, mas que não é perfeita; ou seja, outras variáveis não mensuradas
também devem influenciar o desfecho. Esses valores estão ilustrados na
Figura 9. Por convenção, estipulou-se que um coeficiente (r ou rô) >0,9 é uma
correlação muito forte; entre 0,7 e 0,9, forte; entre 0,5 e 0,7, moderada; entre
0,3 e 0,5, fraca; 0,3 a 0, desprezível. Além disso, quando os coeficientes são
elevados ao quadrado, esse número representa o quanto uma variável impacta
outra. Por exemplo, caso a correlação entre IMC e PA seja de 0,5, isso
significa que o IMC é responsável por 25% do aumento de PA entre os
indivíduos, pois 0,52 = 0,25 (Field, 2009).

Figura 9 - Correlações entre variáveis numéricas ilustradas em gráficos

h) Regressões

As regressões são utilizadas quando se deseja associar uma variável a um


desfecho por meio de uma função matemática. Dito isso, é natural que haja
uma infinidade de regressões possíveis, com diferentes finalidades, visto que
existem inúmeras funções matemáticas. Algumas regressões são mais
conhecidas, como a linear simples, uma função que pode ser escrita y = ax +
b, em que y é o desfecho (ou variável dependente), x é o fator em estudo (ou
variável dependente), b é uma constante e a é um parâmetro da regressão. Por
exemplo, a correlação mencionada no item anterior, entre IMC e PA, pode ser
expressa também em uma regressão linear simples, em que, à medida que se
aumenta x (IMC), aumenta-se y (PA).
Em alguns casos, o desfecho pode ser categórico (por exemplo, morrer ou não
morrer), em vez de numérico, como na regressão linear. Nesse caso, podem-se
utilizar outros modelos de regressão, como a logística. A regressão logística
também faz parte das regressões multivariáveis (ou multivariadas), em que se
pode construir, em 1 único modelo, diversas variáveis, culminando em um
desfecho. Por exemplo, por meio da regressão logística, pode-se construir
uma função matemática que calcule o risco de sofrer um evento
cardiovascular (desfecho, y) por meio das variáveis tabagismo, colesterol,
diabetes, pressão arterial, sexo e idade (fator em estudo, x).
Esse mesmo raciocínio, de avaliar diversas variáveis implicando um desfecho,
também pode ser aplicado quando o desfecho é contínuo (por exemplo:
pontuação em uma escala de depressão) e queremos saber que variáveis
podem influenciá-lo. Nesse último caso, a regressão utilizada poderia ser a
linear múltipla (Field, 2009). Para fins de prova de concursos médicos, as
informações mais necessárias são: saber o que é uma regressão e o que
significa uma regressão multivariável. Elas são utilizadas, por exemplo, para
controles de fatores de confusão após os dados serem coletados.

i) Teste de kappa

Para descrever a intensidade da concordância entre 2 ou mais juízes, ou entre


2 métodos de classificação (por exemplo, 2 testes de diagnóstico), utiliza-se
da medida kappa, baseada no número de respostas concordantes, ou seja, no
número de casos cujo resultado é o mesmo entre os juízes/testes.
O kappa é uma medida de concordância interobservadora e mede o grau de
concordância além do que seria esperado tão somente pelo acaso. Essa
medida de concordância tem como valor máximo 1, que representa total
concordância, e os valores próximos e até abaixo de zero indicam nenhuma
concordância, ou a concordância foi exatamente a esperada pelo acaso. Um
eventual valor de kappa <0 (negativo) sugere que a concordância encontrada
tenha sido menor do que aquela esperada pelo acaso. Sugere, portanto,
discordância, mas seu valor não tem interpretação como intensidade de
discordância.
Para avaliar se a concordância é razoável, faz-se um teste estatístico para
avaliar a significância do kappa. Nesse caso, a hipótese testada é se o kappa =
0, o que indicaria concordância nula, ou se ele é >0, concordância maior do
que o acaso (H0: k = 0; H1: k >0). Um kappa com valor negativo, que não
tem interpretação cabível, pode resultar em um paradoxal nível crítico (valor
de p) >1.

7. Erros sistemáticos
Outro tipo de erro possível é o sistemático, também chamado viés ou bias.
Como o próprio nome aponta, trata-se de uma variação sistemática, com certo
grau de conhecimento, resultado de desvios no momento do delineamento ou
da condução (coleta e análise de dados) do estudo, produzindo um resultado
que tende a ser diferente do resultado real do efeito da exposição sobre o
desfecho. O contraponto do viés é a validade.
Hennekens e Buring (1987) comentam que há várias formas de categorizar e
nomear os diferentes tipos de vieses, que podem provocar distorções na
associação da exposição ao desfecho. Esses vieses variam, inclusive, com o
desenho metodológico adotado. Existem 3 grandes grupos de classificação de
vieses: seleção, aferição e confusão; a diferença entre eles é o momento do
estudo em que ocorre. A Figura 10 ilustra, como exemplo, um ensaio clínico
randomizado, apresentando em quais momentos os vieses acontecem.

Figura 10 - Principais classificações de vieses e o momento em que eles podem ocorrer, em um


exemplo de ensaio clínico randomizado

A - Viés de seleção

Dica
O viés de seleção compreende qualquer erro na seleção da amostra a ser
estudada, comum nos estudos caso-controle.

Refere-se a qualquer erro no processo de seleção da amostra por meio de um


método que não garante a sua representatividade. Nos estudos caso-controle,
esse viés ficará evidente se os critérios para escolha de casos e controles
forem diferentes. Por exemplo, um viés de seleção muito conhecido em
estudos caso-controle é o viés do trabalhador saudável, que ocorre quando a
seleção de controles é realizada entre trabalhadores formais. Como, via de
regra, os trabalhadores passam por exames admissionais iniciais, há uma
tendência de que essa população seja mais saudável do que a média
populacional.
Outro viés de seleção importante chama-se viés de Berkson, ou viés
berksoniano. Esse viés ocorre em estudos de casos-e-controles, quando os
pacientes do grupo controle apresentam uma frequência de exposição maior
do que a população que supostamente seria a origem dos casos. Isso pode
levar à conclusão equivocada de que a exposição tem um menor tamanho de
efeito (ou até um tamanho de efeito negativo), visto que a relação da
frequência da exposição entre casos/controles fica enviesada.
Medronho (2009) valoriza o cuidado da seleção dos controles desse estudo,
ressaltando que tal processo seja independente do status de exposição. Nos
estudos de coorte retrospectiva, caso a seleção dos expostos e não expostos
seja, de certa forma, sugerida pela ocorrência do desfecho, houve viés de
seleção. Como a análise da exposição não costuma acontecer na fase inicial
dos estudos de coorte prospectivos, esse tipo de viés é incomum para esse
desenho. Mesmo os ensaios clínicos randomizados não são isentos de vieses
de seleção. Quando a randomização é realizada de forma equivocada, ou
mesmo quando o tamanho amostral é demasiado pequeno para permitir uma
randomização apropriada, os grupos tornam-se muito diferentes entre si e
pode ocorrer viés de seleção. De forma geral, pode-se afirmar que a principal
estratégia para minimizar o viés de seleção é uma randomização adequada.

B - Viés de aferição

O viés de aferição ocorre no momento da avaliação dos participantes e pode


acontecer quando eles são avaliados de maneira diferente entre os grupos.
Esse viés acontece, por exemplo, nos ensaios clínicos abertos, em que os
avaliadores sabem que intervenções os participantes estão recebendo. Isso
pode fazer com que os avaliadores, propositadamente ou não, avaliem os
grupos conforme sua convicção prévia em cada tratamento. A principal
maneira de minimizar o viés de aferição é o cegamento ou mascaramento dos
avaliadores. Outro viés de aferição conhecido é o viés de memória, que pode
acontecer quando a exposição é obtida retrospectivamente, após o
desenvolvimento da doença. Isso acontece porque indivíduos doentes tendem
a lembrar mais das exposições passadas do que indivíduos sadios. Em alguns
livros, o viés de memória também pode ser classificado como um viés de
confusão.

C - Viés de confusão

Dica
O viés de confusão ocorre quando outra variável (que não a principal do
estudo) atrapalha a avaliação da associação entre exposição e desfecho de
um estudo.

O fator de confusão surge quando uma variável interferente distorce,


ficticiamente, a associação entre as variáveis de exposição e as de resposta,
alterando-lhes a força ou mesmo o sentido da relação.
Existem técnicas para o controle do viés; contudo, na prática, para todos os
estudos, é sempre necessário considerar cuidadosamente a possibilidade de
ocorrência de algum dos erros descritos. Verificada a possibilidade de um
viés, resta avaliar se tal erro pode causar interferências na associação
estudada. De modo geral, a melhor estratégia para minimizar o viés de
confusão antes da coleta de dados é a randomização de participantes.
Entretanto, quando não é possível realizar randomização ou ela foi malfeita,
após a coleta de dados, pode-se recorrer a técnicas estatísticas para o controle
de fatores de confusão; entre elas, destacam-se os modelos multivariados (ou
multivariáveis), como a regressão linear múltipla ou a regressão logística.
Se os erros acontecem de forma semelhante entre expostos e não expostos,
doentes e não doentes, menciona-se erro de classificação não diferencial.
Caso sejam maiores em 1 dos grupos, trata-se de um erro de classificação
diferencial. Os erros não diferenciais levam, geralmente, a uma atenuação da
força de associação (subvalorizam), enquanto os erros diferenciais podem
acentuar ou atenuar.
Diante das informações comentadas, fica evidente que a prevenção e o
controle de potenciais vieses são cruciais para assegurar a validade dos
resultados. Para tanto, há ferramentas importantes que podem ser usadas no
planejamento dos estudos:
Cuidados na escolha da população a ser estudada; por exemplo, a seleção de
controles hospitalares em estudos caso-controle pode aumentar a semelhança
com os casos em relação à aceitação em participar; no entanto, a presença de
fatores específicos e subjetivos influencia a escolha das pessoas por
determinados hospitais. Nas coortes e nos ensaios clínicos, é importante
avaliar a possibilidade concreta de acompanhar o grupo pelo tempo
necessário; por isso, muitas vezes, pode ser oportuno trabalhar com grupos de
categorias profissionais (enfermeiras, médicos, forças armadas) ou residentes
de uma área geográfica específica;
Padronização na coleta de dados, mediante utilização de instrumentos
construídos especificamente para o estudo que valorize questões neutras,
objetivas. É preciso pensar, também, no tempo de aplicação;
Cuidados na aplicação do instrumento: o mascaramento na obtenção dos
dados também pode ajudar a evitar tendências potenciais. O treinamento da
equipe que participa do trabalho de campo usa, até mesmo, protocolos
escritos;
Avaliar o número e a natureza das exposições e dos desfechos. A informação
desses eventos pode ser obtida por entrevistas com os próprios participantes,
bem como de prontuários (hospitalares ou de ambulatórios ocupacionais), por
exemplo. Os registros preexistentes podem ser menos tendenciosos quando
feitos antes da ocorrência do desfecho. Entretanto, muitas vezes, as
informações são incompletas para todos os fatores de interesse.
A ausência de erros sistemáticos e aleatórios em um estudo assegura a sua
validade interna. Logo, quando esta existe, pode-se afirmar que os resultados
são representativos da amostra (população de estudo). Já a validade externa é
a capacidade de generalização dos dados de um estudo.

Resumo
Análise de métodos
diagnósticos
Augusto César F. de Moraes
Alex Jones F. Cassenote
Marina Gemma
Lucas Primo de Carvalho Alves

1. Introdução
Na graduação em Medicina, você aprendeu variadas técnicas de exames
físicos e anamneses que, ao que parece, o deixaram preparado para identificar
o indivíduo doente que, normalmente, dirige-se a você contando alguma
anormalidade sintomatológica, permitindo gerar uma hipótese inicial. Na
sequência, você deve investigar alguns fatores relacionados com a possível
doença e, na maioria das vezes, tentar mediar alguma anormalidade que seja
objetiva e que auxilie de maneira satisfatória seu processo de tomada de
decisão. Entram em cena, então, os chamados Métodos Diagnósticos (MDs).
Segundo Kawamura (2002), Thomas Bayes, matemático inglês do século
XVIII, legou-nos o seu teorema, o qual estabeleceu que a probabilidade pós-
teste de uma doença era função da sensibilidade e especificidade do exame e
da prevalência da doença na população (probabilidade pré-teste). Os médicos,
ao formularem as hipóteses diagnósticas, interpretarem os exames
laboratoriais e prescreverem um tratamento, intuitivamente utilizam-se do
teorema de Bayes. Hoje, vive-se a era da alta tecnologia, em que as pessoas
frequentemente tendem a interpretar a positividade de um exame sofisticado e
custoso como sinônimo de doença. Não se deve esquecer que todos os
exames, sem exceção, desde o corriqueiro exame clínico até uma tomografia
computadorizada, estão limitados pela sensibilidade, pela especificidade e
pelo valor preditivo pré-teste.
A avaliação criteriosa da real utilidade dos MDs vem ganhando importância
cada vez maior nos últimos anos em decorrência do aumento de seu uso na
prática clínica, de seu encarecimento progressivo e da pressão exercida por
grupos de interesse, nem sempre baseada em critérios científicos, para a
utilização desses métodos. Assim, os clínicos precisam estar familiarizados
com alguns princípios básicos no momento de interpretar esses testes
(Fletcher; Fletcher, 2006).
O MD é o processo analítico de que se vale o especialista ao examinar uma
doença ou um quadro clínico, para chegar a uma conclusão. Compreende
anamneses, exame clínico, exames complementares, provas terapêuticas e
acompanhamento clínico.
Ao solicitar um teste diagnóstico, considera-se que há risco atribuído a ele,
que pode ser grande ou pequeno. Desse modo, deve-se considerar a segurança
do teste como uma premissa importante, pois ela é um julgamento da
aceitabilidade do risco (uma medida da probabilidade de um resultado
adverso e de sua severidade) associada ao uso de uma tecnologia em dada
situação.
Outros aspectos que devem ser considerados em um MD são gravidade da
doença, aceitação do teste e seus parâmetros. Estes últimos são
operacionalmente mais importantes, embora todos sejam de interesse do
médico, por estarem associados diretamente ao fato de serem capazes de
diagnosticar o paciente.

2. Possibilidades diagnósticas
Para o teste diagnóstico ser considerado útil, é preciso que ele identifique
corretamente a presença da doença. Portanto, antes de adotar um
procedimento tido como ferramenta diagnóstica, deve-se verificar a sua
capacidade de retornar um resultado que direcione à tomada de decisão
correta.
Ao solicitar um teste, podem-se ter 2 resultados cabíveis: positivo ou
negativo. Consideram-se, até mesmo, aqueles testes laboratoriais cujo
resultado é uma variável quantitativa contínua (exemplo: uma medida de
glicose em mg/dL), pois, ao final, um ponto de corte poderá ser estabelecido.
Para o indivíduo que foi examinado, também existem 2 possibilidades: doente
e não doente. Somam-se, então, 4 diferentes situações; a relação entre elas vai
delinear toda a discussão em torno da utilidade de um MD (Tabela 1).

O teste que apresentar resultado correto na presença de doença será chamado


de verdadeiro positivo, e o negativo na ausência de doença será o verdadeiro
negativo. Por outro lado, o teste será errôneo se for positivo quando a doença
estiver ausente, sendo denominado falso positivo, ou falso negativo quando
for negativo e a doença estiver presente. Essas relações podem ser analisadas
na tabela de contingência (Tabela 2).

Quanto maior for o número de verdadeiros positivos e verdadeiros negativos


de um teste, maior será a sua acurácia. Portanto, a acurácia de um teste é
considerada com relação a alguma forma de saber se a doença está realmente
presente ou não, uma indicação sólida da verdade frequentemente referida
como padrão-ouro ou gold standard. Entende-se acurácia como o grau pelo
qual o instrumento utilizado na mensuração é capaz de determinar o
verdadeiro valor daquilo que está sendo medido.

Importante
A acurácia de um teste indica a forma como se sabe se ele é ou não
verdadeiro; é a avaliação padrão-ouro da análise em questão. Quanto maior
o número de verdadeiros positivos e verdadeiros negativos, maior será a
acurácia do teste.

Algumas vezes, o padrão de acurácia é, por si só, um teste relativamente


simples e de baixo custo, como uma cultura de orofaringe para Streptococcus
do grupo A, para avaliar a impressão clínica de faringite, ou um teste de
anticorpos para a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana. Contudo,
com maior frequência, é preciso recorrer a testes relativamente elaborados,
custosos e arriscados, para ter certeza de que a doença está presente ou
ausente. Entre esses testes, estão a biópsia, a cirurgia exploratória, os
procedimentos radiológicos e, claro, a necrópsia (Fletcher; Fletcher, 2006).
3. Parâmetros
A eficiência de um diagnóstico refere-se à sua capacidade em distinguir as
pessoas com doença das pessoas sem a doença. Tal capacidade é dada pelo
aumento da sensibilidade e da especificidade. Desse modo, os parâmetros de
um teste diagnóstico servem, principalmente, para avaliar as proporções de
seus acertos (sensibilidade e especificidade), porém eles podem mensurar,
também, a probabilidade de um indivíduo diagnosticado como positivo ou
negativo ser, de fato, positivo ou negativo (valores preditivos), o que é muito
importante para a sua aplicação.

A - Sensibilidade e especificidade

Dica
A sensibilidade de um teste avalia os verdadeiros positivos, ou seja, a
proporção de pessoas com a doença que tiveram o teste positivo.

A sensibilidade de um teste é definida pela sua capacidade de reconhecer os


verdadeiros positivos em relação ao total de doentes, ou seja, é a
probabilidade de um indivíduo avaliado e doente ter seu teste alterado
(positivo). A tabela 2x2 (Tabela 2) representa a proporção de indivíduos com
a doença que têm teste positivo, podendo ser mensurada pela relação a seguir
(F1).

F1 - Sensibilidade

S = [a/(a + c)] ou [VP/(VP + FN)]


Repare que o procedimento é bem simples: trata-se da divisão dos indivíduos
diagnosticados como positivos no teste por todos os doentes, lembrando que
“a + c” representa o total de doentes definido pelo padrão-ouro.
Testes altamente sensíveis têm baixíssimos índices de falsos negativos. Dessa
forma, um teste sensível precisa ser escolhido quando são ruins as
consequências de deixar passar uma doença. Os testes altamente sensíveis são
considerados como testes de escolha para rastreamento populacional. Esses
tipos de testes também são úteis nos estágios iniciais de um processo
diagnóstico, como o teste de anticorpos para HIV na avaliação de infiltrados
pulmonares para detectar infecções relacionadas à AIDS.
Dica
A especificidade de um teste permite distinguir os verdadeiros negativos,
ou seja, a proporção de pessoas sem a doença que tiveram um teste
negativo.

A especificidade do teste refere-se ao poder de distinguir os verdadeiros


negativos em relação ao total de doentes, ou seja, é a probabilidade de um
indivíduo avaliado e normal ter seu teste normal (negativo). Na tabela de
contingência, é a proporção de indivíduos sem a doença que têm teste
negativo que pode ser aferida pela fórmula a seguir (F2).

F2 - Especificidade

E = [d/(d + b)] ou [VN/(FP + VN)]


Na prática, a especificidade trata da divisão dos indivíduos diagnosticados
como negativos em um teste por todos os indivíduos não doentes, em que “b
+ d” se refere ao total de não doentes definidos pelo método padrão-ouro.
Um teste altamente específico tem poucos falsos positivos. Portanto, é útil
para confirmar um diagnóstico que tenha sido sugerido por outros métodos,
como um exame clínico. A razão para isso é que um teste específico
raramente é positivo na ausência da doença, sendo útil quando os resultados
falsos positivos podem trazer prejuízos físicos, emocionais e financeiros.
O poder que o teste diagnóstico tem de revelar um resultado correto conceitua
a acurácia. Na tabela de contingência, esse parâmetro é mensurado pela
relação a seguir (F3).

F3 - Acurácia

Ac = [(a + d)/(a + b + c + d)] ou [(VP + VN)/(VP + FP + VN + FN)]


É importante lembrar que a sensibilidade e a especificidade são atributos
intrínsecos ao teste, por isso são chamadas propriedades do teste. No entanto,
os indicadores de desempenho de instrumento, quando aplicados em
condições de campo, são modificados pela proporção de casos da doença na
população, ou seja, pela prevalência. Assim, para estimar a validade do
instrumento em condições operacionais, deve-se calcular o indicador
denominado valor preditivo, que varia com a prevalência.

Dica
Uma abordagem comum para alterar a sensibilidade e especificidade de um
teste é a realização de testes em série ou em paralelo. Fazer testes em série
significa realizar testes sequenciais em pacientes que tiveram um resultado
positivo prévio, visando aumentar a especificidade, à custa de uma
diminuição de sensibilidade. Essa abordagem é usada, por exemplo,
quando é solicitado o teste de FTA-ABS, após o paciente ter um teste de
VDRL positivo, no diagnóstico de sífilis. Por outro lado, fazer testes em
paralelo significa realizar múltiplos testes simultaneamente, visando
aumentar a sensibilidade, à custa de uma perda de especificidade. Essa
abordagem é usada, por exemplo, em emergências clínicas, em que devem
ser descartadas doenças potencialmente graves.

B - Valores preditivos

O Valor Preditivo Positivo (VPP) refere-se à proporção de verdadeiros


positivos (realmente doentes) entre todos os indivíduos com teste positivo.
Repare que, embora o numerador seja o mesmo utilizado para o cálculo de
sensibilidade (verdadeiros positivos), o denominador difere, levando em conta
todos os indivíduos que tiveram o teste positivo (F4).

F4 - VPP

VPP = a/a + b ou VP/VP + FP

Dica
O valor preditivo positivo é capaz de expressar a probabilidade de um
paciente com teste positivo ter, de fato, a doença.

Na mesma linha, existe o chamado Valor Preditivo Negativo (VPN), que trata
da proporção de verdadeiros negativos (realmente não doentes) entre todos os
indivíduos com teste negativo. Nesses termos, o cálculo é igual ao da
especificidade no numerador, que leva os verdadeiros negativos, mas difere
quanto ao denominador, que inclui todos os indivíduos que apresentaram o
teste negativo (F5).

F5 - VPN
VPN = d/c + d ou VN/FN + VN

Dica
O valor preditivo negativo tem a capacidade de expressar a probabilidade
de um paciente com o teste negativo não ter realmente a doença.

Para cada instrumento, de acordo com a prevalência da doença


correspondente na população, existe certa probabilidade de qualquer suspeito
ao teste ser um verdadeiro positivo. A prevalência da doença é, na realidade, a
probabilidade pré-teste de ter a doença. O VPP é a probabilidade pós-teste.
Desse modo, os valores preditivos são influenciados não apenas pela
sensibilidade e especificidade, devendo-se considerar também a prevalência
da doença na população em que o teste está sendo aplicado.
Assim, quanto maior a especificidade do teste, maior o seu VPP, ou seja,
maior a segurança de um paciente com resultado positivo ser doente. Quanto
maior a sensibilidade do teste, maior o VPN, ou seja, maior a segurança de
um paciente com teste negativo realmente não ser doente. Como o valor
preditivo é influenciado pela prevalência, ele depende do contexto em que o
teste é aplicado, como exames de triagem ou exames confirmatórios
utilizados na clínica.
A interpretação de um teste diagnóstico negativo ou positivo pode variar de
um local para outro, de acordo com a prevalência estimada da doença. Assim,
para um teste com sensibilidade e especificidade de 100%, quando a
prevalência da doença for de 100%, o VPN será zero, e, quando a prevalência
for de zero, o VPP também será zero.

C - Aplicação na avaliação de um teste


Barfield et al. (2011), preocupados com as melhorias para o diagnóstico da
doença de Chagas, desenvolveram e avaliaram um novo teste rápido para o
seu diagnóstico sorológico, utilizando antígeno recombinante para a detecção
de anticorpos contra Trypanosoma cruzi. Para avaliar o desempenho desse
teste, 375 amostras de soro provenientes de uma região onde a doença de
Chagas é endêmica foram testadas como uma prova de referência (Tabela 3).
Foram avaliadas 190 amostras positivas e 185 amostras negativas (definidas
pelo padrão-ouro).
Em que:

Sensibilidade: a/a + c = 189/(189 + 1) = 189/190 = 0,995 x 100 =


99,5%;
Especificidade: d/b + d = 179/(6 + 179) = 179/185 = 0,967 x 100 =
96,7%;
Acurácia: a + d/a + b + c + d = (189 + 179)/(189 + 6 + 1 + 179) =
368/375 = 0,981 x 100 = 98,1%;
VPP: a/a + b = 189/(189 + 6) = 189/195 = 0,969 x 100 = 96,9%;
VPN: d/c + d = 179/(1 + 179) = 179/180 = 0,99 x 100 = 99,5%.

Pode-se afirmar que o teste rápido para o diagnóstico da doença de Chagas


teve um desempenho excelente, apresentando sensibilidade e especificidade
próximas de 100% e, consequentemente, a acurácia também. O VPP foi bem
elevado, ou seja, a probabilidade de haver doença, dado o teste positivo, é de
cerca de 97%, e, em se tratando de VPN, a probabilidade de não ter doença,
dado um teste negativo, é de 99,5%.
Outra maneira de calcular o VPP de um teste sem precisar montar a tabela
2x2, e que leva em conta a prevalência, é utilizar a fórmula derivada do
teorema de Bayes, apresentada na equação a seguir.

4. Curva ROC
Muitos testes diagnósticos não produzem resultados diretamente expressos
como os mostrados na Tabela 3, e sim uma resposta sob a forma de uma
variável quantitativa discreta ou contínua. Nesse caso, emprega-se uma regra
de decisão baseada em buscar um ponto de corte que resuma tal quantidade
em uma resposta dicotômica, de forma que um indivíduo com mensuração
menor ou igual ao ponto de corte seja classificado como não doente, e vice-
versa. Uma das metodologias para esse fim é a chamada curva ROC, sigla
proveniente de Receiver Operating Characteristic (Martinez; Lousada-Neto;
Pereira, 2003).
O ideal seria um teste 100% sensível e específico, mas esses valores
dependem da distribuição do resultado do teste nos indivíduos com e sem a
doença e do valor do teste que define os valores anormais. O balanço desse
dualismo é determinado pela escolha do exame e do ponto de corte corretos
para um estudo em particular. Uma maneira de estabelecer o ponto de corte
(ponto de viragem ou valor crítico) é analisar a especificidade e sensibilidade
em vários níveis de alteração do teste e desenhar, com base nesses dados, um
gráfico no qual a ordenada (y) é a sensibilidade e a abscissa (x) é 1-
especificidade (ou seja, os falsos positivos). Quanto mais perto do canto
superior esquerdo estiver a curva, melhor será o teste. A discriminação de um
ponto de corte deve ser criteriosa, pois rotular doentes e não doentes é muito
arriscado. A curva mostra que o aumento da sensibilidade vem em detrimento
da especificidade e vice-versa. Outra utilização compara diferentes técnicas
de diagnóstico por meio da análise da área abaixo da curva.
A curva ROC é uma possibilidade estatística de analisar os parâmetros de um
teste diagnóstico. Essa curva é construída por meio de um gráfico da taxa de
verdadeiros positivos (sensibilidade) contra a taxa de falsos positivos (1 -
especificidade), ao longo de uma faixa de possíveis pontos de corte.

Importante
A curva ROC mostra a relação entre a sensibilidade e a especificidade de
um teste e pode ser utilizada para decidir onde fica o melhor ponto de
corte. Se os pesquisadores decidirem pelas maiores sensibilidade e
especificidade, o ponto estará no “ombro” esquerdo da curva ROC.

Existe uma linha que corta o gráfico, chamada linha de chance (referência).
Uma curva ROC que estiver exatamente sobre a linha de chance (com ela
coincidindo) terá acurácia de 50%, ou seja, a probabilidade de acertar um
resultado é igual à de jogar cara ou coroa com uma moeda. A área entre a
linha de chance e a curva ROC é também chamada de área sobre a curva
ROC, e seu cálculo resulta na acurácia aferida por esse método.
Hernández-González et al. (2008) avaliaram 4 diferentes antígenos de
Echinococcus granulosus (HF, B2t, E14t e C317) para o diagnóstico
sorológico de hidatidose unilocular (ELISA). Como nesse caso o diagnóstico
sorológico referia-se à dosagem de anticorpos (IgG), cujo resultado é uma
variável quantitativa contínua, os pesquisadores utilizaram a curva ROC para
caracterização e avaliação do melhor antígeno.

Figura 1 - Curva ROC e definições

Dentre os 4 antígenos testados, o que mostrou melhor desempenho para o


método de ELISA foi o B2t, com 91,2% de sensibilidade e 93% de
especificidade. Os valores preditivos positivo e negativo foram 89,4 e 94,2,
respectivamente. A Figura 1 traz as curvas ROCs dos 4 antígenos em questão.
Veja que B2t tem a maior área sobre a curva e, desse modo, melhor acurácia,
que resultou em 95%.

5. Testes diagnósticos e predições clínicas


As estimativas de valores preditivos (positivo e negativo) são úteis para
responder à probabilidade de o paciente ter ou não a doença, dado um
resultado positivo ou negativo. Os valores preditivos podem ser chamados
também de probabilidade posterior ou pós-teste, pois sinalizam a
probabilidade da situação após a realização do teste.
A prevalência, nesse contexto, também poderá ser chamada de probabilidade
anterior ou pré-teste, uma vez que se refere à probabilidade da doença antes
de o resultado do teste ser conhecido (Fletcher; Fletcher, 2006).
A combinação desses parâmetros pode refletir o valor da informação
produzida pelo teste na avaliação dos pacientes (informação clínica), podendo
ser mensurado por meio da medida de acurácia do teste diagnóstico, ou seja,
da relação entre sensibilidade e especificidade (parâmetros intrínsecos do
teste), surgindo o conceito de razão de verossimilhança.
Likelihood Ratio (LR), ou razão de verossimilhança, é uma valiosa
ferramenta para a prática clínica e laboratorial na análise de um teste
diagnóstico, relacionada com o desempenho dos testes diagnósticos.
Assim, um LR positivo (LR+) expressa quantas vezes é mais provável
encontrar um resultado positivo em pessoas doentes quando comparadas com
pessoas não doentes (F6). Já o LR negativo (LR-) quantifica quantas vezes é
mais provável encontrar um resultado negativo em pessoas doentes quando
comparadas com pessoas não doentes (F7).

F6 - Razão de verossimilhança positiva

LR+: sensibilidade/1 - especificidade ou {[a/(a + c)]/[b/(b + d)]}

F7 - Razão de verossimilhança negativa

LR-: 1 - sensibilidade/especificidade ou {[c/(a + c)/[d/(b + d)]}


Os valores de sensibilidade e especificidade, nesse caso, são expressos em
proporções, e não em porcentagens. Assim, quanto maior o valor LR+ de um
teste, maior a sua capacidade de diagnosticar a doença, enquanto um valor de
LR- baixo revela baixa suspeita da doença em pacientes com teste negativo.
Como sempre se parte da probabilidade inicial da doença (conhecida como
probabilidade pré-teste), o valor de 1 é neutro, ou seja, um teste com LR+ de
1 não acrescenta em nada ao diagnóstico, mesmo sendo positivo. A aplicação
dos LRs na clínica fica extremamente facilitada quando se utiliza o
nomograma de Fagan, disponível na Figura 2 (Fagan, 1975).
Neves, Dias e Cunha (2003) sugerem um exemplo simples: a utilização de um
teste com LR+ de 7, em uma população em que a prevalência da doença é de
30%. A probabilidade de presença da doença no exame é de 75% (linha 1 –
Figura 2). Essa probabilidade pós-teste poderá ser utilizada, agora, como
probabilidade pré-teste de outro exame diagnóstico (confirmatório, por
exemplo). Este último apresenta, então, LR+ de 10, o que resulta em
probabilidade pós-teste de 95% (linha 2 – Figura 2).
Flores (2005) explica que, conhecendo ou estimando uma probabilidade pré-
teste e o LR do teste aplicado, pode-se tranquilamente definir quantas vezes
aumentou ou diminuiu a chance do paciente que tem teste positivo ou
negativo.
A probabilidade pré-teste depende da combinação de valores epidemiológicos
(prevalência), mas principalmente de uma avaliação clínica criteriosa e
quantitativa. A utilização do nomograma de Fagan era uma grande promessa,
como ferramenta, para melhor precisão diagnóstica. Entretanto, após a
popularização dos smartphones e aplicativos gratuitos que realizam o cálculo
da probabilidade pós-teste com base nos mesmos dados, a tendência é que o
nomograma caia no esquecimento. Mesmo assim, algumas questões de provas
de concursos médicos ainda cobram esse conceito.
Figura 2 - Nomograma de Fagan
Fonte: adaptado de Sandoya, 2009.

6. Testes de rastreamento de doenças na


população
O termo “rastreamento” pode ser entendido como a identificação de doença
ou fator de risco não reconhecido por meio de história clínica, exame físico,
exame laboratorial ou outro procedimento que possa ser aplicado
rapidamente. Assim, os testes de rastreamento separam as pessoas que estão
aparentemente bem, mas apresentam doença ou fator de risco para uma
doença, daquelas que não os apresentam (Goulart; Chiari, 2007).
Fletcher e Fletcher (2006) explicam que o rastreamento de pacientes na fase
pré-clínica da doença (ou seja, antes de sua manifestação clínica) já é uma
constante na prática médica. Atualmente, o rastreamento para detecção de
agravos ou doenças diversas vem sendo ampliado para a população em geral,
sem queixas.
Rastreamento, derivado do inglês screening, vem da ideia de peneira (do
inglês sieve), rica em furos: todos os programas apresentam resultados falsos
positivos e falsos negativos. Contudo, atualmente eles passaram a ter um
significado de algo sem furos, e a expectativa do público intensificou-se tanto
que qualquer grau de falso positivo ou negativo é automaticamente assumido
como erro do programa ou do médico (Gray, 2004). Assim, a demanda na
nossa época exige que as provas sobre os danos potenciais sejam analisadas
pelos comitês nacionais de rastreamento (Brasil, 2010).

Importante
É importante ressaltar que as recomendações atuais em favor da prevenção
são feitas a fim de submeter a população a testes específicos, de acordo
com a prevalência de distúrbios característicos a determinadas faixas
etárias, sexo e características clínicas, ou seja, rastrear doença em uma
população na qual a probabilidade pré-teste é extremamente baixa é como
dar um tiro no escuro: você até pode acertar o alvo, mas é mais provável
que erre.

Deve haver clara distinção entre rastreamento e diagnóstico de doenças. Nas


situações clínicas, a equipe de saúde deve estar empenhada em identificar a
apresentação clínica na população sob seus cuidados realizando os exames
sempre que surjam sintomas nos indivíduos assistidos e, sobretudo, de acordo
com as necessidades clínicas apresentadas. Isso não configura rastreamento,
mas cuidado e diagnóstico apropriados (Engelgau, 2000).
Observe que pedir um exame direcionado a um indivíduo que apresenta
determinada situação clínica eleva, e muito, a probabilidade de acerto do
diagnóstico. Isso ocorre pelo fato de os indivíduos em situações clínicas terem
probabilidade pré-teste elevada; por exemplo, é muito mais provável obter
uma baciloscopia positiva para BAAR em um indivíduo com tosse crônica e
laivos sanguinolentos presentes no escarro do que em um indivíduo sem
manifestação clínica aparente. Isso ocorre porque a prevalência
(probabilidade de o indivíduo estar doente) de tuberculose em pessoas com os
sinais apresentados é muito elevada.

Importante
No rastreamento, os exames ou testes são aplicados em pessoas sadias, o
que deve implicar garantia de benefícios relevantes diante dos riscos e
danos previsíveis e imprevisíveis da intervenção. Assim, deve-se
considerar que a aplicação de testes de rastreamento deve ser norteada pela
premissa de que o diagnóstico precoce efetivamente possa contribuir para a
melhora do prognóstico da doença.

Um exame positivo, em se tratando de rastreamento, não implica fechar um


diagnóstico, pois geralmente seleciona as pessoas com maior probabilidade de
apresentar a doença em questão. Outro teste confirmatório (com maior
especificidade para a doença em questão) é necessário depois de um
rastreamento positivo para que se possa estabelecer um diagnóstico definitivo.
Por exemplo, uma mamografia sugestiva de neoplasia deve ser seguida de
uma biópsia e confirmação diagnóstica por anatomopatologia (Brasil, 2010).
Um teste de rastreamento deve detectar o maior número de casos com o
menor custo, além de não acarretar reações adversas ou efeitos colaterais.
Considera-se, também, que existe menor grau de benefício agregado ao teste
de rastreamento em resposta aos sintomas, se comparado à avaliação
diagnóstica, devendo ele ser mais seguro do que os testes clínicos
correntemente empregados. Isso se traduz em menor precisão com relação ao
diagnóstico, visto que os instrumentos diagnósticos tendem a ser mais
específicos (Goulart; Chiari, 2007).
O teste ideal para rastreamento deveria levar apenas alguns minutos para ser
realizado, além de requerer um mínimo de preparação prévia do paciente, não
depender de agendamento especial e, uma vez aplicado em grande escala, ser
de baixo custo. Os resultados devem ser válidos, confiáveis e reproduzíveis
(Fletcher; Fletcher, 2006). Em um rastreamento, a sensibilidade é um
parâmetro muito importante, e os testes devem ser sensíveis para selecionar
pessoas em fase pré-clínica, contudo se deve, também, levar em conta uma
boa especificidade para não selecionar muitos falsos positivos.
Assim, para a implantação de programas de rastreamento, o Ministério da
Saúde entende que o problema clínico a ser rastreado deve atender a alguns
critérios, dispostos a seguir (Brasil, 2010):
A doença deve representar importante problema de saúde pública que
seja relevante para a população, levando em conta os conceitos de
magnitude, transcendência e vulnerabilidade;
A História Natural da Doença (ou do problema clínico) deve ser bem
conhecida;
Deve existir estágio pré-clínico (assintomático) bem definido, durante o
qual a doença possa ser diagnosticada;
O benefício da detecção e do tratamento precoce com o rastreamento
deve ser maior do que se a condição fosse tratada no momento habitual
de diagnóstico;
Os exames que detectam a condição clínica no estágio assintomático
devem estar disponíveis e ser aceitáveis e confiáveis;
O custo do rastreamento e tratamento de uma condição clínica deve ser
razoável e compatível com o orçamento destinado ao sistema de saúde
como um todo;
O rastreamento deve ser um processo contínuo e sistemático.

Em conclusão, Fletcher e Fletcher (2006) comentam que a validade de um


instrumento para rastreamento ou diagnóstico é medida pela sua habilidade
em fazer aquilo que se propõe, ou seja, categorizar adequadamente os
indivíduos com sintomas pré-clínicos da doença como teste positivo, e
aqueles sujeitos sem sintomas pré-clínicos da doença como teste negativo.
Essas relações são expressas por meio de sensibilidade, especificidade e
valores preditivos dos testes, tanto no rastreamento quanto no diagnóstico
clínico (Goulart; Chiari, 2007).
De forma geral, o rastreamento oportunístico ocorre quando a pessoa procura
o serviço de saúde por algum outro motivo e o profissional de saúde aproveita
o momento para rastrear alguma doença ou fator de risco. Essa forma de
proceder tem sido predominante na maioria dos serviços de saúde no mundo,
embora seja menos efetiva no impacto sobre a morbimortalidade atribuída à
condição rastreada. Já os programas de rastreamento organizados são aqueles
nos quais há maior controle das ações e informações no tocante ao
rastreamento. Esses programas são sistematizados e voltados para a detecção
precoce de determinada doença, condição ou risco oferecidos à população
assintomática em geral e realizados por instituições de saúde de abrangência
populacional. Além disso, os programas de rastreamento organizados
costumam ser mais efetivos porque há domínio maior da informação e os
passos ao longo dos níveis de atenção estão bem estabelecidos e pactuados.
A - Vieses de rastreamento

Alguns vieses são muito importantes quando se trata do rastreamento de


doenças. Lembrando que a definição de viés, segundo Rosser (1998), se
refere a qualquer erro na coleta, análise, interpretação, publicação ou revisão
de dados que pode levar a conclusões que sejam sistematicamente diferentes
da verdade. Seguem 3 exemplos de como isso pode ocorrer nas pesquisas
clínicas que buscam responder se um procedimento de rastreamento traz ou
não benefícios à saúde (Brasil, 2010):

Seleção: está presente quando as amostras (grupos) que serão


comparadas durante o estudo têm características diferentes que podem
influenciar o desfecho. Pode ocorrer, por exemplo, quando o estudo
seleciona voluntários para participar do ensaio clínico. Esse tipo de
pessoa geralmente tende a aderir mais às orientações, a ser mais saudável
e preocupada com a saúde e a ter baixas taxas de mortalidade, não
somente para a doença específica;
Tempo de antecipação: falsa impressão de sobrevida. Na verdade, o
rastreamento não está oferecendo anos a mais de vida, mas alguns anos
extras antecipados de convívio com a doença. Isso ocorre porque não se
leva em conta o período assintomático da História Natural da Doença em
questão. Uma maneira de evitar o viés de tempo de antecipação é
comparar a taxa real de mortalidade nas populações rastreadas com as
não rastreadas. Medidas substitutas, como sobrevida média ou em 5
anos, são sensíveis à sobreposição de tempo, desde o diagnóstico até a
morte, e influenciarão o programa de rastreamento;
Tempo de duração: ocorre devido à heterogeneidade da doença que se
apresenta ao longo de um amplo espectro de atividade biológica, em que
existe um contínuo de severidade e nem todas as doenças se comportam
biologicamente da mesma forma. As menos agressivas têm longo
período assintomático e, por conseguinte, maior probabilidade de serem
identificadas por um programa de rastreamento. Um exemplo seria
quando uma coorte detectada pelo rastreamento (por exemplo,
mamografia) é comparada com uma coorte identificada pela
apresentação clínica (por exemplo, massa palpável na mama); tumores
menos agressivos estão sobrerrepresentados na coorte do rastreamento, e
os mais agressivos, na coorte de apresentação clínica. Mesmo na
ausência de terapia, a coorte identificada pelo rastreamento terá melhor
prognóstico.
B - Rastreamento no Brasil
No Brasil, a questão do rastreamento de doenças tornou-se muito comum na
atualidade. Sobre esse assunto, vale consultar um impresso recente do
Ministério da Saúde. O material é direcionado a médicos, enfermeiros e
demais componentes das Equipes de Saúde da Família no intuito de subsidiar
suas condutas (Brasil, 2010). O guia cita as principais situações a serem
rastreadas no Brasil (Tabela 4).

Outras condições vastamente conhecidas são aquelas relacionadas com os


diferentes tipos de câncer. No Brasil, consideram-se típicos de rastreamento
populacional os cânceres de mama, colo de útero, cólon e reto. O
rastreamento de câncer de próstata ainda não tem benefício comprovado.
Outros tipos, como o câncer de pele e o de boca, embora sejam importantes,
não são considerados para rastreamento devido à falta de evidência de
benefício para a população (Brasil, 2010).
Segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), alguns exames são muito
úteis para prevenir os principais tipos de câncer rastreáveis:

O câncer de intestino (colorretal) pode ser rastreado por meio da


pesquisa de sangue oculto nas fezes a partir dos 50 anos. Caso essa
pesquisa seja positiva ou haja um histórico familiar desse tipo de câncer,
recomenda-se uma colonoscopia;
O câncer de mama pode ser rastreado por mamografia, que permite
detectar tumores de poucos milímetros em mulheres entre 50 e 69 anos.
A rotina de rastreamento nesse tipo de câncer sofrerá alteração se a
mulher for considerada de alto risco, de acordo com o histórico familiar
de câncer;
O câncer de colo de útero pode ser rastreado por meio do exame de
Papanicolaou em toda mulher que teve ou tem vida sexualmente ativa,
após os 25 anos (em mulheres de 25 a 64 anos, conforme preconizado
pelas Diretrizes do Rastreamento do Câncer do Colo do Útero do
Ministério da Saúde). Após 2 exames normais no intervalo de 1 ano, a
periodicidade indicada do exame é de 3 anos. Essa faixa etária é
justificada por ser a de maior ocorrência das lesões pré-malignas de alto
grau, passíveis de serem efetivamente tratadas e não evoluírem para
câncer. Antes de 25 anos, prevalecem as lesões de baixo grau, cuja maior
parte regredirá espontaneamente e deverá ser apenas observada. Após 64
anos, por outro lado, se a mulher tiver tido acesso à rotina dos exames
preventivos, com resultados normais, o risco de desenvolvimento do
câncer cervical será diminuído, dada a sua lenta evolução. Após os 64
anos, a recomendação é de suspender o rastreamento, caso os últimos
exames estejam normais.

Dica
No Brasil, são realizados rastreamentos populacionais para cânceres de
mama, cólon, reto e colo de útero.

Outros tipos de câncer devem ser pesquisados com base em determinados


sintomas, utilizando-se sempre os exames mais apropriados para avaliar cada
caso. Repare que a população-alvo sempre é definida pelo maior risco de
apresentar a doença em situação pré-clínica ou por apresentar fatores de risco
importantes para a doença, como ser sexualmente ativa. Para outros tipos de
câncer ou demais doenças, segue-se a mesma ideologia.

Resumo
Introdução
O MD é o processo analítico de que se vale o especialista ao
examinar uma doença ou quadro clínico, para chegar a uma
conclusão. Compreende anamneses, exame clínico, exames
complementares, provas terapêuticas e acompanhamento clínico.
Possibilidades em um teste diagnóstico
Ao solicitar um teste, podem-se ter 2 resultados cabíveis: positivo
ou negativo. Consideram-se até mesmo aqueles testes laboratoriais
cujo resultado é uma variável quantitativa contínua (por exemplo,
uma medida de glicose em mg/dL), pois, ao final, um ponto de corte
poderá ser estabelecido. Para o indivíduo exam inado, também há 2
possibilidades: doente e não doente.
Parâmetros do teste diagnóstico
Sensibilidade e especificidade
A sensibilidade de um teste é definida pela sua capacidade de
reconhecer os verdadeiros positivos em relação ao total de
doentes. A especificidade do teste refere-se ao poder de
distinguir os verdadeiros negativos em relação ao total de não
doentes.
Valores preditivos
O VPP refere-se à proporção de verdadeiros positivos
(doentes) entre todos os indivíduos com teste positivo. Ainda
na mesma linha, existe o chamado VPN, que trata da
proporção de verdadeiros negativos (não doentes) entre todos
os indivíduos com teste negativo.
Curva ROC
Muitos testes diagnósticos não produzem resultados diretamente
expressos, e sim uma resposta sob a forma de uma variável
quantitativa discreta ou contínua. Nesse caso, emprega-se uma regra
de decisão baseada em buscar um ponto de corte que resuma tal
quantidade em uma resposta dicotômica. A curva ROC é uma
possibilidade estatística de analisar os parâmetros de um teste
diagnóstico. Quanto mais próximo estiver o “ombro” da curva do
canto superior esquerdo do gráfico, maior o poder discriminatório
do teste.
Testes diagnósticos e predições clínicas
Um LR+ expressa quantas vezes é mais provável encontrar um
resultado positivo em pessoas doentes quando comparado com
pessoas não doentes. Já o LR- quantifica quantas vezes é mais
provável encontrar um resultado negativo em pessoas doentes
quando comparadas com pessoas não doentes. A probabilidade pré-
teste depende da combinação de valores epidemiológicos
(prevalência), mas principalmente de uma avaliação clínica
criteriosa e quantitativa. O uso do LR e do nomograma de Fagan vai
popularizar-se muito no futuro, e todos os envolvidos no processo
devem estar atentos: os médicos, para saberem usar como
ferramenta do dia a dia, à beira do leito, e os laboratórios, para
colocarem as informações de LRs ou sensibilidade e especificidade
em seus laudos.
Testes de rastreamento de doenças na população
O termo “rastreamento” pode ser entendido como a identificação de
uma doença ou fator de risco não reconhecido, por meio da história
clínica, do exame físico, de um exame laboratorial ou de outro
procedimento que possa ser aplicado rapidamente. Um teste de
rastreamento deve detectar o maior número de casos com o menor
custo, além de não acarretar reações adversas ou efeitos colaterais.
Considera-se, também, que existe menor grau de benefício
agregado ao teste de rastreamento em resposta aos sintomas, se
comparado à avaliação diagnóstica, devendo ele ser mais seguro do
que os testes clínicos correntemente empregados.
Estudos epidemiológicos
Aline Gil A. Guilloux
Augusto César F. de Moraes
Alex Jones F. Cassenote
Marília Louvison
Marina Gemma
Lucas Primo de Carvalho Alves

1. Introdução
A pesquisa epidemiológica baseia-se na coleta sistemática de dados sobre
eventos ligados à saúde em uma população/grupo definido e na quantificação
desses eventos. O tratamento numérico dos fatores investigados ocorre por 3
procedimentos relacionados: mensuração de variáveis, estimativas de
parâmetros populacionais/grupais e testes estatísticos de hipóteses para
comprovação ou refutação de hipótese de associação estatística (Block;
Coutinho, 2009).
Os autores citados explicam que o método científico, do qual a Epidemiologia
se serve, é um processo pelo qual se busca conectar observações e teorias.
Nele, as “hipóteses conceituais”, mais amplas, são reescritas sob a forma de
hipóteses operacionais, possíveis de serem mensuradas. A teoria que gerou a
hipótese conceitual é, então, confrontada com os dados obtidos na
investigação. O mecanismo pelo qual a pesquisa epidemiológica busca essa
conexão, ou seja, o estabelecimento de inferência causal, refere-se,
principalmente, à inferência indutiva (Figura 1).
Rothman, Greenland e Lash (2008) explicam que, em Epidemiologia, parte-se
de observações para leis gerais da natureza. Essas observações podem ser
chamadas de “evidências científicas” e levam a uma generalização que vai
além desse conjunto particular (processo chamado de “inferência indutiva”).
Block e Coutinho (2009) concordam que, nesse processo, observam-se
fenômenos, identifica-se uma relação constante entre eles e, finalmente,
generaliza-se essa relação para fenômenos que podem ainda não ter sido
observados. Todo esse processo só é possível graças às diferentes
metodologias existentes em Epidemiologia, também denominadas como
estudos ou delineamentos epidemiológicos.
Figura 1 - Inferência indutiva (generalização dos resultados), procedimento lógico constantemente
realizado nas pesquisas em Epidemiologia
Fonte: adaptado do site Deutsches Krebsforschungszentrum.

2. Classificação dos delineamentos


Os delineamentos utilizados em Epidemiologia diferem entre si no modo
como selecionam as unidades de observação. Mensuram-se os fatores de risco
ou prognóstico, identificam-se as variáveis de desfecho e garantem-se a
comparabilidade entre os grupos que fazem parte do estudo e a originalidade
dos dados (Block; Coutinho, 2009). É por essa perspectiva que os
delineamentos podem ser comparados, e a designação mais comum e
vastamente utilizada em Epidemiologia refere-se ao posicionamento do
pesquisador com relação à investigação (ativo ou passivo), podendo ser
classificados em observacionais ou experimentais (Figura 2).
Figura 2 - Características dos diferentes tipos de delineamentos utilizados nas pesquisas
epidemiológicas

Importante
Os estudos epidemiológicos podem ser do tipo observacional experimental,
que, então, se subdividem nos diferentes tipos de estudo que se conhecem:
relatos de casos ou de série de casos, ecológico, transversal, de coorte,
caso-controle e ensaios clínicos.

Dica
Nos estudos observacionais, o pesquisador não controla a exposição nem
distribui os indivíduos entre os grupos de expostos e não expostos,
adotando uma atitude passiva e de observador no estudo. Esses estudos
podem ser descritivos ou analíticos.

A - Estudos observacionais

Os estudos observacionais são assim chamados devido à implicação no


posicionamento passivo do investigador, que de forma sistemática e acurada
observa o processo de produção de doentes em populações, com o mínimo de
interferência nos objetos estudados. Nesse sentido, o pesquisador não controla
a exposição nem a alocação dos indivíduos entre os grupos de expostos e não
expostos. Block e Coutinho (2009) lembram que, como os indivíduos estão
expostos ou não a uma causa potencial de doença, independentemente da
interferência do pesquisador, esses estudos geralmente não apresentam
problemas de natureza ética para a investigação de fatores de risco. De modo
geral, os estudos epidemiológicos observacionais podem ser classificados
(segundo o método epidemiológico) em descritivos e analíticos.
Segundo Lima-Costa e Barreto (2003), os estudos descritivos têm por
objetivo determinar a distribuição de doenças ou condições relacionadas à
saúde segundo o tempo, o lugar e a pessoa (características dos indivíduos), ou
seja, responder às perguntas “quando”, “onde” e “quem adoece”. Os estudos
observacionais podem fazer uso de dados secundários (preexistentes de
mortalidade em hospitalizações, por exemplo) e primários (coletados para o
desenvolvimento do estudo).
Nessa perspectiva, a Epidemiologia Descritiva examina como a incidência
(casos novos) ou a prevalência (casos existentes) de uma doença ou condição
relacionada à saúde varia de acordo com determinadas características, como
sexo, idade, escolaridade, renda, entre outras. Quando a ocorrência da
doença/condição relacionada à saúde difere segundo tempo, lugar ou pessoa,
o epidemiologista é capaz não apenas de identificar grupos de alto risco para
fins de prevenção, mas também gerar hipóteses etiológicas para investigações
futuras (Lima-Costa; Barreto, 2003; Marques; Peccin, 2005).
Estudos analíticos são aqueles delineados para examinar a existência de
associação entre uma exposição e uma doença ou condição relacionada à
saúde. São metodologias que têm capacidade para responder (comprovar ou
refutar) hipóteses de associações entre variáveis. Portanto, envolvem de forma
implícita ou explícita a comparação entre expostos e não expostos/doentes e
não doentes, buscando relacionar eventos: uma suposta “causa” a um dado
“efeito”; determinada “exposição” leva à ocorrência de certa “doença”.
Quando se trata de variáveis dicotômicas (do tipo “ser ou não ser”), a
organização das variáveis do estudo, bem como a análise, poderá ser feita
facilmente por meio da tabela de dupla entrada, 2x2 ou, ainda, de
contingência (conferir o capítulo “Bioestatística aplicada à análise de estudos
epidemiológicos”).

B - Estudos experimentais

Dica
Os estudos experimentais são conhecidos, também, como clinical trials
(quando aplicados de modo individual) ou community trials (quando
aplicados em comunidades inteiras) e apresentam uma atitude ativa do
pesquisador nas diferentes etapas do estudo.
Os estudos experimentais implicam o posicionamento ativo do pesquisador,
com estratégias de ação para interferir nos processos em estudo, de forma
metódica e controlada, resultando no que correntemente se denomina
experimentação. Trata-se de manobras de intervenção que têm como objetivo
isolar efeitos, controlar intercorrências externas e desencadear processos. Os
estudos experimentais são essencialmente analíticos (Almeida Filho;
Rouquayrol, 2002).
Esses estudos também são conhecidos como de intervenção, clinical trials
(quando aplicados de modo individual) ou community trials (quando
aplicados em comunidades inteiras). Caracterizam-se, principalmente, pelo
fato de o investigador determinar os grupos de indivíduos expostos e não
expostos (Passos; Ruffino-Netto, 2005).
Block e Coutinho (2009) explicam que os indivíduos são alocados de modo
aleatório em diferentes grupos de exposição aos fatores que se julga serem de
risco ou de prognóstico. Esse processo de alocação aleatória garante a todos
os indivíduos a mesma probabilidade de fazer parte de qualquer um dos
grupos comparados. Outra característica dos estudos experimentais reside no
fato de o investigador controlar a exposição ao fator de interesse, por isso
questões éticas fazem que tais estudos se restrinjam a fatores nos quais se
acredite haver influência positiva sobre a saúde. O modelo de análise
utilizado é o mesmo de um estudo observacional.
Existe, ainda, uma designação chamada “estudo quase-experimental”, que
ocorre quando existe o controle do fator de estudo pelo investigador, mas a
alocação dos indivíduos nos diferentes grupos de comparação não pode ser
aleatória, devido a questões éticas. De maneira geral, esses estudos acabam
sendo considerados como experimentais, mas os impactos de seus resultados
devem ser avaliados/interpretados com mais cautela.

C - Tempo em relação ao surgimento do desfecho

As caracterizações dos estudos segundo a posição do investigador


(observacional e experimental) e o método epidemiológico empregado
(analítico e descritivo) são, sem dúvida, as mais importantes. Contudo, outras
propriedades devem ser levadas em conta quando se deseja conhecer essas
metodologias com mais profundidade.
Um estudo epidemiológico pode ser classificado, também, de acordo com o
tempo de ocorrência do desfecho (surgimento). Assim, quando se investiga a
frequência do desfecho ou de fatores associados, no presente e ao mesmo
tempo, menciona-se o estudo transversal ou seccional (no tempo). Contudo,
em muitos casos, a investigação transversal não é suficiente, existindo a
possibilidade de recorrer a desenhos chamados de longitudinais, ou seja,
quando o desfecho e/ou os fatores associados não estão no presente. Isso
geralmente é necessário quando se deseja conhecer a incidência de doença ou
fatores de risco com maior precisão.
Se uma investigação tem o objetivo de conhecer com que frequência as
pessoas ficam doentes ou se expõem a certos fatores, ela deverá acompanhar
esses indivíduos. Nesse caso, tanto exposição quanto desfecho estão no futuro
em relação ao início da pesquisa, ou seja, trata-se de um estudo longitudinal
prospectivo. No entanto, se os indivíduos já estiverem doentes (apresentarem
o desfecho), exposição e desfecho aconteceram antes do início da pesquisa;
assim, pode-se lançar mão dos estudos longitudinais retrospectivos.
Outra propriedade importante diz respeito à unidade de estudo ou análise.
Existem estudos focados no indivíduo, que avaliam grupos de pessoas e pelos
quais se consegue obter a frequência de doença e de fatores associados,
podendo, assim, ser calculado o risco individual à doença. Porém, quando se
trabalha com dados populacionais, a unidade de observação passa a ser a
população estudada (agregado), e não os indivíduos, e, embora sejam estudos
importantes, são incapazes de revelar o risco individual, como é feito no 1º
caso.
A seguir, serão apresentados os principais tipos de delineamentos utilizados
nas pesquisas epidemiológicas, bem como alguns exemplos aplicados, suas
vantagens e desvantagens.

3. Tipos de delineamentos

A - Relatos de caso ou série de casos

Os relatos de caso consistem em uma descrição cuidadosa e detalhada por 1


ou mais profissionais de saúde, geralmente clínicos, das características
clínicas de 1 único paciente ou série de pacientes. O relato de caso é o estudo
que mais se identifica com o médico clínico. Aguça a interpretação de sinais e
sintomas e constitui farto material para discussões que alavancam o
aprendizado de jovens médicos (Parente et al., 2010).
Nesse tipo de trabalho, não existe comparação analítica, não sendo possível a
realização de inferência acerca da ocorrência daquele ou daqueles casos.
Contudo, uma apresentação de caso benfeita pode auxiliar na descrição de um
quadro clínico específico, que pode ser importante para a Epidemiologia
conhecer um padrão de doença ou de doentes.
B - Estudo ecológico

Dica
O estudo ecológico é aquele que analisa um grupo ou determinada
população de um dado local, com grande relevância para a Saúde Pública,
pois permite avaliar a ocorrência de uma doença na comunidade e a
efetividade das intervenções feitas nesse local.

Trata-se do estudo no qual a unidade de análise é uma população ou um grupo


de pessoas, que geralmente pertence a uma área geográfica definida, como um
país, um estado, uma cidade, um município ou um setor censitário. Esses
estudos são feitos com dados secundários, que não envolvem contato do
pesquisador com os indivíduos, sendo frequentemente realizados
combinando-se bases de dados de grandes populações (dados secundários não
devem ser confundidos com estudos secundários). Em função disso, são
geralmente mais baratos e mais rápidos do que os estudos que envolvem
indivíduos como unidade de análise (Medronho, 2009).
Os principais objetivos são gerar hipóteses etiológicas a respeito da
ocorrência de determinada doença e avaliar a efetividade de intervenções na
população, testando a aplicação de determinado procedimento para prevenir
doença ou promover saúde em grupos populacionais. Medronho (2009)
explica também que é possível avaliar hipóteses com esse tipo de estudo,
porém é fortemente prejudicado pela dificuldade de se controlar os “fatores de
confusão”.
Esse estudo, por ter forte característica exploratória, é considerado por muitos
autores essencialmente descritivo. No entanto, já se mostrou que, por meio
dele, é possível verificar associação entre mudanças no tempo do nível médio
de uma exposição e das taxas de doença em uma população geograficamente
definida, podendo também ser entendido como estudo analítico.
Figura 3 - Características do estudo ecológico

Um estudo ecológico pode ser delineado em um eixo transversal, ou seja,


avaliando-se vários agregados com dados no mesmo período, como um
estudo que comparou a taxa de mortalidade em diversos países, no ano de
2018 (presente). Contudo, o mais comum nos estudos ecológicos são as
avaliações de tendência construídas por meio de análise de série histórica.
Para isso, são necessários dados retrospectivos (passado) para todas as
unidades de análise existentes.
Trata-se de um tipo de delineamento muito interessante para a Saúde Pública
e a Gestão em Saúde; pode-se, por exemplo, avaliar uma série histórica de
mortalidade infantil para diferentes municípios e levantar aqueles em que a
queda do indicador não foi significativa ou se houve modificação na
tendência. Deve-se lembrar que a qualidade desse tipo de estudo depende do
sistema de informação de origem da base de dados.
Com relação ao tempo, um estudo ecológico pode ter característica
transversal quando faz uma avaliação como um corte no tempo, podendo
inclusive estudar associação, nesse sentido. Contudo, dependendo do objetivo
do trabalho e da disponibilidade de dados, podem-se desenvolver estudos
ecológicos de tendência histórica ou séries históricas, isto é, longitudinais, em
que é possível analisar o comportamento de uma doença/desfecho no tempo
(Figura 3).
Almeida Filho e Rouquayrol (2002) classificam 2 subtipos de estudos
ecológicos, de acordo com a base de referência para produção de dados:
estudo territorial, no qual há definição geográfica das unidades/blocos de
observação (bairros, distritos, municípios, países etc.), e estudo institucional,
que toma organizações coletivas como parâmetros (fábricas, escolas).
Podem ser avaliadas medidas provenientes dos agregados (grupos de
indivíduos), como proporções de indivíduos com certa característica (renda
familiar, taxa de fumantes); medidas ambientais, como as características
físicas do lugar onde os membros de cada grupo vivem ou trabalham; e
medidas globais, como indicadores de saúde, densidade demográfica ou
existência de determinado nível de saúde.
Como não existe informação em nível individual, não é possível trabalhar
com a tabela de contingência para estudar as estimativas de exposição e
desfecho. Nesse caso, é muito comum a avaliação de associação estatística
utilizando métodos de regressão linear, simples ou múltipla, em que se
consegue chegar à chamada correlação (método que estuda variação
concomitante entre 2 ou mais variáveis quantitativas contínuas).
Uma busca no PubMed, usando o termo ecological study, retorna com quase
39 mil referências de artigos relacionados a estudos ecológicos, o que aponta
que esse tipo de estudo é relativamente bem utilizado como ferramenta de
pesquisa em Epidemiologia. Na Tabela 1, um exemplo de estudo ecológico
sobre a queda de homicídios no município de São Paulo.
Uma das suas vantagens é a possibilidade de examinar associações entre
exposição e doença (desfecho) relacionada nessa coletividade. Isso é
particularmente importante quando se considera que a expressão coletiva de
um fenômeno pode diferir da soma das partes desse mesmo fenômeno. Por
outro lado, embora uma associação ecológica possa refletir, corretamente,
uma associação causal com a possibilidade de viés ecológico, é sempre
lembrada como uma limitação para o uso de correlações ecológicas (Szklo;
Javier Nieto, 2000; Lima-Costa; Barreto, 2003).
Os estudos ecológicos não podem tirar conclusões sobre a causa da doença
porque não há informação sobre o status de cada pessoa quanto à exposição e
ao desfecho; trata-se do viés ecológico (ou falácia ecológica). Outras
vantagens e desvantagens estão relacionadas na Tabela 2.

Importante
As principais vantagens do estudo ecológico são o baixo custo e a
facilidade e a rapidez na execução; por outro lado, as principais
desvantagens incluem a dificuldade para controlar os fatores de confusão, a
ausência de acesso aos dados individuais e a maior suscetibilidade à falácia
ecológica, que consiste em atribuir a um indivíduo o que se observou com
base em análises de grupo.

C - Estudo transversal

a) Estrutura básica

Também chamado de estudo seccional, de corte, de prevalência ou de


inquérito epidemiológico, o estudo transversal é um delineamento
observacional que pode apresentar tanto caráter descritivo quanto analítico,
ambos de base individual. Consta como um dos delineamentos mais comuns
utilizados em Epidemiologia.

Importante
O estudo transversal caracteriza-se pela seleção de pessoas de toda uma
população ou amostra. Os indivíduos são selecionados sem considerar a
exposição ou estado da doença, e o objetivo principal é estimar a
prevalência de uma doença ou de fatores associados nessa população.

As determinações da doença (entenda-se doença como desfecho) e da


exposição são realizadas simultaneamente, e subpopulações de diferentes
níveis de exposição são comparadas com relação à prevalência da doença e
aos fatores que se julgam associados a ela (Figura 4).

Figura 4 - Características do estudo transversal

No estudo transversal, as coletas de dados tanto da exposição (levantamento


de fatores associados) como do desfecho são feitas transversalmente, em um
único ponto do tempo (no mesmo tempo – presente). Seleciona-se uma
amostra da população de interesse e avalia-se essa amostra, que deve ser
semelhante à população. Quando se pesquisa desfecho binário (por exemplo,
presença/ausência de uma doença), é comum haver esses 4 estados para cada
parcela da amostra: exposto e doente, exposto e não doente, não exposto e
doente e não exposto e não doente. Os testes de associação levarão em conta a
relação entre essas parcelas da amostra, além de ser estimada a prevalência da
doença. Por avaliarem um único ponto do tempo, os estudos transversais não
podem avaliar causalidade, visto que não se pode obedecer ao critério de
temporalidade (isto é, o fator em estudo acontece antes do desfecho). Esse
fato faz que os estudos transversais possam ocasionar o fenômeno (viés) de
causalidade reversa, ou seja, atribuir o desfecho como consequência, quando
pode ser, na verdade, causa.
Os estudos transversais, por lidarem exclusivamente com a medida de
frequência do tipo prevalência, são mais indicados para estudar as doenças de
longa duração e exposição que pouco se modificam com o tempo. São úteis,
também, para fornecer informações sobre distribuição e características do
evento investigado na população, avaliar as necessidades de serviços de saúde
e planejamento em Saúde Pública e contribuir para o estudo da etiologia das
doenças. Um exemplo de estudo transversal pode ser visto na Tabela 3.

b) Planejamento e execução

No planejamento de um estudo transversal, há itens importantes a serem


considerados; um dos principais se refere à população que dará origem à
amostra a ser analisada. A seleção dessa população dependerá basicamente do
objetivo do estudo.
Lembre-se de que medir algum fator em uma população inteira é logicamente
inviável, por isso outro passo importante do estudo é a amostragem. Para
tanto, o pesquisador pode lançar mão de técnicas para, com base na
observação de um grupo de indivíduos, obter parâmetros do todo (população).
Uma amostra pela qual é possível a realização de inferência (generalização
dos resultados) deve ser representativa da população que lhe deu origem.
Assim, existem a amostragem aleatória simples, a estratificada, a sistemática
e aquela por conglomerados. Muitas pesquisas trabalham com amostras
obtidas sem processo de aleatoriedade, fato que não garante a sua
representatividade. São as chamadas “amostras por conveniência”.

Dica
Um estudo transversal é pontual na medida em que não existe
acompanhamento dos indivíduos, ou seja, a avaliação ocorre em um
momento determinado. Como são estudos geralmente grandes, é comum
que levem um intervalo de tempo para serem desenvolvidos, analisados e
publicados. As ferramentas utilizadas na mensuração das variáveis podem
ser questionários de coleta de dados, exames médicos ou exames
laboratoriais.
Para se ter uma ideia do quanto é comum a utilização desse estudo, uma busca
no PubMed no ano de 2018 com o termo cross-sectional study, geralmente
utilizado para designar o estudo transversal, resulta com 367.400 registros de
artigos, com acréscimo de mais de 32.000 naquele ano.

Estudos transversais feitos em intervalos periódicos de tempo são úteis, pois


podem refletir mudanças na situação de saúde. Todavia, uma de suas
desvantagens importantes refere-se à impossibilidade de seguimento, uma vez
que indivíduos diferentes são avaliados em cada amostra. As principais
vantagens e desvantagens do estudo são apresentadas na Tabela 4.
c) Associação entre exposição e desfecho

A 1ª análise a ser realizada, em um estudo transversal, é a determinação da


prevalência da doença/fator de risco na população estudada. Esse
procedimento pode ser feito dividindo-se o número de doentes existentes pela
população total do estudo.
A 2ª análise consiste em verificar a associação entre a exposição (expostos e
não expostos) e o desfecho (doentes e não doentes). Essa metodologia pode
ser representada em uma tabela 2x2. Segundo Coutinho, Scazufca e Menezes
(2008), em estudos de corte transversal com desfechos binários, a associação
entre exposição e desfecho poderá ser estimada pela RP.
Serão utilizados, como exemplo, dados de um estudo transversal hipotético. O
estudo foi realizado em determinada cidade após período de enchente. Os
pesquisadores gostariam de levantar a soroprevalência de hepatite A e
verificar se o contato com água contaminada influencia a frequência da
doença. Os dados foram coletados e organizados na tabela de contingência
(Tabela 5).

Inicialmente, mensura-se a prevalência geral do desfecho:

Prevalência: percentual de indivíduos doentes (a + c) entre todos os


avaliados (a + b + c + d). Como os dados estão alocados nos campos,
utiliza-se a seguinte fórmula:

Agora, será avaliada a influência da variável “contato com a água” na


prevalência da hepatite A:

RP: trata-se da razão entre a prevalência do desfecho no grupo exposto


(PGE) em relação ao grupo não exposto (PGNE).

Pode-se concluir que a prevalência de hepatite foi 2,31 vezes maior entre os
indivíduos que se expuseram à água contaminada quando comparados com os
não expostos a esse fator, sugerindo que esse tipo de exposição seja
considerado um fator de risco para a doença.

D - Estudo de coorte
a) Estrutura básica

Dica
A principal característica do estudo de coorte é a seleção de indivíduos
saudáveis (sem o desfecho) classificados segundo o grau de exposição a
um fator de interesse que se deseja investigar. Esses indivíduos são, então,
acompanhados ao longo do tempo para apurar a incidência do desfecho de
interesse. Nesse estudo, o interesse do pesquisador é saber a frequência
com que as pessoas se tornam doentes, ou seja, a incidência.

Nos estudos tipo coorte, o pesquisador cataloga os indivíduos como expostos


e não expostos ao fator de estudo, segue-os por determinado período e, ao
final, verifica a incidência da doença entre eles, comparando-a nos 2 grupos
(Marques; Peccin, 2005).
Há 2 tipos de estudo de coorte, segundo a localização temporal do
delineamento: prospectivo ou concorrente e retrospectivo ou não concorrente
(também chamado de coorte histórica). Tais estudos também são chamados de
“estudo de acompanhamento”, “de incidência” ou “follow-up”.
A seleção dos participantes no estudo pode ser feita de 2 formas: por meio de
2 grupos, um de indivíduos expostos e outro de indivíduos não expostos ao
fator de risco, ou seleciona-se um único grupo em que estarão presentes
indivíduos expostos e não expostos, fazendo, em seguida, a sua classificação.
O objetivo do estudo é a comparação da incidência entre os grupos, e para
tanto é preciso garantir que todos os participantes não apresentem o desfecho
de interesse no início do estudo (o que caracterizaria um caso prevalente).
Essa característica do estudo de coorte permite determinar uma relação
temporal confiável entre exposição e desfecho, essencial para determinar
causalidade.
Um dos estudos de coorte mais conhecidos refere-se à pesquisa que vem
sendo desenvolvida na cidade norte-americana de Framingham,
Massachusetts. Em 1948, o Framingham Heart Study embarcou em um
projeto ambicioso de pesquisa em saúde para identificar os fatores comuns
que contribuem para doenças cardiovasculares, seguindo o seu
desenvolvimento por um longo período em um grande grupo de participantes.
Atualmente, o estudo está avaliando a 3ª geração de indivíduos (Framingham,
2013).

b) Coorte prospectiva ou concorrente


A seleção dos participantes pode ser feita no presente, e estes são observados
até o desfecho. O delineamento prospectivo permite a coleta mais detalhada
dos dados de exposição, o acompanhamento sistemático dos indivíduos com
maior grau de refino e precisão e a definição das variáveis que serão
analisadas ao longo do tempo. Porém, é um estudo longo, que demanda
grande quantidade de recursos (Figura 5).

Figura 5 - Características do estudo de coorte prospectiva ou concorrente


Fonte: Epidemiologia Clínica, 4ª edição.

Uma coorte clássica inicia-se com um grupo de indivíduos acompanhados ao


longo do tempo. No caso de uma coorte prospectiva, seleciona-se uma parcela
da população com alguma característica de interesse, como uma coorte de
gestantes, que terá como base de inclusão uma mulher que se torne gestante.
São selecionadas, então, as variáveis de exposição (álcool, tabaco, violência),
e essas gestantes são subdivididas em expostas e não expostas aos fatores.
Segue-se no tempo o desfecho (incidência ou casos novos), por exemplo,
abortamento. No final do estudo, existirão mulheres que abortaram e estavam
expostas aos fatores, que abortaram e não estavam expostas, que não
abortaram e estavam expostas e que não abortaram e não estavam expostas.
Os fatores de risco são reconhecidos por meio da análise de proporção de
casos novos nesses grupos.
A amostra inicial apresenta apenas indivíduos não doentes ou sem o desfecho.
Cabe lembrar que os eventos de interesse podem ser: ocorrência de novos
casos, mortalidade por determinada causa ou mudanças de um marcador
biológico. Benseñor e Lotufo (2005) afirmam que os estudos de coorte podem
investigar, também, respostas a tratamentos, embora não sejam indicados para
a inclusão de novos tratamentos na prática clínica, visto que os participantes
não estão randomizados e, consequentemente, com fatores de confusão
desbalanceados.

c) Coorte retrospectiva ou não concorrente

Na coorte retrospectiva, histórica ou ainda não concorrente, a investigação


inicia-se em um ponto no tempo em que tanto exposição quanto desfecho já
ocorreram (Figura 6). Nesse caso, o registro inicial depende dos dados já
coletados para outros propósitos. É necessário confiar na memória dos
participantes para estabelecer a data de desenvolvimento do desfecho e para
saber se este não estava presente no início do estudo (caso prevalente). A
qualidade e o grau de detalhamento da informação obtida dependem
largamente do indivíduo e da sua memória, porém é um estudo que pode ser
feito de forma mais rápida e econômica, desde que haja dados passados
disponíveis.

Figura 6 - Características do estudo de coorte retrospectivo ou não concorrente


Fonte: Epidemiologia Clínica, 4ª edição.

A estrutura de uma coorte histórica é a mesma que a de uma coorte


prospectiva, porém na primeira a coleta de dados é feita no presente, ou seja,
a definição entre exposição e desfecho é feita no presente, mas a coorte já
havia sido formada e iniciada anteriormente. Imagine uma situação em que
uma grande usina nuclear admite, no ano de 2002, um contingente de 2.000
funcionários e, a cada mês, avalia o estado de saúde de todos eles. No final de
alguns anos, existirá um banco de dados consistente sobre o estado de saúde
desses indivíduos ao longo do tempo. Um pesquisador com o interesse de
avaliar um tipo de câncer pode iniciar uma coorte histórica em 2018, usando
os dados dos funcionários admitidos na empresa em 2002, verificando em
seus registros a presença ou não do desfecho de interesse e seus fatores.

Importante
Quando se considera a história natural de uma doença, ambos os
delineamentos de coorte podem ser considerados prospectivos, pois partem
da exposição a um fator e posterior desenvolvimento de desfecho, em
oposição ao estudo caso-controle, que parte do desfecho para estudar a
exposição e seria, então, retrospectivo, tanto no sentido temporal quanto no
sentido da história natural do desfecho.

Importante
As coortes retrospectivas podem ser indicadas para superar as principais
limitações das coortes prospectivas: incapacidade relativa de abordar
patologias pouco frequentes e com longo período de latência; porém, para
a operacionalização desse desenho, é preciso contar com registros médicos
confiáveis.

Estudos de coorte mantêm vasta literatura na área médica. Uma pesquisa


junto ao PubMed, com o termo cohort study, resulta com 1.903.066 trabalhos
associados ao termo, com aumento de mais de 112.000 somente em 2017. A
versão mais utilizada é a coorte prospectiva. A seguir, apresentam-se 2
publicações de estudos de coorte, uma prospectiva (Tabela 6) e outra
retrospectiva (Tabela 7).
No geral, o estudo de coorte apresenta como vantagens permitir o cálculo de
incidência de um desfecho entre expostos e não expostos, bem como a
flexibilidade em escolher variáveis para registro sistemático ao longo do
estudo. Em contrapartida, ao se estudar um desfecho raro, é preciso
acompanhar um grupo muito grande de indivíduos para obter algum
resultado. Talvez a desvantagem mais significativa do estudo de coorte seja
comum a todos os estudos observacionais: a posição do pesquisador é
passiva, e ele não influencia a distribuição dos indivíduos nos grupos. Outras
vantagens e desvantagens são apresentadas a seguir (Tabela 8).
Dica
A principal vantagem dos estudos de coorte está na possibilidade de
cálculo das taxas de incidência de desfechos entre expostos e não expostos,
além de permitir o estudo de múltiplos efeitos/consequências de um
mesmo fator de exposição. Entre as desvantagens, a principal é o potencial
viés associado à perda de seguimento (morte, migração, desistência e falta
de adesão).
d) Associação entre exposição e desfecho

A expressão básica para risco é a incidência (frequência com que as pessoas


se tornam doentes em um período definido). Segundo Fletcher e Fletcher
(2006), em estudos de coorte a incidência da doença é comparada entre 2 ou
mais grupos que diferem quanto ao status de exposição a um possível fator de
risco/proteção (exposto ou não exposto). Para comparar os riscos, diversas
medidas de associação entre a exposição e a doença, chamadas de medidas de
efeito, são comumente utilizadas. Essas medidas, que podem ser calculadas na
tabela de contingência, representam diferentes conceitos de risco e são usadas
com propósitos diferentes, em níveis individual e populacional.
A seguir, será apresentado um exemplo de estudo de coorte com desfecho e
exposição binários. Trata-se de um estudo da relação entre o uso de
anticoncepcionais orais e bacteriúria. A proposição foi investigada por Evans
et al. (1978) em uma coorte de base populacional de 2.390 mulheres, com
idade inferior a 50 anos, acompanhadas pelo período de 12 meses. Os dados
do estudo foram organizados na tabela 2x2 (Tabela 9).

Com relação a parâmetros individuais, pode-se, inicialmente, mensurar a


incidência geral do desfecho:
Incidência ou risco absoluto (I): frequência de novos doentes (a + c) entre
todos os indivíduos em risco de adoecer (a + b + c + d). Nesse estudo, refere-
se à frequência com que as mulheres desenvolvem a bacteriúria, calculada
pela fórmula a seguir:
Nesse caso, pode-se afirmar que a taxa de novas mulheres apresentando o
desfecho foi de 4,3% no ano, ou seja, o risco absoluto de desenvolver
bacteriúria na coorte foi de 4,3%. A seguir, calcula-se a diferença do risco
entre mulheres expostas e não expostas ao anticoncepcional.
Risco Atribuível (RA): diferença do risco (incidência) entre grupo exposto
(IGE) e não exposto (IGNE) em relação ao fator que se avalia.

Essa última medida é muito útil para avaliar a importância da exposição em


relação à incidência total. Repare que existe bacteriúria nos 2 grupos (IGE e
IGNE); porém, no grupo exposto ao fator, existe incidência adicional de 0,016
(o uso de anticoncepcional oral aumenta o risco de bacteriúria em 0,016). O
RA também pode ser chamado de fração etiológica, uma vez que é calculada
a incidência do desfecho atribuído à exposição.
RR: é a razão entre as incidências do desfecho, ou seja, entre o risco de
apresentar o desfecho no grupo exposto (IGE) em relação ao não exposto
(IGNE).

Assim, pode-se afirmar que a incidência foi de 0,4 ou 40% maior nas
mulheres expostas ao anticoncepcional. Poderia ser dito, também, que o
anticoncepcional é um fator de risco para o desenvolvimento desse desfecho,
uma vez que é 40% mais provável que uma mulher exposta ao
anticoncepcional desenvolva bacteriúria, se comparada a uma que não o
utiliza.
Por meio dos parâmetros obtidos em um estudo de coorte, pode-se trabalhar
com estimativas junto à população. O RA e a fração atribuível na população
são 2 possibilidades facilmente desenvolvidas.
RA na população (RAp): estima a incidência de uma doença na população
associada à prevalência de um fator de risco (qual é a incidência da doença
em uma população associada à prevalência de um fator de risco?). Para
desenvolver esse cálculo, é necessário um parâmetro de prevalência da
exposição. Aqui será utilizado o parâmetro da prevalência de 66% (P = 0,66),
levantado na população de Pelotas, Rio Grande do Sul.
Pode-se concluir que, se em uma população a prevalência do uso de
anticoncepcional for de 66% (DIAS-DA-COSTA et al., 1996) e a incidência
obedecer à dinâmica da coorte estudada (EVANS et al., 1978), existirá 1% de
casos novos de bacteriúria em excesso, ou seja, mais do que o normalmente
ocorrido na população sem essa exposição.
Esse tipo de informação pode ser muito útil para a organização de políticas.
Pense, por exemplo, em doenças como a AIDS e as hepatites virais. O maior
risco de infecção por esses vírus está no compartilhamento de agulhas em
grupos de usuários de drogas, e não na relação sexual desprotegida. Esta
última confere risco menor de infecção. Contudo, quando se observa a
prevalência do fator de risco, existe uma diferença importante. Sabe-se que a
prevalência de pessoas que fazem sexo, na população, em geral é largamente
maior do que a de usuários de drogas. Então, o risco de infecção por relação
sexual, que é bem menos importante do que o compartilhamento de agulhas,
torna-se um fator importante.
Fração Atribuível na população (FAp): descreve a fração da ocorrência de
uma doença na população associada a um fator de risco (que fração da doença
em uma população é atribuível à exposição a um fator de risco?). Para a
execução desse cálculo, deve-se conhecer a incidência do desfecho na
população (IT – Incidência Total) e RAp. Como exemplo, será utilizada uma
IT hipotética de 3,1%, que seria a incidência de bacteriúria na população
comparável com a coorte.

Assim, pode-se afirmar que 32% da incidência total da bacteriúria na


população é atribuível à exposição ao fator de estudo, ou seja, ao
anticoncepcional. De modo geral, esses 2 últimos estimadores populacionais
são pouco usados, já que, para a sua execução, é necessário conhecer
parâmetros populacionais, muitas vezes de conhecimento impossível ou não
viável.

E - Estudo caso-controle
a) Estrutura básica

Esse delineamento de estudo seleciona indivíduos que desenvolveram e que


não desenvolveram um desfecho de interesse (ou seja, casos e controles) e
procura avaliar a frequência de exposição passada a fatores que se acreditam
ser associados ao desfecho (Figura 7). Assim, trata-se de estudo
observacional, longitudinal e unicamente retrospectivo. É importante frisar
que os controles devem ser pertencentes à mesma população a que pertencem
os casos, ou a comparação deixa de ser válida.
Para esse estudo, é imprescindível definir a população-base, em que os casos
devem ser uma amostra fidedigna dos casos totais e os controles da mesma
forma, inclusive para a exposição ao fator que se deseja estudar. Caso haja
restrição para a seleção de casos (por exemplo, idade), essa mesma restrição
deve ser aplicada aos controles e enumerada no momento da inferência. A
inferência será válida para uma população com aquela restrição de idade
imposta à amostragem.

Dica
O estudo caso-controle é um estudo observacional, longitudinal e
necessariamente retrospectivo.

Uma preocupação comum nesse tipo de estudo é que os casos e controles


sejam comparáveis. Se existem fatores predisponentes conhecidos, a amostra
deve ser restrita quanto à presença destes (se possível), ou casos e controles
devem ser pareados. O pareamento refere-se ao procedimento pelo qual, para
cada caso selecionado, são recrutados 1 ou mais controles idênticos com
relação a certas características (no máximo 4), como sexo, idade e nível
socioeconômico. A escolha das variáveis para o pareamento deve envolver
possíveis variáveis de confusão.
A definição de “caso” é um ponto importante a ser frisado. Os critérios de
inclusão devem estar claros e bem documentados, quer seja um resultado de
exame laboratorial, com determinado ponto de corte, quer seja um conjunto
de sinais clínicos. A maioria dos pesquisadores sustenta que apenas casos
incidentes devem ser utilizados nesse delineamento, mas existem algumas
situações específicas em que casos prevalentes podem ser de interesse. Uma
grande dificuldade com casos prevalentes é distinguir entre os fatores
importantes no processo de atingir o desfecho e aqueles importantes em
manter-se no desfecho (por exemplo, não se curar ou não morrer). Como não
existe certeza da data em que a condição se manifestou, é difícil estabelecer
uma linha temporal exata para a presença dos fatores de interesse em casos
prevalentes.

Figura 7 - Características do estudo de caso-controle


Fonte: adaptado de Epidemiologia, 2ª edição.

Um estudo caso-controle inicia-se sempre com um grupo de indivíduos


afetados pelo desfecho de interesse. O que os pesquisadores fazem é buscar
outros indivíduos com características semelhantes e comparar a presença dos
fatores entre os casos e os controles. Para isso, após a seleção dos controles
(grupo de comparação), ambos os casos e controles são pesquisados sob
exposições diversas de interesse, no passado. As situações existentes, no final,
serão casos que foram expostos, casos que não foram expostos, controles que
foram expostos e controles que não foram expostos. A relação de avaliação de
associação entre exposição e desfecho é feita por meio dessa relação.
A coleta de dados sobre exposição ao fator de interesse e possíveis variáveis
de confusão deve ser feita com o mesmo nível de detalhamento para casos e
controles, para que esses dados sejam comparáveis. O ideal é utilizar o
mesmo método de coleta desses dados e, se possível, que o entrevistador não
saiba quais são casos ou controles. Os controles devem ser selecionados da
população sob risco de ocorrência do desfecho.
Estudos desse gênero são relativamente comuns na literatura médica. Uma
pesquisa rápida junto ao PubMed, utilizando o termo case-control, aponta
1.145.964 registros relacionados com estudos caso-controle, com aumento de
mais de 72.000 somente em 2017. No Brasil, eles não são tão utilizados
quanto os estudos transversais, por exemplo. Acompanhe o estudo
desenvolvido por Gamba et al. (2004) para compreender sua aplicação na
pesquisa em Epidemiologia (Tabela 10).
Esse tipo de delineamento é muito útil para o estudo de doenças raras ou com
longos períodos de incubação, pois é possível localizar os casos diretamente.
É comparativamente mais econômico e mais rápido de montar e conduzir e
necessita de menor número de participantes em relação ao estudo de coorte.
Além disso, permite que vários possíveis fatores predisponentes sejam
estudados simultaneamente e pode ser utilizado para avaliar componentes
genéticos e ambientais (Thursfield, 2005). Também é útil em Vigilância
Epidemiológica, quando aplicado em estudo de surto, em especial aqueles por
fonte de contaminação comum.

Importante
Deve-se ter cuidado para não confundir estudos caso-controle com os de
coorte retrospectivos, pois estes últimos medem a frequência do desfecho,
já que nenhum dos indivíduos que iniciou o estudo apresentava o atributo
de interesse, e, nos estudos caso-controle, o grupo com desfecho é definido
a priori e estuda-se o impacto das exposições.

O contraponto é que não é possível estimar a proporção de expostos e não


expostos na população-base (exceto no delineamento aninhado). Assim como
no estudo de coorte retrospectiva, é preciso confiar na memória dos
participantes sobre exposição a determinados fatores, e esta pode ser difícil de
validar. A incidência do desfecho em expostos e não expostos não pode ser
calculada (consequentemente, o RR também não), e, como em todos os
demais estudos observacionais, a distribuição dos grupos de expostos e não
expostos pode não ser aleatória em relação a outras variáveis que representam
risco (conhecido ou não), o que levaria a uma inferência causal errônea, caso
o pesquisador não tomasse as devidas precauções. Outras vantagens e
desvantagens podem ser visualizadas na Tabela 11.
Dica
As principais vantagens do estudo caso-controle envolvem o baixo custo
(em relação à coorte) e a possibilidade de obter informações com base em
um número pequeno de casos. Já as desvantagens incluem a dificuldade
para selecionar o grupo-controle e a possibilidade de os dados de exposição
no passado serem incompletos ou inadequados.

Existe, além do estudo caso-controle convencional, o chamado caso-controle


aninhado (nested), um tipo de estudo em que a população total é enumerada e
acompanhada. Assim, o número de casos descritos é o total de casos da
população ou uma fração representativa destes, enquanto os controles são
selecionados entre os indivíduos que estavam na população no momento em
que cada caso ocorreu. A grande vantagem dessa estratégia é minimizar o viés
de seleção, por termos certeza de que os controles são selecionados da mesma
população de casos. Esse tipo de estudo permite estimar a frequência do
desfecho por expostos e não expostos, o que é incomum em estudos caso-
controle convencionais. É muito comum o desenvolvimento de estudos casos-
controle aninhados a coortes, formando, assim, estudos híbridos.

b) Associação entre exposição e desfecho

Dica
Odds ratio é a medida de associação do tipo probabilidade que é utilizada
em estudos caso-controle. Trata-se da razão entre as chances de doença no
grupo exposto em relação à doença no grupo não exposto.

O RR não pode ser utilizado em estudos do tipo caso-controle, pois não há


como saber sobre taxas da doença, uma vez que os grupos não são
determinados pelo que acontece na natureza, e sim pelos critérios de seleção
estabelecidos pelo pesquisador. Utiliza-se, então, uma estimativa desse
parâmetro (proxy), denominada razão de chances, ou Odds Ratio (OR), que é
uma boa estimativa quando se refere a doenças raras (Beaglehole; Bonita;
Kjellström, 2010). O OR é a razão entre a chance de um indivíduo ser exposto
no grupo de casos e a chance de ser exposto no grupo-controle.
Para o desenvolvimento do estimador OR, será utilizado um estudo caso-
controle que avaliou a associação entre consumo recente de carne e enterite
necrosante na Papua-Nova Guiné, desenvolvido por Millar, Smellie e
Coldman (1985). Os dados do estudo foram organizados na tabela 2x2
(Tabela 12). Repare, ainda, que a soma total de expostos e não expostos não
tem sentido prático, uma vez que esses grupos são diferentes.

Como não há possibilidade de aferir nenhuma medida de frequência, estuda-


se logo a associação entre exposição e doença.
OR é uma medida de associação do tipo probabilidade. Trata-se da razão
entre as chances de doença no grupo exposto (a/c) em relação à doença no
grupo não exposto (b/d). Alguns autores chamam OR de razão entre os
produtos cruzados, pois a mesma fórmula pode ser reescrita pela seguinte
relação: [(a x d)/(b x c)].

Desse modo, pode-se afirmar que os indivíduos que apresentaram a doença


(casos) tiveram 11 vezes mais chances de ter ingerido carne recentemente
quando comparados com os controles. Assim, essa ingestão pode ser
considerada um fator de risco para enterite necrosante. Lembre-se de que,
embora OR seja uma aproximação de RR, não deve ser utilizado o termo
“probabilidade” para a descrição de seus resultados, e sim “chance”.

F - Ensaios clínicos

a) Estrutura básica

Os ensaios clínicos constituem-se em uma poderosa arma de teste de


intervenções para a saúde. São estudos analíticos, prospectivos e
experimentais e têm por obrigação testar o efeito de uma intervenção (Santos;
Barbosa; Fraga, 2011). Trata-se de um estudo em que um grupo de pessoas é
acompanhado (como na coorte), porém há intervenção terapêutica (nova
droga) ou preventiva (exame de rastreamento) por parte do pesquisador
(Figura 8). Os estudos de intervenção com indivíduos são chamados de
ensaios clínicos, e outros que envolvem agregados populacionais, ou seja,
uma comunidade inteira, são os ensaios clínicos comunitários. A grande
vantagem dos ensaios clínicos é serem passíveis de terem a ferramenta mais
poderosa para controle dos fatores confundidores entre os grupos: a
randomização. Quando selecionamos uma amostra e a randomizamos em 2
grupos ou mais, presume-se que todos os fatores confundidores, pelas leis das
probabilidades, estão balanceados entre os grupos. Isso significa que, para
qualquer intervenção realizada, o desfecho será devido à intervenção e não a
outros fatores. Por isso, o ensaio clínico randomizado é o desenho que mais se
aproxima do ideal para inferência causal.
A 1ª forma de classificar um ensaio clínico depende da presença de controles.
Um estudo de intervenção é dito controlado quando são acompanhados 2
grupos: o primeiro é tratado com o esquema terapêutico em estudo, e o outro
recebe placebo ou convencional (grupo-controle). Um exemplo apontado por
Medronho (2009) de estudos não controlados é o chamado estudo “antes-
depois”, em que todos os participantes recebem a mesma intervenção e suas
condições são verificadas no início do tratamento e depois dele.

Figura 8 - Características dos ensaios clínicos


Fonte: Epidemiologia Clínica, 4ª edição.

Os ensaios clínicos apresentam a mesma estrutura de uma coorte prospectiva.


No entanto, aqui os grupos de exposição não ocorrem naturalmente, pois são
expostos/não expostos experimentalmente, em geral por critérios de
randomização (aleatórios). O que será verificado, com o tempo, é a
diminuição da frequência do desfecho: o fator experimental tem algum
impacto na diminuição da característica que agregava esses indivíduos nesse
grupo, como uma doença. Deve-se lembrar que, diferentemente da coorte, os
estudos clínicos sempre se iniciam com todos os indivíduos com a
doença/desfecho.
Uma 2ª divisão desse método valoriza a forma de composição dos grupos. De
forma simplificada, o ensaio clínico controlado pode ser randomizado,
quando a alocação dos participantes nos grupos de intervenção e controle é
feita de forma aleatória; ou não randomizado, quando os grupos experimental
e controle são formados com base em critérios de disponibilidade e
conveniência, havendo, portanto, maior possibilidade de viés (Fletcher;
Fletcher, 2006). Para o estudo ser considerado randomizado, a alocação deve
ser aleatória. Em outras palavras, deve haver, necessariamente, um sorteio.
Caso contrário, fatores confundidores podem estar presentes. Além disso,
quem deve ser randomizado são os indivíduos, e não as comunidades. Caso
elas sejam randomizadas e suas taxas avaliadas após a intervenção, tratar-se-á
de um ensaio comunitário, podendo correr o mesmo risco de falácia
ecológica, presente nos estudos ecológicos. Além disso, quando não há
randomização, mas há experimento (por exemplo, avaliar a taxa de
mortalidade de um hospital antes e após a inauguração de um centro de
hemodinâmica), tratar-se-á de um quase-experimento.
Uma opção para alocação do grupo de intervenção é o ensaio clínico
controlado cruzado (crossover). Nesse caso, um grupo de pacientes recebe um
tratamento, e outro, o placebo. Após uma pausa temporal, faz-se uma
inversão, com a 1ª metade recebendo o placebo, e a segunda, o tratamento.
Esse tipo de estudo permite comparar os resultados em conjunto e, como cada
indivíduo participa 2 vezes no experimento, pode-se reduzir pela metade o
número da casuística em relação ao ensaio clínico controlado simples. Porém,
deve-se afastar a possibilidade de o tratamento ou sua falta na 1ª fase não ter
repercussão na segunda.
Por fim, vale fazer um comentário sobre a chamada técnica de mascaramento
ou avaliação cega, que consiste em qualquer tentativa de evitar que os
participantes do estudo saibam qual é o tratamento administrado.

Dica
Efeito Hawthorne é um conceito que se originou nos estudos Hawthorne e
consiste em uma mudança positiva do comportamento de um grupo de
trabalhadores em relação aos objetivos de uma empresa, devido ao fato de
eles se sentirem valorizados pela gerência ou pela direção da firma.

O mascaramento é uma das formas de controlar o efeito Hawthorne, que


recebe esse nome devido a uma instalação da Companhia Elétrica de Chicago,
onde foram feitos estudos sobre produtividade de trabalhadores em diferentes
condições, entre 1924 e 1932. Os pesquisadores perceberam que, quando
estavam presentes, observando os trabalhadores, a produtividade melhorava, a
despeito das condições do ambiente. Nos ensaios clínicos, o efeito Hawthorne
é a tendência de os indivíduos mudarem seu comportamento quando são alvos
de atenção especial. O fato de o paciente saber que está recebendo um novo
tratamento pode ter efeito positivo e, ao contrário, o fato de ele reconhecer
que está no grupo de tratamento convencional, ou sem tratamento, pode gerar
um efeito desfavorável.
Para viabilizar o mascaramento, muitas vezes, é necessário o uso de um
placebo, substância de aparência, forma e administração semelhantes às do
tratamento que está sendo testado, porém sem princípio ativo. Por questões
éticas, o placebo só deve ser utilizado caso não exista um tratamento-padrão
alternativo de eficácia conhecida. O ensaio clínico, como os demais estudos,
deve recrutar um número suficiente de pessoas para obter uma estimativa da
resposta desejada. Quando o tamanho da amostra necessária é muito grande, o
ensaio pode ser realizado em vários centros, o que caracteriza o chamado
ensaio multicêntrico (megaensaio ou megatrial).
Na literatura médica, são vastas as publicações que utilizam essa
metodologia, tendo em vista a necessidade de se conhecer com clareza os
mais diversos aspectos das diferentes intervenções a serem realizadas. Uma
busca no PubMed, usando clinical trial como palavra-chave, resulta com
aproximadamente 1.087.525 referências associadas ao termo, e somente em
2017 houve acréscimo de cerca de 42.818 artigos. A seguir, um exemplo
interessante sobre uma intervenção medicamentosa auxiliar na cessação do
hábito de fumar, desenvolvida nessa perspectiva (Tabela 14).
Segundo Hill (1969), o ensaio clínico randomizado é considerado o
delineamento padrão-ouro, pois é o que menos sofre a influência de fatores de
confusão e vieses em geral. Porém, apresenta limitações importantes,
especialmente do ponto de vista ético (Tabela 15).
Outra estratégia bastante utilizada em ensaios clínicos randomizados é a
análise por intenção de tratar (ou intention to treat), apresentada no exemplo
da Figura 9. Supõe-se a realização de um ensaio clínico que teste a eficácia de
uma nova técnica cirúrgica comparando-a com o tratamento clínico padrão. A
hipótese em teste é que o tratamento cirúrgico é melhor do que o tratamento
clínico. Entretanto, após a randomização, alguns pacientes do grupo clínico
precisaram de tratamento cirúrgico de emergência, e alguns pacientes do
grupo cirúrgico desistiram da cirurgia. Em outras palavras, houve cruzamento
de tratamentos. A análise por intenção de tratar não irá considerar a
intervenção que os pacientes receberam, e sim para qual grupo os pacientes
foram randomizados. Essa estratégia é utilizada por 2 motivos: o primeiro é
porque se aproxima mais da prática médica real; o 2º motivo é que, ao usar
essa técnica, introduz-se um viés conservador (isto é, contra a hipótese) no
estudo, de modo que, caso o tratamento continue a ser eficaz mesmo usando a
técnica, isso significa que, de fato, o tratamento é eficaz. No exemplo citado
(e ilustrado na Figura 9), a hipótese baseava-se no fato de que o tratamento
cirúrgico era melhor. Entretanto, quando houve cruzamento de tratamentos,
hipoteticamente o grupo randomizado para tratamento clínico teve um
desfecho pouco melhor do que o esperado (alguns pacientes receberam
cirurgia), e hipoteticamente o grupo randomizado para cirurgia teve um
desfecho pouco pior do que o esperado (alguns desistiram). Desse modo, caso
se use a análise por intenção de tratar e mesmo assim o tratamento cirúrgico
continuar a ser melhor, isso significa que ele é tão bom, que, mesmo
introduzindo esse viés, ainda assim é superior.

Figura 9 - Exemplo de análise por intenção de tratar: quando há cruzamento de tratamentos, os


grupos são avaliados de acordo com os quais foram randomizados, e não para o que efetivamente
receberam

b) Estimadores de efeito de tratamento

Segundo Escosteguy (2009), há diversas formas de estudar os efeitos do


tratamento. Muitas dessas abordagens podem ser feitas após os dados serem
distribuídos na tabela 2x2. Será utilizado, a seguir, um exemplo proposto pela
própria autora, que trata dos resultados de um estudo sobre os efeitos da
trombólise intravenosa sobre a mortalidade de 5 semanas no infarto agudo do
miocárdio (Tabela 16).

Antes de adentrar as inúmeras possibilidades de avaliação do estudo clínico,


deve-se mensurar qual é a frequência do desfecho para os diferentes grupos.
Serão utilizadas as siglas Rt para designar o risco no grupo tratado e Rc no
grupo controle. Como ambas (Rt e Rc) são frequências, podem ser facilmente
obtidas pela divisão do número de indivíduos com o desfecho pelo número
total de indivíduos expostos (uma vez que se trata do risco de morrer):

Esse procedimento é semelhante ao cálculo de incidência. Contudo, aqui,


trata-se de mortalidade tanto para o grupo que recebeu a droga em teste
quanto para o grupo-placebo, podendo ser chamada também de letalidade
(risco de morrer, dado que se apresenta em uma doença). Pode-se verificar,
por meio dessas frequências, que existe mais morte no grupo de tratamento do
que no grupo-placebo. A seguir, serão resumidas algumas formas de medir o
tamanho do efeito do tratamento:
Redução Absoluta de Risco (RAR): refere-se à diferença de risco entre os
indivíduos controles em relação aos tratados, ou seja, frequência do desfecho
no grupo-placebo subtraída da frequência do desfecho no grupo experimental.
No caso a seguir, pode-se afirmar que o risco de morte nos indivíduos tratados
com a droga experimental foi 3% menor em relação ao grupo-controle. RAR:
3%;

RR: razão entre as incidências do desfecho, ou seja, entre o risco de morte no


grupo tratado e o controle. Desse modo, o grupo tratado com trombolítico
apresentou RR de morte de 0,76 em relação ao controle, tratando-se, portanto,
de uma intervenção benéfica. Poderia ser utilizado o estimador de risco OR
nesse caso, desde que sua limitação fosse considerada. RR: 0,76;

Redução Relativa de Risco (RRR): expressa a redução percentual do evento


no grupo tratado em relação ao controle. Lembre-se de que RR é uma razão;
assim, quando resultar em 1, significa que o desfecho ocorre igualmente em
ambos os grupos, ou seja, receber droga ou placebo não modifica o resultado
(mortalidade). Ao subtrair 1 do RR, obtém-se a diferença do observado em
relação ao que seria nulo (1). Essa diferença é a redução do evento
propriamente dita.
Logo, quanto menor o RR, maior a redução percentual do evento no grupo
tratado em relação ao grupo-controle. Desenvolvendo o exemplo, conclui-se
que a droga em experimento possibilitou uma redução na letalidade do infarto
agudo do miocárdio de 24% em relação ao grupo-controle. RRR: 24%;
NNT: essa medida expressa o número de pacientes que deve ser tratado a fim
de que um evento adverso adicional seja evitado. Por exemplo, se uma droga
tem o NNT = 5 em relação ao evento morte, significa que 5 pacientes devem
ser com ela tratados, com o objetivo de uma morte adicional ser evitada.

Note que, quanto maior a RAR, menor o NNT. Assim, se determinada


intervenção reduz muito o desfecho, serão necessários poucos pacientes para
tratar até que 1 apresente o resultado esperado. Utilizando o exemplo citado,
pode-se concluir que seria necessário tratar 33 pacientes com a droga
experimental, a fim de evitar a morte de 1. Em outras palavras, para cada 33
indivíduos tratados, 1 morte é prevenida. NNT: 33.

Importante
Apesar de apenas os estudos longitudinais (isto é, estudos de coorte e
ensaios clínicos) serem capazes de calcular o risco (incidência) da
exposição e, portanto, ter os tamanhos de efeitos medidos em risco
relativo, risco atribuível etc., não significa que não seja possível expressar
o tamanho de efeito em odds ratio também. Por exemplo, em estudos de
coorte, uma maneira muito utilizada de controlar possíveis variáveis
confundidoras é utilizar técnicas estatísticas como análises multivariadas,
como a regressão logística. Entretanto, os resultados da regressão logística,
por questões matemáticas, são expressos em odds ratio; então, é possível
que estudos de coorte que utilizem essa técnica apresentem os resultados
em odds ratio. Porém, o contrário não é verdadeiro. Estudos de casos e
controles, que não são capazes de calcular risco (incidência), são obrigados
a calcular o tamanho de efeito em odds ratio, portanto não podem
expressar os dados em termos de risco relativo, risco atribuível etc. Outra
estratégia que os estudos de coorte também utilizam para controle de
variáveis confundidoras é a análise estratificada ou estratificação.
c) Pesquisa de novos medicamentos

Antes de ser aprovada para comercialização no Brasil, uma droga nova deve
ser submetida a estudos rigorosos. Segundo a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa), qualquer investigação em seres humanos, objetivando
descobrir ou verificar os efeitos farmacodinâmicos, farmacológicos, clínicos
e/ou outros efeitos de produto(s) e/ou identificar reações adversas ao(s)
produto(s) em investigação, a fim de averiguar sua segurança e/ou eficácia,
deve seguir os passos referidos na Tabela 17.

Dica
Os ensaios clínicos são os estudos epidemiológicos utilizados no
desenvolvimento e na investigação de novos medicamentos. Para tanto, são
divididos em 5 fases: pré-clínica, 1, 2, 3 e 4; esta última é a etapa da pós-
comercialização, quando o medicamento já foi aprovado e se busca
conhecer reações adversas ainda não detectadas.

Esse acompanhamento é importante, pois mesmo os estudos de pré-


comercialização mais abrangentes só conseguem detectar reações adversas
que ocorrem em cerca de 1 vez a cada 1.000 doses. Reações adversas
importantes que ocorrem 1 vez a cada 10.000 doses, ou mesmo 1 vez a cada
50.000, podem ser detectadas apenas quando grande número de pessoas já
usou o medicamento, após seu lançamento no mercado. O órgão responsável
pela vigilância do produto poderá suspender sua aprovação se novas
evidências indicarem que a droga representa um risco significativo à
população.
A avaliação ética transforma-se em um marco essencial da investigação
clínica para assegurar que os seres humanos sejam respeitados nos termos de
sua dignidade, integridade e valores, evitando que sejam usados apenas como
instrumentos para a obtenção de resultados.
O Código de Nuremberg (1947) foi o 1º documento com repercussão
internacional que estabeleceu princípios éticos mínimos a serem seguidos em
pesquisa envolvendo seres humanos. Foi elaborado em decorrência dos
abusos e das atrocidades cometidos durante a 2ª Guerra Mundial (nos campos
de concentração nazistas, os prisioneiros raciais, políticos e militares foram
colocados à disposição dos médicos para todo e qualquer tipo de
experimentação. Mediante o advento da comunicação e o alcance das
informações, que mostram ao mundo o conflito entre o interesse científico e o
interesse da sociedade em sua totalidade, e com a ética tornando-se
norteadora da evolução social, o choque das imagens da 2ª Guerra produziu
efeito ímpar sobre a comunidade científica e a população). O código
menciona que o consentimento voluntário do ser humano é essencial quando
da participação em ensaios clínicos, além de afirmar a necessidade de estudos
prévios em animais, da análise de riscos e benefícios, da liberdade do
participante de se retirar no decorrer do experimento e da não indução à
participação (Marrus, 1999).
Foi elaborada, em 1964, pela Associação Médica Mundial, a Declaração de
Helsinque, que determina que, em qualquer pesquisa com seres humanos,
cada participante deve ser informado adequadamente sobre os objetivos,
métodos, benefícios previstos e potenciais perigos decorrentes do estudo. Os
sujeitos de pesquisa devem ser informados de que são livres para retirar, a
qualquer momento, seu consentimento em participar. Esse documento
condena ainda o uso do placebo quando já existe tratamento eficaz
estabelecido. Preconiza, também, que deve ser usado o menor tamanho da
amostra (obtido pelos cálculos) para atender aos objetivos da investigação
(Vieira; Hossne, 1998).
No Brasil, foi criada a Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde,
na qual constam as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa
Envolvendo Seres Humanos e que se fundamenta nos principais documentos
internacionais resultantes das declarações e diretrizes sobre pesquisas que
envolvem seres humanos. Essa resolução, além de normatizar a criação,
composição e atuação de Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) e da
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), estabelece exigências
éticas e científicas para pesquisas envolvendo seres humanos e exige que o
esclarecimento dos sujeitos se faça em linguagem acessível (Brasil, 1996).

4. Estudos qualitativos
Até aqui, foram abordados delineamentos metodológicos, cujo enfoque é a
mensuração quantitativa de eventos. Nos últimos anos, tem crescido o
interesse em alargar o campo da investigação em saúde para além dos
indicadores básicos. Os fatores sociais têm, progressivamente, assumido um
papel tão importante como os clínicos, a fim de compreender as motivações e
percepções de todos os componentes sociais envolvidos.
Interesses e realizações referentes a pesquisas qualitativas têm sido crescentes
no campo da Saúde. O método clínico-qualitativo é definido como “aquele
que busca interpretar os significados, de natureza psicológica e
complementarmente sociocultural, trazidos por indivíduos (pacientes ou
outras pessoas preocupadas ou que se ocupam com problemas da saúde, como
familiares, profissionais de saúde e sujeitos da comunidade), acerca dos
múltiplos fenômenos pertinentes ao campo dos problemas da saúde-doença”
(Turato, 2005, p. 508). As principais diferenças entre os métodos
quantitativos e qualitativos são apresentadas na Tabela 18.
De acordo com a Tabela 18, os dados mostram que os métodos têm
identidades próprias, do momento em que seus autores levantam as perguntas
(hipóteses de trabalho) até quando redigem seus relatórios finais de pesquisa.
Diante da tamanha complexidade dos 2 olhares, Turato (2005) desaconselha o
uso da terminologia “quanti-quali”. Segundo o mesmo autor, o olhar
quantitativo focaliza: incidência, prevalência, fatores de risco e de sobrevida,
achados clínicos, diagnósticos, avanços terapêuticos e até análise custo-
benefício. Já os métodos qualitativos valorizam os construtos: vivências e
experiências de vida, adesão e não adesão a tratamento, estigmas e fatores
facilitadores e dificultadores perante abordagens.
A Tabela 19 apresenta as diversas características dos estudos utilizados em
Epidemiologia.
Resumo
Causalidade em Epidemiologia
Alex Jones F. Cassenote
Marina Gemma
Lucas Primo de Carvalho Alves

1. Introdução
Uma questão considerada fundamental na Epidemiologia envolve a
conceituação e a operacionalização metodológica da causalidade; identificar
causas é uma das formas do pensamento científico de abordar a explicação
das origens de um fenômeno. Assim, a causa seria um agente eficaz, e
desvendá-la garantiria conhecimento maior a respeito do fenômeno estudado,
uma vez que é possível intervir sobre um efeito quando se remonta à sua
origem.
Na ótica da Medicina, os médicos geralmente questionam se seus pacientes
com determinada doença foram expostos a possíveis agentes causais; já os
epidemiologistas observam se houve aumento estatisticamente significativo
da associação entre a doença e a exposição estudada. Inicialmente, parecem 2
pontos de vista distintos, contudo existe uma ideologia comum: observar
possível relação entre estar exposto e desenvolver a doença (causa e efeito).
Uma causa pode ser entendida como qualquer evento, condição ou
característica que desempenhe função essencial na ocorrência de uma doença
(Luiz; Struchiner; Kale, 2009). A evolução do conceito de causalidade está
relacionada a uma mudança no paradigma do conhecimento científico, com
forte componente de observação empírica que impulsionou a evolução da
abordagem epidemiológica e dos métodos estatísticos (Lisboa, 2008).
Os termos “causalidade” e “associação” são extremamente caros ao
pensamento científico em geral e ao raciocínio epidemiológico em particular.
No caso da pesquisa sobre fenômenos da saúde-doença, diante da afirmação
etiológica estável e demonstrada de que X causa Y, não resta dúvida quanto à
possibilidade de intervenção no que se refere à prevenção do evento ou
retificação de alguma situação indesejável. Um exemplo trivial: colocar
obstáculos de proteção em terraços, abismos, pontes e outros locais elevados
para evitar que pessoas se aproximem e possam cair é uma iniciativa óbvia
diante da ameaça à vida oferecida pelas quedas de grande altura. Da mesma
forma, ninguém duvida que altas temperaturas ou frio intenso representem
risco à saúde/vida humana. Isso define indiscutíveis medidas de proteção no
seu uso. Em outras palavras, no âmbito da prevenção em saúde, no momento
em que se estabelece relação de causa e efeito de caráter direto, tal relação
articula 2 dimensões: a definição de algo como perigoso e as medidas de
proteção/prevenção a tal perigo (Coutinho et al., 2011).
A teoria da multicausalidade, com seus variados modelos explicativos, tem
hoje seu papel definido na gênese das doenças. Surgiu em substituição à
teoria da unicausalidade, que vigorou por muitos anos e cujo único modelo
existente era chamado de “biomédico” (ver Capítulo 2 – Volume 1). Esse
pensamento atual considera que a grande maioria das doenças advém de uma
combinação de fatores que interagem entre si e acabam desempenhando
importante papel na determinação delas, fato que deve ser levado em conta
sempre que um estudo ou uma pesquisa epidemiológica são desenvolvidos ou
simplesmente acessados para estudos.
Como exemplo dessas múltiplas causas, chamadas de contribuintes, será
citado o câncer de pulmão. Nem todo fumante desenvolve câncer de pulmão,
o que indica que há outras causas contribuindo para o aparecimento da
doença. Estudos mostraram que descendentes de 1º grau de fumantes com
câncer de pulmão tiveram chance 2 a 3 vezes maior de terem a doença do que
aqueles sem a doença na família; isso indica que há suscetibilidade familiar
aumentada para o câncer de pulmão. A ativação dos oncogenes dominantes e
a inativação de oncogenes supressores ou recessivos são lesões que têm sido
encontradas no DNA de células do carcinoma brônquico e que reforçam o
papel de determinantes genéticos nessa doença (Srivastava; Kramer, 1995;
Menezes, 2001).
Assim, mesmo depois de toda a trajetória epidemiológica desenvolvida, não
será possível observar um único fator (fator de risco) e chamá-lo de causa,
mesmo que atenda a todos os pré-requisitos epidemiológicos. Justamente com
esse pensamento, alguns estudiosos criaram um conjunto de critérios e
postulados que devem ser utilizados para tratar de inferência causal. Tais
critérios não devem ser confundidos com modelos explicativos do processo
saúde-doença, muito embora alguns autores considerem os assuntos sob a
mesma linha de pensamento. Os modelos são maneiras de pensar a realidade e
expressam nossa imaginação sobre como o mundo deve funcionar; já os
critérios que serão aqui apresentados têm uma proposta mais “singela”, que é
estabelecer uma regra para a inferência causal.
As possibilidades de estudo de associação foram apresentadas, e uma delas
destaca que a associação é um importante aspecto para o estabelecimento de
nexo causal. Entretanto, mesmo que 2 variáveis estejam associadas, é preciso
considerar alguns outros elementos que devem fortalecer a ideia de
causalidade, uma vez que algumas associações poderão não ser entendidas
como causas (Figuras 1 e 2).

Figura 1 - Relação entre associação causal e não causal

Figura 2 - Processo de avaliação de causalidade


Fonte: adaptado de Clinical Epidemiology: the Essentials, 4ª edição.

Entretanto, poucos estudos, como ensaios clínicos randomizados de tamanho


amostral grande e bem conduzidos, conseguem controlar bem os vieses de
seleção, aferição e confusão. Assim, os principais critérios para o julgamento
de causa são os postulados de Henle-Koch e os critérios de Bradford Hill e
Henle-Koch-Evans, apresentados a seguir.

2. Postulados de Henle-Koch
Em meados do século XIX, em plena Revolução Industrial da Europa, com o
deslocamento das populações para as cidades e a ocorrência das epidemias de
cólera, febre tifoide e febre amarela, os estudiosos ainda se dividiam entre a
Teoria dos Miasmas e a Teoria dos Germes. Ainda nesse século, o francês
Louis Pasteur (1822-1895) não só fundou as bases biológicas para o estudo
das doenças infecciosas, como também estudou outros conceitos
epidemiológicos importantes: o da resistência do hospedeiro e o da imunidade
(Lisboa, 2008; Guilam, 2011). Robert Koch (1843-1910) e Louis Pasteur
(1822-1895) foram 2 dos fundadores da Microbiologia e responsáveis por
parte da atual compreensão da Epidemiologia quanto às doenças
transmissíveis. Foram, sobretudo, os descritores da relação causal entre M.
tuberculosis e a tuberculose (Lisboa, 2008).
Koch criou, também, um conjunto de regras conhecido como “Postulados de
Henle-Koch”, em 1882, que dava ênfase à etiologia infecciosa das doenças
(Tabela 1).

O antraz foi a 1ª doença a preencher todos esses critérios, os quais, desde


então, foram úteis em muitas outras moléstias infecciosas e em intoxicações
por agentes químicos. Entretanto, para muitas doenças, tanto transmissíveis
como não transmissíveis, os postulados de Koch para determinar causalidade
mostram-se inadequados. Muitos agentes causais atuam em conjunto, e o
organismo causador pode desaparecer após o desenvolvimento da doença,
sendo, portanto, impossível a identificação do organismo no indivíduo doente.

Importante
Os postulados de Henle-Koch aplicam-se quando a causa específica é um
agente infeccioso altamente patogênico, agente químico ou outro agente
específico que não apresenta portador saudável, logo uma situação bastante
incomum.
Nos anos que seguiram, houve uma transição de mortalidade por doenças
infecciosas para as doenças crônico-degenerativas que impulsionou a
evolução no conceito de causalidade, passando do modelo monocausal para o
que se chama de “rede de causalidade”, na qual o conceito de causa etiológica
dá lugar ao de fator predisponente ou risco para a doença (Waldman, 1998).
A 1ª referência à rede de causalidade surgiu em 1960, em Epidemiology:
Principles and Methods, livro de MacMahon e Pugh, em que é catalogada e
organizada toda a evolução conceitual e metodológica da Epidemiologia.

3. Critérios de Bradford Hill


Em 1965, Austin Bradford Hill, epidemiologista e 1º estudioso a relacionar o
uso de tabaco ao câncer de pulmão, propôs 9 critérios (ou aspectos de
associação, segundo ele próprio) a serem considerados na distinção entre uma
associação causal e uma não causal, que ficaram conhecidos como critérios de
Hill (Tabela 2). A comparação entre os critérios de Koch e os de Hill mostra a
evolução de diferentes referenciais para o processo saúde-doença. Enquanto
no primeiro há a expectativa da monocausalidade, no último há a
especificidade entre causa e efeito (Lisboa, 2008).
Dica
Os critérios de Hill comparados com os de Koch mostram uma evolução
no modelo de pensamento para o processo saúde-doença, pois passa da
ideia de monocausalidade para a de especificidade entre causa e efeito.

Os critérios de Hill serão discutidos a seguir.

A - Força da associação
Uma associação forte tem maior probabilidade de ser causal do que uma
associação fraca, já que esta tem maior probabilidade de ser ilegítima, por
viés, confusão ou acaso. No entanto, uma associação fraca pode ser causal.
Assim, quanto mais elevada a medida de efeito (risco relativo, odds ratio ou
razão de prevalência), maior a plausibilidade de a relação ser causal.

Exemplo
Um estudo sobre fumo em adolescentes mostrou que a força da associação
entre o fumo do adolescente e a presença do fumo no grupo de amigos foi
da magnitude de 17 vezes (odds ratio 17 – IC95% = 8,8 a 34,8); ou seja,
adolescentes com 3 ou mais amigos fumando têm 17 vezes maior risco
para serem fumantes do que aqueles sem amigos fumantes (Malcon et al.,
2003).

Dica
Um caso de associação forte tem maior probabilidade de ser causal do que
uma associação fraca, apresentando, por isso, maior medida de efeito (risco
relativo, odds ratio, razão de prevalência).

B - Consistência
Se a associação se observa repetidamente em diferentes populações e
diferentes circunstâncias, tem maior probabilidade de ser causal do que de ser
observação isolada. No entanto, falta de consistência não afasta ligação
causal, e pode acontecer que uma causa apenas o seja na presença de fatores
adicionais e/ou concomitantes.

Exemplo
A maioria, senão a totalidade, dos estudos sobre câncer de pulmão detectou
o fumo como um dos principais fatores associados a essa doença
(Menezes, 2001).

C - Especificidade
O conceito aqui retratado implica que a causa apenas conduzirá a 1 efeito e
não a múltiplos efeitos. Esse é um critério que pode ser questionável, uma vez
que algumas exposições conferem risco para vários desfechos, como o caso
da exposição ao tabaco, que confere risco para câncer de pulmão, doenças
cardiovasculares etc.

Exemplo
Poeira da sílica e formação de múltiplos nódulos fibrosos no pulmão
(silicose).

D - Temporalidade
A causa precede o efeito? A exposição ao fator de risco antecede o
aparecimento da doença e é compatível com o respectivo período de
incubação? Nem sempre é fácil estabelecer a sequência cronológica nos
estudos realizados, quando o período de latência é longo entre a exposição e a
doença.
Menezes (2001) sugere um exemplo desse critério: a prevalência de fumo
aumentou significativamente durante a 1ª metade do século, mas houve um
lapso de vários anos até ser detectado o aumento do número de mortes por
câncer de pulmão. Nos Estados Unidos, o consumo médio diário de cigarros,
em adultos jovens, aumentou de 1, em 1910, para 4, em 1930, e 10 em 1950,
sendo que o aumento da mortalidade ocorreu após várias décadas. Liu et al.
(1998) observaram que padrão semelhante vem ocorrendo na China,
particularmente no sexo masculino, só que com intervalo de tempo de 40
anos. O consumo médio diário de cigarros, nos homens, era de 1 em 1952, 4
em 1972, atingindo 10 em 1992. As estimativas, portanto, são que 100
milhões dos homens chineses, hoje com idade de zero a 29 anos, morrerão por
causas associadas ao tabaco, o que implicará 3 milhões de mortes por ano
quando esses homens atingirem idades mais avançadas.
Esse é um dos critérios mais importantes quando associado aos estudos
epidemiológicos. Estudos como os de coorte (e ensaios clínicos) e até mesmo
os caso-controle são capazes de fazer uma relação cronológica entre a
exposição e o desfecho, fenômeno que não poderá ser obtido por meio de
estudo transversal, por exemplo, pois o levantamento do desfecho e das
exposições ocorre ao mesmo tempo.

Importante
A temporalidade, na qual a causa precede o efeito, é o único critério
obrigatório para a avaliação de causalidade. Estudos que não são passíveis
de avaliação de temporalidade (como é o caso dos estudos transversais)
não são capazes de produzir evidências que afirmem que a associação seja
causal; ou seja, a temporalidade é um critério necessário, porém não
suficiente.

E - Gradiente biológico (efeito dose-resposta)

O aumento da exposição causa aumento do efeito? Sendo positiva essa


relação, há mais um indício do fator causal.

Exemplo
Os estudos prospectivos de Doll e Hill (Doll, 1994) sobre a mortalidade
por câncer de pulmão e fumo nos médicos ingleses tiveram seguimento de
40 anos (1951 a 1991). As primeiras publicações dos autores já mostravam
o efeito dose-resposta do fumo na mortalidade por câncer de pulmão; os
resultados desse acompanhamento revelavam que fumantes de 1 a 14
cigarros/dia, de 15 a 24 cigarros/dia e de 25 ou mais cigarros/dia morriam
7,5 a 8, 14,9 a 15 e 25,4 a 25 vezes mais do que os não fumantes,
respectivamente.

F - Plausibilidade
A associação deve ter uma explicação plausível, concordante com o nível
atual de conhecimento do processo patológico. A associação entre fumo
passivo e câncer de pulmão é um dos exemplos da plausibilidade biológica.
Carcinógenos do tabaco têm sido encontrados no sangue e na urina de não
fumantes expostos ao fumo passivo. A associação entre o risco de câncer de
pulmão em não fumantes e o número de cigarros fumados e anos de
exposição do fumante é, ainda, diretamente proporcional (efeito dose-
resposta). Embora, durante muitos anos, não se tenha acreditado, por
exemplo, que a úlcera gástrica ou o câncer de colo uterino poderiam ter um
componente infeccioso causal, os modelos recentes têm demonstrado ação
oncogênica do vírus HPV e mesmo o envolvimento da bactéria Helicobacter
pylori no processo inflamatório gástrico.

G - Coerência
A assunção de causalidade deverá estar ligada a outras observações,
especialmente à história natural da doença (por exemplo, a relação causal
entre consumo de tabaco e câncer de pulmão era coerente com as observações
de que os fumantes tinham displasia do epitélio brônquico). No entanto, a
ausência de coerência não afasta relação causal.

H - Evidência experimental

Mudanças na exposição resultam em mudanças na incidência de doença. Por


exemplo, sabe-se que os alérgenos inalatórios (como a poeira) podem ser
promotores, indutores ou desencadeantes da asma; portanto, o afastamento do
paciente asmático desses alergênicos é capaz de alterar a hiper-responsividade
das vias aéreas, a incidência da doença ou a precipitação da crise.

I - Analogia

O observado é análogo ao que se sabe sobre outra doença ou exposição.

Exemplo
É bem reconhecido o fato de que a imunossupressão causa várias doenças;
portanto, explica-se a forte associação entre HIV/AIDS e tuberculose, já
que, em ambas, a imunidade está diminuída.

Na atualidade, os critérios de Hill constam como um dos mais discutidos em


se tratando de inferência causal, embora raramente seja possível comprovar os
9 postulados para determinada associação. A pergunta-chave nessa questão da
causalidade é a seguinte: os achados encontrados indicam causalidade ou
apenas associação? O critério de temporalidade, sem dúvida, é indispensável
à causalidade; se a causa não precede o efeito, a associação não é causal. Os
demais critérios podem contribuir para a inferência da causalidade, mas não
necessariamente determinam a causalidade da associação (Menezes, 2001).
Embora se trate de uma abordagem muito útil em uma avaliação geral do
problema da causalidade, a “realidade” é mais complexa do que emerge dos
critérios anteriores. Basta pensar no que se conhece sobre fatores de risco e na
sua capacidade de atuação (aceleração ou travagem) na cascata
epidemiológica da causalidade. E a sua classificação, por exemplo, em fatores
de risco necessários, suficientes, potencializadores, adjuvantes ou
desencadeantes ajudará a compreender essa complexidade, que as
metodologias e técnicas de investigação pretendem esclarecer e quantificar.

4. Postulados de Henle-Koch-Evans
Na mesma linha de Hill, o epidemiologista Alfred S. Evans descreveu, em
1976, um conjunto de postulados que se constitui em uma adaptação
epidemiológica dos postulados de Henle-Koch, devido ao fato de que, na
prática, quando se trata de exposições não infecciosas como as ambientais, as
inferências biológicas não podem ser estabelecidas com base no postulado de
Henle-Koch e mesmo nos critérios de Hill. Evans propôs alterações nos
postulados originais, criando os postulados de Henle-Koch-Evans (Tabela 3),
amplamente aceitos atualmente como critérios válidos para definir a causa
biológica da doença (Thuler et al., 2003).
Thuler et al. (2003) explicam, ainda, que esses postulados não são capazes de
prover uma base completa para o estabelecimento de uma relação causal,
recorrendo-se à quantificação do risco associado à exposição ao fator em
estudo que se deseja atribuir “a causa da doença”. O estudo de Marshall e
Warren, que mostra a associação entre úlcera péptica e Helicobacter pylori, é
exemplo da insuficiência da nomenclatura infecciosa/crônica, e os estudos de
genética do câncer, que se multiplicaram nos últimos anos, são exemplos do
desafio de revisão da concepção etiológica das doenças (Lisboa, 2008).
Em 1985, Miettinen propôs o que chamou de “função de ocorrência” para
descrever as relações entre causa e efeito, que tem como correspondentes
subsídios de análise de associação estatística os Modelos Lineares
Generalizados, cujo modelo particular de regressão logística encontra larga
aplicação.
Importante
Na atualidade, o postulado de Henle-Koch-Evans é amplamente aceito para
definir a causa biológica da doença, uma vez que considera exposições
infecciosas e não infecciosas prévias como causas para as diversas
doenças.

Para superar essa dificuldade, Rothman e Greenland (2005) propuseram


formas de cálculo de efeitos por proposições lógicas de união e intersecção de
conjuntos de fatores causais. Eles apresentam seu modelo geral de
causalidade, sugerindo que, para a ocorrência da doença, é necessário um
conjunto de causas componentes. De forma simplificada, pode-se interpretar
como causa suficiente um conjunto de eventos e condições mínimas que
inevitavelmente acarretam a doença. Assim, algumas causas componentes,
quando presentes em todas as causas suficientes alternativas, são chamadas
causas necessárias (Lisboa, 2008).
O fundamento de toda pesquisa é o método científico, que se baseia na
elaboração de conjecturas e na busca de evidências empíricas que possam
contribuir para negá-las ou confirmá-las. Assim, a busca de regras ou receitas
para inferir causalidade confere uma objetividade pouco justificada a um
processo que é, por definição, criativo e imperfeito. Assim, seu uso deve ser
visto como uma estratégia subjetiva para facilitar a abordagem de um
problema altamente complexo.
Não há um critério totalmente confiável para determinar se uma associação é
causal. A “inferência causal” deve ser feita com base nas evidências
disponíveis: a incerteza sempre existirá assim que a ciência atual for
constituída. Quando se toma uma decisão, deve-se dar peso adequado a
diferentes estudos. Ao avaliar os diferentes aspectos da causalidade
apresentados, a existência de clara relação temporal é essencial. Uma vez que
isso tenha sido estabelecido, os maiores pesos serão dados para plausibilidade
biológica, consistência e relação dose-resposta. A possibilidade de que uma
associação seja causal aumenta quando diferentes tipos de evidência levam à
mesma conclusão (Beaglehole; Bonita; Kjellström, 2010).
Evidências de estudos bem delineados são muito importantes, especialmente
se realizados em diferentes localidades. O uso mais importante da informação
sobre a causalidade de doenças e agravos está na área da prevenção. Quando a
cadeia causal é estabelecida com base em dados quantitativos oriundos de
estudos epidemiológicos, as decisões sobre prevenção não serão controversas.
Em situações em que a causalidade não é bem estabelecida, mas a prevenção
do desfecho tem grande impacto sobre a saúde pública, o princípio da
precaução poderá ser aplicado para que sejam adotadas medidas preventivas
(Beaglehole; Bonita; Kjellström, 2010).

5. Amostragem
Outra variável importante para ser avaliada no momento de inferir a
causalidade de uma associação é a maneira como os dados foram coletados.
De modo geral, podemos afirmar que uma amostra é adequada quando
representativa da população de origem; isto é, estima-se que a proporção das
múltiplas variáveis encontradas na população seja semelhante à proporção
dessas mesmas variáveis na amostra. Não existe método perfeito para que isso
seja alcançado; porém, a maneira mais precisa é uma seleção probabilística de
participantes na população, especialmente quando a amostra é muito grande e
aleatória (Figura 3). Dessa forma, os pacientes deveriam ser selecionados
aleatoriamente de uma população imaginária. Quanto mais a amostra se
aproximar desse ideal, maior será a capacidade de o estudo poder inferir
causalidade.

Figura 3 - Tipos de amostragem

A - Amostragem probabilística aleatória simples

A amostra probabilística aleatória simples é realizada quando cada indivíduo


da população tem a mesma probabilidade de ser selecionado (Figura 4).
Quando esse procedimento é feito em um grande tamanho amostral, de modo
que subgrupos minoritários da população consigam ser selecionados, é
teoricamente o padrão-ouro das amostragens. Entretanto, quando a amostra é
pequena, indivíduos de subgrupos pequenos têm pouca probabilidade de
entrar na amostra, tornando o estudo deficitário. Esse tipo de amostragem é
realizado, por exemplo, em pesquisas de campanhas eleitorais.

B - Amostragem probabilística estratificada

A amostra probabilística estratificada (Figura 4) é realizada quando a


população é dividida em diferentes estratos de subgrupos e os indivíduos são
selecionados desses subgrupos. É uma forma de garantir que todos os
subgrupos, inclusive os minoritários, façam parte da amostra. A desvantagem
dessa abordagem é que nem todos os subgrupos ficam representados, por não
terem sido identificados, ou que subgrupos com pouca representatividade
populacional ficam super-representados.

C - Amostragem probabilística por conglomerados


A amostra probabilística por conglomerados (Figura 4) é realizada
principalmente em estudos multicêntricos, como por exemplo, selecionando
hospitais representativos de um país. Para que isso ocorra, os conglomerados
devem ser selecionados aleatoriamente, por meio de sorteio, caso contrário
torna-se uma amostra de conveniência.

Figura 4 - Amostragens probabilísticas esquematizadas


Fonte: Hütten; Azeredo, 2017.

D - Amostragem por conveniência

A amostragem por conveniência é a mais usada pela facilidade de ser obtida,


embora a sua seleção não seja aleatória. A amostra, por essa estratégia, é feita
por meio de centros de saúde, instituições acadêmicas ou locais em que os
participantes sejam de fácil obtenção. Não é uma prática incorreta, desde que,
na interpretação dos resultados, seja levado em conta a quem eles podem ser
aplicados. Entretanto, por conta disso, os resultados das pesquisas clínicas
resultam em um grande desafio aos clínicos, devido à possibilidade de
generalização dos resultados para sua prática (Fletcher; Fletcher, 2005).

Resumo
Medicina baseada em
evidências, revisão sistemática
e meta-análise
Augusto César F. de Moraes
Alex Jones F. Cassenote
Marília Louvison
Marina Gemma
Lucas Primo de Carvalho Alves

1. Introdução
Este capítulo propõe a apresentação de um dos conteúdos mais recentes
discutidos em Epidemiologia e nas Ciências Médicas: a Medicina Baseada em
Evidências (MBE), as revisões sistemáticas e a meta-análise. O médico que
conhecer essas ferramentas estará apto a fazer uma boa análise de novos
trabalhos que forem publicados, independentemente de sua área de atuação ou
especialidade, podendo lidar com a vastidão de informações que surgem no
dia a dia.
Tradicionalmente, a prática médica era em muito fundamentada na
experiência de cada profissional. As provas científicas tinham pouco peso
quando um médico tinha de tomar determinada decisão clínica. Por mais
contraditório que possa parecer, essa situação era ainda mais presente no
mundo acadêmico, quando o argumento de autoridade, ex cathedra,
prevalecia sobre qualquer outra coisa. No entanto, setores importantes da
classe médica, lentamente, começaram a perceber que as decisões clínicas
eram tão mais apropriadas quanto mais embasamento encontravam em
conhecimentos provenientes de estudos científicos. Apesar da grande
resistência em determinados meios médicos, o movimento favorável às
decisões clínicas baseadas em evidências científicas começou a ganhar corpo,
sobretudo a partir da década de 1980 (Cordeiro et al., 2012).
Nesse cenário, David Sackett e seu grupo da Universidade de McMaster, no
Canadá, cunharam o termo “medicina baseada em evidências”. A ideia central
era a de que os médicos se utilizassem de modo consciencioso, explícito e
judicioso da melhor evidência científica atual quando tomassem decisões em
seu trabalho de cuidado individual dos pacientes. Obviamente, a MBE não
nega o valor da experiência pessoal do profissional, propondo apenas que esta
esteja alicerçada em evidências científicas, o que, além de tudo, confere
caráter ético à prática profissional (Cordeiro et al., 2012).
Nas últimas 2 décadas, a produção científica apresentou crescimento
exponencial de artigos publicados em todas as áreas das Ciências da Saúde.
Utilizando um assunto relacionado à especialidade de Cardiologia, a Figura 1
ilustra esse crescimento em um espaço de tempo de 10 anos (2007 a 2017).
Os termos-chave (descritores) utilizados para essa pesquisa realizada junto ao
PubMed foram: “cardiovascular disease” e “adult”, considerando todos os
tipos de artigos (estudos originais, revisões, editoriais, entre outros). Observe
que existe crescimento médio elevado de cerca de 1.000 artigos por ano.

Figura 1 - Número de publicações entre 2006 e 2018 indexadas no PubMed, relacionadas com
doença cardiovascular em adultos

Essa evidência mostra a necessidade de sintetizar o conhecimento científico


para gerar atendimento melhor e mais próximo do mundo “real” do paciente,
por meio de provas obtidas das pesquisas básicas e aplicadas.

Importante
A medicina baseada em evidências deve respeitar algumas etapas para a
síntese do conhecimento, que envolvem transformar as necessidades de
informação em perguntas passíveis de resposta; buscar com máxima
eficiência a melhor evidência para responder à questão; avaliar
criticamente as evidências quanto à sua validade e utilidade; implementar
os resultados na prática clínica; e, por fim, avaliar o desempenho.

As principais metodologias que a MBE tem utilizado para a síntese do


conhecimento são revisão sistemática e meta-análise, descritas
metodologicamente a seguir.

2. Medicina baseada em evidências


A MBE refere-se ao aperfeiçoamento das competências tradicionais do
médico no diagnóstico, no tratamento, na prevenção e nas áreas correlatas por
meio do processamento sistemático de questões relevantes e passíveis de
resposta e do uso de estatísticas matemáticas de probabilidade e risco
(Greenhalgh, 2001). Em outras palavras, a MBE utiliza provas científicas
existentes e disponíveis no momento, com boas validades interna e externa
para a aplicação de seus resultados na prática médica (El Dib, 2007).
A MBE tornou-se factível, pois houve (Guimarães, 2009):

O desenvolvimento das estratégias para busca e avaliação das


evidências;
A criação das revisões sistemáticas das intervenções em saúde;
O surgimento dos periódicos secundários com base em evidências;
A criação dos sistemas de informação que trazem até nós as melhores
evidências;
A identificação e a aplicação das estratégias efetivas para aprendizado
em longo prazo e melhora da performance clínica.

Para que a MBE seja desenvolvida na prática médica, alguns autores


estabeleceram passos para a busca de evidências, que podem ser vistos na
Tabela 1 (Benseñor; Lotufo, 2005).
A - Passo 1

Dica
O 1º passo na medicina baseada em evidências é converter a informação
que se necessita conhecer sobre um paciente em uma pergunta que possa
ser respondida.

Inicialmente, é preciso converter a informação necessária sobre o paciente em


uma pergunta. Sackett et al. (1997) afirmam que esse passo é o mais difícil na
busca de melhores evidências para abordar problemas clínicos. Para muitos
médicos, os esforços para fazer perguntas e procurar respostas são tão grandes
que, somados à limitação de tempo para leitura, impossibilitam que as
necessidades de informação sejam satisfeitas.
Os mesmos autores apontam os tópicos centrais do trabalho clínico em que
surgem frequentemente as perguntas clínicas. São eles: achados clínicos,
etiologia, manifestações clínicas das doenças, diagnóstico diferencial, exames
diagnósticos, prognósticos, tratamento, prevenção, experiência e significado e
automelhora.
Nobre, Bernardo e Jatene (2003) apontam, no primeiro de seus 3 artigos sobre
a MBE, que a forma preconizada para a elaboração de uma pergunta clínica é
conhecida pelo acrônimo PICO (Tabela 2), formado por “P” de “Paciente” ou
“População”, “I” de “Intervenção” ou “Indicador”, “C” de “Comparação” ou
“Controle” e “O” de “Outcome”, que significa desfecho clínico, resultado, ou,
por fim, a resposta que se espera encontrar nas fontes de informação
científica. “P” pode também ser problema ou “doença”.

Dica
O acrônimo PICO forma um macete para a memorização do que é
necessário para formular uma questão em medicina baseada em evidências:
Paciente ou população, Intervenção ou indicador, Comparação ou controle
e Outcome (ou desfecho).

Lopes (2000) sugere a alternativa a seguir: a questão deve ser enunciada da


forma mais clara possível, para facilitar a pesquisa da informação necessária e
a identificação da melhor alternativa para a resolução do problema. A questão
tem sido colocada em um contexto de 4 elementos:

1 - Problema.
2 - Fator de predição.
3 - Alternativa.
4 - Resultado ou evento.

É importante notar que, para determinar o valor preditivo de determinado


fator, torna-se necessária a comparação de 2 ou mais alternativas. Dessa
forma, os elementos 2 e 3 podem ser abordados em conjunto, passando a
questão a ser identificada por 3 elementos, fáceis de serem lembrados por
meio das iniciais PPR: Problema, fator de Predição ou Preditor (P) e
Resultado (R).
O fator preditor de resultado pode ser uma intervenção médica, visando ao
diagnóstico (por exemplo, teste diagnóstico positivo x negativo) ou
tratamento (por exemplo, anti-hipertensivo A x anti-hipertensivo B), uma
exposição (por exemplo, história positiva x negativa para contato com
portadores de tuberculose) a que o paciente foi ou está submetido,
comportamento do paciente (por exemplo, história positiva x negativa para
hábito de fumar cigarros), uma característica sociodemográfica (por exemplo,
idade, procedência, tipo de ocupação) ou um sintoma ou sinal do exame
físico. O resultado costuma ser um evento tipo cura ou melhora da qualidade
de vida.
A Tabela 3 traz 2 exemplos de questões construídas dentro do contexto da
MBE. No 1º exemplo, ao unir os 3 elementos, Problema (P), Preditor (P) e
Resultado (R), a questão poderia ser enunciada da seguinte forma: em
pacientes adultos com cardiomiopatia dilatada e em ritmo sinusal, o
acréscimo de anticoagulante oral à terapêutica habitual da insuficiência
cardíaca determina menor mortalidade e melhoria da qualidade de vida?
B - Passo 2

Importante
O 2º passo da medicina baseada em evidências visa à busca pela
informação utilizando a abordagem “6S”: em Sistemas computadorizados
de apoio à decisão, Summaries (resumos), Sinopse de sínteses, Sínteses ou
revisões sistemáticas, Sínteses de estudos isolados e Single original studies
(estudos originais).

Uma vez formulada a pergunta, é preciso buscar a resposta. O próximo passo


para a aplicação da MBE, portanto, é o acesso à informação. A busca pode ser
realizada em bases de dados e repositórios que disponibilizam os trabalhos
científicos originais, cabendo ao leitor o ônus de selecionar e analisar
criticamente a validade de seus resultados.
Guimarães (2009) acrescenta que as fontes de busca da melhor evidência para
os cuidados de saúde estão em constante aprimoramento. Atualmente, uma
das estratégias utilizadas é a da abordagem “6S”, desenvolvida por DiCenso,
Bayley e Haynes (2009), disponível para acesso a informações baseadas em
evidências (Tabela 4).
O 1º S é o de Sistemas Computadorizados de Apoio à Decisão (SCADs), os
quais integram e sumarizam todas as evidências relevantes sobre um
problema clínico. Nesses sistemas, os dados individuais dos pacientes são
pareados com programas ou algoritmos em uma base computadorizada,
gerando recomendações específicas para os médicos (Garg et al., 2005).
Quando não existe um SCAD para resolver um problema clínico, utilizamos
os Summaries (resumos), o 2º S. Exemplos:

BMJ Clinical Evidence;


DynaMed;
Physicians’ Information and Education Resource (PIER);
UpToDate;
Registered Nurses’ Association of Ontario;
Canadian Diabetes Association;
National Guideline Clearinghouse.

O 3º S é a Sinopse de sínteses, encontrada nos periódicos ou nas bases de


dados fundamentadas em evidências. Exemplos:

ACP Journal Club;


Evidence-Based Medicine;
Evidence-Based Mental Health;
Evidence-Based Nursing;
Database of Abstracts of Reviews of Effects (DARE).

As Sínteses (4º S), ou revisões sistemáticas, são um resumo de todas as


evidências relacionadas a uma questão clínica específica. Podem ser
encontradas em:

ACP Journal Club Plus;


EvidenceUpdates;
Nursing+;
Cochrane Library;
Campbell Library.

As Sinopses de estudos isolados (5º S) fornecem um resumo detalhado de um


artigo de boa qualidade. Também são encontradas nos periódicos firmados em
evidências, como ACP Journal Club Plus, EvidenceAlerts e Nursing+.
Por fim, têm-se os Single original studies (estudos originais), 6º S, que podem
ser acessados nas bases PubMed, EMBASE, PsycINFO®, CINAHL etc. A
Tabela 5 traz os endereços eletrônicos de algumas dessas fontes.
C - Passos 3 e 4

Dica
Os passos 3 e 4 da medicina baseada em evidências são destinados a uma
avaliação crítica da literatura, a fim de determinar um tipo de estudo que
possibilite a menor quantidade de viés possível.

O próximo passo crucial para uma pesquisa em busca de evidências é a


avaliação crítica da literatura. Para cada pergunta clínica, há um tipo de
estudo com menor possibilidade de viés. Logo, conhecer os diversos tipos de
estudo, suas vantagens e desvantagens é fundamental para a seleção do tipo
de estudo apropriado. Na Tabela 6, estão presentes alguns dos tipos de
estudos epidemiológicos com uma breve descrição.
Quando publicam os seus resultados, os pesquisadores almejam a
generalização de seus dados para um contexto mais universal. Contudo, cabe
a cada leitor julgar a real aplicação dos resultados na sua realidade de
trabalho, sobretudo na resposta de sua pergunta. Essa capacidade de
generalização chama-se validade externa. Porém, mesmo com a validade
externa aceitável, o leitor precisará dimensionar a aplicação dos resultados no
seu contexto local de trabalho e no caso clínico em questão (passos 3 e 4).

D - Força de evidência

O Centre for Evidence-Based Medicine (CEBM-Oxford) desenvolveu graus


de recomendação e forças de evidências atualmente utilizados pelas diferentes
sociedades especializadas. No Brasil, por exemplo, a Sociedade Brasileira de
Cardiologia (SBC) utiliza esse sistema com o objetivo de analisar o nível de
evidência científica por tipo de estudo.
Os graus de recomendação e força de associação, elaborados pelo CEBM-
Oxford, são:

Estudos experimentais ou observacionais de melhor consistência;


Estudos experimentais ou observacionais de menor consistência;
Relatos de casos (estudos não controlados);
Opinião desprovida de avaliação crítica, com base em consensos, estudos
fisiológicos ou modelos animais.

Fundamentado nesses pressupostos, o CEBM-Oxford chegou aos níveis de


evidência científica para cada tipo de estudo, que são utilizados nas diretrizes
de diferentes sociedades e norteiam a MBE. Podem ser analisados na Tabela 7
(SBC, 2005).
A hierarquia dos níveis de evidências apresentada é válida para estudos sobre
tratamento e prevenção. Se a questão formulada for relacionada a fatores de
risco, prevalência de uma doença ou sensibilidade e especificidade de um
teste diagnóstico, a ordem dos níveis de evidências apresentados será
modificada em virtude da questão clínica. Em outras palavras, a hierarquia
dos níveis de evidências não é estática, mas, sim, dinâmica. O grau de
evidência surge devido à questão de que alguns delineamentos de pesquisa
são mais efetivos em sua função de solucionar questões sobre as intervenções,
trazendo a ideia de hierarquia das evidências (Figura 2).
Figura 2 - Tipos de estudo segundo a força de evidência
Fonte: adaptado de Quadros; Castelo Filho; Baracat, 2003.

Importante
A hierarquização dos trabalhos científicos promove uma estrutura para
ordenar evidências que avaliam intervenções na área de Saúde e indica que
estudos devem ter mais confiabilidade na avaliação em que uma mesma
questão é examinada por diferentes estudos.

Observe que, tanto na Tabela 7 quanto na Figura 2, nos níveis mais elevados
estão os estudos de revisão sistemática e meta-análise, portanto será
apresentada uma síntese sobre a metodologia de cada um desses estudos nos
próximos tópicos.
Um conceito paralelo à MBE tem sido adotado na atualidade como Prática
Baseada em Evidências (PBE), pois foi abraçada por outras áreas do
conhecimento, como Enfermagem, Saúde Mental, Fisioterapia, Terapia
Ocupacional, Educação e Psicoterapia, entre outras, abordando temas
relativos a prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação. Essa prática
também é utilizada pelos formuladores de políticas de saúde e gestores de
serviços de saúde, não sendo hoje mais exclusividade da Clínica (Sampaio;
Mancini, 2007; Sandelowski; Barroso, 2007; Joanna Briggs Institute, 2008;
De-La-Torre-Ugarte-Guanilo; Takahashi; Bertolozzi, 2011).

3. Revisão sistemática
Importante
A revisão sistemática é uma metodologia rigorosa que inclui etapas
específicas que devem ser cumpridas, dividindo-se em 7: formulação da
pergunta, localização e seleção dos estudos, avaliação crítica dos estudos,
coleta de dados, análise e apresentação dos dados, interpretação dos
resultados e aperfeiçoamento e atualização.

A revisão sistemática constitui o meio de obter os subsídios para a MBE ou


PBE. É uma metodologia rigorosa, proposta para identificar os estudos sobre
um tema em questão, aplicando métodos explícitos e sistematizados de busca;
avaliar a qualidade e validade desses estudos, assim como sua aplicabilidade
no contexto em que as mudanças serão implementadas, para selecionar os
estudos que fornecerão as evidências científicas e disponibilizar a sua síntese
com vistas a facilitar sua implementação na PBE. Cada um desses momentos
é planejado no protocolo da revisão sistemática, considerando critérios que os
validam para minimizar o viés e outorgar qualidade à metodologia. Devem-se
registrar os procedimentos desenvolvidos em cada momento, para possibilitar
que a revisão sistemática seja reproduzida e conferida por outros
pesquisadores, tornando-a uma metodologia consistente para embasar a PBE
(Egger; Smith; Altman, 2009; Green et al., 2011; De-La-Torre-Ugarte-
Guanilo; Takahashi; Bertolozzi, 2012).
A expressão “revisão sistemática” surgiu em oposição à expressão “revisão
narrativa”. As revisões narrativas são bastante apropriadas para descrever a
história ou a evolução de um problema e seu gerenciamento, bem como para
discutir o assunto do ponto de vista teórico ou contextual, estabelecer
analogias ou integrar áreas de pesquisa independentes, com o objetivo de
promover um enfoque multidisciplinar.
Dessa maneira, a revisão sistemática difere da revisão tradicional, também
conhecida como revisão narrativa da literatura, pois responde a uma pergunta
mais pontual. Para superar possíveis vieses em cada etapa, exigem-se o
planejamento de um protocolo rigoroso sobre busca e seleção das evidências
científicas, avaliação da validade e aplicabilidade das evidências científicas e
síntese e interpretação dos dados oriundos das evidências científicas
(Cordeiro et al., 2007; De-La-Torre-Ugarte-Guanilo; Takahashi; Bertolozzi,
2012).
No entanto, as revisões narrativas não fornecem respostas quantitativas para
questões clínicas específicas. A Tabela 8 sintetiza as principais diferenças
entre as revisões narrativas e sistemáticas. Neste capítulo, os esforços estarão
concentrados nas revisões sistemáticas e na meta-análise, por serem
metodologias mais científicas do que as revisões narrativas.
A execução de uma revisão sistemática baseia-se em métodos sistemáticos e
predefinidos. Assim, uma revisão sistemática é executada em passos ou
etapas. A metodologia da revisão sistemática inclui etapas específicas que
devem ser cumpridas.
Uma maneira simplificada de ilustrar uma revisão sistemática é entendê-la
como um quebra-cabeça. Por meio desse exemplo, a literatura pode ser vista
como um amontoado desorganizado de peças para vários quebra-cabeças
diferentes. Realizando uma revisão sistemática, é possível identificar as peças
que serão úteis em cada um deles. Com base nessa montagem, é possível
analisar a consistência científica do que pode auxiliar em uma decisão clínica.

4. Meta-análise

Dica
A meta-análise consiste em uma análise estatística que visa sintetizar
resultados dos diversos estudos incluídos na revisão sistemática, a fim de
obter um resultado, que é representado por meio de um gráfico chamado
forest plot.

Uma meta-análise refere-se a uma análise estatística para sintetizar resultados


dos vários estudos incluídos em uma revisão sistemática. Como conceituado,
a meta-análise é uma análise estatística que objetiva maior poder estatístico e
maior precisão para estimar efeitos de pequena magnitude, consistência ou
heterogeneidade de resultados e generalização desses resultados. O resultado
da análise estatística é representado em um gráfico chamado forest plot
(Figura 4).
Segundo Mancini et al. (2014), forest plot é a representação gráfica das
medidas dos efeitos de cada estudo individual, assim como a dos efeitos
combinados. O termo “forest” (floresta, em inglês) foi criado porque o gráfico
parece uma floresta de linhas. A linha vertical central indica quando não há
diferença(s) estatisticamente significativa(s) entre os grupos. Os pontos
representam as médias das diferenças de cada estudo, e as linhas horizontais,
os intervalos de confiança ao redor das médias das diferenças. O losango,
também chamado diamante, representa a média combinada de todos os efeitos
dos estudos da comparação analisada pela meta-análise. A interpretação de
uma figura forest plot é simples: se o diamante ou os intervalos de confiança
tocarem a linha central do gráfico, indica que não há diferença
estatisticamente significativa entre os grupos.
Figura 3 - Meta-análise de avaliação do risco de fenda palatina em filhos de mães que fumaram na
gestação em relação aos filhos de mães que não fumaram
Fonte: adaptado de Epidemiologia Básica, 2ª edição.
Figura 4 - Gráfico tipo forest plot com risco relativo e IC 95% para reação local associada à toxina
botulínica em estudos randomizadosh
Fonte: adaptado de Zagui, 2008.

Os elementos principais do gráfico tipo forest plot estão demarcados por


números. Outros elementos geralmente presentes estão representados na
Figura 4: a 2ª coluna contém os dados do grupo experimental de cada estudo.
Os valores indicam o número de eventos (n) e o tamanho do grupo (N). Na
próxima coluna, estão os dados do grupo-controle, e os valores também
indicam o número de eventos no grupo (n) e o tamanho deste (N). No rodapé
da Figura, encontram-se algumas informações sobre a meta-análise, como o
teste de significância do efeito global (um valor de p para a meta-análise) e o
resultado para a medida de inconsistência (I2), que mede quanto da diferença,
entre os estudos, se deve à heterogeneidade. No resultado expresso em
porcentagem, em que inconsistências de até 25% são consideradas baixas;
50%, intermediárias; e maiores que 75%, altas, a realização da meta-análise
pode ser questionável.
É importante lembrar, também, que as meta-análises e revisões sistemáticas
estão sujeitas a diversos vieses, dentre os quais os principais são qualidade de
estudos e publicação. O viés de publicação está relacionado com a não
publicação de resultados não esperados. Por exemplo: um grupo está
estudando o efeito de uma intervenção na redução da gordura corpórea em
adolescentes, mas a intervenção não tem efeito. Os pesquisadores podem
querer não publicar a pesquisa ou, se submeterem o artigo, o editor/revisor
pode não aceitar o trabalho para publicação porque o resultado não foi o
esperado.
Outro gráfico importante nas meta-análises é o funnel plot (ou gráfico de
funil), que serve para identificação de viés de publicação entre os estudos.
Viés de publicação é um fenômeno que ocorre quando há a tendência de
publicação de resultados estatisticamente significativos em detrimento de
resultados negativos (sem significância estatística). Por exemplo, vamos
supor que determinada medicação tenha um tamanho de efeito real na
população de um risco relativo entre 0,6 e 0,7. Simplesmente por erro
amostral (acaso), alguns estudos encontrarão tamanhos de efeito maiores (por
exemplo, risco relativo entre 0,3 e 0,4) ou tamanhos de efeito menores e nulos
(por exemplo, risco relativo entre 0,9 e 1,2). Por viés de publicação, há a
tendência de que os estudos sem significância estatística, caso do último
estudo citado, não sejam publicados, o que faz com que, na meta-análise, o
tamanho de efeito fique superestimado por sumarizar apenas resultados
positivos. Além disso, os estudos sem significância estatística tendem a ter
menor tamanho amostral, o que dificulta ainda mais a publicação. Dessa
forma, o gráfico de funil propõe-se a analisar esse fenômeno plotando, no
eixo x, o tamanho de efeito e, no eixo y, o tamanho amostral (n) do estudo
(Figura 5). Espera-se, em um estudo sem viés de publicação, uma simetria de
resultados, com resultados tanto negativos quanto positivos, principalmente
em estudos com amostras pequenas. À medida que aumenta o tamanho
amostral, o tamanho de efeito se aproxima do tamanho de efeito real.

Figura 5 - Funnel plot ou gráfico de funil: (A) apresenta estudos claramente com viés de publicação,
pois estão todos concentrados à direita do tamanho de efeito real e da meta-análise; (B) apresenta
resultados simetricamente em torno do tamanho de efeito real, causando um efeito de “funil
invertido”
Fonte: adaptado de Egger et al., 1995.

5. US Preventive Services Task Force


Um dos órgãos principais de avaliação de evidências na população é o norte-
americano US Preventive Services Task Force (USPSTF). Esse órgão é uma
grande força-tarefa que visa avaliar a evidência científica para exames de
rastreio, aconselhamento e medicações preventivas para adultos e crianças
que não apresentam sintomas. O USPSTF não leva em conta a custo-
efetividade dos tratamentos, e, sim, apenas se há fortes indícios científicos
que apontem que determinada intervenção seja benéfica. O órgão divide a
qualidade das evidências em 5 categorias:

A - Há alta convicção de que o benefício é substancial (recomendável).


B - Há alta convicção de que o benefício é moderado, ou há moderada
convicção de que o benefício é moderado ou substancial (recomendável).
C - Para a maioria dos indivíduos, é provável que haja apenas pequeno
benefício (não recomendável).
D - Há moderada ou alta convicção de que a intervenção não tem
benefício, ou que os danos são maiores do que os benefícios
(recomendação contra realizar a intervenção).
I - As atuais evidências são insuficientes para avaliar os benefícios ou
malefícios.

Algumas provas de concursos médicos estão cobrando as intervenções de


categoria A e B do USPSTF, as quais estão sumarizadas na Tabela 11.
Resumo

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