Você está na página 1de 17

Representações sociais da liberdade e do controle de si.

Denise Bernuzzi de Sant'Anna•

Quando James Dean declarou à imprensa que estava cansado dos atores que não
corriam riscos e dos jovens avessos às “coisas verdadeiramente excitantes”, a maior parte de
suas fãs ainda desconhecia a liberdade corporal sugerida nos filmes de Hollywood.2
Naqueles anos, proclamados como “dourados”, audácia, irreverência e liberdade de
escolher o próprio destino costumavam ser exibidos nas revistas dedicadas às “fofocas” do
cinema como valores tanto atraentes quanto perigosos. Muitos jovens das classes médias em
ascensão queriam imitar seus ídolos, mas estavam apenas iniciando uma trajetória de
liberação e rebeldia que, nas décadas seguintes, se tornaria um fenômeno de massa.
Desde o pós-guerra, diversos países influenciados pelo “american way of life” foram o
palco para o sucesso de revistas dedicadas a fortalecer a fama de atores estrangeiros e o novo
“it” revelado por seus hábitos julgados modernos. Ben Cooper, Antony Perkins, James Dean,
entre outros, apareciam em publicações dirigidas ao grande público em fotografias coloridas,
a partir das quais era possível deduzir que moravam sozinhos e em apartamentos bem
diferentes das residências de seus pais. Para esses jovens, praticidade e conforto não eram
mais exceções e sim qualidades inseparáveis da vida considerada moderna.
No Rio de Janeiro e em São Paulo, revistas como Cinelândia, Querida e Capricho
estimulavam o gosto por informações sobre a intimidade dos “famosos” e, ao mesmo tempo,
valorizavam padrões de comportamento adaptados às necessidades da sociedade de consumo
emergente.
As mulheres eram convidadas a conhecer o novo charme da “roupa pronta” –
comprada em lojas –, enquanto aos homens eram oferecidos novos “gadgets” para
embelezarem seus automóveis e lambretas.
A moda masculina dos cabelos longos ainda não existia, mas os esportes e as roupas
de ambos os sexos sugeriam um novo modo de pensar: era preciso respeitar os próprios
desejos e não se esquecer de cuidar do corpo. Muitos rapazes daquela época mostravam-se
ansiosos pela busca de prazeres pessoais mas, certamente, não pareciam apressados em

1 Parte deste trabalho baseia-se no doutorado defendido em 1994, sobre a história do embelezamento da mulher
brasileira no decorrer do século XX. SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. La recherche de la beauté. Université
Paris VII: 1994, 658 p.

2 Sobre esta declaração de James Dean, ver, Cinelândia, n.° 72, novembro de 1955, p. 54.
2

constituir família. De fato, os contemporâneos de James Dean pouco hesitavam em tornar


charmosa uma descontração que, para a geração de Clark Gable, seria sinônimo de desleixo.
As mulheres famosas também começavam a exibir nas telas um sex-appeal antes
pouco autorizado, capaz de eclipsar o glamour das conhecidas vamps dos anos 1930 e 1940.
As novas roupas esportivas, práticas e confortáveis, sugeriam um charme tão picante quanto
ingênuo. Um semblante de “baby” modificaria a publicidade, associando-a a slogans até
então pouco usuais: “sinta esse prazer”, “mais liberdade” e muito bem-estar.
No Brasil, em 1957, por exemplo, Celeneh Costa, a “estrela brotinho”, exibia, na
revista carioca Cinelândia, seu corpo vestido em jeans e, de cabelos soltos, mostrava estar
mais interessada em sua carreira do que em “arrumar um marido”.3
Talvez seja verdade que muitos “brotinhos” daquela época continuassem a esperar um
marido; mas não pareciam esperá-lo da mesma maneira que suas mães o haviam feito, pois a
conquista da independência financeira começava a ser menos um sonho do que um direito de
inúmeras jovens. No entanto, se a proclamada “era dos brotos” correspondia à valorização de
atitudes arrojadas e imprevisíveis, por outro lado, também dava lugar a questionamentos,
outrora raros, sobre as antigas obrigações familiares e os tradicionais deveres morais que, em
grande medida, contrariavam a expansão da descontração corporal doravante difundida pela
imprensa como se fosse uma qualidade essencial dos novos tempos.
Não por acaso, a palavra “liberdade” começa a ser utilizada com facilidade: para as
mulheres, liberdade de calçar sapatos sem salto, de encurtar as saias e os cabelos; para os
homens, outras liberdades deixam de ser sinônimos de perdição e viram assunto da moda.
Além disso, atitudes outrora consideradas suspeitas do ponto de vista moral, para
algumas atrizes, tornam-se aliadas na conquista do sucesso. Já na década de 1960, segundo
uma reportagem com a atriz Kim Novak, ser livre significava defender a idéia de que a vida
de solteira era melhor do que a de casada. Sem a preocupação de esconder sua atração por
gestos que indicavam claramente uma nova paixão pela liberdade individual, Novak declarou
que: “em certas ocasiões, eu me jogo no mar, mesmo estando de vestido, seguindo uma
inspiração repentina”.4
Para além da necessidade crescente de mostrar o corpo seminu, parecer um pouco
“biruta” começava a ser considerado menos um defeito do caráter do que uma demonstração
de charme e coragem. Escapar das regras ou condutas previsíveis podia, assim, contribuir para
a conquista da admiração pública.

3 Cinelândia, n.° 104, março de 1957, p. 72.


4 Querida, n.° 215, maio de 1963, pp. 84-85.
3

Na verdade, o marketing em desenvolvimento naqueles anos apostava numa


revalorização da idéia de independência: diversas atrizes norte-americanas e algumas estrelas
brasileiras – incluindo as misses – tendiam, cada vez mais, a ser mostradas pela imprensa
como mulheres que gostavam de descobrir “o verdadeiro gosto da liberdade” e não temiam
“aquilo que os outros pensariam a seu respeito”.
Sabe-se que uma parte desta ousadia era uma espécie de “irrealidade cotidiana”,
restrita a poucas jovens residentes nas grandes cidades e, sobretudo, uma maneira de adquirir
fama, típica das celebridades daqueles anos. Mas também se sabe o quanto ela era sedutora.
Difícil resistir à moda estabelecida pelo cinema e pela publicidade, a partir da qual inúmeras
jovens, em sua alegria contagiante e em seu frescor saudável e desconcertante, pareciam não
mais temer a autoridade masculina nem a vida distante da influência familiar.
De todo o modo, mesmo se o gosto por atitudes consideradas livres não ocorresse sem
o abandono de antigos pudores, ele também dependia do aprendizado, nem sempre imediato,
de uma espontaneidade antes intolerável. Terezinha Morango, miss Cinelândia de 1956, foi
representada por esta revista como sendo uma moça “espontânea”, alguém que não possuía
“esta malícia feminina, tão comum, que leva certas jovens a declarar o contrário do que
pensam”.5 Por conseguinte, as estratégias e produtos utilizados para mostrar charme e
liberdade tendiam a evitar tudo aquilo que pudesse ser considerado sinônimo de
artificialidade. Nesses anos em que a imagem do Brasil nas revistas era a de um país em
desenvolvimento rápido e de modernização acelerada dos costumes, liberdade rimava com
espontaneidade e descontração, exigindo, portanto, uma nova vigilância da mulher em relação
a seus gestos e sua postura. Não por acaso, a quantidade de conselhos de beleza, a partir de
meados dos anos 1950, tornou-se maior, exigindo de toda mulher o aprendizado de gestos não
apenas graciosos mas, também, rápidos, firmes e seguros. Em várias revistas, manter “a linha”
deixava de ser um conselho esporádico para se tornar uma norma ilustrada didaticamente,
ensinada a partir da recomendação da ginástica, do uso de roupas leves e de cosméticos
capazes não apenas de esconder as imperfeições do rosto mas, sobretudo, de tratá-las. Em
suma, a aparência descontraída e livre exigia um persistente trabalho.
Nos Estados Unidos, Sandra Dee, de 16 anos, servia como exemplo em diversas
reportagens publicadas no Brasil: glamour, segundo a jovem atriz, era “juventude, frescor
natural”, e ainda, “estar de bem com a vida”.6 Os novos cosméticos acompanharam e
estimularam esta tendência: surgiram produtos de beleza para serem utilizados durante o dia e

5 Cinelândia, n.° 100, janeiro de 1957.


6 Cinelândia, n.° 131, março de 1959, p. 52.
4

em todas as ocasiões. Sem dúvida, a aparência natural exigia um novo cuidado de si. A
liberdade de “cuidar do próprio corpo” vinha acompanhada da necessidade de estar não
apenas mais atenta às próprias necessidades, mas também mais responsável diante das
decisões tomadas para “soltar-se”.
Novos ritmos musicais, presença crescente da mulher nas escolas e no trabalho fora de
casa, explosão do mercado jovem, desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, da
urbanização e da indústria da beleza, as razões para tais transformações são numerosas. A
imprensa feminina não escapou a essas tendências e contribuiu a seu modo para a banalização
dos novos ideais de juventude e liberdade em expansão, principalmente junto aos setores
médios das grandes cidades. A publicidade também usou e abusou da imagem de inúmeros
produtos para exibir a positividade conquistada pela idéia de liberdade individual. Na mídia
de modo geral, a trajetória de cada indivíduo, famoso ou não, deveria, doravante, contar com
provas escancaradas de suas ousadias com o corpo e os sentimentos. A liberdade de “fazer o
que se deseja” tornava-se um passaporte importante para garantir sucesso e charme. A atriz
Joan Collins, por exemplo, foi uma entre as muitas a assumir uma imagem “rebelde”, de
“mulher livre”, inclusive para fumar e usar roupas descontraídas. Para esses modelos de
beleza, ser diferente ou um pouco excêntrico deixava de parecer um traço negativo do caráter.
Várias revistas femininas insistiam, enfim, que a biografia de cada um podia e devia,
doravante, ser construída segundo as escolhas individuais, não mais a partir das
determinações familiares.
Não demoraria muito, portanto, para que os contos e conselhos publicados na
imprensa feminina, autorizassem os namoros e casos de amor independentes do
consentimento familiar. Principalmente a partir de meados dos anos 1960, a busca da
liberdade aprofundou suas ambições em direção à intimidade comportamental de cada um e
passou a se dirigir a todas as idades: “ser livre”, afirmavam várias reportagens da época,
significava não apenas usar roupas extravagantes, transgredir parâmetros da moda e regras de
etiqueta mas, sobretudo, criar novas normas tanto para a ação social como também para a
relação de cada um consigo mesmo. Não por acaso, as revistas que surgiram nessa década
abrigaram conselhos dirigidos à mulher bastante favoráveis a “libertá-la” de atitudes desde
então consideradas antiquadas e sem charme, valorizando o prazer de se escutar e de se
conhecer.
Nos contos e nas novelas impressas, as heroínas também adquiriram um novo perfil,
solidário aos significados inusitados atribuídos à idéia de “ser livre”, doravante mais sensível
aos próprios anseios. Alguns contos, por exemplo, colocavam as heroínas numa posição
5

favorável a devaneios individuais, disponíveis para conquistarem um “espaço pessoal” de


liberdade e prazer, longe da influência ou do poder dos pais, maridos e irmãos mais velhos.
Viajar sozinha ou com amigas, garantir para si mesma um tempo longe do marido ou dos
pais, tornavam-se expectativas “naturais” de várias heroínas dos contos e novelas das revistas
daqueles anos. E, não por acaso, a traição feminina começaria a ser pensada como sendo algo
que “vem e volta”, uma experiência que não necessariamente carregasse uma decisão
definitiva. Interessante observar que, justamente nessa época, várias reportagens abordando o
tema da traição feminina começaram a utilizar o termo “infidelidade”, como se a noção de
infidelidade pudesse exprimir um peso menor do que a idéia de traição. Tal mudança de
palavras sugere transformações profundas na cultura e na maneira de conceber a sexualidade.
É também com o advento dos anos 1960 que a moda teve a possibilidade de
rejuvenescer mais do que nunca as mulheres, criando um estilo “angel face” e colocando na
ordem do dia um perfil de feminilidade estreitamente relacionado à adolescência. No passado
recente, os mais novos imitavam os mais velhos. Doravante, esta equação seria, em grande
medida, invertida. Os mais velhos, para não serem considerados “quadrados” ou “coroas”,
passam a ser assiduamente estimulados a aderir à moda não apenas unissex mas, também,
juvenil. No entanto, juventude e velhice não permaneceram com os mesmos significados. A
partir do final da década de 1960, sobretudo, as “gatinhas” (e não mais os “brotos”, cuja
palavra indicava ainda a importância da imagem da “mulher-flor”) ganharam em descontração
corporal mas, também, em complicação emocional.
Especialmente depois dos anos 1970, várias dessas novas tendências rapidamente
apontadas ganharam força e sentidos diversificados. Os conselhos dirigidos à mulher nas
revistas femininas, por exemplo, foram amplamente influenciados por uma dimensão
psicanalítica e por sua massificação. Para cuidar da aparência e da essência humana, termos
como “traumas”, “repressão”, “frustração”, e toda uma linguagem que, até então, costumava
se manter restrita a alguns especialistas fora da imprensa, tornaram-se habituais nas revistas.
Uma espécie de “psicologização” dos discursos dirigidos aos jovens atingiu a
imprensa e, não por acaso, surgiram conselheiros de beleza autorizados, segundo eles
mesmos, a tratar da psicologia humana. Desde então, ser livre tornou-se o outro lado da
moeda da necessidade, cada vez mais imperativa, de ser “autêntico”. Nada de usar laquê,
cinturita, soutien de bojo. Surgiram novos cremes para o cabelo e uma verdadeira
massificação do ideal da “boa forma”, que substituiu, cada vez mais, o sonho da manutenção
da “linha”, com muita ginástica e/ou cirurgia plástica. A manutenção da forma indicaria um
aprofundamento do investimento da indústria da beleza no corpo de cada um: no lugar de
6

atingir apenas uma linha externa, supostamente definida por medidas padronizadas, tratava-
se, sobretudo, de procurar um “novo corpo”, formado e informado a partir dos progressos
industriais em matéria de rejuvenescimento e beleza.
Além disso, novas exigências para emagrecer foram criadas com um rigor e uma
variedade de técnicas e produtos que dificilmente teriam padrões comparáveis no passado.
Metrecal, por exemplo – assim como muitos outros “remédios-alimentos” para emagrecer
divulgados pela imprensa – já não servia apenas para a perda de peso: ele associava esta tarefa
àquela de nutrir e fornecer prazer. Na verdade, desde a massificação desses produtos, saídos
da indústria que, em seguida, criaria doces e salgados “diet” e “light”, talvez, pela primeira
vez na história, o regime passou a se associar ao prazer de comer. A chegada dos adoçantes
no mercado brasileiro também confirmou o quanto o regime havia se vinculado a valores de
distinção social, sucesso profissional e refinamento. Tratava-se, agora, de buscar um padrão
internacional de beleza corporal que colocaria num plano secundário os gostos e padrões
regionais, com suas especificidades e razões de viver. As misses brasileiras dos anos 1960,
por exemplo, já indicavam esta mudança: tipos “universais”, muito semelhantes com as
misses de outros países, todas elas mais longilíneas do que as misses das décadas anteriores e,
em geral, devotadas ao uso dos novos cosméticos e regimes em moda. A seguir, as mulheres
famosas e consideradas belas, ao aparecerem nas revistas, começaram a expor os “segredos de
suas dietas”, assunto que, até um passado recente, ganhava pouquíssimo destaque na
imprensa. Segundo uma infinidade de reportagens posteriores aos anos 1970, liberdade
começava a ser sinônimo de uma maneira privilegiada de ser leve e, por sua vez, ser leve era
um meio seguro de ser moderna. Em plena época de transformação acelerada dos hábitos
alimentares e do sucesso de novas lanchonetes e alimentos especializados no emagrecimento,
as escolhas de cada um diante da comida começaram, mais do que nunca, a revelar os níveis
de liberdade, descontração e modernidade individuais. Ao mesmo tempo, tudo aquilo que era
considerado excesso de gordura corporal tornava-se sinônimo de lentidão, atraso e, até
mesmo, doença.
A liberdade feminina de usar mini-saia, biquíni e calça comprida foi, então,
acompanhada pelas exigências de eliminar “gordurinhas”, ampliar a depilação das pernas, o
bronzeamento destas e da barriga, além do combate à flacidez. É justamente nessa época de
liberação do corpo feminino nas praias e piscinas que a celulite se transforma num dos
maiores problemas estéticos da mulher. Em épocas passadas, as reportagens a seu respeito
eram praticamente inexistentes, porém, a partir dos anos 1970, elas se multiplicaram e se
especializaram. A palavra celulite se tornou conhecida e passou a ser compreendida como um
7

grande obstáculo à liberdade de expor o corpo e de viver descontraidamente.


Evidentemente, não é a primeira vez na história que a gordura, por exemplo, passa a
ser alvo de repressão e de críticas. No entanto, no decorrer dos anos 1970, ela foi
insistentemente apontada como sendo uma das principais causas de problemas tanto estéticos
quanto psicológicos de toda mulher. Ser considerada gorda deixava, cada vez mais, de sugerir
saúde para indicar doença e improdutividade. Gordura tornava-se menos formosura do que
promessa de solidão, pobreza e tristeza. A maior parte das evocações à liberdade feminina
ilustrada pela publicidade fazia referência a corpos longilíneos, magros, lépidos e jovens.
Gordura tendia a ser vista não apenas como excesso mas, também, como sinônimo de
paralisia e inutilidade, devendo, portanto, ser rapidamente transmutada em músculos, fibras,
“pedaços de corpo” capazes de sugerir muito mais o trabalho do que o ócio, a velocidade do
que a lentidão. Desde então, o antigo “it” da “gordinha” e das “roliças” tende a ser esquecido
em favor da aerodinamicidade das imagens corporais capazes de sugerir uma produtiva
mescla entre corpos humanos e bólidos de corrida.
Mas, mesmo na década de 1970, alguns movimentos de resistência ao impulso dos
corpos rumo à aceleração incessante de seus movimentos já havia ocorrido dentro e fora do
espaço midiático. A vontade de libertar o corpo foi uma bandeira de luta tanto da indústria da
beleza e da moda quanto de setores alternativos, contrários à toda produção industrial, ou
ainda, dos movimentos que lutavam em prol dos direitos sociais das minorias. Além disso,
vários setores da mídia recodificaram rapidamente os anseios por liberdade de expressão em
forma de imagens-clichê, ou de slogans da moda.
Assim, por exemplo, segundo a publicidade de milhares de produtos destinados à
beleza e à juventude, a liberdade implicava a inexistência absoluta de doenças, tristezas e
indisposições. Nesse caso, liberdade rimava com alegria sem contrários, juventude eterna e
uma espécie de saúde inabalável, comparável a um superávit de energia infinita. Nas novas
revistas dos anos 1970, tais como a Pop e a Nova, liberdade começava a significar satisfação
sexual e, sobretudo, bem-estar individual junto à descoberta da natureza. No caso da Pop,
dedicada principalmente aos adolescentes, liberdade e natureza formariam os dois lados da
mesma moeda. Sob a influência da contracultura, a liberdade era representada
preferencialmente durante o verão, em praias e outros espaços considerados “naturais”.
Sensíveis à invenção de uma consciência ecológica outrora rara, as reportagens e anúncios
dessa revista enfatizavam a necessidade de conjugar a vida jovem com o usufruto de
paisagens liberadas de toda “poluição” e distantes das coações vividas na rotina das grandes
cidades. Liberdade era, sobretudo, um sentimento de integridade da natureza e do corpo
8

avesso à poluição de ambos. Contudo, a Pop era, também, uma das pioneiras no processo de
transformação desses ideais em mercadorias de fácil acesso, em clichês publicitários de
sucesso. Um estilo de vida que exibia descontração, prazer, liberdade e bem-estar (físico e
mental) junto à natureza encontrava, nas páginas ilustradas desta revista, um espaço propício
para atrair milhares de jovens da classe média e aproximá-los do mercado especializado na
venda de novos acessórios e roupas para as atividades esportivas em expansão e para o
turismo de massa.
De qualquer modo, dentro e fora da mídia, o meio ambiente deixava de ser
considerado uma fonte inesgotável de vida à disposição do homem. Ficava a impressão de
que, agora, mais do que nunca, a Terra “apresentava as contas”,7 e o pagamento não era algo
simples de ser resolvido. A intensificação da consciência ecológica durante esses anos
provocou a descoberta de novos artifícios presentes em praias, rios, florestas e, em particular,
dentro dos corpos. Por conseguinte, conquistar a liberdade, torna-se, para diversos setores
sociais, algo próximo à aquisição de um modo de vida natural, contrário a diversos hábitos e
consumos considerados, doravante, sinônimos de artificialismos. Um novo mercado de
produtos naturais seria portanto incrementado, incluindo cosméticos, roupas e produtos
alimentares. Se há séculos a natureza havia deixado de determinar completamente o homem,
agora seria o homem que, cada vez mais rapidamente, designaria a natureza, reinventando-a
em favor da criação de um corpo rejuvenescido e saudável. A liberdade para fazê-lo seria,
doravante, medida principalmente pelo poderio econômico de cada um, e não tanto por sua
capacidade de romper barreiras de cunho moral e religioso.
Entretanto, a partir dos anos 1980, a idéia de “liberdade” associou-se ao sucesso
midiático de imagens fortemente expressivas acerca da possibilidade de obter prazer pessoal
em todos os momentos da vida. Prazer este influenciado pela expansão da industrialização da
voga do natural. Tão sedutor quanto exasperador, exigia, em geral, a conquista de um controle
sobre si cada vez mais profundo e assíduo. Ou seja, em plena década de estímulo à
democratização do direito de intervir no próprio corpo e de conduzir, livremente, a própria
sexualidade, assistiu-se à aceleração da privatização da vida pública e à construção de uma
subjetividade mergulhada nos dilemas da indeterminação e de uma espécie de “estresse” de
decidir individualmente sobre assuntos que, no passado, eram administrados de modo
coletivo. Ao mesmo tempo, quanto mais se vendia e se consumia a idéia de que cada um era
totalmente livre para ser proprietário de si mesmo, maior se tornava a incerteza sobre o

7 A respeito dessa consciência ecológica, ver DELEAGE, Jean-Paul. Histoire de l'écologie. Une science de
l'homme et de la nature. Paris: La Découverte, 1991, p. 246.
9

controle do corpo. O fundamental, desde então, afirmavam vários anúncios publicitários, era
conjugar liberdade com eficácia: ser eficaz no controle de si, ser eficaz no governo das
próprias coisas. A “gestão de si mesmo”, tal como a gestão de uma empresa, se torna uma
prova e um testemunho da capacidade individual de vencer sempre a concorrência e todas as
contrariedades em qualquer esfera da vida cotidiana. Não por acaso, as revistas femininas
começaram a estimular, de modo imperativo, a aquisição de saberes propícios a fazer de toda
mulher uma “vencedora”, seja no esporte, seja no amor ou no trabalho. Vencer sempre
implicava, contudo, a necessidade de fabricar um corpo capaz de ser ao mesmo tempo livre e
seguro. Liberdade traria, como coação maior, a necessidade dupla de uma segurança
autoprotetora constante e de uma satisfação absoluta de todas as necessidades.
Esta espécie de tendência à individualização extrema, acompanhada por várias
transformações da idéia de liberdade, não poderia deixar de aguçar o medo de viver
livremente: medo do descarte, da obsolescência, medo de sucumbir completamente e a todo
momento, pois a busca por satisfação e segurança completas colocava em risco as incertezas
mais comuns, transformando obstáculos rotineiros em inimigos que pareciam não ter nada
mais a ensinar e que, portanto, deviam ser rapidamente abatidos. Nessa época, conforme
afirmou Illich, “o fenômeno humano não se defini mais por aquilo que somos, pelo que
fazemos”, nem mesmo pelo que sonhamos, pois ele se tornou sinônimo daquilo que “nos falta
e, portanto, do que temos necessidade”. Para Illich, a humanidade se transformou num
“pacote de necessidades”,8 dentro do qual cada um é tão livre quanto incerto para produzir a
sua própria imagem de marca.
Mesmo se considerarmos que a busca da liberdade física esteja dentro de tal pacote,
sua historicidade, aqui rapidamente tratada, indica a permanência de um curioso paradoxo: a
recorrente valorização de uma aparência considerada livre, desde o pós-guerra, é paralela à
emergência, em cada momento, de novas coações, receios e intolerâncias outrora
impensáveis. Ganha-se tanto em liberdade quanto em novos riscos e preocupações. A
conquista de maior espaço para a expressão corporal inclui o direito ao prazer físico e, ao
mesmo tempo, uma intolerância aguda em relação a qualquer ameaça de desprazer e de
perturbação corporal. A publicidade de inúmeros produtos não cessa de fornecer exemplos
lapidares a este respeito: por seu intermédio, proliferam os estímulos para a aquisição de mais
e mais liberdade para escolher qual tratamento de saúde seguir, em que religião acreditar, qual

8 ILLICH, Ivan. La perte des sens. Paris: Fayard, 2004.


10

roupa usar em determinada circunstância, como agir no trabalho e no lazer, qual imagem
produzir para si a cada momento, etc. No entanto, tais demandas estão atreladas à necessidade
de cada um se informar cada vez mais rápido e melhor sobre a própria escolha feita.
Por conseguinte, como não é surpresa para ninguém, a busca da livre escolha na atual
sociedade de consumo implica o aumento crescente de responsabilidades individuais, o que,
de certa forma, indica o quanto este tema, aparentemente banal e natural nas últimas décadas,
possui uma rica história, cuja duração e a intensidade revelam a infinitude dos horizontes de
pesquisa sempre que a historicidade do corpo e de suas liberdades torna-se o foco principal
dos interesses de cada pesquisador.

Bibliografia:

AMIEL, Vincent. Des images des mondes superposés. In: Esprit, n.° 10, Paris, Seuil,

outubro de 1991.

BECK, Ulrich. La société du risque. Paris: Aubier, 2001.

DELEAGE, Jean-Paul. Histoire de l'écologie. Une science de l'homme et de la nature.

Paris: La Découverte, 1991.

FARGE, Arlette; DAUPHIN, Cécile. Séduction et sociétés. Paris: Seuil, 2001.

ILLICH, Ivan. La perte des sens. Paris: Fayard, 2004.

MONGIN, Olivier. La peur du vide. Paris: Seuil, 1991.

PARRY, Jonathan. The end of the body. In: FEHER, M. (ed). Fragments for a history

of the human body. New York: Zone, 1989.

ROWE, William; SCHELLING, Vivian. Memory and Modernity: popular culture in

Latin America. Londres: Verso, 1991.

SANT´ANNA, Denise Bernuzzi de. Corpos de Passagem. São Paulo: Estação

Liberdade, 2001.

_____. La recherche de la beauté. Université Paris VII: 1994, 658 p.


11

VIGARELLO, Georges. Le sain et le malsain. Paris: Seuil, 1993.

Sobre a autora: Professora de História da PUC-SP


12

IMAGENS

Celeneh Costa, [s.d.]. ICO – UH 0208 –


DAESP.
13

Celeneh Costa, [s.d.]. ICO – UH 0208 – DAESP.


14

Celeneh Costa, [s.d.]. ICO – UH 0208 – DAESP.


15

Joan Collins, [s.d.]. ICO – UH 0226 – DAESP.


16

Joan Collins, [s.d.]. ICO – UH 0226 – DAESP.


17

Joan Collins, [s.d.]. ICO – UH 0226 – DAESP.

Você também pode gostar