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Duas funções da prohairesis segundo Aristóteles

No livro III da Ética Nicomaqueia, Aristóteles justifica o exame da prohairesis duplamente.


Ela “parece ser mais próxima à virtude [moral] e mais apta a discriminar o caráter do que as
ações [voluntárias] o fazem” (1111b5-6). Os critérios para a distinção e atribuição de
voluntariedade às ações humanas foram delimitados anteriormente. A razão pela qual
Aristóteles procedeu ao exame desses critérios é que censura e louvor, atitudes adequadas
diante do vício e da virtude moral, respectivamente, só são propriamente atribuídos às ações
voluntárias. Foi preciso distingui-las, portanto, das ações involuntárias. Mas outra
característica, de acordo com a passagem aqui citada, é atribuída às ações voluntárias: elas
dizem algo não só sobre a sua própria qualidade – por exemplo, se são boas, justas ou
benevolentes e, portanto, louváveis – mas também sobre a qualidade do caráter daquele que
a realiza. Isso é assim pois, em geral, ações são expressões ou manifestações do caráter.
Podemos inferir algo sobre o caráter de quem está ajudando outra pessoa porque ele está
ajudando outra pessoa; porque ele está ajudando outra pessoa podemos, como um juízo
provisório ao menos, dizer que ele é benevolente. No entanto, assim sugere Aristóteles, se
soubermos a prohairesis a partir da qual, com a qual ou em vista da qual ele agiu,
poderemos fazer um juízo mais certeiro e acertado sobre o caráter do agente. Isso parece ser
assim pois a prohairesis de alguém é a expressão das razões a partir das quais, com as
quais ou em vista das quais o agente agiu. A proposta deste trabalho é esclarecer as duas
justificativas apresentadas por Aristóteles, no trecho citado, para examinar a prohairesis,
buscando também explicitar em que medida ou até que ponto essas justificativas se
relacionam. Considerarei, por exemplo, a relação entre a atribuição de louvor e censura às
ações voluntárias e às ações voluntárias escolhidas por deliberação. Trata-se, portanto, de
considerar que o exame da prohairesis, como poder-se-ia falsamente depreender do modo
como ele é introduzido, não pretende colocá-la como um elemento separado das ações
voluntárias, mas com uma qualificação das mesmas. Buscarei mostrar que a comparação
entre as ações voluntárias e a prohairesis se dá em termos de uma gradação quanto à
relação delas com a virtude moral. Buscarei igualmente mostrar que as ações voluntárias
escolhidas por deliberação são a expressão mais plena dos atos oriundos das virtudes
morais. É nessa medida que elas serão capazes de discriminar melhor os caracteres do que
as ações. Buscarei, por fim, defender que o exame da prohairesis, tal como ele é anunciado
e justificado nesse momento do texto, a afasta do restante do livro III, pois a aproxima mais
do fim do que das coisas que são em vista do fim – com o que a deliberação estará
diretamente relacionada. No entanto, longe de gerar uma inconsistência no livro III, a
aproximação da prohairesis com o fim da ação e, portanto, com a virtude moral, deixa
evidente o seu aspecto complexo e a sua função de qualificadora da ação voluntária.
Priscilla Tesch Spinelli

E-mail: ptspinelli@gmail.com

Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Licenciada, Bacharela, Mestre e Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio


Grande do Sul (UFRGS), com período de estágio (doutorado sanduíche) na Universidade da
Sorbonne – Paris 1. Desde 2011 é Professora Adjunta do Departamento de Filosofia da
UFRGS. Tem experiência na área de Filosofia Antiga e Ética, pesquisando e lecionando
principalmente sobre a filosofia prática de Aristóteles. Fez pós-doutorado junto ao Centre
Léon Robin (CNRS, Sorbonne-Paris 1 e ENS), com bolsa da CAPES, sob a supervisão de
Cristina Viano, entre 2015 e 2016.

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