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SENTIR

HÉLIO JOSÉ GUILHARDI


ITCR – CAMPINAS
2023

O psicoterapeuta deve explicitar para o cliente que sentimentos não são causas de
comportamentos: sentimentos e comportamentos ocorrem sempre juntos, em
função das contingências de reforçamento que os produzem.

Embora sentir (note que foi substituído o substantivo sentimento pelo verbo sentir) e agir
(note que foi substituído o substantivo comportamento pelo verbo agir) estejam sempre
juntos, o psicoterapeuta e o cliente podem privilegiar um em relação ao outro, o que leva
à errônea conclusão de que um é isolado do outro. Assim, uma pessoa que está sofrendo
porque a pessoa que ela ama a abandonou dará ênfase aos sentimentos aversivos
presentes: angústia, depressão, culpa, ansiedade, medo, abandono etc., embora diversas
classes de comportamentos operantes também estejam alteradas. De maneira análoga,
uma pessoa que tem poucas semanas para entregar sua tese de doutorado dará ênfase aos
comportamentos de procrastinação, a comportamentos incompatíveis com escrever a
tese, à dificuldade de sistematizar os dados de sua pesquisa e de sintetizar as referências
etc.; embora diversas classes de sentimentos também estejam presentes. O
psicoterapeuta, ao priorizar os sentimentos, produzirá mudanças nos comportamentos
concomitantemente; ao enfatizar os comportamentos, produzirá simultaneamente
mudanças nos sentimentos. Em suma, em geral, quando predominam comportamentos
respondentes (especialmente na forma de estados corporais aversivos), o cliente narra
mais enfaticamente seus sentimentos, ou seja, o que está sentindo; quando predominam
comportamentos operantes, o cliente narra prioritariamente como se comporta, ou seja, o
que fez ou falou.
Há uma tendência generalizada de atribuir aos sentimentos a função de causa dos
comportamentos. Assim, numa versão mecanicista, pode-se visualizar a relação causal
como se segue.
João sente raiva João agride alguém
sentimento comportamento

A raiva é a causa necessária e suficiente da agressão. Tal atribuição de função causal para
os sentimentos e emoções (“Eles causam comportamentos”) não é aceita nem adotada
pela TCR, que – de acordo com Skinner – substitui o modelo explicativo mecanicista pelo
modelo de seleção do comportamento pelas consequências.
A TCR conceitua que sentir e agir são ambos classes de manifestações do organismo.
São evocados e eliciados por eventos antecedentes e selecionados pelos eventos
consequentes. Assim:
Tabela 18
Contingência de reforçamento que produz sentir (sentimentos) e agir (comportamentos)

Funções evocadoras- Manifestações Funções


eliciadoras Funcionais Selecionadoras

Um estranho fez João sentiu raiva O estranho, ao ser


“elogios” inoportunos (sentimento) e empurrou agredido, fugiu do
para a namorada de João e chutou (ações) essa alcance de João.
na saída da balada. pessoa.

Nota. O comportamento “inconveniente” do desconhecido (Funções evocadoras-


eliciadoras) com a namorada do João teve função de evento aversivo, e poderia ter
evocado diversos comportamentos de fuga-esquiva de João: ele poderia acelerar os
passos, segurar firmemente a garota e se afastar daquele lugar; poderia chamar um
segurança e pedir providências; poderia seguir em frente resmungando “Nunca mais volto
neste antro de marginais...” etc. Optou por empurrar e chutar o intruso (Manifestações
Funcionais). A consequência foi que o indivíduo saiu correndo (a condição aversiva se
desfez), João puniu o atrevido com empurrões e chutes e, finalmente, comportou-se
guiado por uma regra que considera correta: “Um homem não leva desaforos para
casa...” (Funções Selecionadoras).
O cliente deve se tornar familiarizado com os conceitos aqui expostos, os quais
introduzem um novo paradigma para a compreensão dos papéis dos sentimentos e das
ações humanas. Como as sensações corporais aversivas (raiva, no exemplo apresentado
no paradigma acima) são sentidas imediatamente, elas são percebidas antes que as ações
sejam emitidas, o que produz uma conclusão de que o que vem antes causa o que vem
depois. Esta concepção mecanicista não encontra apoio na concepção funcionalista da
Análise do Comportamento. O que vem antes do sentir (eventos antecedentes com
diferentes funções: SD, Spré-av, S∆, SDp etc.) evoca operantes e elicia respondentes que
interagem entre si e produzem consequências reforçadoras ou aversivas.
Cabe ao psicoterapeuta solicitar que o cliente descreva vários episódios comportamentais
e, apoiado nas análises que o psicoterapeuta faz desses episódios, levá-lo a consolidar a
nova conceituação sobre o papel dos sentimentos. Assim:
C – Fiquei com muita raiva de meu marido quando ele disse que o jantar estava atrasado
e de propósito “enrolei” mais 15 minutos antes de servir à mesa.
P – Seu marido a criticou pelo atraso do jantar. Esta foi a Função evocadora-eliciadora
(antecedente); o início do episódio que estamos analisando. Trata-se de um estímulo
aversivo para você. Então, você sentiu raiva e “enrolou” o término do jantar por 15
minutos. São duas classes de manifestações do seu corpo, sob controle do estímulo
aversivo (o marido lhe disse que o jantar estava atrasado), que ocorrem em sucessão, mas
se tornam uma unidade (sentir raiva e atrasar o jantar) em função do evento aversivo
antecedente (Função evocadora-eliciadora). Segue-se, então, a consequência de seu atraso
no servir o jantar: seu marido comeu rapidamente, logo saiu da mesa e foi assistir ao
Jornal na TV.
C – Meu pai chegou de surpresa no domingo de manhã e deu de presente para o Juninho
um jogo de Lego que meu filho já vinha “namorando” há semanas. Juninho ficou tão
radiante que começou a pular de alegria, correu e saltou no colo do meu pai. Os dois
ficaram abraçados, se beijando – eles se adoram – e depois meu pai o ajudou a montar o
Lego.
P – Seu pai deu um presente esperado há semanas pelo Juninho. Este é o evento
antecedente: um estímulo reforçador com função de SD para seu filho. O Lego evocou
pular de alegria, correr e saltar no colo do avô e, provavelmente, estados corporais
(palpitação, ansiedade positiva) que denominamos de alegria. É provável que a excitação
corporal tenha ocorrido primeiro e em seguida a corrida e abraço no avô, mas ambas as
classes de manifestações corporais de seu filho compõem uma unidade indissociável. Em
seguida, a consequência reforçadora positiva foi avô e neto brincarem com a armação do
Lego.
A essência do conceito que afirma que sentimento (sentir) e comportamento (agir) são
componentes indissociáveis de um único evento comportamental (tenho proposto usar o
neologismo comportimento) decididamente refuta a crença generalizada que sentimento
causa comportamento. Há um problema adicional – agora de natureza prática –, se
persistir a crença de que sentimento causa comportamento. Sentimento como causa exige
resposta à seguinte questão: como se pode causar sentimento que, por sua vez, vai causar
comportamento? Uma análise mais minuciosa levará à busca do que causa sentimento às
contingências de reforçamento, exatamente aquilo que a Análise do Comportamento
afirma: sentimentos e comportamentos são função das CRs, sentimento não é função de
comportamento e nem comportamento é função de sentimento. No modelo operante, as
interações entre os três termos da tríplice contingência bastam para a completa
compreensão do episódio comportamental: antecedente evoca e elicia (Função
evocadora-eliciadora) comportamentos e sentimentos (eles têm o mesmo status e
aparecem juntos na Manifestações Funcionais), que produzem consequências que os
selecionam (Funções Selecionadoras).
O psicoterapeuta deve repetir o mesmo procedimento com outros episódios
comportamentais análogos até o cliente consolidar o conceito de que sentimento não
causa comportamento (desta forma, desconstrói-se a crença mecanicista que afirma:
sentimento causa comportamento), mas ambos têm o mesmo status: são manifestações da
pessoa a serem explicadas. A explicação na TCR é sempre funcional e chega-se a ela
quando é formulada a tríplice contingência. Mais uma vez explicar é descrever.
A decorrência prática – utilizada no processo psicoterapêutico – do modelo TCR de expor
a interação entre sentimento e comportamento deve ser evidenciada pelo psicoterapeuta
para o cliente. Veja o exemplo: Marilda diz “Meu marido mal entra em casa vindo do
trabalho e já está irritado. Assim que percebo seu gestos e tom de voz irritados, me
cuido... Fico de costas para ele como se nem notasse sua presença... E espero ele se
acalmar!”
O psicoterapeuta deve intervir e conceituar com precisão o episódio comportamental.
Assim: “Marilda, vou lhe explicar o que ocorreu no exemplo que me trouxe. Celso estava
irritado (sentimento) e emitiu gestos e tom de voz (comportamento) que você interpretou
como sinais de irritação. Estamos, então, em condições de preencher a coluna do meio
da tríplice contingência. Vamos anotar, na coluna do meio do paradigma, o que Celso
fez.” Agora o psicoterapeuta pergunta para a cliente: “O que o deixou irritado?” Ela
hesita, pensa e começa a responder: “Pensei que era algum desentendimento no trabalho.
Ele anda tendo maus momentos com o gestor dele... No correr do jantar, porém, acho
que descobri o que ocorreu: eu havia estacionado apressadamente o carro todo torto e,
quando ele tentou entrar na garagem, não conseguiu. Teve que dar duas voltas no
quarteirão até achar uma vaga na calçada!... Ele foi irônico no jantar, mas eu peguei a
deixa... Ele disse: ‘Agora que estou alimentado, terei energia para estacionar osss
carrosss, com ênfase no plural...’ Entendi o que aconteceu”.
Estamos em condição de preencher a primeira coluna do paradigma. Agora ficou claro
que o antecedente (Função evocadora-eliciadora) foi uma situação aversiva para Celso:
impossibilidade de estacionar na garagem porque a esposa estacionou o carro da maneira
como o fez. Tal situação evocou comportamentos operantes e eliciou reações corporais
aversivas; a esses dois conjuntos Marilda denominou de irritação e talvez tenha pensado
que a irritação causou movimentos e tom de voz irritados. Não foi assim: o imprevisto da
garagem teve função de produzir as reações de Celso, o que permite à Marilda ser mais
cuidadosa daí em diante ao estacionar o carro. Esta condição antecedente (Função
evocadora-eliciadora) não se repetirá (espera-se) e por este inconveniente ele não entrará
mais em casa irritado. Pode-se, afinal, preencher a terceira coluna do paradigma. A reação
neutra diante dos comportamentos de irritação do marido (ela os colocou em extinção),
seguida pelo jantar saboroso que serviu de maneira tranquila (comportamentos de Marilda
com função de SDs) contribuíram para o enfraquecimento dos comportamentos operantes
e respondentes de irritação e tiveram função de evocar comportamentos desejados de
Celso: brincou com a ênfase no plural dos carros e foi estacionar os dois carros sem
maiores problemas.
O psicoterapeuta deve apresentar no seu texto pelo menos um exemplo de episódio
comportamental em que ficou explícito que sentimento não causa comportamento. Por
sua vez, deve insistir em analisar sucessivos episódios comportamentais até o cliente
compreender o novo paradigma explicitado pela TCR.
Convém repetir: o modelo tradicional de explicação não habilita o cliente a influenciar na
coluna do meio porque a explicação mecanicista não explicita o que leva ao sentimento
aversivo (a esposa apenas constata que o marido está irritado e nada pode fazer com a
irritação dele...), por sua vez o modelo TCR explicita que deve ser identificada a Função
evocadora-eliciadora (antecedente), que uma vez alterado, desconstruirá o sentimento
aversivo. No exemplo da garagem, se a cliente tivesse identificado claramente o que tinha
deixado o marido irritado, ela poderia se antecipar e dizer, por exemplo, “Não fui bem ...
esqueci o carro fora do lugar, desculpe-me... devo ter causado um transtorno para você...
Sorry. Hoje eu preparo o seu uísque ... Com dose dupla!”

Tabela 19
Contingência de reforçamento que produz sentimentos e comportamentos

Funções evocadoras- Manifestações Funções


eliciadoras Funcionais Selecionadoras

Carro de Marilda mal Celso mostra irritação com Marilda ignora a irritação
estacionado na garagem gestos e tom de voz de Celso e serve o jantar
impede que Celso (juntos estão: sentimentos com naturalidade, ele se
estacione; tem que e ações). acalma e vai estacionar os
procurar na rua um lugar dois carros na garagem.
para estacionar.

Nota. O paradigma mostra como se sistematiza a compreensão da origem de sentimentos


e comportamentos. Siga a sequência dos passos.
Tabela 20
Contingência de reforçamento que produz sentimentos e comportamentos

A R C

Marilda ignora a Celso deixa de emitir Marilda sorri quando


irritação de Celso (seu comportamentos de Celso brinca sobre a
comportamento tem irritação, tais como tarefa que lhe compete:
função de S∆) e serve o gritar com tom de voz estacionar os carros.
jantar com naturalidade agressivo para Marilda Marilda brinca: “Da
(apresentou um SD). (extinção). Celso próxima vez que
conversa sobre estacionar meu carro
amenidades, sorri, atravessado na garagem
brinca com Marilda vou esperá-lo com um
sobre estacionar os copo com dose dupla de
carros (pode-se uísque...”
interpretar que estão
ocorrendo sentimentos
agradáveis), logo
sentimentos e ações
estão juntos.

Nota. Pode-se comparar as Tabelas 19 e 20: na primeira, a Função evocadora-eliciadora


(antecedente) é aversiva para Celso, na segunda é uma condição com função de SD e de
reforço condicionado positivo (servir o jantar é SD e Sr+); os antecedentes da Tabela 19
produzem em Celso sentimentos e comportamentos aversivos para Marilda
(Manifestações Funcionais); as Funções evocadoras-eliciadoras (antecedentes) da Tabela
20 produzem em Celso sentimentos e comportamentos amenos para Marilda
(Manifestações Funcionais). Finalmente, na Tabela 19, Marilda emite um comportamento
de fuga-esquiva (silêncio), que tem função de S∆ e, desta forma, coloca em extinção os
comportamentos aversivos de Celso, enquanto serve o jantar, que tem função de SD para
evocar comportamentos amenos de Celso (Funções Selecionadoras); na Tabela 20, as
Funções Selecionadoras (consequências) apresentadas por Marilda na Tabela 19 tornam-
se antecedentes (com função de SD) e evocam comportamentos amenos em Celso
(Manifestações Funcionais). Marilda consequencia de forma reforçadora positiva os
comportamentos de Celso (Funções Selecionadoras da Tabela 20).

Veja como se deve analisar os comportamentos das contingências vivenciadas por Celso:

Primeiro passo:
comece pelos sentimentos
e ações (Manifestações Funcionais)

Segundo passo: Terceiro passo:


identifique as Funções evocadoras- identifique as Funções Selecionadoras
eliciadoras (antecedentes) (consequências)

Nota. Desta maneira, fica sistematizada a compreensão da origem de sentimentos e


comportamentos de Celso e sua localização na tríplice contingência.

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