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Rev. Bras.

Adolescência e Conflitualidade, 2013 (8): 1-9 1

A responsabilidade penal do

Cillero.
adolescente e o interesse superior
da criança

Miguel Cillero Brunõl 1 The criminal responsibility of adolescents and the


best interests of children

Resumo
Este artigo discute as evidências que mostram a relação entre o
interesse superior da criança, a proteção da infância e o sistema penal
1 Doutor em Direito. Professor e
como uma questão mais complexa do que imaginaram os salvadores
das crianças que inspiraram o sistema tutelar. Considerando que, no
pesquisador da Faculdade de
marco da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança –
Direito Universidad Diego
CIDN- o interesse superior da criança passou a ser equivalente à
Portales (Chile). Diretor do plena satisfação de seus direitos e que as penas, de qualquer espécie
Programa Crianças, da Faculdade ou nome, consistem na privação de direitos, parece razoável assinalar
de Direito na mesma Casa de que estamos diante de uma antinomia que proporia a mútua
Estudos. Diretor Acadêmico do contradição e exclusão entre interesse superior e responsabilidade
Curso Proteção Direitos penal. Reconhecendo essa antinomia, desenvolvemos argumentos
jurisdicionais da Criança. que buscam conciliar o conjunto de princípios que regulam e limitam
a atribuição de responsabilidade penal com o princípio da prioridade
do interesse superior da criança, pretendendo legitimar a inclusão da
responsabilidade penal com base em uma análise tenta reconhecer
um espaço – ainda que muito limitado – para o interesse superior da
criança em um sistema penal para adolescentes afinado com os
princípios, diretrizes e direitos previstos na CIDN.

Palavras-chave: Interesse superior da criança. Responsabilidade


penal juvenil0. Proteção integral

Resumen
En este artículo se discute la evidencia que muestra la relación entre
los intereses de los niños, la protección de los niños y el sistema de
justicia penal como un tema más complejo de lo imaginado los
salvadores de los niños que inspiraron el sistema de tutela.
Autor para correspondência Considerando que, en virtud de la Convención sobre los Derechos del
Miguel Cillero Brunõl Niño-CIDN-interés superior del niño llegó a ser equivalente a la
Email: macilbru@gmail.com plena satisfacción de sus derechos y las plumas de cualquier tipo o
nombre, que consiste en la privación de la patria, parece razonable
Observamos que estamos frente a una antinomia que proponen la
exclusión mutua y el conflicto entre los intereses y la responsabilidad

F
l
á
v
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criminal. Reconociendo esta antinomia son desarrollados argumentos que


buscan conciliar el conjunto de principios que regulan y limitan la
atribución de responsabilidad penal y el principio de la prioridad de los
intereses del niño, con la intención de legitimar la inclusión de la
responsabilidad penal sobre la base de un análisis intenta reconocer un
espacio – aún que muy limitado - en el interés superior del niño en el sistema
de justicia penal para adolescentes, en sintonía con los principios y
directrices y derechos bajo CIDN.

Palabras clave: Interés superior de los niños. Responsabilidad penal


juvenil. Protección integral.

Abstract
This article discusses the evidence relationship between the superior interests
of the child, the child protection and criminal justice system as an issue more
complex than would imagine the saviors of children who inspired the
protection system. Whereas, under the Convention on the Rights of the
Child-CIDN- the relevance of the interest of the child came to be equivalent
to the full satisfaction of their rights and the penalties of any kind or name,
consisting of the deprivation of rights, it seems reasonable note that we are
facing an antinomy that propose the mutual exclusion and a conflict between
child interests and the criminal liability. Recognizing this antinomy, this
article will develop arguments that seek to reconcile the set of principles that
regulate and limit the attribution of criminal responsibility to the principle of
the priority of the interests of the child, intending to legitimize the inclusion
of criminal liability based on an analysis attempts to recognize a space -
albeit very limited - for the best interests of the child in a criminal justice
system for adolescents in tune with the principles and guidelines and rights
under CIDN.

Keywords: Best interests of the child. Juvenile criminal liability. Full


protection.

Durante muito tempo, considerou-se que o melhor para a infância era mantê-
la fora do direito penal, estimativa que, como se sabe, levou ao “direito
tutelar do menor". Esse enfoque tem como pano de fundo a ideia de que a
única relação possível entre a proteção dos direitos da criança e a
responsabilidade penal de adolescentes é a da incompatibilidade: o
reconhecimento da responsabilidade penal contradiria a proteção dos direitos
da criança. No sistema tutelar, o princípio da prioridade do interesse superior
da criança (entendido como a sua proteção e bem-estar moral e social)
legitimou − normativa e politicamente − a exclusão absoluta da
responsabilidade penal.
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Uma avaliação geral dos resultados das leis de menores revela, no entanto,
que os mecanismos tutelares foram incapazes de impedir os excessos do
sistema punitivo, fazendo com que fossem severamente criticados e afetando
sua legitimidade jurídica − por terem sido considerados contrários aos
princípios constitucionais − e social, por terem, na sua aplicação, contribuído
para aumentar a exclusão e o controle penal camuflado de um setor da
infância: o dos menores em situação irregular (GARCIA,1998).
Paradoxalmente, ao invés de fortalecer a sua proteção, a exclusão da
responsabilidade das crianças e adolescentes acabou enfraquecendo-a. As
evidências empíricas revelam, portanto, que a relação entre o interesse
superior da criança, a proteção da infância e o sistema penal é mais
complexa do que imaginaram, no começo do século, os salvadores das
crianças que inspiraram o sistema tutelar.
A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (CIDN) tomou um
rumo diferente. Esse instrumento internacional reconhece que o sistema de
garantias criado pelo sistema penal (cujos dispositivos mais importantes
constituem direitos fundamentais previstos nas Constituições e instrumentos
internacionais de direitos humanos) é o melhor mecanismo para se controlar
e limitar o poder punitivo do Estado e que nenhuma consideração
relacionada ao bem da criança pode privar a infância/adolescência desse
conjunto de proteções. Consequentemente, a CIDN considera a criança como
titular de todas as garantias próprias dos adultos – além de outras garantias
complementares aplicáveis a crianças – para limitar a pretensão punitiva do
Estado. Esse reconhecimento é expresso pela reprodução dessas garantias
nos seus artigos 37 e 40. No entanto, como sabemos, a CIDN também
estabeleceu o princípio do interesse superior da criança.
Se considerarmos que, no marco da CIDN, o interesse superior da criança
deixou de ser uma consideração etérea do bem da criança e passou a ser
equivalente à plena satisfação de seus direitos (CILLERO,1998) e que as
penas, de qualquer espécie ou nome, consistem na privação de direitos,
parece razoável assinalar que ainda estamos diante de uma antinomia que
proporia a mútua contradição e exclusão entre interesse superior e
responsabilidade penal.

A seguir, tentaremos desenvolver um argumento que – reconhecendo essa


antinomia – possa conciliar o conjunto de princípios que regulam e limitam a
atribuição de responsabilidade penal com o princípio da prioridade do
interesse superior da criança. Desse modo, pretendo legitimar não a exclusão
da responsabilidade penal, mas sua inclusão com base em uma análise que
permita reconhecer um espaço – ainda que muito limitado – para o interesse
superior da criança em um sistema penal para adolescentes afinado com os
princípios, diretrizes e direitos previstos na CIDN.

Embora muitos dos argumentos que serão apresentados sobre o interesse


superior da criança pudessem ser depreendidos de outros princípios
constitucionais – como dos da igualdade e respeito à dignidade humana –,
este exercício não é meramente retórico ou especulativo, já que tem a sua
necessidade fundamentada na própria CIDN, que consagra conjuntamente,
como dito antes, os princípios do interesse da criança e da proteção (Art. 3) e
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as bases de um sistema de responsabilidade penal para adolescentes (Art. 40)


(BELOFF,1998).

Se a proteção dos direitos da criança e a responsabilidade penal de


adolescentes são absolutamente incompatíveis, como é possível que a CIDN
os consagre conjuntamente? Como podem os Estados garantir o
cumprimento de duas obrigações aparentemente contraditórias? A resposta –
obviamente – não reside em afirmar que o princípio do interesse superior da
criança – entendido como critério de prioridade – poderia resolver a questão
como um problema de conflito entre princípios ou direitos, qualquer que seja
a teoria de direito adotada para resolvê-la (como as de Alexy ou Dworkin,
por exemplo) ou o caráter atribuído – teoricamente – a essa precedência
absoluta, não excludente ou condicionada.
Esses modelos da teoria do direito são úteis e permitem fundamentar
diversas posturas, mas não podem substituir a análise hermenêutica do texto
da CIDN, ou seja, a aplicação das regras de interpretação próprias do Direito
Internacional dos Direitos Humanos, que nos permitem compreender de
quais direitos específicos as crianças são titulares e quais são as obrigações
do Estado.

As reflexões deste artigo situam-se nesse plano, o da hermenêutica da


Convenção, o da interpretação teleologicamente orientada para a realização
dos direitos da criança (Art. 41 da CIDN), que deve integrar-se à
hermenêutica constitucional, em decorrência da incorporação dos direitos
fundamentais reconhecidos no Direito Internacional dos Direitos Humanos
aos textos ou regras interpretativas das Constituições nacionais. A
interpretação conjunta dessas disposições será doravante chamada de
hermenêutica dos direitos fundamentais das crianças.

Os princípios constitucionais operam, em matéria penal, em um sentido


duplo:1 por um lado, cumprem uma função constitutiva, limitadora e
orientadora e, por outro, servem como “razões de correção”
(ZAGREBELSKY, 1999.p 116 a 119) na superação de antinomias inerentes
à lógica de funcionamento do direito penal, que sanciona com um mal para
lograr um efeito positivo de proteção de bens jurídicos2.

A hermenêutica dos direitos fundamentais exige a superação das


contradições internas do sistema. Para analisar o programa constitucional
relativo ao direito penal e algumas de suas disposições específicas, é
necessário fazer uma interpretação sistemática e teleológica que permita a
manutenção da unidade da constituição, hermenêutica caracterizada por ser
uma “interpretação de limites” em um sentido duplo: limites do legislador e
limites do Tribunal Constitucional ao exercer sua função de controle (
PEREZ ROYO,2000,p. 148).

1
Zagrebelsky (1999) se refere ao “duplo alcance normativo dos princípios”.
2
Sobre essa questão, veja ALCÁCER, R. Los Fines del Derecho Penal. Una
Aproximación desde la Filosofía Política que desenvolve seus pontos de vista a
partir da teoria das “razões de correção” de Mac Cormick., in Anuario de Derecho
Penal, volume LI, 1998, pags. 365-587, pag. 391.
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Consequentemente, é necessário promover uma interpretação que torne


compatíveis o interesse superior da criança e a responsabilidade penal. A
hipótese que proponho é a de considerá-los como um conjunto de garantias
que limitam o poder punitivo do Estado e asseguram a proteção dos direitos
da criança.

Nesse nível de análise, não se atribui ao interesse superior da criança a


função de um princípio que permite a ponderação de interesses. Nesse
exercício, seu conteúdo é definido como a vigência de seus direitos (que é
mais amplo que a ausência de prejuízo e menos ambicioso e ambíguo que o
bem-estar moral e social). A melhor proteção dos direitos da criança é a sua
realização e podemos afirmar que a melhor proteção é a sua autoproteção, ou
seja, a que não fica sujeita a nenhuma decisão discricionária ou paternalista
dos adultos e tampouco a alguma concepção particular do bem.
No direito penal, essa proteção é conferida pelas garantias penais e
processuais – constitucionalmente consagradas – que se impõem à vontade
do legislador e do juiz. Diante delas, não há ponderação possível, baseada
em interesses coletivos ou no bem-estar da criança; consequentemente, seria
ilegítimo fazer – em um ou outro sentido – uma ponderação baseada no
interesse superior da criança para relativizar, por exemplo, a aplicação do
princípio da legalidade ou a presunção de inocência em atenção aos fins
educativos das medidas estabelecidas nas leis penais ou tutelares de menores
ou, em sentido oposto, para defender a absoluta irresponsabilidade de um
adolescente pela comissão de um delito grave com base no argumento de
que as possíveis sanções penais – ainda que especiais – afetariam, sempre
ilegitimamente, os direitos do infrator.

As garantias penais estabelecidas em termos constitucionais com caráter


absoluto – como as assinaladas anteriormente ou a proibição da tortura, por
exemplo – não deixam margem para ponderação por parte da autoridade e,
por isso, são proteções que – por menor que seja a margem de autonomia
que se reconheça para a criança – operam sem necessidade de expressão da
sua vontade, ou seja, não exigem, em princípio, a heteroproteção do pai ou
do juiz. Inclusive, no caso de descumprimento, há um interesse público em
perseguir seu cumprimento, o que é aplicável tanto em uma ação por um
delito – caso da tortura – como por infrações de garantias substantivas e
processuais fundamentalmente por meio da defesa jurídica obrigatória e do
rol de salvaguardas de garantias que o juiz imparcial observa em um
processo adversarial.
Em matéria penal, diante da relativa incapacidade da criança ou adolescente,
a melhor proteção não é a discricionariedade das autoridades para identificar
uma solução resultante da ponderação de interesses, e sim a proteção
normativa de seus direitos com base nas garantias constitucionais e legais. É
no nível do constituinte e do legislador, subordinado à Constituição, que
deverão ser ponderados os interesses, cujo reflexo ou fruto são as garantias
penais, que na sede penal não ficam à mercê da ponderação judicial.

Acredito que esta conclusão satisfaça não apenas a hermenêutica


constitucional, mas também uma formulação do interesse superior da criança
elaborada a partir de sistemas como os de Alexy ou de Dworkin.
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Evidentemente, em outros âmbitos do direito, diferentes do penal, será


necessário recorrer ao interesse superior da criança como princípio que
permita a solução de conflitos normativos no caso de colisão de direitos ou
interesses e, nessa eventualidade, essas teorias – e outras que possam ser
propostas – deverão provar sua maior ou menor força para desenvolver
critérios razoáveis de ponderação no marco de uma prioridade não
excludente dos direitos da criança.
Em matéria penal, por sua vez, o interesse superior da criança não pode ser
usado como um critério para a solução de conflitos de interesses na
resolução de caso concretos, já que tem o seu espaço de aplicação no nível
dos fins do direito penal de adolescentes.
Consequentemente, o elemento central para a solução dessa antinomia é a
distinção de planos. Por essa razão, embora eu acredite ser possível sustentar
que o interesse superior da criança e a responsabilidade penal de
adolescentes podem complementar-se – no âmbito dos direitos fundamentais
–, no nível dos fins do direito penal de adolescentes, particularmente
considerando-o como um limite adicional, parece-me necessário afirmar
também que o interesse superior da criança não pode fundamentar uma pena
ou ser usado como mecanismo para a sua determinação judicial3.
Para os fins do direito penal de adolescentes, podemos sustentar que há
disposições que preveem a proteção de bens jurídicos, a minimização da
violência tanto social como da decorrente da resposta estatal, o respeito à
dignidade pessoal de acusados e condenados e a proteção dos direitos dos
adolescentes como sujeitos em desenvolvimento, elemento que define a
necessária especialidade do direito penal de adolescentes em relação ao
direito penal de adultos.

Esses fins do direito penal são compatíveis com o interesse superior da


criança e se expressam em disposições como a que estabelece que a privação
de liberdade deve ser uma medida de último recurso no direito penal de
adolescentes (Art. 37.b da CIDN).
A situação dos fins da pena é diferente, especialmente quando se pretende
fundamentar a aplicação de uma sanção específica no interesse superior da
criança, já que pereceria que as medidas seriam impostas para fazer um bem
ao menor e não como sanção, com o que se reinstala o elemento essencial do
paradigma tutelar (GARCIA PÉREZ,2000,p.685-688), mas com uma fraude
de etiquetas.

Estabelecidos os planos de possível convergência e divergência, uma


primeira diretriz de base é que qualquer sistema de reação estatal a infrações
da lei penal cometidas por pessoas abaixo de dezoito anos deve considerar,
conjuntamente, as limitações próprias do poder punitivo emanadas do
sistema penal e do interesse superior da criança, ou seja, a satisfação e
proteção de seus direitos.

3
Como previsto na Lei Orgânica Reguladora da Responsabilidade Penal do Menor
(5/2000) da Espanha.
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Com essa combinação de princípios e garantias será possível redefinir e


limitar a aplicação, a adolescentes, de sanções e responsabilidades previstas
no sistema penal de adultos e também assegurar que a aplicação das
garantias do sistema penal impeça qualquer uso abusivo de mecanismos
coercitivos/sancionatórios (que implicam privação de direitos) para
modificar a conduta ou situação da criança em função do seu suposto
interesse.
Uma segunda consideração é que o interesse superior da criança tende,
efetivamente, a realizar os direitos da criança ao máximo e, por isso, deve
ser uma barreira à aplicação de restrições de direitos (características do
sistema penal). Consequentemente, a aplicação de consequências penais a
um adolescente sempre constitui um mal (uma restrição de direitos e
possibilidades) e, por isso, elas devem ser reduzidas ao mínimo possível,
com o que se configura uma característica muito particular do sistema de
responsabilidade penal de adolescentes derivada da CIDN: seu caráter
mínimo, que se concretiza na aplicação de técnicas de descriminalização
legal, do princípio da oportunidade, do reconhecimento da privação de
liberdade como último recurso e de condições especiais para a execução de
sanções, que são, todas elas, garantias diretamente emanadas do princípio do
interesse superior, ainda que pudessem certamente emanar – com a mesma
efetividade – do princípio da intervenção mínima e respeito pela dignidade
humana.

Em síntese, embora haja efetivamente uma contradição entre pena e direitos


da criança, é importante reconhecer uma complementaridade entre o sistema
jurídico concebido para limitar as penas (direito penal garantístico) e o
sistema de proteção dos direitos da criança. Além disso, privar crianças e
adolescentes das garantias penais constitui uma violação do princípio da
proteção de seus direitos, porque a experiência indica que o sistema de
garantias penais – substantivas e processuais – é o mecanismo mais eficaz
para se proteger do poder punitivo do Estado e limitar sua expansão.

No entanto, isso não é suficiente, em decorrência da situação jurídica e


social particular da infância, e o interesse superior da criança exige a
elaboração de um complexo sistema de responsabilidade por infrações da lei
penal complementar ao sistema de garantias gerais. Suas linhas básicas estão
consagradas na CIDN e cabe às leis nacionais desenvolvê-las
especificamente.

Para concluir, podemos assinalar que a disposição do artigo terceiro da


CIDN constitui um “princípio” que obriga diversas autoridades e até
instituições privadas a estimar o “interesse superior da criança” como uma
consideração primordial para o exercício de suas atribuições, não pelo fato
de o interesse da criança ser considerado socialmente importante ou em
função de qualquer outro conceito de bem-estar social ou bondade, e sim
porque, e na medida em que, as crianças têm direitos que devem ser
respeitados ou, em outras palavras, porque, antes de uma medida ser tomada
em relação a elas, as crianças têm o direito de que sejam adotadas medidas
que promovam e protejam seus direitos e não que os violem.
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Com base no reconhecimento explícito de um catálogo de direitos, as


expressões programáticas do “interesse superior da criança” são superadas e
pode-se afirmar que o interesse superior da criança consiste na plena
satisfação de seus direitos. O conteúdo do princípio são os próprios direitos.
Nesse sentido, deve-se abrir mão de qualquer interpretação
paternalista/autoritária do interesse superior; em vez disso, deve-se
harmonizar a utilização do interesse superior da criança com uma concepção
de direitos humanos como prerrogativas que permitem a oposição a abusos
de poder e a superação do paternalismo tradicionalmente adotado para
regular temas relacionados à infância.

Uma vez estabelecido que a integração entre o interesse superior da criança e


as garantias penais e processuais só pode ocorrer na medida em que ambos
constituam um limite à pretensão punitiva do Estado, podemos afirmar que a
finalidade específica do sistema penal de adolescentes baseado na CIDN será
a de limitar o poder punitivo do Estado e proteger a criança – na maior
medida possível – dos efeitos adversos de sanções penais para o seu
desenvolvimento.
Nesse equilíbrio entre a necessidade da intervenção penal e de proteger o
desenvolvimento da criança, o princípio do interesse superior exige que
assumamos, como uma prioridade não excludente – em relação à proteção de
bens jurídicos –, os direitos da infância e construamos um sistema reforçado
de garantias. É provável que essa ideia da relativa prioridade dos direitos da
criança, que permite uma melhor orientação dos juízos de ponderação em
sede legislativa e judicial – dentro de margens muito precisas e sempre a
favor do acusado, como, por exemplo, ao se decidir sobre a procedência de
uma medida cautelar –, seja a contribuição específica que o princípio do
interesse superior da criança pode prestar ao desenho e funcionamento do
sistema penal de adolescentes.
Em função do exposto acima, trata-se de se desenhar legalmente um sistema
baseado na responsabilidade pelo ato e não pelas condições do autor,
respeitando plenamente o princípio da legalidade; na consagração de um
sistema de imputação democrática do ato ao autor (MUNÕZ CONDE;
GARCÍA ARÁN, 2002, p.201-205); no reconhecimento de que a sanção é
consequência de uma atribuição de responsabilidade; na aplicação intensiva
das garantias do devido processo e da presunção de inocência; no desenho de
todo um sistema diferenciado de consequências jurídicas; e no
estabelecimento de critérios específicos para a determinação da pena, tanto
em nível jurídico como judicial, que permitam um exercício bem
fundamentado de flexibilidade judicial, limitado – no que diz respeito à
severidade – pelo princípio da proporcionalidade.

Referências
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ZAGREBELSKY, G. El Derecho Dúctil. 3ª ed. Madri: Trotta, 1999.

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