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Livro Curso de Direito Processual Penal- Guilherme de

Souza Nucci (2020):

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Processual Penal.


17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

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CAPÍTULO II- PRINCÍPIOS DO PROCESSO PENAL

1. Introdução

- Princípio, etimologicamente, significa causa primária, momento em


que algo tem origem, elemento predominante na constituição de um
corpo orgânico, preceito, regra, fonte de uma ação. Em Direito,
princípio jurídico quer dizer uma ordenação que se irradia e imanta
os sistemas de normas, conforme ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA,
servindo de base para interpretação, integração, conhecimento e
aplicação do direito positivo.

- Cada ramo do Direito possui princípios próprios, que informam


todo o sistema, podendo estar expressamente previstos em lei ou
ser implícitos, isto é, resultar da conjugação de vários dispositivos
legais, de acordo com a cultura jurídica formada com o passar dos
anos de estudo de determinada matéria. O processo penal não foge
à regra, sendo regido, primordialmente, por princípios, que, por
vezes, suplantam a própria literalidade da lei.

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- Na Constituição Federal encontramos a ideia dos princípios que


tutelam o processo penal brasileiro. Pretendemos classificá-los, para
melhor estudo, em constitucionais processuais e meramente
processuais, bem como em explícitos e implícitos. Entretanto, de
início, convém registrar a existência de dois princípios regentes,
governadores de todos os demais, seja no campo processual penal,
seja no âmbito penal. O conjunto dos princípios constitucionais
forma um sistema próprio, com lógica e autorregulação. Por isso,
torna-se imperioso destacar dois aspectos: a) há integração entre os
princípios constitucionais penais e os processuais penais; b)
coordenam o sistema de princípios os mais relevantes para a
garantia dos direitos humanos fundamentais: dignidade da pessoa
humana e devido processo legal.

2. PRINCÍPIOS REGENTES: DIGNIDADE DA PESSOA


HUMANA E DEVIDO PROCESSO LEGAL

2.1 Dignidade da pessoa humana

- Trata-se, sem dúvida, de um princípio regente, cuja missão é a


preservação integral do ser humano, desde o nascimento até a
morte, conferindo-lhe autoestima e garantindo-lhe o mínimo
existencial.

- A referência à dignidade da pessoa humana, feita no art. 1º, III,


da Constituição Federal, “parece conglobar em si aqueles direitos
fundamentais, quer sejam os individuais clássicos, quer sejam os de
fundo econômico e social”. É um princípio de valor pré-constituinte e
de hierarquia supraconstitucional.

- Segundo nos parece, o princípio constitucional da dignidade da


pessoa humana possui dois prismas: objetivo e subjetivo.
Objetivamente, envolve a garantia de um mínimo existencial ao ser
humano, atendendo as suas necessidades vitais básicas, como
reconhecido pelo art. 7º, IV, da Constituição, ao cuidar do salário
mínimo (moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário,
higiene, transporte, previdência social). Inexiste dignidade se a
pessoa humana não dispuser de condições básicas de vivência.
Subjetivamente, cuida-se do sentimento de respeitabilidade e
autoestima, inerentes ao ser humano, desde o nascimento, quando
passa a desenvolver sua personalidade, entrelaçando-se em
comunidade e merecendo consideração, mormente ao Estado.

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- Para que o ser humano tenha a sua dignidade preservada torna-se


essencial o fiel respeito aos direitos e garantias individuais. Por isso,
esse princípio é a base e a meta do Estado Democrático de Direito,
não podendo ser contrariado, nem alijado de qualquer cenário, em
particular, do contexto penal e processual penal.

- Sem dúvida, a existência de tipos penais incriminadores, voltados


à punição de quem violar os bens jurídicos por eles tutelados,
consagra a ideia de que o delito, quando concretizado, ofende, de
algum modo, a dignidade da pessoa humana. Desse modo, várias
infrações penais envolvem direitos e garantias fundamentais, tais
como a vida, a integridade física, a honra, a intimidade, o
patrimônio, a liberdade, dentre outras. Entretanto, há
particularidades, no âmbito penal, envolvendo determinados crimes,
onde se consegue destacar, com maior nitidez e profundidade, o
alcance da dignidade da pessoa humana.

- Sob o mesmo prisma, o processo penal é constituído para servir ao


justo procedimento de apuração da existência da infração penal e
de quem seja seu autor, legitimado, ao final, garantida a ampla
defesa, o contraditório e outros relevantes princípios, a devida
punição. Porém, alguns aspectos sobressaem, no cenário processual
penal, de modo a dar relevo especial à dignidade da pessoa
humana, durante o desenvolvimento do devido processo legal.

2.1.1 Aspectos do crime e a dignidade da pessoa humana

- Fugindo da obviedade de que o homicídio é dos mais graves –


senão o mais ponderoso – tipos penais incriminadores, pois lesa o
bem maior do ser humano, a vida, é preciso considerar outros
aspectos sobressalentes da dignidade da pessoa humana,
transcendendo os naturais e cristalinos direitos fundamentais. Nesse
caminho, a tipificação do delito de tortura certamente busca a
proteção à vida, à liberdade e à integridade física, mas não somente
isso. Tem por finalidade precípua exigir respeito ao ser humano
como tal, escudando sua integridade moral, sua autoestima e seu
direito de livre pensamento, além de lhe garantir a livre disposição
do seu conhecimento e de suas metas individuais.

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- Constitui elemento ético essencial incutir na sociedade o culto à
sensibilidade, à humanidade e à bondade, em oposição à dureza, à
insensibilidade e à maldade, inerentes ao crime de tortura.

- Note-se que o constrangimento ilegal é previsto como delito,


porém caracterizado como infração de menor potencial ofensivo,
enquanto a tortura não passa de um constrangimento específico,
embora ligado, estreitamente, ao desrespeito à dignidade da pessoa
humana. Por isso, é infração grave, constitucionalmente intolerável
(art. 5º, XLIII, CF), com particulares sanções. Vários indivíduos –
senão todos – são capazes de cometer algum crime violento contra
a pessoa, especialmente em momento de desatino ou cólera, desde
uma simples lesão corporal até um homicídio. Entretanto, quantos
seriam capazes de torturar outrem até que se obtenha uma
confissão, por exemplo? Quantos teriam condições emocionais e
psicológicas para enfrentar o sofrimento inconteste de um ser
humano, que, aos gritos, pede clemência? A afronta à dignidade da
pessoa humana pode ser muito aberta e visível no delito de tortura
que seria capaz de emergir, à vista geral, do homicídio.

- A previsão de punição à prática do racismo – outra preocupação


específica da Constituição Federal (art. 5º, XLII) – constitui parcela
inequivocamente vinculada ao respeito demandado pela dignidade
da pessoa humana. A ideia de discriminação de grupos sociais, com
seu afastamento do convívio, cultivando-se a pretensa e falsa
concepção de superioridade, fomenta ódio, segregação, lesão direta
à autoestima e insensibilidade. Consagram-se a vaidade e o
egoísmo na atuação do racista, invalidando metas de fraternidade e
solidariedade. Em princípio, podem parecer matéria estranha ao
Direito as referências a elementos distanciados da fria linguagem
das normas jurídicas, como fraternidade, solidariedade, bondade,
ética, sensibilidade etc., e seus adversos sentimentos, como
egoísmo, vaidade, maldade, antiética, insensibilidade etc. A
sensação é, apenas, aparente, tendo em vista o propósito maior do
Direito, que é a busca da justiça e da convivência harmônica entre
os seres humanos.
- O justo exige comportamentos elevados do ser humano, sob
qualquer prisma, e não somente o respeito às normas jurídicas
postas.

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- Afinal, até mesmo para seguir fielmente o disposto pelo Direito


deve-se agir com honestidade e retidão de caráter, a fim de não
provocar mecanismos de tergiversação, contornando-se, com
astúcia, o preceito normativo. Registre-se, no campo dos crimes
contra a honra, a busca fundamental pelo animus injuriandi vel
difamandi, com o objetivo de verificar se, realmente, configura-se o
delito. Não basta agir com dolo e proferir uma injúria capaz de
ofender a dignidade ou decoro; torna-se crucial assim se portar,
carregando no íntimo o especial desejo de denegrir, humilhar,
maltratar a honra alheia. O elemento subjetivo específico implícito,
no contexto dos delito contra a honra, demonstra o trato do Direito
com fatores do espírito humano, mormente quando se trata de bens
jurídicos invisíveis e apenas sensíveis a cada indivíduo.

- Cresce, com entusiasmo, o interesse da sociedade, captado pelo


legislador e transformado em leis penais, em relação à proteção
particular destinada às vítimas potencialmente expostas a atitudes
indignas e intoleráveis. Outra não foi a razão de edição da Lei
11.340/2006 (denominada Lei Maria da Penha, cuja vítima foi
exposta a cruel ação criminosa no cenário doméstico), buscando
enaltecer os direitos e garantias fundamentais da mulher. Embora
tautológicos, os arts. 2º e 3º, da referida Lei repetem a meta atual
de enaltecimento dos mínimos direitos da pessoa humana, no caso
do sexo feminino: “toda mulher, independentemente de classe,
raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional,
idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para
viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu
aperfeiçoamento moral, intelectual e social” (art. 2º); “serão
asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos
direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à
cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao
trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à
convivência familiar e comunitária” (art. 3º, caput).

- Ora, sem dúvida alguma, todos os direitos supramencionados são


aplicáveis a qualquer ser humano e não somente à mulher. A sua
explícita repetição na abertura da Lei 11.340/2006 obedece a um
critério didático do legislador, buscando a criação de um fato novo,
de modo a despertar a atenção de todos à obviedade – não tão
clara para alguns – dos direitos humanos fundamentais.

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- Assim, editada a novel lei, divulgada amplamente pelos órgãos de


comunicação, insiste-se na reiteração de preceitos básicos de
respeito à dignidade da pessoa humana. Com particular cuidado no
tocante à mulher, parte fragilizada no cenário doméstico, sujeita ao
domínio machista, muitas vezes sem recursos próprios e expurgada
do mercado de trabalho, denota-se o objetivo de concentrar os
esforços das autoridades para o reequilíbrio de forças, conferindo
proteção distinta às mulheres.

- O fato novo, permitido pela edição de lei específica, dá ensejo a


estudos inéditos e modernos, acerca de assunto tradicional e antigo,
bem como fomenta a realização de congressos, encontros,
seminários, simpósios, enfim, novos enfoques pela doutrina e pela
jurisprudência no tocante ao tema. Busca-se corrigir distorções
geradas com o passar do tempo, embora ilegalidades que poderiam
ser regularizadas com maior cuidado por parte do operador do
Direito. Esse foi o enfoque do art. 17, ao vedar a aplicação, nos
casos de violência doméstica e familiar contra mulher, de “pena de
cesta básica”. Esta pena nunca existiu no ordenamento jurídico
penal, mas, na prática, foi criada por magistrados, em especial nos
Juizados Especiais Criminais para promover rápida transação,
desafogando a pauta e conferindo caráter pasteurizado à justiça
criminal. A pena de prestação pecuniária, prevista no art. 45, §1º,
do Código Penal, foi deturpada pela equivocada leitura do §2º, do
mesmo artigo, proporcionando o surgimento da denominada pena
de cesta básica. Afinal, a prestação de outra natureza, prevista no
referido §2º, somente poderia surgir na medida em que fosse
ineficaz a prestação em pecúnia, estabelecida pelo §1º, além de
exigir concordância da vítima. Somente fixando-se a primeira
(prestação pecuniária), quando impossível de ser exigida, poder-se-
ia passar à segunda (prestação de outra natureza). Ademais, a
diversa natureza liga-se a serviços prestados e não a outro
pagamento em pecúnia, sob a veste de cesta básica.

- A sequencial fixação da entrega de cesta básica a instituições de


caridade provocou o descrédito da Justiça Criminal, favorecendo a
impunidade dos agressores de mulheres, que já poderiam
contabilizar em cestas básicas as surras desferidas nas suas esposas
e companheiras.

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- A situação consistiu em nítida ofensa à dignidade da pessoa


humana, pois as penas inicialmente previstas pelo legislador para
contornar a pena privativa de liberdade, substituindo-a por restritiva
de direitos, terminou por cultuar a ilegal pena de cesta básica,
deixando ao léu a proteção à mulher.

- Pode-se perceber a íntima ligação entre a aplicação prática do


direito penal e os elementos salientes do princípio da dignidade da
pessoa humana. Tanto quanto o agente do crime, merecedor de
respeito à sua existência e dignidade como pessoa, também se deve
voltar os olhos à vítima. Assim como se editou a Lei 11.340/2006,
tratando com particular zelo a figura da mulher, em especial no
âmbito doméstico e familiar, outros dispositivos penais demandam
interpretação renovada, moderna e de acordo com os anseios atuais
da sociedade.

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