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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO 1 – 2023 - Prof. José Antonio S.

Pontes – A6

Aula 6: Contextualização dos conceitos.

1. Discutindo o direito e as ciências atuais com Comte e Dithey. Como


organizar os tipos de ciência, os tipos de juízos e os tipos de objetos?
Avançando um pouco mais. Quais as heranças desses pensadores para nós? Como
se aplicam essas ideias ao conhecimento do direito, hoje? Qual objetividade conseguimos
atingir na ciência do direito? Vamos tomar um exemplo para discussão, retirado das
páginas do jornal O Estado de São Paulo:

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Os casos de bullying não são novidade na sociedade. São novos nos tribunais
judiciais brasileiros.1 A notícia de jornal citada traz matéria sobre o tema em fins do ano
de 2014. Cerca de um ano depois, seria aprovada uma lei federal, a lei 13.185/2015,
exclusivamente sobre o assunto, mas essa lei não teve por missão disciplinar a matéria
em caráter civil ou criminal, mas criar políticas de governo para conscientização de
autoridades e educadores, estimular prevenção contra o bullying em todo o país.2 Ainda
assim, a notícia joga luzes sobre alguns impasses e conceitos em torno do tema, como a
responsabilidade das escolas, onde parece ser frequente a prática do bullying entre as
crianças. Os casos que já chegaram aos tribunais mostram alguma oscilação sobre a
responsabilidade das escolas, se ela depende de culpa comprovada ou se é uma
responsabilidade que independe de culpa.3

1 https://www.conjur.com.br/2019-ago-30/estudante-vitima-bullying-indenizada-maes-alunas
http://www.conjur.com.br/2015-mai-17/colegio-condenado-indenizar-aluna-vitima-bullying
http://www.conjur.com.br/2015-mar-14/crianca-xingada-orelhuda-indenizada-35-mil
http://www.tjrj.jus.br/documents/10136/31308/bullying.pdf?v=4

2 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13185.htm
3 https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=16468334&cdForo=0
2
Há ainda quem pense que a responsabilidade seria exclusiva dos pais do agressor;
outros defendem que nem mesmo é um caso de intervenção do Estado pela via judicial,
pois o tema envolve crianças e adolescentes protegidos pelo E.C.A., sendo um tema de
competência dos educadores quando praticado dentro da escola. O fato é que esse tema
ainda será de ampla discussão no direito brasileiro, somando-se aos casos em que as leis
dependem das interpretações e da jurisprudência após repercussão social dos conflitos,
envolvem danos morais por bullying. Talvez só depois de alguns anos poderíamos ter
uma noção científica com mais objetividade e previsibilidade.
Por enquanto, como o assunto é novo, é fácil notar como são discutíveis, amplos e
vagos os termos da “lei do bullying” (lei 13.185/2015) ao definir esse comportamento
indesejável:
Art. 2º Caracteriza-se a intimidação sistemática (bullying) quando há violência
física ou psicológica em atos de intimidação, humilhação ou discriminação e, ainda:
I - ataques físicos
II - insultos pessoais;
III- comentários sistemáticos e apelidos pejorativos;
IV - ameaças por quaisquer meios;
V - grafites depreciativos;
VI - expressões preconceituosas;
VII - isolamento social consciente e premeditado;
VIII - pilhérias.
(...)
Art. 5º - É dever do estabelecimento de ensino, dos clubes e das agremiações
recreativas assegurar medidas de conscientização, prevenção, diagnose e combate à
violência e à intimidação sistemática (bullying).

Ao lado de outros exemplos já citados como o do consumo de álcool por menores


de 18 anos, o exemplo da interrupção de gravidez de feto anencéfalo e o do dano moral
por desconto prévio de cheque pré-datado, poderemos notar também no caso da lei do
bullying que teremos dificuldades para caracterizar o estudo do direito com a
objetividade máxima exigida pelo positivismo de Auguste Comte.
Por outro lado, sob a influência de Wilhelm Dilthey, teremos mais facilidade de
chamar de ciência do direito um saber compreensivo, interpretativo que envolve
influências valorativas e até mesmo circunstâncias históricas e singulares, irrepetíveis.
Isso quer dizer que não temos tanta certeza científica de qual é o direito de nosso
país? Sim, temos de reconhecer que somos assim e essa e nossa principal riqueza
intelectual. Mas sempre é possível buscar uma resposta científica aproximada, segundo
vimos, desde que enfrentemos as dificuldades desde logo: as leis são escritas com
palavras sujeitas a interpretações, envolvem valores, são sujeitas a influências morais e
transformações no tempo, também porque um caso real, quando é levado aos tribunais,
pode ter entendimentos diversos com juízes decidindo de forma diferente
(jurisprudência conflitante).
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E o que isso significa? Significa que a consequência “indenizar pelo dano moral”
não se segue necessariamente da hipótese “praticar bullying”; ou que a prática da
eutanásia, prevista como homicídio, porém com pena atenuada pelo §1º do art. 121 do
nosso Código Penal, pode não ser punida se o(a) promotor(a) de justiça decidir não
iniciar o processo (mesmo devendo), ou se o juiz/ a juíza absolver porque julgou que o
caso era de paciente “realmente” terminal.
Os nexos de imputação, típicos do direito, da moral, das religiões e de outros
conjuntos de regras sociais, dependem da ação das pessoas envolvidas para realizar a
conexão entre hipótese e consequência, dependem das decisões de autoridades
competentes para tornar real a consequência prevista na regra. O direito depende,
portanto, da liberdade de agir: tanto para o(a) cidadão(ã) poder cumprir ou violar a
regra (lembremos que não faz sentido regrar o impossível ou o absolutamente
necessário) quanto para a autoridade poder atribuir ou não a consequência jurídica.
Retomando os conceitos anteriores: a razão de ser da ciência jurídica está na sua
previsibilidade de que o direito se extrai de uma relação viva entre leis, interpretações,
jurisprudência, eficácia social. E por vezes essa identificação do direito fica fácil. Poucos
estudiosos do direito hoje têm dúvidas sobre qual é o direito em caso de cheque pré-
datado, como vimos num exemplo anterior. Mas há ainda muitas dúvidas sobre o bullying
e mesmo um tema em que não há dúvidas pode passar a ter mudanças importantes na
evolução da sociedade.
E uma das compreensões mais importantes para esse grau relativo de incerteza no
estudo do direito está na essência de um objeto de estudo que é valorativo, imputativo,
com inevitável liberdade. Se o objeto direito é dever-ser, o objeto tem juízos de valor. Se
queremos descrever esse objeto com juízos de realidade, temos dois problemas: a) isolar
o valor do objeto dos valores do sujeito que os descreve, nem sempre é evidente e fácil;
b) os sujeitos dessa ciência também atuam sobre o objeto, ou seja, inevitavelmente o grau
de liberdade na interpretação das leis, na construção da jurisprudência e na aceitação
social altera o próprio objeto. Sobre isso veremos mais detalhes num outro momento.
Por ora é importante deixar claro e sedimentado o seguinte: as ciências
naturais falam de nexos de necessidade. Dada a hipótese, segue-se a consequência.
A ciência do direito fala de nexos de imputação com necessária liberdade. Há
liberdade na criação das hipóteses e consequências, o que não acontece com a
física. E há ainda liberdade de aplicar a consequência ou não, o que não acontece
com a física igualmente. Há, por fim, um risco de os valores do cientista
influenciarem na sua interpretação da hipótese e da consequência, o que é muito
mais difícil nas ciências naturais.
Vamos enfrentar as questões finais para uma boa introdução a esse tema. Tudo isso
quer dizer que a ciência do direito prescreve condutas, alterando o objeto real que é o
direito? Mas o objetivo das ciências não é buscar ao máximo um saber mais seguro e o
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mais possível objetivo, homogêneo, previsível, descrevendo seu tema? Vamos
recapitular o passo-a-passo para uma boa resposta.
O que faz a biologia? Elabora juízos de realidade sobre os seres vivos, descreve o
ciclo da água, a estrutura das células. Não faz sentido que o biólogo atribua juízos de valor
às células, às bactérias, aos vírus. As frases ditas num laboratório: “-Reage, Zika vírus!” ou
“Vai logo, bactéria maldita!” só pode ser um desabafo após intenso dia de trabalho. Não
são ordens ou juízos de valor. Não faria sentido que fossem.
E o que faz a sociologia? Se esforça para elaborar juízos de realidade sobre as
relações sociais, descrever fatos sobre violência, bem-estar, classes sociais, níveis de
emprego etc. A sociologia pode gerar uma pesquisa nos hospitais do Brasil inteiro, ao
menos pesquisar boa parte deles com base uma estatística e constatar que “a eutanásia
é prática habitual em UTIs do Brasil”4.
Porém, sendo a sociologia uma das ciências da cultura ou “ciências do espírito”,
como diria W. Dilthey, elas também avaliam seu objeto, se referem a valores e se
esforçam para neutralizar ao máximo os valores do próprio sociólogo ao lidar com
assuntos com os quais se envolve até emocionalmente, por vezes. Nesse sentido, o
esforço das ciências sociais para emitir juízos puramente descritivos, segundo Dilthey, já
é fracassado de saída. Há sempre influência das interpretações, das valorações, das
subjetividades e é bom que o estudioso saiba que isso é próprio dos saberes
compreensivos, oposto aos saberes explicativos, como já foi visto.
Os juristas traduzem os valores sociais em normas práticas. Podemos encontrar
juristas que são os cientistas do direito em sentido mais estrito? Em princípio, sim.
Mesmo sendo juristas práticos, pretendem estudar os valores do direito como
doutrinadores, professores, técnicos. Mas enquanto juristas teóricos, isto é, quando dão
aulas de direito, pretendem descrever cientificamente, teoricamente o direito como ele
é, mas não é certo que conseguem fazer apenas juízos de realidade. Por quê? Pela mesma
razão que já vimos com Dilthey. Todas as ciências do espírito envolvem valores e
interpretações no próprio esforço de compreensão/descrição do mundo.
Não há como isolar totalmente as influências do sujeito (S) sobre o objeto (O),
pois o objeto é o próprio conjunto social ao qual pertence o sujeito, ainda que mais
presente ou mais remotamente a depender do assunto estudado.
No caso do direito essa influência é mais presente. Os valores discutidos são os
atuais, da sociedade na qual nós vivemos, em comparação com outros modelos de
sociedade passadas ou presentes, no âmbito local ou internacional. É impossível isolar
completamente os nossos anseios pessoais e nossas valorações ao falarmos sobre as
fontes do direito atual. Ou seja, qualquer professor tem sua linha, suas teses, suas
interpretações, suas preferências ao falar de assuntos complexos ou em evolução no

4 http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u105876.shtml
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direito nacional e internacional. Por isso vemos doutrinas divergentes sobre um assunto
novo ou polêmico.
Vejamos o caso do movimento antivacina. Os pais têm o direito de não vacinar seus
filhos? O assunto está em aberto porque não se pode simplesmente dizer que falamos de
deveres paternos num assunto passível de polêmica, ainda mais se há movimentos
organizados combatendo a obrigatoriedade de vacinas no Brasil e no mundo. O tema
começa a ser julgado pelos tribunais, como se lê na notícia abaixo.

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E se um(a) dos juízes/juízas que julgam casos como esse for adepto(a) do
movimento antivacina? Seria dada a mesma decisão relatada na notícia? O que a ciência
do direito pode fazer então é revelar o caráter problemático de seu objeto. Isso é o mais
sincero que podemos ser como teóricos e professores. Como os juízes, legisladores,
governadores (os poderes que fazem o direito prático e emitem os juízos de valor)
consultam os professores, os “cientistas do direito” e de outras ciências sociais, pronto:
o que os estudiosos “cientistas”, com esforço intelectual e “teórico”, descrevem sobre a
realidade do direito (juízos de realidade sobre as normas), acaba envolvendo suas
preferências subjetivas, seus valores pessoais, suas influências religiosas e, por fim,
influenciam o objeto de estudo, que é exatamente o papel dos juízos de valor. Em
conclusão: Emitimos, às vezes sem perceber, juízos de valor sobre o objeto, que são
também (no caso do direito) outros juízos de valor.
No exemplo retirado do TJSP5:

5 https://bit.ly/TJSPVAC
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Nem por isso deixaremos de afirmar que o mundo do dever-ser pode ser descrito
mediante juízos de realidade, há um esforço dos professores e estudiosos para entender
o objeto social jurídico como um todo coerente, lógico, sistematizável.
Assim, se o(a) estudante de direito for questionado se, no Brasil, é permitida pelo
direito a decisão de pais sobre a vacinação de seus filhos menores, esperamos que
tenha condições de responder que, em princípio, não:
a) pois o artigo 14, parágrafo 1º. Do E.C.A. diz:
Art. 14. O Sistema Único de Saúde promoverá programas de
assistência médica e odontológica para a prevenção das enfermidades
que ordinariamente afetam a população infantil, e campanhas de
educação sanitária para pais, educadores e alunos.
§1º É obrigatória a vacinação das crianças nos casos
recomendados pelas autoridades sanitárias.
b) E essa obrigação vem sendo confirmada pelas decisões judiciais.
c) Porém a cobertura vacinal total, inclusive de crianças, tem decrescido
sensivelmente, indicando algum risco de ineficácia social.

Que tipo de conhecimento é esse? Certamente quer formular juízos de realidade


que descrevem o direito do Brasil e de outros países como ele é. Porém, na medida em
que a vacinação é assunto de extremo impacto valorativo, com variações grandes entre
as convicções pessoais das pessoas conforme suas influências, veremos que essas
descrições são carregadas de juízos de valor, e isso ficará claro quando notarmos um ou
outro caso em que alguém perdeu guarda de filhos no Brasil.
Em contextualização, o objetivo a seguir é organizar os conteúdos acima em toda a forma de juízo
seja na ciência seja no objeto de análise. Preencha os quadros (ou indique “não se aplica”):
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No caso do Bullying, preencha o quadro a seguir:
Âmbito do saber Formule o juízo estrutura lógica Descreva o nexo função descritiva ou Qual a resposta
causal ou imputativo prescritiva sobre o objeto?
Ciências Naturais / Juízo
de realidade
Ciência do direito / Juízo
de realidade (A.Comte)
Objeto da ciência do direito

Ciência do direito / Juízos


de realidade/valor
(Dilthey)
Ciências Naturais / Juízo
de valor?

No caso da Vacina, preencha o quadro a seguir:


Âmbito do saber Formule o juízo estrutura lógica Descreva o nexo função descritiva ou Qual a resposta
causal ou imputativo prescritiva sobre o objeto?
Ciências Naturais / Juízo
de realidade
Ciência do direito / Juízo
de realidade (A.Comte)
Objeto da ciência do direito

Ciência do direito / Juízos


de realidade/valor
(Dilthey)
Ciências Naturais / Juízo
de valor?

No caso da eutanásia de Rio Claro, preencha o quadro a seguir:


Âmbito do saber Formule o juízo estrutura lógica Descreva o nexo função descritiva ou Qual a resposta
causal ou imputativo prescritiva sobre o objeto?
Ciências Naturais / Juízo
de realidade
Ciência do direito / Juízo
de realidade (A.Comte)
Objeto da ciência do direito

Ciência do direito / Juízos


de realidade/valor
(Dilthey)
Ciências Naturais / Juízo
de valor?

No caso da Vadiagem, preencha o quadro a seguir:


Âmbito do saber Formule o juízo estrutura lógica Descreva o nexo função descritiva ou Qual a resposta
causal ou imputativo prescritiva sobre o objeto?
Ciências Naturais / Juízo
de realidade
Ciência do direito / Juízo
de realidade (A.Comte)
Objeto da ciência do direito

Ciência do direito / Juízos


de realidade/valor
(Dilthey)
Ciências Naturais / Juízo
de valor?

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No caso do Ministro das Cidades na favela Nova Brasília, preencha o quadro:
Âmbito do saber Formule o juízo estrutura lógica Descreva o nexo função descritiva ou Qual a resposta
causal ou imputativo prescritiva sobre o objeto?
Ciências Naturais / Juízo
de realidade
Ciência do direito / Juízo
de realidade (A.Comte)
Objeto da ciência do direito

Ciência do direito / Juízos


de realidade/valor
(Dilthey)
Ciências Naturais / Juízo
de valor?

No caso do 1 milhão de abortos, preencha o quadro:


Âmbito do saber Formule o juízo estrutura lógica Descreva o nexo função descritiva ou Qual a resposta
causal ou imputativo prescritiva sobre o objeto?
Ciências Naturais / Juízo
de realidade
Ciência do direito / Juízo
de realidade (A.Comte)
Objeto da ciência do direito

Ciência do direito / Juízos


de realidade/valor
(Dilthey)
Ciências Naturais / Juízo
de valor?

No caso da bebida para menores, preencha o quadro:


Âmbito do saber Formule o juízo estrutura lógica Descreva o nexo função descritiva ou Qual a resposta
causal ou imputativo prescritiva sobre o objeto?
Ciências Naturais / Álcool causa H segue-se C Nexo descritiva FATO: Álcool
Juízo de realidade dependência causal/explicativo causa
química dependência
química
Ciência do direito / No Br, é proibida a SéP Nexo causal descritiva VALOR:
Juízo de realidade bebida alcoólica explicativo Restrição às
(A.Comte) para menores bebidas para
menores
Objeto da ciência do ECA: Pena de x H deve-ser C Nexo imputativo Prescritiva VALOR:
direito anos para quem S deve P Restrição às
vender bebida a bebidas para
menores menores
Ciência do direito / No Br, é proibida a SéP Nexo causal mista: VALOR:
Juízos de bebida alcoólica + + descritiva aceitação
realidade/valor para menores pela S deve ser P Nexo imputativo + relativa da
(Dilthey) lei, porém a prescritiva bebida entre
interpretação aceitação social adolescentes
sugere um direito
de fato
Ciências Naturais / Se houver SéP Nexo causal mista: FATO: Álcool
Juízo de valor? divergências sobre + + descritiva causa benefícios
efeitos benéficos S deveria ser P Nexo imputativo + à saúde
do uso moderado (implícito) Prescritiva (implícita
do álcool

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