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ART IGO DE 2010-QUALIS B1 (classificação 2015)-Judicialização e minorias: uma reflexão sobre a dout …
Maria Eugenia Bunchaft
Capít ulo: Nas Tramas do Humano: quando a sexualidade int erdit a o t rabalho
Henrique Nardi
Discriminação por Preconceito Implícito
1 Delimitando o problema
1A expressão inglesa bias costuma ser traduzida para o português como viés, sobretudo quando associada
aos atalhos mentais que podem levar a erros cognitivos. Preferiu-se, neste texto, traduzir implicit bias
como preconceito implícito por ser mais fácil associar a ideia de discriminação com a ideia de preconceito.
Além disso, o portal eletrônico Project Implicit, da Universidade de Harvard, que é um dos sites de
referência sobre o tema, adotou a mesma tradução ao adaptar o seu conteúdo para a língua portuguesa.
Do mesmo modo, vários pesquisadores brasileiros que estudam o tema também adotam a expressão
preconceito implícito para se referir ao implicit bias (ver, por exemplo, LIMA & OUTROS, 2006).
2
probatória em uma ação onde alguém alega que foi prejudicado por preconceitos não-
conscientes2.
portanto, não mereceriam ser selecionados; (b) outro grupo, embora soubesse que os
nomes poderiam estar associados à raça, não teria coragem de assumir abertamente que
houve uma preferência pelos candidatos com "nomes brancos", seja por vergonha de
confessar o preconceito e parecer racista, seja por medo de sofrer retaliação jurídica; (c)
um grupo um pouco maior negaria enfaticamente que agiu motivado por alguma
preferência racial e, provavelmente, estaria sendo sincero ao afirmar isso.
3É possível que, no último grupo, também possam existir os que são, de fato, indiferentes ao preconceito
racial e podem ter escolhido mais nomes brancos por mero acaso. É importante destacar esse fato para
não cair no erro de achar que toda decisão é necessariamente preconceituosa. A teoria do implicit bias
segue uma lógica de probabilidade, ou seja, parte do princípio de que há uma tendência para ação
enviesada motivada por preconceito, mas tal tendência não é absoluta, nem é inevitável. Esse ponto terá
imensa relevância para o debate jurídico.
6
Isso é feito por meio de uma espécie de jogo de computador, em que são mostradas
imagens de pessoas negras ou brancas (ou outros grupos de comparação), associadas
com conceitos como bom, inteligente, mau, estúpido, que vão se alternando em pares em
uma tela. Quanto maior for a facilidade em associar as palavras, mais rápidas serão
respostas da pessoa avaliada, permitindo medir se há ou não uma preferência a favor de
determinado grupo. Uma pessoa mais preconceituosa em relação aos negros demorará
mais tempo para conseguir associar a imagem de uma pessoa negra às palavras que
evocam sentimentos positivos (como bom ou paz), e o teste medirá esse tempo de
resposta em comparação com a associação aleatória das mesmas palavras com a imagem
de uma pessoa branca. Assim, mesmo que a pessoa negue de forma veemente e sincera
que possui sentimentos preconceituosos, o teste poderá indicar, pelo menos no nível
inconsciente, a existência, em maior ou menor intensidade, de um preconceito
implícito4.
4 O teste pode ser feito, gratuitamente, por qualquer pessoa, por meio do portal do Project Implicit,
mantido pela Universidade de Harvard.
5 Entre as críticas ao IAT, alguns sugerem que o resultado enviesado pode ser explicado não só pela
disponibiliza gratuitamente o teste on-line do tiro para medir o preconceito (shoot bias). No mesmo site,
há várias publicações que relatam os resultados das experiências realizadas. Ver: CORREL &
OUTROS, 2002.
8
muitas pessoas está pré-programado ou condicionado para ter uma inclinação negativa
contra pessoas negras, podendo gerar, inconscientemente, uma atitude prejudicial a
uma pessoa em função da cor de sua pele.
7Essa noção de preconceito foi construída a partir de algumas ideias emprestadas da psicologia social.
Ver, por exemplo: ALLPORT, 1971; JONES, 1973; MYERS, 2014; ARONSON & OUTROS, 2015.
9
um teste acadêmico. Apesar de o vídeo ser exatamente o mesmo para ambos os grupos,
o grupo que foi informado que a criança vinha de uma classe alta considerou que o seu
desempenho foi acima da média, enquanto o outro grupo avaliou que a criança teve um
baixo desempenho (DARLEY & GROSS, 1983). Esses estudos demonstram que
algumas informações estereotipadas podem levar a avaliações tendenciosas, seja para
prejudicar pessoas de grupos estigmatizados, seja para beneficiar pessoas de grupos
privilegiados.
Embora não seja possível afirmar, com certeza, se houve ou não uma
discriminação, é possível indicar pelo menos três fatores motivados pelo preconceito
implícito que podem, eventualmente, ter prejudicado o desempenho do funcionário
negro e a objetividade da avaliação: o racismo repulsivo (aversive racism), a ameaça
de estereótipo (stereotype threat) e a injustiça epistêmica (espistemic injustice).
visual com o candidato negro, ficará mais nervoso, gaguejará mais, trocará menos
palavras e provavelmente encerrará aquela entrevista em menos tempo. Esse
desconforto terá nítidos efeitos sobre o desempenho do candidato negro, pois ele
também sentirá a ansiedade da situação, ficará pouco à vontade e não conseguirá se
expressar de forma segura e confiante (DOVIDIO & GAERTNER, 2000;
ARONSON & OUTROS, p. 284).
8 Outra manifestação de injustiça epistêmica pode ocorrer em função do racismo cultural, em que as
realizações de outros grupos são avaliadas com base em critérios estabelecidos de acordo com os valores
do grupo dominante, como se estes fossem culturalmente superiores. Além de dificultar a manifestação
de diferenças culturais e empobrecer a pluralidade epistemológica, essa modalidade de racismo pode
levar a uma desvalorização das realizações de um grupo estigmatizado e ao isolamento daqueles que não
ajustam seus comportamentos em conformidade com as expectativas do grupo dominante (sobre isso:
JONES, 1973, pp. 5/6).
9 Essa foi uma experiência social realizada por um programa de TV norte-americano, da ABC,
denominado "Lost Key or Bike Theft: What Would You Do?". O curioso é que, em um terceiro cenário,
em que uma mulher de boa aparência tentava quebrar o cadeado, vários homens se prontificaram a
ajudá-la, mesmo desconfiando que se tratava de um furto. O vídeo está disponível na internet.
10 Com defende Kimberly Yuracko: "In a sexist society nothing done by men and women will have precisely
the same meaning. Traits are not understood or viewed as isolated technical attributes. They are necessarily
17
viewed in relation to all the other traits an individual possesses and through a systematically gendered lens"
(2004, p. 45).
18
menos remédios para dor ou até receberem prescrições mais baratas de tratamento,
inclusive ao ponto de serem sugeridas menos intervenções de alto custo, como cirurgias
cardíacas, quimioterapias ou transplantes (STAATS, 2015).
11 O direito da antidiscriminação é apenas um dos campos que pode ser afetado pelo avanço da
compreensão sobre preconceitos implícitos. As perspectivas de estudo são bem amplas e podem incluir,
por exemplo, os efeitos de preconceitos implícitos na interpretação jurídica, na administração da justiça,
no comportamento de juízes, jurados, promotores ou advogados, na percepção, memória e credibilidade
de testemunhas, na dosimetria da pena, no arbitramento de dano moral e assim por diante. Para uma
visão geral, vale consultar KANG & OUTROS, 2012.
20
Muitos estudos foram publicados nos últimos quinzes anos para tentar
compreender como o avanço do chamado realismo comportamental (behaviorial realism)
pode afetar o direito da antidiscriminação. A mensagem dominante é no sentido de que
21
o pensamento jurídico deveria levar mais a sério as mudanças que ocorreram nas
ciências cognitivas para reconhecer a presença de fatores inconscientes e não-
intencionais nos processos de tomada de decisão e construir soluções jurídicas que
possam permitir o combate a todas as formas de discriminação, sejam elas baseadas em
preconceitos explícitos, dissimulados ou implícitos (ver, por exemplo: KRIEGER &
FISKE, 200612).
12 As autoras apontam diversos exemplos em a psicologia social já foi utilizada explicitamente para a
solução de problemas jurídicos. Por exemplo, no famoso caso Brown v. Board of Education (1954), vários
estudos psicológicos e sociológicos foram citados na decisão para demonstrar que um modelo de
segregação racial nas escolas diminuía a auto-estima das crianças negras e prejudicava o seu desempenho
educacional. Um estudo de Kenneth e Mammi Clark demonstrou uma diferença no comportamento de
crianças negras que estudavam em escolas segregadas em relação a crianças negras que estudavam em
escolas não-segregadas. As crianças negras que estudavam em escolas segregadas tendiam a preferir
brincar com bonecas que possuíam o tom de pele claro, enquanto as crianças negras que estudavam em
escolas não-segregadas tendiam a preferir brincar com bonecas que possuíam o tom de pele escuro
(CLARK & CLARK, 1950). Com base nisso, a Suprema Corte dos Estados Unidos, ao declarar a
inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas, assinalou que "separar as crianças negras de outras
crianças com a mesma idade e qualificações apenas por causa de suas raças gera um sentimento de
inferioridade quanto ao status na comunidade que pode afetar seus corações e mentes de uma maneira que
dificilmente pode ser revertida" (no original: "to separate them from others of similar age and qualifications
solely because of their race generates a feeling of inferiority as to their status in the community that may
affect their hearts and minds in a way unlikely to ever be undone").
22
Para os fins deste estudo, não é preciso entender todas as nuances do direito
da antidiscriminação norte-americano, muito menos adentrar nos pormenores do
23
sistema processual. Basta conhecer seus fundamentos básicos a partir dos seus dois
modelos paradigmáticos de litígio: o disparate treatment e o disparate impact.
13 O disparate treatment costuma ser traduzido no Brasil como discriminação direta, por influência do
direito europeu que adota a dicotomia direct discrimination/indirect discrimination para se referir,
respectivamente, ao disparate treatmente/disparate impact. Optou-se por evitar o uso da expressão
discriminação direta como sinônimo de disparate treatment, dada as especificidades do conceito no direito
norte-americano. Assim, a expressão disparate treatment, quando não usada na sua versão original, será
traduzida como tratamento discriminatório. Por sua vez, a expressão disparate impact será traduzida como
impacto adverso ou impacto prejudicial ou ainda impacto desproporcional.
14 A fórmula-padrão adotada para casos de discriminação em seleção de emprego, mas que pode ser
adaptada para outros contextos, (promoção, demissão etc.), segue uma estrutura em que o autor deve
demonstrar: 1) que pertence a uma classe ou grupo protegido; 2) que candidatou-se àquela vaga e estava
24
negro seja demitido e, em seu lugar, tenha sido contratado um empregado branco, isso
por si só já é suficiente para demonstrar o prima facie case de discriminação, embora
seja apenas o primeiro passo do debate judicial.
qualificado(a) para ocupá-la; 3) que não foi contratado(a) pelo empregador; 4) que o cargo permaneceu
desocupado e o empregador continuou a procurar candidato com qualificações semelhantes ao do(a)
demandante para preenchê-lo.
15 Esse debate foi explicado por Richard Thompson Ford, que assinalou que a jurisprudência da
Suprema Corte costumava aceitar que a mera falta de boas razões (lack of good cause) já seria motivo
suficiente para inferir a prática da discriminação, mas houve uma virada para se entender que seria
preciso que a vítima demonstrasse algum sinal probatório de que o motivo do tratamento diferencial foi
preconceituoso. Dentro desse debate, Ford defende que é preciso encontrar um equilíbrio entre a
25
liberdade do empregador de tomar as decisões que bem entender (inclusive decisões ruins) e a proteção
de grupos estigmatizados contra tratamentos prejudiciais motivados por preconceito. Para a Ford, o
direito da antidiscriminação não proíbe que o empregador tome decisões ruins, nem que sempre tenha
motivos fortes para justificar seus atos, mas sim que os motivos sejam preconceituosos. Então, mais
importante do que verificar se os motivos para o ato são bons ou ruins, é analisar se está havendo uma
distribuição igualitária das decisões prejudiciais, a fim de evitar que uma pessoa seja ainda mais
prejudicada apenas por fazer parte de um grupo estigmatizado. Para isso, é preciso verificar se estão
sendo adotados mecanismos de salvaguarda, dentro de um custo razoável, para evitar que a ocorrência do
preconceito (FORD, 2014).
26
ponto focal não é um tratamento discriminatório contra um indivíduo, mas uma prática
facialmente neutra que causa um impacto adverso a todo um grupo protegido (JOLLS,
2007, p. 27)16.
Diante disso, a Suprema Corte dos Estados Unidos teve que analisar se esse
tipo de prática, que não é racista em sua face, mas gera um impacto adverso a um grupo
protegido, estaria ou não abrangida pelo direito da antidiscriminação. Já em 1971, no
caso Griggs v. Duke Power Co., a Suprema Corte afirmou que esse modelo de
contratação, fundado em critério que gerava impacto desproporcional contra os negros
e não era necessário às finalidades negociais, seria discriminatório, assinalando que "as
práticas, os procedimentos ou testes, facialmente neutros em sua aparência e até mesmo
neutros em termos de intenção, não podem ser mantidos se funcionam para 'congelar' o
status quo de práticas empregatícias discriminatórias"17.
16 Vale ressaltar que tanto o disparate impact quanto o disparate treatment podem ser objeto de discussão
em ações individuais ou coletivas. Muitas ações envolvendo o disparate impact são coletivas (class action),
pois, na medida em que uma prática facialmente neutra pode atingir vários membros do mesmo grupo,
pode ser estrategicamente vantajoso promover uma ação coletiva. Mas nada impede que uma pessoa
prejudicada pelo disparate impact promova uma ação individual para defender seus direitos.
17 Griggs v. Duke Power Co., 401 U.S. 424 (1971) - tradução livre.
27
motivos apresentados são meros pretextos para discriminar, ou então que existe uma
solução alternativa menos discriminatória (less discriminatory alternative) que poderia
ser adotada sem custos irrazoáveis para o empregador e que satisfaz ao propósito
desejado pela necessidade do negócio18. O empregador, por sua vez, pode demonstrar
que a proposta não é viável, ou tem um custo desproporcional, ou não atende com a
mesma eficiência a necessidade do negócio.
Após todo esse debate, se ficar comprovado que a prática adotada gera um
efeito adverso a um grupo protegido, não é essencial para a atividade ou pode ser
evitada ou substituída por uma alternativa menos prejudicial, restaria caracterizada a
responsabilidade do réu, mesmo que não houvesse uma prova cabal da intenção de
discriminar.
19 Sobre isso, Audrey J. Lee menciona que essa tendência de vincular o implicit bias com o disparate
impact pode ser um problema de estratégia nas ações de antidiscriminação, tendo em vista as dificuldades
de vencer uma causa de disparate impact. No aspecto probatório, é difícil identificar a prática neutra que
está causando o impacto adverso, bem como demonstrar, estatisticamente, a correlação entre a prática e o
impacto, dada a sofisticação exigida para validar esse tipo de prova. Por isso, ela acredita que é possível
que o mecanismo mais adequado para enfrentar o implicit bias seja em ações de disparate treatment, de
caráter individual, onde se poderia ampliar o conceito de motivo para incluir os motivos derivados de
preconceitos implícitos ou mudar o conceito de pretexto, para possibilitar a refutação das razões
apresentadas pelo empregado com a demonstração de influência de motivos preconceituosos
inconscientes como fator causal do tratamento prejudicial (LEE, 2005, p. 490/492).
30
Essa psicologia de senso comum ainda tem uma aceitação muito forte na
prática jurídica norte-americana e é por isso que a intenção de discriminar ocupa, entre
os parâmetros de valoração das provas adotados, um espaço privilegiado, sobretudo
quando a vítima consegue demonstrar, por meios diretos, que o agente discriminador
teve o deliberado e maligno propósito de prejudicar por preconceito.
Porém, como esse meio de prova direto é muito raro e difícil de ser
revelado, os órgãos judiciais passaram a admitir a utilização de diversos elementos
indiretos de prova que mitigaram substancialmente o papel da intenção como pré-
requisito da comprovação da prática discriminatória. Assim, mesmo que não existam
indícios da intenção de discriminar, a prática discriminatória pode ser atestada se forem
20 Ressalte-se que mesmo essa fórmula restritiva de discriminação já pode ser útil para combater o
preconceito implícito. Como defende Christine Jolls, as leis antidiscriminação mesmo quando não
tratam diretamente do preconceito implícito tem o efeito de reduzir as práticas discriminatórias,
conscientes e inconscientes, na medida em podem promover a diversidade e cooperação entre grupos
heterogêneos, inclusive em ambientes escolares, estimulando o surgimento de sentimentos positivos em
favor de grupos vulneráveis (JOLLS, 2007).
31
sua cabeça e, portanto, tem pleno controle sobre os motivos de seu comportamento.
Afinal, está cientificamente provado que nem todos os motivos que influenciam o
comportamento humano são processados no Sistema 2 (Nível Consciente). Conforme
se viu, há muitos fatores que são processados no Sistema 1 (Nível Inconsciente), que,
em muitas situações, comandam os comportamentos humanos. Uma concepção de
discriminação que seja focada unicamente nas razões conscientes é totalmente
inadequada para captar os verdadeiros motivos do ato, pois, mesmo se o sujeito fosse
completamente sincero, muitas razões jamais viriam à tona porque o agente
discriminador sequer tem consciência de que existem. Por isso, é importante
reconfigurar o sentido clássico que os juristas atribuem ao conceito de motivo do ato
para incluir a influência dos fatores inconscientes que o agente discriminador pode até
nem saber que existem, mas que tiveram um papel relevante na decisão discriminatória
(sobre isso: KRIEGER & FISKE, 2006; FAIGMAN & OUTROS, 2008;
MCGINLEY, 2000).
Para perceber como as razões conscientes, ainda que sinceras, nem sempre
são suficientes para entender os fatores reais da decisão, vale citar uma importante
experiência realizada por Uhlman & Cohen (2005), da Universidade de Yale, que
demonstram que nem sempre as pessoas são capazes de expressar verdadeiramente
todos os autênticos fundamentos de sua escolha. Os pesquisadores pediram a várias
pessoas que selecionassem o melhor candidato para ocupar a vaga de Chefe do
Departamento de Polícia. Os pesquisadores criaram dois cenários diferentes, sempre
com dois candidatos concorrendo à vaga: Michel e Michelle. No primeiro cenário, o
candidato masculino tinha boa experiência em rua, mas baixa formação acadêmica,
enquanto a candidata feminina tinha as qualidades opostas. No segundo cenário, o
quadro se inverteu: o candidato masculino foi apresentado com pouca experiência em
rua, mas alta formação acadêmica, e a candidata feminina com baixa formação
acadêmica e muita experiência em rua. Em ambos os cenários, observou-se uma
tendência majoritária de se escolher o candidato masculino para o posto de Chefe do
Departamento de Polícia. Essa tendência ocorria mesmo quando os recrutadores (que
eram cobaias da experiência) eram do sexo feminino.
homem. Porém, poucos apresentaram esse motivo como o mais relevante para a
formação do juízo decisório, ou mesmo mencionaram que teve alguma influência na
escolha.
uma determinada decisão foi ou não afetada por preconceitos implícitos. Eles medem a
presença de uma tendência de preferências inconscientes a favor ou contra
determinados grupos, mas não garantem que uma determinada decisão foi, de fato,
motivada pelo preconceito implícito. Ou seja, o IAT e outros testes semelhantes
medem a existência de possíveis preconceitos implícitos no pensamento da pessoa
avaliada, mas não a existência do comportamento enviesado (JOLLS, 2007, p. 14). É
possível, por exemplo, que alguém com forte preferência pelas pessoas brancas, medida
pelo IAT, nunca venha a manifestar um comportamento racista. Além disso, a
tendência ao preconceito, provocada pelos implicit bias, é uma mera probabilidade
estatística. Algumas decisões podem ser influenciadas pelo preconceito implícito, mas
outras podem ser fruto do acaso ou de outros fatores não-preconceituosos.
22 Para uma análise dos principais argumentos a favor e contra o uso do IAT como prova judicial da
presença de preconceitos implícitos: CERULLO, 2013, pp. 142/145. O autor cita, em síntese, os
seguintes argumentos: (a) baixa validade científica do IAT; (b) imprecisão nos resultados; (c) ausência de
uma certeza quanto aos motivos efetivos que causaram o ato; (d) possibilidade da presença de outros
fatores que também foram causadores do ato; (e) ausência de uma correlação absoluta entre a medição de
preconceitos implícitos e a prática de comportamentos discriminatórios; (f) inconstância nos resultados,
já que há muitos fatores que podem alterar a medição do grau de implicit bias de uma pessoa; (g) risco de
falsos positivos; (h) questões éticas de privacidade, em função de revelar informações que a pessoa pode
não querer que outros saibam; (i) questões éticas quanto ao uso forçado do teste em pessoas que não
querem ser medidas. Quanto a esse último ponto, KANG e Outros, apesar de serem entusiastas da
revolução do realismo comportamental, assumem-se contrários ao uso do IAT em situações que não
sejam de pesquisa ou treinamento (KANG E OUTROS, 2012, p. 1180 - criticando o uso do IAT para
seleção de jurados, juízes, policiais etc.). Parece-me que, de fato, diante da zona de incerteza e de
indeterminação que circunda o IAT, a sua incorporação ao direito probatório em casos de discriminação
é extremamente problemática, pelo menos na atual fase de evolução do debate. Isso, porém, não significa
negar a importância do IAT, muito menos do implicit bias, em um contexto de discussão sobre a prática
de um ato discriminatório, mas apenas ter consciência dos limites do teste como prova judicial da
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discriminação. Além disso, é preciso dizer que os referidos limites ou até mesmo falhas do IAT não
devem significar a refutação da existência de preconceitos implícitos. O implicit bias tem sido constatado
de forma independente por vários meios além do próprio IAT.
23 Para uma análise de diversas decisões favoráveis e contrárias: CERULLO, 2013, pp. 146/155.
37
Nos estudos consultados, a maioria dos autores adota esse ponto de vista,
sugerindo que as empresas deveriam adotar mecanismos para minimizar os efeitos dos
preconceitos implícitos no ambiente de trabalho, podendo eventualmente serem
acusadas de discriminação caso se mantenham inerte.
24 Em 2014, mais de 20% das maiores empresas dos Estados Unidos já adotavam programas de
treinamento para reduzir os preconceitos implícitos de seus empregados. O Google, por exemplo,
disponibiliza um programa de treinamento na internet especificamente voltado para esclarecer o que é o
preconceito implícito e conscientizar sobre a necessidade de combatê-lo (STAATS & OUTROS, 2015,
p. 2).
25 O conceito de "nudge", dentro da ciência comportamental, está geralmente associado à ideia de
"arquitetura de escolhas". Nudges são pequenos incentivos que podem influenciar o processo de tomada
de decisões, sem cercear completamente a liberdade de escolha. Arquitetura de escolhas corresponde ao
formato do arranjo (design) adotado para que as melhores decisões sejam tomadas em uma determinada
direção aproveitando o incentivo do nudge. A lógica é extremamente simples: existem alguns fatores sutis
que influenciam a tomada de decisões que podem ser organizados para guiar as escolhas em uma
determinada direção; logo, é possível promover a realização de objetivos desejáveis por meio de pequenas
mudanças na arquitetura de escolhas, bastando que sejam criados mecanismos que reduzam os ônus da
40
direção certa pode ter um impacto positivo para promoção do debiasing, mitigando os
danos causados pelo preconceito implícito. Assim, por exemplo, adotar formas de
lembrar constantemente a existência do implicit bias ou criar formas de contato e
cooperação mais frequente entre pessoas de grupos diferentes ou apresentar imagens de
pessoas de um grupo estigmatizado que sejam admiradas são pequenas medidas que
podem ter um impacto relevante na redução dos efeitos dos preconceitos implícitos
(sobre isso: JOLLS & SUNSTEIN, 200626; KRIEGER & FISKE, 2006; KANG &
OUTROS, 2012; KIRWAN, 2015, entre outros).
decisão na direção certa. Um exemplo clássico que ilustra o funcionamento de nudges e arquitetura de
escolhas é a organização dos alimentos em uma prateleira de modo a facilitar o acesso a comidas
saudáveis. Essa simples mudança "arquitetônica" é capaz de fazer com que as pessoas alterem seus
hábitos de alimentação, sem que seja necessário impor qualquer tipo de dieta ou restrição alimentar, pois
seus cérebros tenderão a buscar o caminho que gera o "menor esforço" (sobre isso, THALER &
SUNSTEIN).
26 Jolls e Sunstein (2006) explicam que é possível atacar o preconceito implícito através da lei (debiasing
through law) tanto de forma direta, criando pequenos incentivos para evitar que os atalhos mentais
preconceituosos sejam acionados, ou de forma indireta, por meio de um estímulo para que o pensamento
consciente (nível 2) consiga controlar os impulsos do pensamento automático (nível 1). Assim, quando
os fatores que facilitam o surgimento do preconceito implícito são isolados ou então quando é criado um
ambiente mais diversificado e menos hostil, há uma menor incidência do implicit bias, em função de uma
atuação direta no nível 1 (direct debiasing). Por sua vez, quando se proíbe a prática do preconceito,
forçando a pessoa a pensar antes de discriminar e a tomar precauções para evitar a manifestação do
preconceito implícito, há uma intervenção no nível 2 que, indiretamente, pode neutralizar os efeitos do
pensamento automático no nível 1 (indirect debiasing).
41
27Cerullo cita o caso Kimble v. Wisconsin Departament of Workforce Development, em que o requerido
foi condenado por criar um procedimento bastante discricionário de concessão de aumentos para seus
empregados, dando margem a ocorrência de tratamentos diferenciados e impactos adversos a grupos
estigmatizados, em função dos preconceitos implícitos que poderiam influenciar o processo decisório
(CERULLO, 2013, p. 154).
42
De certo modo, isso já tem sido adotado no Brasil, mas de modo muito
precário e intuitivo. Por exemplo, a súmula 443, do Tribunal Superior do Trabalho,
Por exemplo: TST, AIRR - 95240-03.2005.5.10.0013 , Relator Ministro: Walmir Oliveira da Costa,
28
organizacional para que as decisões relevantes sejam menos afetadas pelos preconceitos
implícitos. O dano moral coletivo também poderia funcionar como uma eficiente sanção
civil para que as empresas mudem suas práticas discriminatórias, ainda que não-
intencionais e inconscientes30.
9 Conclusões
30Em uma ação civil pública em que se questionou a demora de uma empresa em acomodar pessoas com
deficiência em seu quadro de empregados, em descompasso com o artigo 93 da Lei 8.213/91, levou o
TST a confirmar uma condenação de uma empresa a pagar um dano moral coletiva, tendo sido
assinalado que "a reparação por dano moral coletivo visa a inibição de conduta ilícita da empresa e atua
como caráter pedagógico, para que o ofensor não mais venha a incorrer em transgressão ao ordenamento
jurídico vigente. Na hipótese, o Tribunal Regional, com base no conteúdo fático probatório, registrou que a
ré retardou o cumprimento da cota social (art. 93 da Lei nº 8.213/91), bem como formulou ofertas de
emprego com inserção de requisitos discriminatórios referentes a sexo, idade e tipo de deficiência, criando
óbice a determinados indivíduos que, por critérios vis, ficaram excluídos da obtenção de emprego perante a
empresa. (...) Dessa conclusão, inequivocamente deriva a ocorrência de dano moral coletivo e, por
consequência, o surgimento da obrigação de repará-lo" (TST, RR - 9890600-28.2005.5.09.0001 , Relator
Ministro: Pedro Paulo Manus, Data de Julgamento: 07/12/2011, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT
16/12/2011).
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