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Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
I
II
III
IV
V
VI
VII

Sobre o autor
Créditos
Stella Maris
Black River Falls, Wisconsin

Fundado em 1902
Desde 1950, instituição não religiosa e asilo

para o atendimento de pacientes psiquiátricos.

Unidade Residente 27 de outubro de 1972


Caso 72-118

A paciente é uma judia/caucasiana de vinte anos de idade.


Atraente, possivelmente anoréxica. Chegou à instituição há seis
dias, ao que tudo indica de ônibus e sem bagagem. A internação
foi assinada pelo dr. Wegner. A jovem trazia na bolsa um saco
plástico cheio de notas de cem — no total, pouco mais de
quarenta mil dólares —, que tentou dar à recepcionista. A
paciente é candidata ao doutorado em matemática pela
Universidade de Chicago e foi diagnosticada como paranoide
esquizofrênica com uma longa etiologia de alucinações visuais e
auditivas. Residente nesta instituição em duas ocasiões
anteriores.
i

Oi. Sou o dr. Cohen.


Não o dr. Cohen que eu esperava.
Perdão. Você deve estar falando do dr. Robert Cohen.
É. Pelo jeito não faltam drs. Cohen por aqui.
Provavelmente não. Como tem andado? Tudo bem?
Tudo.
Certo.
Tenho andado no manicômio.
Bom. Fora isso, quero dizer.
Faz quanto tempo que trabalha nesse ramo?
Uns catorze anos.
Está gravando nossa conversa?
Acho que o combinado foi esse. Tudo bem por você?
Imagino que sim. Por um momento achei que você fosse outra pessoa.
Nesse caso não está tudo bem.
Não. Sem problema. Mas preciso dizer que só concordei em con­versar. Não
em fazer nenhum tipo de terapia.
Certo. Tem alguma coisa que queira me perguntar? Antes de começarmos.
Já começou. Que tipo de coisa?
Que tal me contar um pouco sobre você.
Ah, meu Deus.
Não?
Vai me fazer um questionário-padrão?
Como?
Tudo bem. É só que sou ingênua o suficiente para continuar ima­­ginando
que é possível lançar essas surtidas em um vetor não distorcido pelo jargão ao
ponto da implausibilidade.
Qual o problema? Meu tom de voz?
Não, tudo bem. Vamos fazer do seu jeito. Que se dane.
Bom. Não quero começar com o pé esquerdo. Só achei que você talvez
quisesse me contar um pouco sobre o motivo de estar aqui.
Não tinha outro lugar para ir.
E por que aqui.
Já estive aqui antes.
E qual foi o motivo na época.
Não consegui ir para o St. Coletta.
E por que o St. Coletta?
Foi para onde mandaram a Rosemary Kennedy. Depois que o pai mandou
tirar um pedaço do cérebro dela.
Você tem alguma ligação com a família?
Não. Eu não sabia nada sobre centros psiquiátricos. Só imaginei que se ela
tinha sido mandada para lá o lugar devia ser excelente. Na verdade acho que
tiraram o cérebro dela em outro lugar.
Você está falando de lobotomia.
É.
Por que ela foi submetida a uma lobotomia?
Porque era esquisita e o pai ficou com medo de que alguém a levasse pra
cama. Ela fodeu com os sonhos do velho.
Isso é verdade?
É. Infelizmente.
E por que você achou que tinha que ir para algum lugar?
Desta vez?
É. Desta vez.
Só achei e pronto. Tinha acabado de voltar da Itália. Meu irmão estava lá em
coma. Ficavam insistindo na minha permissão para desligar os aparelhos.
Assinar os papéis. Então decidi fugir. Não sabia mais o que fazer.
Era algo que não tinha coragem de fazer? Deixar que desligassem os
aparelhos?
É.
Ele teve morte cerebral?
Não quero falar sobre o meu irmão.
Tudo bem. Só queria saber por que ele está em coma.
Acidente de carro. Ele era piloto de corrida. Não estou mesmo a fim de falar
sobre isso.
Tudo bem. Tem alguma coisa que gostaria de me perguntar?
Sobre o quê?
Qualquer coisa. Sobre mim se quiser. Posso tratar você por Alicia?
Você quer que eu pergunte sobre você.
Sim. Se quiser.
Você dá aula na universidade.
Na Madison. Correto.
Sei onde fica a universidade. Até que você se veste bem para um acadêmico.
Obrigado.
Não foi um elogio. Você não é psicanalista.
Sou psiquiatra.
Então não é médico.
Na verdade sou.
O que mais.
Sou casado. Dois filhos. Minha mulher dirige um programa do município
para crianças. Tenho quarenta e três anos.
O que gosta de aprontar quando não tem ninguém olhando?
Eu não apronto. E você?
Fumo um cigarro de vez em quando. Não bebo, não uso drogas. Nem
remédios. Imagino que você não teria aí um cigarro.
Não. Mas posso trazer.
Certo.
O que mais?
Tenho conversas clandestinas com personagens supostamente inexistentes. Já
me chamaram de oferecida mas não concordo. As pessoas parecem me achar
interessante só que basicamente desisti de conversar com elas. Converso com
meus colegas tantãs.
Não conversa com outros matemáticos?
Não mais. Bom. Alguns.
Por quê?
É uma longa história.
Ainda trabalha com matemática?
Não. Não o que você chamaria de matemática.
Que tipo de matemática você fazia?
Topologia. Teoria dos topos.
Mas não faz mais.
Não. Uma coisa me distraiu.
O quê?
A topologia. A teoria dos topos.
Acho que a gente podia deixar a matemática de lado por enquanto.
Sem problema. De qualquer maneira eu não sabia o que estava fazendo.
Fico surpreso ao ouvir isso. Você não podia pedir ajuda aos outros
matemáticos?
Não. Eles também não sabiam.
Tem certeza de que posso gravar nossa conversa?
Claro. Mas e se eu disser fodeu ou qualquer coisa assim? Acho que na
verdade já disse. Na verdade acabo de dizer outra vez.
Sei lá. Acho que pelo combinado você não teria prerrogativas de edição.
Não estou falando sério.
Ah.
Pode ser Alicia. Melhor que Henrietta.
Você não está falando sério outra vez.
Não.
Tudo bem. Não quer me contar nada sobre seu irmão?
Isso está começando a parecer o programa Eliza. Não. Eu. Não. Quero.
O software psiquiátrico.
É.
Tudo bem. Sobre o que quer conversar?
Sei lá. Acho que só estou querendo bancar a sabichona. Se você quiser
conversar comigo de verdade vamos ter que cortar pelo menos um pouco dessa
conversa furada. Não acha?
É. Acho que você tem toda a razão.
Esse tipo de coisa, por exemplo.
Isso é conversa furada?
Claro que é. Nem a pau você acha que tenho toda a razão.
Ahã.
E por favor não diz ahã.
Só estou tentando entender seu ponto de vista. Ainda mantém contato com
alguém?
Quer dizer gente real?
De preferência. É.
Na verdade não.
Ninguém da matemática? Ninguém da universidade?
Achei que não fôssemos conversar sobre matemática.
Tudo bem.
De vez em quando escrevo para o Grothendieck, mas ele saiu do ihes e
nunca responde. O que por mim tudo bem. Não espero mesmo que responda.
Ele é matemático?
É. Ou era.
Onde ele mora?
Não sei. Imagino que continue na França.
O nome não é muito francês.
Não tem nada de francês. O pai se chamava Schapiro. Depois Tanaroff. Ele
não tem cidadania. Virou refugiado quando criança, durante a guerra. Viveu
escondido. Fugiu pra sobreviver. O pai morreu em Auschwitz.
Para onde você manda as cartas?
Para o ihes. Você não sabe quem ele é, sabe?
Não.
Tudo bem. Fomos amigos. Somos amigos. Compartilhamos um mesmo
ceticismo.
Em relação a quê?
Em relação à matemática.
Não sei se estou entendendo.
Sem problema.
Você é cética em relação à matemática?
Sou.
Ficou decepcionada por algum motivo? Não entendo como é possível ser
cética em relação à disciplina como um todo.
Pois é.
Mas a matemática decepcionou você.
Seria um modo de dizer.
E como isso aconteceu?
Bom. Nesse caso fui influenciada por um grupo de equações diferenciais
parciais malignas aberrantes e totalmente maliciosas que conspiraram para
usurpar sua própria realidade dos circuitos questionáveis do cérebro de seu
criador de um modo não muito diferente da rebelião descrita por Milton e
para hastear as cores de sua bandeira como uma nação independente que não
presta contas nem a Deus nem ao homem. Algo nessa linha.
Você acha minhas perguntas ingênuas.
Desculpa. Não. Não acho. A falha não reside em quem indaga.
É um matemático proeminente? Seu amigo.
Grothendieck. Muitos o consideram o matemático mais importante do
século xx. Se ignorarmos o fato de que Hilbert, Poincaré, Dedekind e Cantor
viveram todos no século xx. E deveríamos mesmo ignorar, já que todo o
trabalho importante deles foi feito no século xix.
Desculpe, mas não conheço esses nomes.
Entendo. Sem problema. Quer dizer, problema tem. Mas tudo bem.
Grothendieck.
O que tem ele.
Vocês trabalharam juntos?
Não sei se daria pra chamar de trabalho. A gente passava bastante tempo
conversando. Ele ia ao Instituto às terças. E eu passava bastante tempo na casa
dele. Comia com a família. Depois as conversas continua­vam até altas horas.
Em certo sentido só estava todo mundo junto no mesmo hospício. O Instituto
tinha sido fundado para ele e para outro matemático, Dieudonné, por um
russo rico chamado ­Mot­chane — se é que esse era o nome dele de verdade —,
um louco de pedra. Foi criado nos moldes do ias. Em Princeton.
Oppenheimer foi consultor. Fiquei lá por um ano, mas nessa época o
financiamento tinha começado a secar. No fim das contas nem recebi toda a
minha bolsa. Era a única mulher lá. No começo achavam que eu trabalhava na
cozinha.
Pelo visto a experiência não foi boa.
Foi fantástica. Até em Chicago eu havia tido um pouco de dificuldade. Mas
Grothendieck escutava cada palavra que diziam a ele. Balançando a cabeça e
anotando em seu bloquinho. Conversando. Perguntando coisas que as pessoas
tinham deixado de se perguntar.
Quantos anos você tinha?
Dezessete.
E isso não era um problema. Sua idade.
Nem passava pela cabeça dele.
Por que ele não escreve?
É mais porque largou a matemática.
Como você.
É. Como eu.
Foi muito difícil?
Bom. Acho que deve ser mais difícil perder uma coisa só do que perder
tudo.
Uma coisa pode ser tudo.
É. Pode. A matemática era tudo que a gente tinha. Não foi como largar a
matemática para jogar golfe. Hoje em dia ele é convidado para dar palestras e
discursa exaltado sobre o meio ambiente ou a guerra. Os pais dele eram
ativistas políticos. Ele é muito devotado à memória dos dois. Tem um retrato a
lápis do pai em cima da escrivaninha e pelo que me contaram uma máscara
mortuária da mãe. Mas a verdade é que eles o abandonaram quando era
pequeno para perseguir o sonho político de um mundo que nunca vai existir e
meu palpite é que ele se sentiu compelido a assumir a causa dos dois a fim de
justificar essa traição. Ele é casado e tem filhos. E meu medo é que faça a
mesma coisa com eles.
Você está chorando?
Desculpa.
Mas ele largou tudo.
É.
Por quê?
Os amigos acreditam que foi ficando cada vez mais instável men­talmente.
E isso é verdade?
É complicado. Você acaba falando sobre crença. Sobre a natureza da
realidade. Enfim, conheço alguns matemáticos que achariam engraçado ouvir
falar em renunciar à matemática como evidência de instabilidade mental.
Com que idade ele está?
Quarenta e quatro.
E você foi pra França porque aceitou uma bolsa no Instituto dele.
Fui pra França pra ficar com meu irmão. Não sabia se ele ia voltar. Mas sim.
Queria ir para o Instituto. Eles estavam fazendo o que eu queria fazer.
Você já tinha se formado na Universidade de Chicago.
Já.
Com dezesseis anos.
É. Estava no programa de doutorado. Continuo, imagino. Eu não tinha
vida, na verdade. Era só trabalho o tempo todo.
Se não fosse a matemática, que outra coisa gostaria de ter feito?
Morrido.
Estou falando sério.
Levei a pergunta a sério. Você devia levar minha resposta a sério.
Está se sentindo bem?
Estou. Talvez eu tenha meio que ignorado sua pergunta. O que eu queria de
verdade era ter um filho. É isso. Se eu tivesse um filho entraria no quarto dele à
noite só pra ficar sentada ali. Em silêncio. Escutando a respiração dele. Se eu
tivesse um filho não me importaria com a realidade.
Você me surpreende.
Certo. Bom.
Quer continuar?
Sem problema. Em todo caso Grothendieck e Motchane tiveram um
desentendimento. Motchane disse a ele que o Instituto estava aceitando
dinheiro dos militares e que ia pedir demissão. E foi exatamente isso que fez.
Nem tenho certeza se era verdade. Sobre o dinheiro.
Ele é mesmo um grande matemático?
É.
Eu seria capaz de compreender alguma coisa do que ele fazia?
Não sei. Ele produziu mais do que daria para esperar de cinco matemáticos
juntos. Abordando Euler. No fim das contas começou a reescrever toda a
geometria algébrica. Chegou só até mais ou menos um terço disso. Milhares e
milhares de páginas. Mas mudou a ma­temática de maneira decisiva. Ele liderou
o grupo de Bourbaki, só que no fim eles não conseguiram acompanhá-lo. Ou
não quiseram. Aqueles matemáticos se baseavam na teoria dos conjuntos, que
começava a parecer cada vez mais porosa, e Grothendieck tinha ido bem além
disso. Um nível completamente novo de abstração lógica. Uma nova maneira
de olhar para o mundo. Ele estava completando o que Riemann começou.
Derrubar Euclides de vez. Ignorando enquanto isso o Quinto Postulado. A
intrusão do infinito com que Euclides não conseguiu lidar. Quando a gente
chega na teoria dos topos, está no limiar de outro universo. Encontrou um
ponto em lugar nenhum para observar retrospectivamente o mundo. Não é só
uma questão de gestalt. É algo fundamental.
Você mesma se internou aqui.
No Stella Maris.
É.
Quando um paciente é internado por alguém recebe o diagnóstico do
doente mental, mas quando é ele próprio que se interna isso não acontece. A
ideia é que ele deve ser razoavelmente são, do contrário não teria feito isso por
conta própria. Acabam dando uma aliviada na sua ficha médica. Se você é
suficientemente são pra saber que é louco então não é tão louco quanto se
achasse que era são.
Você esteve aqui antes o quê? Duas vezes?
É.
E por que desta vez? Acho que é isso que estou perguntando.
Sempre encontro estranhos no meu quarto.
Pelo jeito isso não é novidade.
Queria ver algumas pessoas aqui.
Pacientes.
É. Ou acha que estou aqui para visitar os funcionários?
Está se referindo aos psicoterapeutas.
Isso.
Não sei.
Claro que sabe.
Você não está tomando nenhum remédio.
Não.
Acha que isso é sensato.
Se é sensato não sei. Não sou uma pessoa sensata.
Mas também não acha que é louca.
Sei lá. Não. Pelo menos não me encaixo no manual de loucura de vocês.
O dsm.
É. Claro que não sou a única sem um lugar nele.
Continua a ter alucinações?
Nunca chamei de alucinações.
Você se referiu a suas visitas como pessoas inexistentes.
Personagens.
Certo, personagens.
Estou citando a literatura.
Que literatura seria essa?
A literatura sobre mim. Mas não. Ultimamente não os tenho visto. Eles não
gostam de aparecer em lugares como este. Não se sentem à vontade. Você está
achando graça.
É quase como se você afirmasse que instituições assim promovem a saúde
mental por si sós. De que maneira? Como uma igreja afastando espíritos
malignos?
Imagino que a analogia possa servir. A Igreja vive falando em pecadores.
Almas salvas raras vezes são mencionadas. Não sei quem comentou que os
interesses de Satã são puramente espirituais. Chesterton, acho.
Não sei se compreendo.
Satã está interessado apenas na sua alma. Fora isso não dá a mínima para o
seu bem-estar.
Interessante. Suas visitas. Seja o que forem. O que pode me dizer sobre elas?
Nunca sei como responder essa pergunta. O que quer saber?
Elas vêm com um nome?
Ninguém vem com nome nenhum. Você as nomeia para conseguir
encontrá-las no escuro. Sei que você leu minha ficha mas os médicos prestam
pouquíssima atenção na descrição de figuras alucinatórias.
Até que ponto elas parecem reais pra você? Elas têm o quê? Qualidade
onírica?
Acho que não. Nos sonhos falta coerência às figuras. Você vê um pedacinho
aqui e ali e completa o resto. É meio que como um ponto cego do olhar. Falta
continuidade. Elas assumem outras formas. Para não mencionar a paisagem de
sonho que ocupam.
A principal figura é um anão careca.
Uma pessoa pequena. Isso.
O Kid.
O Kid. Isso.
Mas ele não é como uma figura nos seus sonhos.
Não. É como uma figura no seu quarto.
Eu queria saber se você tem alguma opinião sobre por que essas figuras
assumem o aspecto que assumem.
Que tal tentar perguntar outra coisa? Elas assumem o aspecto do qual o seu
aspecto é composto. Imagino que o que você realmente quer saber é se elas
simbolizam alguma coisa. Não faço ideia. Não sou junguiana. Sua pergunta
sugere também que seria possível orquestrar de algum modo esse bestiário
inane. Da forma que for. Feito de figuras que quase reluzem de tão reais.
Consigo ver os pelos nas narinas, o buraco dos ouvidos, o laço dos sapatos.
Você acha que seria possível encenar uma ópera dos meus processos mentais
perturbados a partir disso. Só posso lhe desejar boa sorte.
Mas você tem consciência de que os outros não acreditam na existência de
seres assim.
Defina existir.
Como?
Não estou muito preocupada com aquilo em que os outros acreditam ou
deixam de acreditar. Não considero as pessoas qualificadas para dar uma
opinião.
Porque elas nunca viram esses seres.
Bom. Acho que isso pode ser classificado como um beco sem saída lógico. O
que acha?
Tenho certeza de que você sabe que alucinações na escala em que descreve
são raríssimas. Mais de um psicoterapeuta já sugeriu que são fruto da sua
imaginação.
Fruto da minha imaginação.
É.
Isso soa um pouco esquisito, não?
Que você inventou que os estava imaginando.
É, bom. Eles também não têm direito a uma opinião.
Quem, os psicoterapeutas?
Sim, os próprios.
Talvez não. Quando esse negócio começou? Com que idade?
Você acha que tenho sintomas de psicose aguda?
Não. Não acho. Mas também está claro que não gosta de ser testada.
Óbvio que não. E você?
Não. A menos que ache que vou me sair bem. Mas pra você os testes em
geral são o quê? Equivocados? Invasivos?
Digamos apenas que não gosto deles.
Mas já fez alguns. Sua pontuação no teste avançado de Raven foi perfeita.
Não foi a primeira vez que alguém conseguiu.
Mas não no tempo em que você conseguiu.
As questões iniciais são bem estúpidas. Resumem-se a preencher na figura o
que está faltando. O teste é variado apenas num sentido razoavelmente
primitivo. Os problemas ficam mais difíceis mas não são de fato diferentes.
Além disso, por mais complexas que sejam as figuras não exigem a
compreensão de mais do que seis regras.
No fim do teste você desenhou duas matrizes tridimensionais.
Treliças. Isso. Uma geométrica e a outra computacional. Não fo­ram tão
difíceis assim. Mas me pareceram promissoras. Vi que podiam ficar bem
contorcidas bastante rápido. Se você não acertasse a dimensionalidade não
conseguiria acompanhar a progressão. Nunca mais ouvi falar deles. Mas minha
impressão era que se havia pessoas acertando tudo nos testes então
provavelmente vocês precisavam bolar testes mais difíceis. Pensei que você
quisesse falar sobre as hortes?
Sobre o quê?
As hortes. As entidades. Hortes como em coortes.
Isso é uma palavra? Hortes?
Agora é. Imagino que a palavra mais próxima seria orts. Em inglês uma
migalha, em alemão um lugar. Enfim, com que idade. Respondendo a sua
pergunta. No início da menstruação, acho que diz na ficha.
Eu só queria saber se estava correto. Parece meio cedo.
Até mesmo precoce, você poderia dizer.
Espero que me perdoe a pergunta, mas com que idade foi isso?
Doze anos.
Na mulher a esquizofrenia geralmente só se manifesta entre o fim da
adolescência e os vinte e poucos anos.
Nunca fui diagnosticada oficialmente como esquizofrênica.
Não.
Quem sabe inventam um teste para esquisitice geral. Que tal?
Você fez o mmpi aqui. Dois anos atrás.
É.
Falando em esquisitice geral, você foi classificada como desviante sociopática
e mais uma série de outros adjetivos nada atraentes. Isso na escala quatro.
Conhecia o teste de Minnesota?
Não. Acha que perco meu tempo estudando os testes de vocês? Pra mim são
de uma estupidez e falta de sentido abismais. Então fui ficando cada vez mais
irritada. No fim tentei a qualificação de lunática possivelmente homicida.
Não ficou com medo de ser confinada?
Eu estava confinada.
Então você não viu nada interessante no teste de Minnesota.
Não.
Sua pontuação foi de noventa e seis no Stanford-Binet.
Tentei fazer cem.
Por quê?
Porque essa era a pontuação máxima que devemos tentar fazer.
Qual é seu qi exatamente?
Não tenho qi.
Essa não é uma forma de arrogância? Ser intestável?
Não se a pessoa não for. Enfim, o Stanford-Binet é racista. Entre outras
coisas.
Como assim racista?
Não tem nenhuma questão sobre música, por exemplo. Pelo visto a música
não conta. Daí você tem um negro com um qi de oitenta e cinco que é por
qualquer métrica que a gente queira escolher um gênio musical. Simplesmente
sem comparação. Mas para a turma do qi ele é pouco mais que um imbecil.
Imagino que para você as pessoas que elaboram esses testes não sejam lá
muito brilhantes.
Nunca conheci ninguém nesse negócio que tivesse a menor compreensão de
matemática. E a inteligência é uma questão de nú­meros. Não de palavras.
Palavras são coisas que a gente inventa. Matemática não. As questões de
matemática e lógica nos testes de qi são uma piada.
E como as coisas ficaram assim? A inteligência como uma questão de
números?
Talvez sempre tenha sido desse jeito. Ou talvez na verdade tenhamos
triunfado contando. Durante um milhão de anos antes que a primeira palavra
do mundo fosse dita. Se você quer ter um qi de mais de cento e cinquenta
espera-se que seja bom com números.
Achei que seria difícil para alguém encontrar as respostas que você
encontrou em alguns desses testes sem estar familiarizado com eles.
Eu já tinha certa prática. Na faculdade precisei tirar A em humanidades sem
ler o material idiota que indicavam.
Não quis ler o material por questão de princípio?
Não é isso. Eu só não tinha tempo.
Por que não?
Porque fazia matemática dezoito horas por dia.
Alguns diriam que isso não é possível.
É. Diriam.
E quanto à escala oito?
Não sei o que é isso.
Bom, entre outras coisas é feita para medir a esquizofrenia.
É mesmo? Como me saí?
Passou raspando. Mas se estava manipulando o teste será que isso não quer
dizer que é esquizoide e conseguiu de algum modo mentir sobre isso? Claro
que o teste também é feito para detectar traumatismo craniano e epilepsia.
Me deixaram cair de cabeça no chão quando eu era criança.
Verdade?
Não.
Toda essa matemática que você fazia. Nem tudo devia ser material indicado.
Nada disso era material indicado.
No que você estava mais interessada?
Passei um tempo estudando teoria dos jogos. Tem alguma coisa sedutora aí.
Von Neumann ficou enredado. Talvez esse não seja o termo correto. Mas acho
que finalmente comecei a perceber que ela prometia explicações que não era
capaz de dar. É realmente teoria dos jogos. E não outra coisa. Conway ou não
Conway. Tudo que serve de ponto de partida é uma ferramenta, mas a gente
torce pra que na verdade inclua uma teoria.
Mas a teoria dos jogos é uma teoria, não é?
Se você diz.
Você estava morando no sótão da sua avó.
É. Depois que minha mãe morreu. O Bobby ajeitou o espaço para mim.
E foi onde as aparições surgiram pela primeira vez?
Isso.
O que elas faziam enquanto você fazia toda essa matemática?
Sei lá. Depois de um tempo meio que comecei a ignorá-las. A não ser o Kid.
Ele era bem difícil de ignorar.
Fico surpreso que você não achasse essas figuras perturbadoras.
Bom. Eu tinha doze anos. Como ia saber que isso não era normal?
Mas você sabia.
Eu sabia que não era normal. Mas não sabia que não era normal pra mim.
Por que ele se chama Kid?
O nome é Kid Talidomida. Ele não tem as mãos. Só umas nadadeiras.
Esse é o anão.
Pessoa pequena.
Quem mais?
Só um bando de personagens. Artistas, imagino.
Estão lá para entretê-la?
Não.
E simplesmente aparecem. Do nada.
De onde mais seria? De algum lugar? Tudo bem. Do nada. Vamos ficar com
o nada. Olha. Conheço essa conversa praticamente de cor.
Dos outros psicoterapeutas.
É.
Como gostaria que eu prosseguisse?
Me surpreenda.
Surpreender você.
É. Bom. Não vou criar expectativas. Tanto o factual como o duvidoso estão
sujeitos a esmorecer com o tempo. Ocorre uma fusão na memória dos eventos
que fica perdida em relação à realidade. A gente acorda de um pesadelo com
certo alívio. Mas isso não apaga o pesadelo. Ele está sempre lá. Mesmo depois
que o esquecemos. A sensação inescapável de alguma coisa que você não
entendeu permanece por muito tempo. O que você estava tentando me
perguntar. A resposta é não. Eles simplesmente aparecem. Sem aviso. Nada de
cheiro estranho, nada de música. Fico escutando. Às vezes. Às vezes viro e
durmo.
Consegue dormir com eles no quarto?
Parece que estou conversando com Zenão. Você pensou antes de fazer a
pergunta? Não é gozado como as coisas estão sempre no último lugar onde a
gente procura.
Tudo bem. Mas em geral eles não são assustadores para você.
Não.
E você não acha isso estranho.
Não. Eu tinha doze anos. Provavelmente achava que vinham com a
puberdade. Todo mundo achou. Enfim, assustadora era a puberdade, não os
fantasmas. Quanto mais ingênua é a sua vida mais assustadores são os seus
sonhos. Seu inconsciente fica tentando te acordar. Em todos os sentidos. O
medo do perigo não tem fundo. Enquanto uma pessoa respira pode sempre
ficar mais assustada. Mas não. Eles eram o que eram. Fossem o que fossem.
Nunca os vi como sobrenaturais. No fim não tinha motivo algum para ter
medo. Já tinha aprendido que algumas coisas na minha vida era melhor não
contar pra ninguém. Depois dos sete anos mais ou menos nunca mais
mencionei a sinestesia. Por exemplo. Eu achava normal e claro que não era.
Então guardei pra mim. Enfim, eu sabia que tinha alguma coisa a caminho, só
não sabia o que era. No fim das contas você aceita sua vida entendendo ou não.
Se eu tinha algum medo dos eidolons não era pela presença ou aparência deles,
mas pelo que pudessem ter em mente. Eu não fazia a menor ideia. A única
coisa que de fato sabia sobre eles era que estavam tentando dar forma e nome
ao que não tinha nem uma coisa nem outra. E é claro que eu não confiava
neles. Que tal mudarmos de assunto?
Mas eles vêm e vão à vontade?
À vontade?
É.
Meu Deus. Não sei responder essa pergunta. A única vontade que eles
subtendem seria algo como a Vontade de Schopenhauer.
Só estou tentando observar que é incomum o paciente se sentir confortável
com as alucinações. Ele normalmente entende que elas representam algum tipo
de perturbação da realidade e que talvez sejam assustadoras só pra ele.
Só pra ele.
É.
Bom. Acho que o que eu entendo é que no coração do mundo dos dementes
fica a percepção da existência de outro mundo do qual não fazem parte. Eles
percebem o pouco que é exigido dos responsáveis por eles e o muito que lhes
exigem.
Você acha que isso é verdade?
Não. Mas eles acham.
Esses seres que vêm te entreter parecem não ser muito bons nisso. Em
oferecer diversão. Distração. O que você acha que eles estão tentando fazer?
Sei lá o que estão tentando fazer. É deprimente demais para pôr em palavras.
Você deve ter alguma ideia do que eles querem.
Eles querem fazer algo impensável com o mundo. Querem ques­tioná-lo.
Por que fariam isso?
Porque é assim que são. O que são. Se você só quisesse uma afirmação do
mundo não precisaria conjurar seres esquisitos.
É esse o propósito do espetáculo? Se é que é possível chamá-lo assim.
Levantar dúvidas sobre o mundo?
Por que não?
O que mais você pode me contar? Eles têm sombra? Conseguem entrar num
quarto trancado?
Eles não têm a menor dificuldade em fazer suas visitinhas. Nunca lhe
ocorreria perguntar se uma figura num sonho tem sombra.
Não. Acho que não. Mas você diz que eles não são como figuras num sonho.
Não. E seria de imaginar que empregam certa dose de energia só para
parecerem plausíveis. Mas isso não passa de uma farsa. Uma distração.
Do quê?
A gente meio que voltou à estaca zero. Imagino que de fato o primeiro dever
de toda alucinação seja parecer real, mas tentar emular uma realidade em que
suas credenciais tenham expirado implica outra agenda. Fazer o que você bem
entende nesse novo mundo é quando muito só um preparativo.
Você os chamou de alucinações.
Só estou tentando falar na sua língua.
Vejo que agora está bancando a engraçadinha.
Quer mesmo entrar no mérito disso tudo?
Não sei muito bem o que é isso tudo.
O fato de haver pouca alegria no mundo não é apenas uma visão das coisas.
Toda benevolência é suspeita. A gente finalmente se dá conta de que o mundo
não leva a gente em consideração. Nunca levou.
Mas a maioria das pessoas consegue viver os dias que lhes cabem num estado
que não é de desespero.
É. Consegue.
Se você tivesse de dizer algo definitivo sobre o mundo numa única frase,
qual seria?
Seria assim: O mundo nunca criou um ser vivo que não pretendesse destruir.
Imagino que seja verdade. E daí? É só isso que o mundo tem em mente?
Se o mundo tem uma mente então é tudo muito pior do que a gente
pensava.
Tem? É?
Não sei se a gente vai chegar muito longe.
Nessas consultas.
É. Voltemos aos dias que nos cabem.
Tudo bem.
Duvido que alguém desejasse reviver a própria vida. As pessoas dificilmente
revivem um dia que seja.
Consigo pensar em certos dias que não acharia ruim viver outra vez.
Um momento de alegria ou descoberta talvez. Mas as vinte e quatro horas?
Eu não descartaria. Você passa muito tempo pensando na morte?
Não sei o que é muito tempo. Supõe-se que contemplar a morte tenha certo
valor filosófico. Paliativo até. Imagino que seja trivial dizer isso mas o melhor
modo de morrer bem é viver bem. Morrer por outra pessoa daria significado a
sua morte. Ignorando nesse meio-tempo o fato de que a pessoa vai morrer de
um jeito ou de outro.
Não sei o quanto do que está me dizendo é só para impressionar.
Digamos que tudo.
Isso, por exemplo. Que tal viver pelos outros?
Bom. Imagino que isentar os amorfos outros de ideologias sociais e se
prender a pessoas reais talvez seja raro o bastante para ser classificado no
mínimo como uma neurose. O que acha?
Ou isso. Há uma anotação na sua ficha sugerindo que você tinha a sensação
de estar se decompondo. Acho que foi essa a palavra que você usou. Você se
lembra de dizer qualquer coisa nesse sentido? Parece mais um delírio somático
clássico. Algo saído da literatura. Ou estava apenas fazendo o jogo dos seus
médicos?
De repente estava só entediada.
Bom. As pessoas se entediam.
Não. Não se entediam.
Não?
Não. Elas não fazem ideia do que seja tédio.
Bom. Se você diz eu acredito. Embora em geral se presuma que a
inteligência mantém o tédio afastado.
Suponho que sim. Até certo ponto. Uma hora a porta cede.
Acho que minha preocupação é que o ceticismo desses médicos — alguns
dos quais ao que parece se recusavam terminantemente a acreditar em qualquer
coisa que você dissesse — torna difícil, ou talvez até impossível, encontrar um
tratamento para o seu caso. Eles na verdade não sabem que conduta adotar
com alguém que acreditam estar simplesmente inventando tudo.
Os frutos da minha imaginação.
Isso.
Essa expressão problemática.
É.
Imagino que eu poderia perguntar o que eles acham que estão sendo pagos
pra fazer. Querem explicar meus delírios ou minha propensão a mentir mas a
verdade é que não conseguem explicar nada. Por acaso acham que seria mais
fácil tratar alguém delirante do que alguém que só acredita estar delirando?
Você devia ouvir como isso soa. Enfim, já cansei de explicar. Pra mim chega.
Você sente que seu lugar é aqui? No Stella Maris?
Não. Mas isso não responde sua pergunta. A única entidade social da qual
fiz parte foi o mundo da matemática. Sempre soube que esse era o meu lugar.
Cheguei a acreditar inclusive que ele tinha precedência sobre o universo. Como
ainda acredito.
Sobre o universo.
É.
Você não está se divertindo comigo.
Não muito.
Eu quis dizer no sentido de tirar um sarro da minha cara.
Sei em que sentido você quis dizer.
Acho apenas que estou surpreso por se sentir confortável em um asilo para
doentes mentais.
Talvez não seja uma questão de me sentir confortável. Talvez seja só uma
questão de tirar vantagem da latitude estendida aos insanos.
Você conversa com os outros pacientes.
Converso. Claro.
Acha que falam a verdade com você?
Sobre o quê?
De modo geral. Sobre qualquer coisa.
Sei lá. Não. Acho que todos aqui parecem concordar que todos aqui
deveriam mesmo estar aqui. Onde mais se vê uma coisa dessas?
Ahã.
Você devia mesmo tentar parar de dizer isso.
Vou ver o que posso fazer. Seus espíritos familiares. Não sei mesmo como
chamá-los.
Espíritos familiares. Tudo bem.
Eles desfrutam de alguma ascendência sobre você? Isso não ficou claro para
mim. Eles te dizem o que fazer?
Não. A ascendência de que desfrutam é saberem quem sou e eu não saber
quem eles são.
Você diria que isso de alguma forma define a relação?
Talvez seja simplesmente um modelo da relação estabelecida entre a pessoa e
o mundo.
Em outras palavras o mundo saber quem você é mas não o contrário.
Acredita mesmo nisso?
Não. Acho que a nossa experiência do mundo é sobretudo uma questão de
nos protegermos da verdade desagradável de o mundo não saber que estamos
aqui. E não, não sei muito bem o que isso quer dizer. Acho que a visão mais
espiritual busca a graça no anonimato. Ser celebrado significa preparar o
terreno para a dor e o desespero. O que acha?
Hum, não sei.
Não é algo que as pessoas perguntem. É só o que ficam imaginando: Será
que o mundo de fato tem consciência de nós. Mas essa pergunta está em boa
companhia. Que tal: Merecemos existir? Quem disse que isso era uma
prerrogativa? A alternativa a estar aqui é não estar aqui. Mas por outro lado isso
na realidade significa não estar mais aqui. Não se pode nunca ter estado aqui.
Não haveria nenhum você pra não ter sido. O que acha, doutor?
Pode me chamar de Michael se preferir.
Acho que não prefiro.
Mas não se importa que eu a chame de Alicia.
Não.
Seu nome era Alice originalmente.
O senso de humor do meu pai.
Como?
Bob e Alice são os nomes de dois personagens em enunciados de questões
científicas. Eu mudei. Quando tinha quinze anos.
Seu nome.
É.
Você mudou legalmente.
É.
Não precisava ter dezoito anos para fazer isso?
Precisava. Mudei primeiro a certidão de nascimento.
Como conseguiu?
Meu irmão era amigo de um criminoso chamado John Sheddan que tinha
um amigo dono de uma gráfica em Morristown Tennessee especializada em
forjar documentos. Enfim, achei que Alicia era mais pretensioso.
Queria ser pretensiosa?
Você realmente parece o Eliza às vezes. Eu era Alice Western de Wartburg
Tennessee e queria ser uma princesa Hohenzollern. Talvez eu seja. Sábia
criança.
Que tal falarmos de outra coisa. Como você gosta de dizer.
Tudo bem.
Que silêncio mais longo. Posso perguntar no que está pensando?
Não estou pensando.
Há dúvidas sobre se isso é possível ou não.
Bom. Estou trabalhando nisso. Claro que é possível parar de falar consigo
mesmo. Mas uma pessoa só consegue fazer isso falando consigo mesma.
Contando a respiração ou recitando um mantra. Pensar é mais difícil.
Pensar e falar são coisas diferentes.
A gente fala só pra gravar o que está pensando. Falar não é a coisa em si.
Quando converso com você uma parte separada da minha mente compõe o
que estou prestes a dizer. Mas não ainda na forma de palavras. Então na forma
de quê? Sem dúvida não existe nenhuma sensação de um homúnculo
sussurrando as palavras que estamos a ponto de dizer. Excetuando o espectro
de uma regressão infinita — do tipo quem está sussurrando para o sussurrador
—, isso toca na questão de uma linguagem do pensamento. Parte do mistério
geral de como passamos da mente ao mundo. Cem bilhões de eventos
sinápticos disparando no escuro como mulheres cegas fazendo tricô. Quando
dizemos: Como pôr isso em palavras?, o que é esse isso que estamos tentando
pôr em palavras? Que tal falarmos de outra coisa. Como você diz que eu gosto
de dizer.
O que você mudaria se pudesse mudar qualquer coisa?
Mudaria tudo.
Certo.
Escolheria não estar aqui.
Nesta consulta.
Neste planeta.
Você já foi considerada uma potencial suicida. O problema é sério?
O suicídio é um problema sério?
Não. O que eu quis dizer foi se você acha que corre algum risco.
Sei o que você quis dizer. Pode ser que esteja tudo bem enquanto a gente só
pensa a respeito. Depois que decide não tem mais nada pra pensar.
Então em que pé você estaria nesse processo?
De preferência fora da lista de potenciais suicidas a serem observados.
Eu também ia preferir.
Quanta gente não decidiria desaparecer se pudesse fazer isso estalando os
dedos? Pense por um momento. Todo vestígio tanto de ser como de algum dia
ter sido.
Sei lá. Não tantas quanto você, imagino.
Desejar nunca ter sido. Mais uma vez, isso não é o mesmo que não existir
mais. Quem disse isso? Anaximandro? O mesmo pra quem?
Não faço ideia.
A gente é quase forçado a pensar que em seu último suspiro o moribundo
não só aceita como também abraça a morte. Que deve haver alguma epifania
que permite que até os mais delirantes e entorpecidos entre nós aceitem não só
o inaceitável como também o inimaginável. O ponto final absoluto do mundo.
Que não vai se questionar sequer por um segundo sobre o que poderia ter sido
feito de nós.
E imagino que não haja nenhum consolo no fato de isso ser comum a todos.
Bom. Imagino que seja possível atribuir uma espécie de comunidade aos
mortos. Embora eles não pareçam bem uma comunidade, não é?
Desconhecidos entre si e em breve de quem quer que seja. Enfim. É só que
diante disso é ridículo as pessoas que têm uma vida mental em desacordo com
a da população geral serem pronunciadas mentalmente doentes e necessitando
de medicação. As doenças mentais diferem das doenças do corpo no sentido de
que seu objeto é sempre e exclusivamente a informação.
A informação.
É. A gente está aqui pra saber o que precisa saber. Não existe nenhum
maquinário evolutivo para nos informar da existência de fenômenos que não
afetam nossa sobrevivência. Coisas que estão aqui e das quais não sabemos. A
gente só acha.
Isso não seria o sobrenatural?
Acho que seria simplesmente o sobre-o-qual.
O sobre-o-qual.
Aquilo sobre o qual não se pode falar.
Wittgenstein.
Muito bem. Suas migalhas de pão estão para acabar.
Os espíritos familiares. Está mais aliviada agora que eles tiraram uma licença.
Só Deus sabe. Talvez você imagine que sempre esteve em meu poder me
livrar deles. Ou até que estavam aqui a meu convite. E que se isso fosse verdade
eu nem saberia.
Por que não?
Talvez porque convidar quimeras para sua casa seja um negócio mais
espinhoso do que convidar os vizinhos para um chá. Ou a se retirar. Claro que
se forem convidados a se retirar os vizinhos sabem que não vão voltar. O que
lhes dá mais liberdade para levar a prata embora. O que uma quimera pode
levar? Não sei. O que ela trouxe? O que trouxe que pode muito bem deixar pra
trás? O fato de possivelmente ser composta de vapor não significa que ao deixar
sua casa ela será a mesma de antes.
Você alguma vez disse ao Kid Talidomida que ele era uma quimera?
Disse. Uma vez.
E como ele reagiu?
Ele disse: Meu Deus, Jessica. Agora você se superou.
Ele disse isso mesmo?
Disse.
Você ainda mantém algum contato com sua família?
Só sobrou minha avó.
Pensei que você tivesse um tio.
Tenho. Mas é mais doido do que eu. Acho que minha avó vai precisar
interná-lo num asilo. Ultimamente ele deu pra cagar em lugares esquisitos e
difíceis de localizar. Conseguiu sei lá como cagar na luminária do teto da
cozinha. Por exemplo. A gente conversa pelo telefone. Mas é raro. Ela acha isso
uma extravagância. Quando era criança no Tennessee só rico tinha telefone.
Tenho uns parentes em Rhode Island pelo lado paterno mas a gente não se
conhece de verdade.
Por quê?
Eles achavam que meu pai tinha se casado com alguém inferior. Que a gente
não passava de um bando de caipiras.
E isso incomoda você?
Não. Eram uns idiotas de merda. Acho que isso quer dizer que me
incomoda, não é? Não sei. Nunca penso neles.
Quando foi a última vez que viu sua avó?
Faz uns três meses.
Pretende voltar a vê-la?
Você não cansa de jogar verde, hein?
Quero saber apenas se gostava dela.
Muito. Perdi minha mãe com doze anos e ela perdeu a filha. Um luto em
comum deveria unir as pessoas mas ela já começava a notar em mim uma coisa
para a qual não tinha nome. Sem dúvida não fazia ideia de que a palavra
prodígio vem da palavra latina para monstro. Os truques mentais que eu
costumava exibir quando criança não tinham mais nada de bonitinho. Eu
gostava muito dela. Mas às vezes a surpreen­dia olhando pra mim de um jeito
bastante inquietante. As freiras me passavam de ano na escola porque eu era a
maior dor de cabeça. Não cheguei nem a terminar as duas últimas séries. Tinha
praticamente parado de dormir. Saía a qualquer hora da noite pra andar pela
estrada. Era só uma estradinha rural de mão dupla onde mal passava carro.
Uma noite voltei e a luz da cozinha estava acesa. Eram umas três da manhã e
quando subi a entrada da garagem vi minha avó parada na porta da cozinha.
Antes que me aproximasse da casa ela já tinha virado e subido outra vez. Eu
sabia que aquela podia ser uma das últimas oportunidades que a gente ia ter de
conversar de verdade e quase a chamei. Pensei que talvez quando eu fosse um
pouco mais velha as coisas mudassem. Pensei nela e na vida dela. Nos sonhos
que devia ter tido para a filha e em seus próprios sonhos. Sei que chorei por
causa dela mais do que ela jamais chorou por mim. E sei que ela amava o
Bobby mais do que jamais me amaria, mas por mim tudo bem. Não a amei
menos por isso. Sabia coisas sobre ela que não tinha o menor direito de saber.
Mas mesmo assim pensei que se tivesse uma neta de doze anos que andava pela
estrada às três da madrugada provavelmente deveria sentar com ela pra ter uma
conversinha. E eu sabia que ela não podia.
Por que não? Não sei se entendi.
Não sei bem o que dizer. Ou como dizer. Imagino que a explicação mais
simples seja que ela sabia que não viria coisa boa e não quisesse ouvir. Dizer
que tinha medo de mim acho um pouco forte. Mas talvez não. Imagino que ela
temesse que por mais que as coisas parecessem ruins provavelmente fossem
piores. E claro que ela tinha razão.
E você foi criada por ela depois que sua mãe morreu.
Isso.
Quantos anos tinha seu irmão? Nessa época.
Dezenove.
Seu pai ainda era vivo.
Sim.
Mas vocês não se viam muito.
Não.
Ele foi ao enterro da sua mãe?
Não.
Sério?
Sério.
Isso não incomodou você?
Não. Também não fui.
Você não foi ao enterro da sua mãe?
Não.
O que sua família disse? Seu irmão foi?
Foi. Claro. Eu tinha doze anos. Estava passando por uma crise religiosa. Não
queria ter que passar uma missa inteira com o caixão da minha mãe no meio
do corredor da igreja. Não dava.
O que seu irmão falou?
Me deu um beijo no rosto, sussurrou que me amava e que estava tudo bem.
E ficou tudo bem.
E ficou tudo bem.
Ficou. Olha. Isso parece um disco riscado. Estou fazendo isso por você, não
por mim. Me deram uma carta pra entregar e disseram que eu não devia ler.
Mas eu li. E não consigo desler. Já deu a hora.
Ah. Sim. Claro.
ii

Como está?
Tudo bem.
Senti sua falta semana passada.
É, bom. Sabe como é. Ocupada.
Ocupada.
Brincadeira.
Certo.
Certo.
Então, no que tem pensado?
Sei lá. Sua esposa, como ela é?
Minha esposa.
É.
Ela é italiana. Quer saber como ela é?
Isso.
É uma mulher atraente. Gosta de Bach. De comida italiana. Trabalha com
crianças surdas.
Cozinha bem?
Cozinha.
Ela não é judia.
É judia sim.
Ela é legal.
Muito legal.
Tem alguma coisa que você não está me contando.
A gente se divorciou. Por três anos. Daí casou de novo.
Você não tratou ela direito.
É. Não.
Por quê?
Porque fui um idiota. Já ia dizendo um merda.
Foi isso que disse Oppenheimer. Idiota, quero dizer. Nas au­diências.
Parece um estranho candidato à idiotice.
Acho que por isso a citação é memorável. Pessoas que conheceram Einstein,
Dirac e Von Neumann disseram que era a pessoa mais inteligente que tinham
conhecido.
Oppenheimer.
É.
Presumo que seu pai o conheceu.
Meu pai trabalhou pra ele.
Que opinião ele tinha?
Sobre Oppenheimer.
É.
Que era envolvente, encantador, erudito. Excelente anfitrião. Um pouco
assustador.
Assustador?
É.
Em que sentido?
Ele achava que a inteligência do Oppenheimer não era inteiramente contida.
Que ele podia tomar decisões ruins.
Sério?
Sério.
Mas não diabólicas.
Aí seria forçar demais.
Estou presumindo que Satã não faça parte da sua visão de mundo. Ainda
que você pareça admitir algo muito semelhante ao mal no esquema das coisas.
Você mencionou o comentário de Chesterton.
Bom. Nunca vi Satã. Isso não significa que ele não possa aparecer. O que
Chesterton não comenta são os interesses peculiarmente materiais de Deus. Se
você fosse um ser totalmente espiritual que raio de assunto ia querer ter com o
material? No dia do juízo os corpos vão ascender? Que história é essa? Espíritos
são descorporificados, não incorpóreos? Cristo ascende ao céu presumivelmente
como um ser corpóreo. Estorvando a divindade com algo que ela não tivera de
suportar previamente. É difícil saber o que pensar de uma insanidade dessas.
Dá pra perceber por que Chesterton quis ficar longe.
Isso fez parte da crise espiritual que você mencionou?
É só um comentário. A natureza espiritual da realidade tem sido a principal
preocupação da humanidade desde que o mundo é mundo e não vai
desaparecer tão cedo. A ideia de que tudo é só matéria e mais nada não parece
servir para nós.
Serve pra você?
Eis a questão, não é?
Você cresceu em Los Alamos.
É. A gente morou lá até minha mãe morrer. Bom. Ela morreu no Tennessee
na verdade.
Tem lembrança de Los Alamos?
Tenho. Claro.
Quantos anos tinha quando foi embora?
Onze.
Onze.
Isso.
Como era por lá?
Los Alamos.
É.
Durante a guerra acho que bem primitivo. Teoricamente havia oito mil
extintores de incêndio e cinco banheiras. E lama a rodo. Minhas principais
lembranças são as pessoas na nossa casa conversando até as três da manhã.
Você ficava acordada até as três da manhã.
Ficava. A casa cheirava a perfume e fumaça de cigarro. Dava pra ouvir os
copos tilintando. Eu ficava deitada escutando até o último convidado ir
embora.
Não tinha como você entender o que estavam falando.
O que eu entendi foi que tinha de aprender sobre o que estavam falando.
Você consegue se lembrar dos primeiros pensamentos que teve?
Tudo que eu tinha eram pensamentos.
Não sei se compreendo.
Compreendi que estava em um lugar onde ficaria por um longo tempo e
que precisava desvendar como ele funcionava. Que tudo dependia de descobrir
onde eu estava. Não é que eu pensasse que poderia haver algum outro lugar
onde estar. O mundo como absoluto estava claro para mim. Mas eu tinha que
saber o que ele era.
Isso era motivado pelo medo?
Era.
Resposta rápida.
Criança é um bicho medroso.
Quantos anos você tinha quando descobriu a matemática?
Provavelmente foi antes do que consigo lembrar. Primeiro foi uma coisa
musical. Eu tinha ouvido absoluto. Tenho. Mais tarde imagino que passei a ver
o mundo basicamente como uma prova contra qualquer descrição abrangente
dele. Mas a música pareceu sempre se destacar como uma exceção a tudo.
Parecia sacrossanta. Autônoma. Completamente autorreferencial e coerente em
cada parte. Se você quiser descrever a música como transcendente podemos
falar de transcendência mas é provável que não cheguemos muito longe. Eu era
profundamente sinestésica e achava que se a música tinha uma realidade
inerente — cor e sabor — que poucos conseguiam identificar talvez tivesse
outros atributos ainda por discernir. O fato de essas coisas serem subjetivas de
modo algum as caracterizava como imaginárias. Não estou fazendo isso muito
bem, estou?
Continuo escutando.
Se a gente esticasse uma música, por assim dizer, conforme o tom se afastasse
a cor desbotaria. Não tenho ideia de onde situar isso.
Então de onde vem a música?
Ninguém sabe. Uma teoria musical platônica só serve para deixar a água
turva. A música não é feita de nada além de algumas regras razoavelmente
simples. Mas é verdade que ninguém inventou. As regras. As notas
propriamente ditas correspondem a quase nada. Mas por que determinado
arranjo particular dessas notas deveria exercer um efeito tão profundo em
nossas emoções é um mistério além da própria esperança de compreensão. A
música não é uma linguagem. Ela não faz referência a nada além de si mesma.
Você pode nomear as notas com as letras do alfabeto se quiser, mas isso não
muda nada. Estranhamente, não são abstrações. A música como a conhecemos
está completa? Em que sentido? Existem classes como maior e menor ainda por
descobrir? Parece improvável, não? Mesmo assim, muita coisa é improvável até
aparecer. E o que essas categorias significam? De onde vêm? O que quer dizer
elas serem dois matizes de azul? Aos meus olhos. Se a música estava aqui antes
da gente, estava aqui pra quem? Schopenhauer diz em algum lugar que se o
universo inteiro desaparecesse a única coisa que restaria seria a música.
É uma afirmação ousada. Ele acreditava nisso?
Provavelmente não.
E você?
Acho que ele só estava tentando estabelecer a primazia. Da música. Como
fenômeno transcendente? Uma coisa que pode existir sem ajuda?
Alguma coisa pode existir sem ajuda?
Logicamente não. Se tudo que o espaço contivesse fosse uma única entidade
a entidade não estaria ali. Não haveria nada ali onde pudesse estar.
Não estou entendendo.
Não importa. Esse é um mundo clássico, de qualquer modo.
Desde quando se interessa por tudo isso?
Sei lá. Não sei muito bem o que a memória significa. Pra começar. Um dos
problemas é que cada memória é a memória da memória anterior. Não é
possível lembrar a ocasião da memória real. Como fazer isso? Você apenas se
lembra de se lembrar dela. E só da memória mais recente, aliás.
Não sei se estou acompanhando seu raciocínio.
Quando cheguei ao ensino médio, o primeiro lugar que visitei foi a
biblioteca. Era só uma sala comum com uma mesa e uns mil livros. Até menos.
Mas tinha um Berkeley ali no meio. Não sei o que estava fazendo ali.
Provavelmente porque Berkeley foi um bispo. Bom. Quase certamente porque
Berkeley foi um bispo. O que importa é que sentei no chão e li Um ensaio para
uma nova teoria da visão. E mudou minha vida. Compreendi pela primeira vez
que o mundo visual estava dentro da nossa cabeça. O mundo todo, na verdade.
As especulações teológicas dele não me convenceram mas a fisiologia era
incontestável. Fiquei sentada ali um tempão. Absorvendo. Foi difícil evitar a
sensação de que o mundo visual é a criação de seres dotados de olhos para fazê-
lo. Criado não do nada mas desse algo cuja verdadeira realidade é eternamente
incognoscível. Kant. E não é verdade que podemos verificar a realidade do
mundo visual esticando as mãos e tocando nele. Por exemplo. Como ele
poderia ter alguma realidade contraditória? Se estivéssemos na posse de
sentidos discordantes entre si nem sequer estaríamos aqui.
Acho que preciso refletir um pouco sobre isso. Nesse meio-tempo preciso
dizer que você deve imaginar que os outros chegam a essa mesma descoberta
sobre onde o mundo visual de fato ocorre — no córtex visual, e não no mundo
lá fora — sem se perder da realidade do mundo por causa disso.
Não era tão simples. O que passou pela porta foi um mundo que tinha
ficado à espreita por dez milhões de anos. Quando me levantei do chão
daquela biblioteca eu era outra pessoa.
Você tem a sensação de que está sozinha no mundo?
Tenho. Você não?
Não. Não tenho. Esses artistas que começaram a aparecer no seu quarto.
Eram parte desse mundo?
Não sei. Uma teoria é que o propósito deles na verdade era desviar desse
mundo.
Uma teoria?
Exato.
O que mais?
Por onde começar.
Pelo princípio.
No princípio era o verbo.
Mas você não acredita nisso.
Uma das coisas que percebi foi que o universo tinha evoluído por
incontáveis bilhões de anos na total escuridão e no total silêncio e que a
maneira como o imaginamos não corresponde à maneira como era. No
princípio sempre houve o nada. Novas explodindo em silêncio. Na completa
escuridão. As estrelas, os cometas efêmeros. Tudo no mais alto grau da suposta
existência. Chamas negras. Como as chamas do inferno. Silêncio. Vácuo.
Noite. Sóis negros arrebanhando os planetas por um universo onde o conceito
de espaço não fazia sentido pela falta de qualquer limite para ele. Pela falta de
qualquer conceito que lhe fizesse contraposição. E a questão mais uma vez da
natureza daquela realidade para a qual não havia testemunha. Tudo isso até que
a primeira criatura viva dotada de visão consentisse em inscrever o universo em
seu trêmulo e primitivo sistema sensorial e depois o insuflasse com cor,
movimento e memória. Isso fez de mim uma solipsista da noite pro dia e até
certo ponto continuo sendo.
Quantos anos você tinha?
Doze.
E não terminou o ensino médio.
Não. Ganhei uma bolsa da Universidade de Chicago, fiz as malas e fui
embora. Hoje me admiro de como estava tranquila. Minha avó me levou ao
terminal rodoviário da Greyhound em Knoxville. Ela estava chorando e
quando o ônibus começou a andar percebi que achava que nunca mais ia me
ver.
Você parece triste contando isso.
Estou triste contando isso.
Fez alguma amizade no ensino médio?
Uma ou duas. Crianças em que ninguém mais prestava atenção.
Queria ter amigos?
Queria. Só não sabia como. Achava que talvez quando fosse para a faculdade
teria minha chance.
Teve?
Fiz algumas amizades. Mas continuava um pouco antissocial. Não levava
jeito pra coisa. Não gostava de festas nem que dessem em cima de mim.
Que dessem em cima de você. De ser paquerada?
É.
Estava interessada nos meninos?
Estava interessada em um menino. Mas não era recíproco.
Por quê? Ele não era gay, imagino.
Não. Foi um problema diferente.
Ele era mais velho.
Todo mundo era mais velho. Não foi isso que atrapalhou.
Então o que foi?
Outra coisa.
Tudo bem. E o que aconteceu com os espíritos familiares quando você
entrou na faculdade?
Apareceram umas duas semanas depois. Foram de ônibus.
Você realmente acredita que eles foram de ônibus?
Se realmente acredito que eles foram de ônibus.
Tudo bem. Você chegou a conversar com o Kid sobre essas coisas?
Conversei.
Pelo visto sem chegar a nenhuma conclusão.
Exatamente.
Imagino que não haja conclusão. Você considera o Kid seu amigo?
No fim das contas foi praticamente o único amigo que tive. Depois, mais
nenhum. Mas quando caiu a ficha de que se o Kid não existisse na minha vida
eu ia sentir falta dele tive um choque. O que você está escrevendo?
Só uma anotação para mim. Tudo bem?
Claro. Comprar leite. Ligar pra mamãe.
Quer ver?
Não.
Tem certeza? Não me incomodo.
Tenho.
Às vezes você acha que não estou escutando.
Escutando eu sei que está. Só não sei bem o quê.
Você tem amigos aqui. No Stella Maris. E quanto a eles?
Bom. Às vezes sento na sala de recreação e começo a conversar com alguém.
O que eles dizem?
Em geral nada. Mas às vezes começam a falar sobre o que está passando pela
cabeça deles e em algum momento mencionam alguma coisa que eu disse. Bem
parecido com o modo como a gente incorpora um som ao sonho durante a
noite. E devo dizer que ver meus pensamentos incluídos nesses monólogos é às
vezes meio inquietante. Eu queria ser como eles mas não sou. E eles sabem
disso. Não faz muito tempo alguns psiquiatras se internaram em uma série de
instituições mentais. Era um experimento. Bastou dizer que ouviam vozes para
que fossem imediatamente diagnosticados como esquizoides. Mas os pacientes
não caíram na deles. Davam uma olhada e diziam que não eram loucos. Que
eram jornalistas ou qualquer coisa assim. Daí simplesmente mantinham
distância.
Você queria ser como eles?
Não estou aqui em um experimento. Posso dar a interpretação que eu quiser
mas no fim das contas é aqui que estou.
Acho esse comentário um pouco estranho.
Sou uma garota um pouco estranha. Volte a fita e toque de novo. Vai escutar
outra coisa.
Você faz ideia de como é bonita?
Está tentando me comer, doutor?
Não. Nunca me relacionei com uma paciente. Seja como for, a infidelidade é
coisa do passado pra mim. Conheceu muitos psicoterapeutas que tentaram
seduzi-la?
Acho que seduzir não é uma descrição muito realista dessas investidas.
Sofreu alguma tentativa de estupro?
Sim. Uma vez.
E o que você fez?
Falei que meu irmão ia acabar com a raça dele. Que ele podia começar a
contar as horas que ainda tinha.
É verdade? Sobre seu irmão?
É.
Sem dúvida.
Sem dúvida.
Voltando a Berkeley. Depois que você leu o livro ficou mais cética em
relação à realidade?
Não tenho certeza se entendo o que isso quer dizer.
Se é que quer dizer alguma coisa.
Se é que quer dizer alguma coisa. De fato Berkeley me fez questionar minha
compreensão da realidade. Mas também tornou a história da investigação
filosófica mais plausível pra mim. Fez da epistemologia uma disciplina legítima.
Acho até que me fez enxergar a fraudulência das indagações engendradas por
ela própria.
A realidade é sempre o assunto.
Basicamente.
A realidade é cognoscível?
Ah, meu Deus.
Retiro a pergunta. Que coisa é essa que a gente não sabe que você gostaria
que a gente soubesse?
Você quer dizer além dos velhos modelos que não oferecem respostas.
Quem somos, por que estamos aqui, por que existe algo em vez de nada.
Certo.
Arriscaria um palpite sobre alguma dessas questões? Por que existe algo em
vez de nada?
O conceito de nada é inconcebível.
Ainda estuda física?
Não.
O que é um glúon?
Um conceito concebível.
É uma força ou uma partícula?
Partícula. Embora nessa escala a distinção não fique tão clara.
O que ele faz?
Transmite a mensagem de um quark pra outro. Não é tão complicado. Um
átomo é composto de partículas menores. Núcleons. E essas partículas são
compostas de quarks. Geralmente três. Os quarks têm nomes estúpidos. Top e
bottom. Up e down. Um pósitron é composto de dois quarks up e um quark
down. Um nêutron é composto de dois quarks down e um quark up. E assim
por diante. Tudo funciona. Ninguém tem muita certeza por quê. Mas é o
glúon que mantém as partículas informadas.
Por que a mecânica quântica se chama mecânica quântica?
Porque explica mecanismos. Para um físico a ênfase é em quântica. Uma
afirmação sobre o tipo de mecânica que ela é. Não mecânica quântica.
Tudo bem.
Você parece em dúvida.
Não. Sem problema. Por que ela é tão esquisita? Supostamente.
Ninguém sabe.
O que quero dizer é em que sentido ela é esquisita.
Eu sei. Tem uma série de coisas de que podemos falar. Feynman diz que o
experimento da fenda dupla é tudo de que precisamos para constatar a
esquisitice quântica. Ele deve ter razão. Geralmente tem. Esse experimento,
repetido ad qualquer coisa, demonstra que uma partícula isolada pode passar
por duas aberturas distintas ao mesmo tempo.
Você acredita nisso?
Piamente.
E isso é parte da mecânica quântica.
É.
Uma teoria física respeitada.
Exato. A teoria física mais bem-sucedida jamais concebida. A teoria das
partículas pequenas. Átomos e outras menores ainda. Ou pelo menos é como
se costuma pensar. Mas talvez isso se deva à matemática ruim. Alguns físicos
desconfiam que a teoria vai acabar chegando à compreensão do universo em si
como um fenômeno quântico. Que em última análise o que a mecânica
quântica descreve é o universo.
E você, também desconfia?
Desconfio. Estou no rol dos desconfiados.
O que mais.
O que mais?
É esquisito.
Os experimentos, imaginários ou reais, parecem exigir nosso envolvimento
ativo. Se não estivermos presentes não funcionam. A triste verdade é que
tirando as teorias de soma das histórias de Feynman não existe uma explicação
cabível da mecânica quântica que não envolva a consciência humana. Claro
que isso levanta a questão de como ela conseguiu se virar sem nós antes que
fôssemos inventados. Mas não é tão simples assim. Acho que o que está sendo
dito é que a consciência humana e a realidade não são a mesma coisa. Algo de
que já sabemos faz tempo. Mesmo que não tenhamos tanta certeza sobre Kant.
Nesse caso. Enfim, não se pode ignorar a evidência dos experimentos. Todos
eles, das duas fendas às estranhas ocorrências com os ímãs de Stern-Gerlach em
que cientistas razoavelmente brilhantes percebem ser incapazes de passar a
perna numa partícula de sódio. Em alguns meios a ideia de que essas
investigações não passam de filosofia é muito popular. E a resposta popular
para eles é simplesmente calem a boca e calculem.
Não você.
Não. Todos esses cálculos produzem equações diferenciais parciais. A
verdade do universo está do outro lado dessas equações.
O que os físicos dizem sobre isso?
Não muito. A maioria revira os olhos. Não são chegados em Kant. O
problema com o absoluto incognoscível é que se a gente pudesse realmente
dizer alguma coisa sobre ele já não seria mais o absoluto incognoscível. É
possível ir do numenal ao fenomenal sem se mexer da cadeira. Em outras
palavras, nada pode ser extraído do absoluto sem se tornar perceptual. Tendo
em vista que reivindicar o caráter real do que é incognoscível não passa de
glossolalia. O problema com o mundo perfeito e objetivo — de Kant ou
qualquer um — é que ele é incognoscível por definição. Adoro a física mas não
a confundo com a realidade absoluta. Ela é a nossa realidade. As ideias
matemáticas têm uma vida útil considerável. Elas existem no absoluto? Como é
possível? Eu dizia pra mim mesma. Mas então meu eu se tornou outro eu.
Com todo o direito. Levou a matemática consigo. A ideia. Um longo período
de incerteza. Quando voltei a mim estava em outro lugar. Como se tivesse
escapado do meu próprio cone de luz. E passado ao que se costumava chamar
de absoluto em outro lugar.
Não compreendo.
Eu sei. Eu também não. É só que a meu ver não era possível pegar algo do
absoluto sem pegá-lo do absoluto. Sem convertê-lo no fenomenológico.
Momento em que esse algo passa a ser nossa propriedade com nossas digitais
por todo lado e não se vê o absoluto em parte alguma. Hoje em dia não tenho
tanta certeza.
Podemos falar sobre o Kid?
Claro. Porra.
Toquei num ponto sensível.
Na verdade, não. Eu só estava a fim de ser grossa.
Como ele é?
Tem noventa e sete centímetros de altura. Um rosto estranho. Uma
expressão peculiar, imagino que você diria. Idade indefinida. Tem essas
nadadeiras. Pouco cabelo, pra não dizer careca. Deve pesar uns vinte e poucos
quilos. Você está achando graça.
Pensei nele subindo no barco de Caronte.
É. Eu já tinha pensado nisso. Dante só pensa no assunto depois que ele
mesmo pisa no barco e sente que parou de balançar.
Eu não sabia disso.
Tudo bem. Desculpa o palavrão.
Ninguém vai morrer por causa disso. Como você sabe que ele tem noventa e
sete centímetros?
Eu medi.
E ele ficou parado esperando?
Não. Medi do mesmo jeito que Tales mediu as Pirâmides. Anotei o
comprimento da sombra dele no tapete e comparei com o da minha sombra.
Os comprimentos relativos das nossas sombras eram equivalentes a nossas
respectivas alturas.
Por que queria saber a altura exata dele?
Acho que só queria saber se tinha altura.
O que mais?
Ele não tem sobrancelhas. Tem umas marcas. Queimaduras, talvez. O crânio
é todo marcado. Como se tivesse sofrido um acidente. Ou um parto difícil.
Seja lá o que isso quer dizer. Ele veste uma espécie de quimono. Anda o tempo
todo. Com as nadadeiras às costas. Como se estivesse esquiando no gelo. Fala
sem parar e usa idiomas que tenho certeza de que não compreende. Como se
os tivesse encontrado em algum lugar e não fizesse a menor ideia do que fazer
com eles. Apesar disso — ou quem sabe por causa disso — às vezes diz umas
coisas bem surpreendentes. Mas eu não diria que ele é uma figura onírica. É
coerente em todos os detalhes. Perfeito. É uma pessoa perfeita.
Um personagem. Acho que foi o que você disse antes.
Tudo bem, um personagem.
Voltando alguns anos. O fato de as visitas desses espíritos familiares cessarem
com a clorpromazina. Isso não te sugere alguma coisa sobre a natureza da
realidade deles?
Ou sobre minha capacidade de percebê-la.
Bom. Imagino que alguém poderia dizer assim.
Imagino que sim. Alguém acabou de dizer. As drogas alteram a percepção.
Para se acomodar a quê? Eu costumava ter convicções um pouco mais firmes
sobre a coisa toda. Mas as convicções de alguém quanto à natureza da realidade
devem representar também suas limitações quanto à percepção que tem dela. E
depois simplesmente parei de me preocupar com isso. Aceitei o fato de que iria
morrer sem saber de verdade onde tinha estado e por mim tudo bem. Bom.
Quase. Eu disse ao Leonard que a realidade era quando muito um palpite
coletivo. Mas isso foi só uma frase que roubei de uma comediante.
Leonard?
Um amigo meu aqui.
Ele riu?
Não. Levou bem a sério.
O Kid comentou com você certa vez que também podia ser visto por outras
pessoas, certo?
Por algumas pessoas.
O que você acha que isso quer dizer?
Sei lá. O psiquiatra aqui não sou eu.
Você não vai voltar a vê-lo. O Kid.
Lá vem você jogando verde outra vez.
Mas você se despediu dele.
Sim.
O que ele disse?
Não muito. Quis saber se eu ia sentir falta dele.
Se você ia sentir falta dele.
É. Declamou um poema pra mim. O que me surpreendeu. Não sei o que
significa.
Lembra como foi?
Sim. Bem rápido.
Eu quis dizer o poema.
Eu sei o que você quis dizer.
Acho que eu devia perguntar simplesmente se poderia repetir o poema pra
mim.
Poderia. Mas não quero.
Tudo bem. A ideia do Kid como uma espécie de djim malévolo — e
presumo que era assim que a maioria dos seus psicoterapeutas o via — não é
como você o vê. Ou talvez você dissesse que não é o caso.
Não é o caso.
Mas você poderia me dizer como de fato o vê?
Acho que o modo como o vejo é o caso. Não é?
Tudo bem.
Você não está me perguntando sobre o Kid. Está perguntando sobre mim. E
não tenho como contar o que quer saber. Mesmo que pudesse provavelmente
não diria.
Certo. Desculpe.
Tudo bem. Você conhece o Tratado? Você sabia de onde vinha a citação do
sobre-o-qual.
Dei uma lida. Não entendi muita coisa.
Acho que no caso do Kid ele estava apenas fazendo o melhor que podia.
Como qualquer um.
Você o vê como benigno?
Se o vejo como benigno é porque sei o que mais existe por aí.
Coisas de que eu por exemplo provavelmente não teria consciência.
Digamos apenas que eu ficaria surpresa se tivesse.
O que você pensa das pessoas? Em geral.
Isso é mesmo uma pergunta?
Por que não?
Acho que tento não pensar nelas.
Sério?
Não. Acredito ter amor no coração. Mas ele só se manifesta como pena.
Imagino ter visto os horrores do mundo mas sei que isso não é verdade.
Mesmo assim, não dá para desver o que está visto. Não houve século mais
tenebroso do que este. Alguém realmente acredita que vimos o último desse
tipo? E, de qualquer forma, o que os problemas do mundo podem significar
para alguém incapaz de cuidar dos próprios problemas?
Às vezes tudo?
É. Acho que você pode ter razão.
Perdão. Eu não queria irritar você.
Não estou irritada. Tem mais de onde isso veio.
Que tal a gente fazer uma pausa.
Tudo bem.

Como você está?


Tudo bem.
A gente ainda tem vinte minutos.
Eu sei. Manda bala.
O que você gosta de fazer? Por prazer?
Parece que você está tirando isso de um roteiro. Qual foi a resposta mais
esquisita que já ouviu?
Não sei se posso contar. Mas os pacientes te surpreenderiam.
Surpreenderiam Krafft-Ebing?
Eu quis dizer no bom sentido. Os interesses deles podem ser bem
sofisticados às vezes. Embora eu deva dizer que com frequência eles tendem a
abrir mão daquilo de que gostam e a fazer coisas que os deixam infelizes. Seu
principal interesse fora a matemática seria a música.
Isso.
Você era uma boa violinista?
Razoável. Nunca teria virado uma violinista clássica.
Não era tão boa assim.
Eu não praticava. Passava semanas sem tocar. Desse jeito é difícil.
Não estava tão interessada assim.
Não é isso. Eu gostava. Mas gostava mais da matemática. Provavelmente
passei vinte mil horas na matemática.
É um bocado de tempo.
É.
Você se lembra de tudo que estudou?
Claro. É necessário.
O que mais.
Sei lá. Escolhe alguma coisa aí da sua lista.
Você acha que a relação com sua mãe pode ter tido alguma coisa a ver?
Isso parece uma piada do Eliza.
Sei. Enfim, queria saber sua opinião sobre os psiquiatras. Se é muito
desfavorável.
Tem isso na lista?
Por que não teria?
Sempre achei que para querer fazer psiquiatria a pessoa tinha que ser um
pouco desequilibrada também. É desvantajoso ter uma vi­são clínica demais da
demência. Por outro lado, você não pode ser completamente maluco.
Sempre achou.
É.
E hoje em dia?
Que diferença faz?
Provavelmente você os conhece melhor do que eu.
Não sei. Acho que não vejo você passando seu tempo com um bando de
psiquiatras. Mas também não faço ideia de com quem passa o tempo.
Creio que de fato acho os pacientes mais interessantes do que os médicos.
Eu também.
Pra você o que a gente faz não é ciência.
Não. Os médicos parecem basicamente evitar a neurociência. Munidos de
lanternas e pranchetas, vagando lá embaixo pelas fissuras. É fácil perceber por
quê. Se a psicose se resumisse a algumas sinapses disparando a esmo por que o
resultado não seria simplesmente estática? Mas não é. Você tem um mundo
cuidadosamente elaborado e razoavelmente articulado que nunca viu antes.
Quem está fazendo isso? Indo de um lado pro outro conectando cabos soltos
de maneiras novas e incomuns. Por que faz isso? Qual é o algoritmo que segue?
Por que desconfiamos da existência de um algoritmo?
Não tenho ideia.
Os médicos parecem não levar em consideração o cuidado com que o
mundo do louco é construído. Um mundo que imaginam estar questionando
quando claramente não estão. O alienista ronda as imediações da insanidade
como um padre rodeia o pecado. Barrado na porta de sua própria proficiência.
Estudando com os lábios contorcidos uma realidade sem status. Uma nação
estrangeira. Pergunta outra coisa. Cria uma teoria. O inimigo da sua tentativa é
o desespero. A morte. Como no mundo real. Você não parece convencido.
Continuo escutando.
Dezesseis minutos.
Está tentando encontrar um modo de gastar esse tempo?
Não. Posso parar a hora que quiser.
Assim como todos nós.
Isso é bem chauceriano. Assim como todos nós.
Você acha que o terapeuta não tem toda essa capacidade de curar.
Eu acho o que a maioria acha. Que são os cuidados que curam, não a teoria.
O bem sem olhar a quem. E pode até ser que no fim das contas todos os
problemas sejam problemas espirituais. Por mais que tivesse a cabeça no
mundo da lua Carl Jung provavelmente tinha razão nesse ponto. Lembrando
que a língua alemã não faz distinção entre mente e alma. Quanto às
instituições, a sensação é que um lugar como o Stella Maris foi preparado com
certa dose de reflexão. Eles só não imaginavam o que viria. Acho a qualidade
do atendimento aqui bastante razoável, mas como qualquer lugar ele nunca
consegue se manter à altura das necessidades. Depois de todos esses anos até os
tijolos estão impregnados. Há remédios mas não há remédio. Locais que foram
palco de sofrimentos extraordinários acabam sendo destruídos por incêndios
ou transformados em templos.
Todas as suas opiniões são tão sombrias?
Não acho que sejam sombrias. A meu ver são apenas realistas. A doença
mental é uma doença. Que outro nome dar a ela? Mas uma doença associada a
um órgão que poderia perfeitamente pertencer a um marciano considerando
tudo que sabemos a seu respeito. O comportamento aberrante é provavelmente
um mantra. Mais oculta do que revela. Entre os problemas enfrentados pelo
terapeuta está o de que o paciente pode não ter o menor desejo de ser curado.
Diga-me, doutor, como é que eu fico nesse caso?
Loucos têm senso de justiça?
Está falando sério? Eles piram por causa disso. Injustiça é sua maior
preocupação. Você parece estar com a cabeça longe.
Estou bem. Você nunca olha o relógio, não é?
Não preciso.
Como estamos? De quanto tempo a gente dispõe?
Esse é um pensamento maravilhoso. Dispor do tempo. Temos catorze
minutos. Os dias são longos mas os anos são curtos.
Existe alguma parte da sua vida que poderia ser caracterizada como instável e
no entanto não ter nada a ver com as… como você as chama? As hortes?
Deixa eu ver se consigo reformular essa pergunta.
Certo.
Não vou cobrar nada. Se sou louca o tempo todo ou só quando meus
amiguinhos estão por perto.
É.
Não sei o que isso quer dizer. Não acho que o Kid não exista quando não
estou vendo ele. Por exemplo. Um Kid quântico mecânico. Que tal falarmos de
outra coisa.
Tudo bem. Me conte algo importante sobre você que eu não saiba.
Você tirou isso do roteiro?
Acho que não.
Sou lésbica.
Acho que não.
Como pode saber?
Apenas sei. Você flerta comigo. Pra início de conversa.
Você acha que eu te considero atraente.
Acho. Não posso negar.
Bom. Lamento. Na verdade não tem nada a ver com flertar.
Tem a ver com o quê?
Pode ser que tenha a ver apenas com o fato de não ter ninguém na sua vida.
Com aceitar o fato de que seja lá do que você for se despedir vai te deixar sem
resposta.
Você conversou com sua avó sobre seu irmão?
Conversei. Tinha que contar pra ela.
E o que ela disse?
Começou a chorar. Não parava de repetir o nome dele.
Ela disse mais alguma coisa?
Perguntou se eu estava ligando da Itália.
Ela vai para a Itália?
Não. Nunca saberia como fazer isso.
Você poderia levá-la.
Não. Não poderia.
Tudo bem.
Mas não está tudo bem. Está?
Se não quiser conversar sobre seu irmão eu entendo. Não sei. Você disse
alguma coisa pra ele? Achava que ele conseguia te escutar?
Falei que preferia estar morta com ele do que viva sem ele.
Vou tomar isso como um aviso.
Sua vida avançou em você como um cão.
Está citando alguém?
Não que eu saiba.
Não tem a ver com judaísmo, de todo modo.
Não.
Você tem alguma ligação com judeus por parte da família?
Não. Não fomos criados como judeus.
Mas você sabia que era judia.
Não. Sabia alguma coisa. Enfim, foram meus antepassados contando cobres
em uma tigela que me levaram a essa situação na vida. Os judeus representam
dois por cento da população e oitenta por cento dos matemáticos. Se esses
números fossem um pouquinho mais assimétricos estaríamos falando de uma
espécie separada.
Não acha isso um pouco forçado?
Não. Não o bastante. Você pode ter histórias separadas na mesma casa. A
pergunta de Darwin permanece sem resposta. Como conseguimos desenvolver
capacidades mentais que não possuem precedentes? Como o cérebro parece se
preparar para o que está por vir? Não faço ideia. Qual é a proporção de
circuitos cerebrais não dedicados, simplesmente à espera de novas
oportunidades? Se é que existe alguma. De que maneira a realização de
mudanças no mercado prepara seus netos para a mecânica quântica? Para a
topologia?
Netos?
Descendentes.
Sei lá. Não sei bem se estou entendendo. Por que não voltamos a você?
Essa sou eu.
Sua história pessoal. Onde estava antes de vir pra cá?
Na sala de recreação.
Sem gracinhas, por favor.
Na Itália. Esperando meu irmão morrer.
Quanto tempo ficou lá?
Dois meses. Um pouco mais.
Esperaram dois meses até pedir sua permissão para desligar os aparelhos?
Não. Só foram ficando mais insistentes.
Você fala italiano?
Me viro bem. Enfim, talvez esse fosse o desejo dele. Não sei. Só sei que fui
incapaz de fazer isso. Saí correndo de lá.
E está tranquila em relação a isso?
Não. Meu Deus.
Quando chegou aqui você tinha bastante dinheiro.
Nem tanto assim. Meu irmão e eu herdamos da nossa avó paterna. Quando
ele me deu a minha parte não havia nada que eu realmente quisesse comprar.
Então comprei aquele Amati extraordinário. Eu conhecia o instrumento. Tinha
visto em dois livros e no catálogo da Christie’s, claro. Como foi vendido pela
última vez em 1863 imaginei que tão cedo não voltaria ao mercado.
Um violino.
É.
De quanto exatamente estamos falando?
Paguei um pouco mais de duzentos mil dólares por ele.
Impressionante. E quanto tinha herdado?
Mais ou menos meio milhão. Achei que o violino era uma boa ideia. Mesmo
que ficasse preocupada toda vez que saía do quarto. Eu o deixava embaixo do
travesseiro. Por um tempo, na verdade, guardei o dinheiro da herança numa
caixa de sapato no armário.
Em dinheiro vivo?
É. Quando meu irmão descobriu me fez alugar um cofre no banco.
Você não pensou em investir?
Herdamos o dinheiro e não devíamos um centavo de imposto. Mas não
tínhamos como provar. O dinheiro ficou enterrado no porão da minha avó. Ela
contou pra gente onde estava e disse que era para ficarmos com ele. Mas é claro
que não havia nenhuma documentação.
Ela enterrou o dinheiro no porão.
Nosso avô enterrou. Moedas de ouro de vinte dólares. Em pilhas dentro de
canos de chumbo.
Essa história está ficando cada vez mais curiosa.
As pessoas fazem coisas curiosas.
Voltemos à Christie’s. Você comprou o violino num leilão?
Isso. Comprei pela Bein & Fushi. Em Chicago. Eles ainda nem estavam no
negócio, na verdade. Mas atuaram como meus agentes.
Não teriam um instrumento desses em estoque.
Não. Não tinham nenhum estoque. A empresa era novinha em folha.
Posso entender como você devia ficar preocupada.
Quando roubam um Cremona ele pode continuar roubado pra sempre.
Apenas mais um de um punhado que provavelmente jamais será encontrado.
Pensei em pintar o meu. Com alguma tinta solúvel em água que fosse fácil de
tirar sem danificar o verniz. De dourado, talvez. Guardar num estojo
vagabundo. Mas então me lembrei de uma citação feita por Quine. Preserve a
superfície que tudo será preservado. Enfim, eu sabia que não teria coragem de
fazer isso.
Quem é Quine?
Um filósofo. Há quem diga que o maior entre os vivos.
Você concorda com isso?
Talvez. Claro que ele acha que entende matemática. Parece não conseguir
deixá-la em paz.
Mas você disse que é só uma citação.
É. A epígrafe de um dos livros dele.
E ele diz de onde a tirou?
Diz. Da Sherwin-Williams.
A marca de tinta.
É.
Está brincando comigo.
Não. Não estou. Nem Quine estava. Bom. Talvez um pouco. Talvez
bastante, pensando melhor.
Bein & Fushi. É isso?
É. No dia em que fui buscar o violino voltei pra casa de ônibus. Subi até
meu quarto, entrei e sentei na cama com ele no colo. Fiquei só olhando para o
estojo. Era alemão. Provavelmente do fim do século xviii. Parecia quase novo.
Couro de novilho preto com fechos de alpaca. Destravei os fechos com o
polegar, um de cada vez, e abri a tampa. Lembro de sentir a minha respiração.
Mas você já tinha visto o violino antes. Na loja.
Não. Não tinha. Quando puseram no balcão e foram abrir os fechos, pedi
que parassem. Vi em fotos, claro. As fotos no catálogo da Christie’s
provavelmente eram as melhores. Os veios bem compactados e ondulados da
madeira de bordo. O tampo inferior em duas peças quase perfeitamente
simétricas. Bastante incomum. O braço não tinha praticamente mais verniz,
estava só na madeira, e achei que podia até ser original embora o catálogo não
atestasse isso. Achei a coisa mais incrível que já tinha visto na vida.
Comprou sem nem ver.
É. Fui até a Bein & Fushi com o dinheiro numa sacola de compras.
De ônibus.
É. Quando entreguei o dinheiro eles foram até uma sala nos fundos para
contar. Não tinham ideia do que fazer com aquilo e o leilão era dali a cinco
dias. A gente acha que dá pra comprar coisas com dinheiro vivo mas pelo visto
hoje em dia já não é mais tão simples assim. Eles não podiam acreditar que eu
estava carregando quase meio milhão de dólares por aí numa sacola de
compras. Falei que estava escondendo o dinheiro debaixo do nariz de todo
mundo mas parece que isso só serviu para deixar eles mais confusos.
Quase meio milhão de dólares.
Bom, trezentos mil, na verdade.
Por quanto a Christie’s achava que ia vender?
Não sei se tinham ideia. Era um instrumento tão único. Imaginavam no
mínimo uns duzentos mil dólares mas os caras da Bein & Fushi achavam que
seria mais.
Mas você estava pronta para desembolsar todos os trezentos mil.
Isso. Falei pra arrematarem logo de uma vez.
Ele seria vendido pelo que valia. Por definição.
É.
E no fim quanto custou?
Duzentos e trinta.
Onde foi o leilão? Em Nova York?
É.
E você disse que nem queria ver o violino.
Isso.
Imagino que já achavam você um pouco estranha.
Não sei o que achavam. Faturaram uma bela comissão. Tentaram me dar o
troco em cheque mas falei que só aceitava dinheiro vivo. Regra do Bobby.
O que eles responderam?
Rolaram pelo chão balbuciando e gritando uns com os outros.
Tudo bem. Você não quis ver o instrumento porque queria estar sozinha
quando o visse.
É.
Daí voltou com ele no ônibus.
Isso. Quando cheguei em casa sentei na cama com ele no colo e abri o
estojo. Não existe cheiro que se compare ao de um violino de trezentos anos.
Dedilhei as cordas e achei surpreendentemente próximas. Tirei do estojo e
comecei a afinar. Fiquei pensando onde os italianos tinham arrumado madeira
de ébano. Para as cravelhas. E a escala, claro. O estandarte. Peguei o arco.
Fabricado na Alemanha. Uma marchetaria de marfim belíssima. Apertei e
comecei a tocar a chacona do Bach. Aquela em ré menor? Não lembro. A
música mais dilacerante, comovente. Ele compôs para a esposa, que tinha
morrido enquanto ele estava viajando. Mas não consegui chegar até o fim.
Por que não?
Porque comecei a chorar. E não conseguia mais parar.
Chorou por quê? Por que está chorando?
Desculpa. Por mais motivos do que consigo dizer. Lembro de secar as
lágrimas no tampo de pinho do Amati, largar o violino e ir ao banheiro jogar
água no rosto. Mas começou tudo de novo. Eu não conseguia parar de pensar
na frase: Que obra-prima é o homem. Não conseguia parar de chorar. E
lembro de dizer: O que somos nós? Sentada ali na cama segurando o Amati,
que era tão lindo que nem parecia real. A coisa mais linda que eu já tinha visto
e eu nem conseguia entender como era possível uma coisa daquelas.
Quer parar por hoje?
Quero. Desculpa.
iii

Bom dia. Como tem passado?


Nunca estive melhor.
Não seja engraçadinha. Tudo bem com você?
Tudo.
Tem alguma coisa da nossa última sessão que gostaria de retomar?
Não. Você não trouxe sua pasta.
Já estou bem por dentro do que tem ali. Acho que podemos começar.
Tudo bem.
Sobre o que gostaria de conversar?
A desigualdade de Bell.
Como?
Diga você. Tanto faz. O tempo.
Me conte sobre seu pai.
Eliza.
Perdão. É verdade que até os desenvolvedores do programa se inscreviam nas
sessões de terapia?
Ouvi dizer que sim.
Seu pai morreu não muito tempo depois da sua mãe.
Uns quatro anos.
Após uma longa enfermidade.
Longa o suficiente pra matar.
Isso soa um pouco cruel.
Olha. Quando você me repete frases de obituário acabo não reagindo bem.
Perdão. Tentarei ter isso em mente. Quantos anos você tinha?
Quinze.
E o via bastante nessa época?
Não. Ele estava morando numa cabana nas montanhas. Acima do lago
Tahoe.
Tiveram alguma desavença?
Não.
Ele era um dos físicos no Projeto Manhattan. Chegou a falar com você sobre
isso?
Mais com o Bobby. Essa conversa está começando a parecer uma audiência
no Congresso.
Talvez seja melhor você apenas me dizer o que vier a sua cabeça.
Não. Continue. Imagino que queira saber se meu pai se sentia culpado por
ter construído a bomba. Não. Mas ele morreu. Meu irmão teve morte cerebral
e eu vim parar no hospício.
Tudo bem. O que mais?
O que mais. Ele integrou um grupo de cientistas que visitou Hiroshima
depois da guerra para fazer um levantamento do estrago. Acho que a visão
daquilo o fez cair em si. Não posso falar por ele. O primeiro que construísse a
bomba ia explodir alguma coisa com ela e tenho certeza de que ele pensou
antes nós do que eles. Quem construísse primeiro. Os argumentos sobre a
decisão de Truman normalmente giram em torno da perda de vidas numa
eventual invasão por terra. Meu pai tinha uma opinião diferente. Ele achava
que se o Japão tivesse sido derrotado numa invasão por terra não teria
acontecido nenhum milagre de reconstrução depois da guerra. Que o Japão
teria ficado humilhado como nação e entrado em um longo declínio. Mas do
jeito que aconteceu a derrota não veio no campo de batalha. Eles foram
derrotados por uma bruxaria.
Isso não soa um pouco conveniente?
Se você acha. Também pode ser verdade.
E você acha que é?
Não sei. É uma teoria. Inventada e patenteada pelo meu pai. Não me
interesso por política. E sou pacifista até a medula. Apenas nações podem
entrar em guerra, no sentido moderno, e não gosto de nações. Acredito em
fugir correndo. Mais ou menos como sair da frente de um ônibus que está
vindo na sua direção. Se a gente tivesse um filho eu teria levado ele para onde a
guerra parecesse menos provável. Embora seja difícil ficar um passo à frente da
história. Mas podemos tentar. Não, eu não, para responder sua próxima
pergunta.
Você não culpa seu pai.
Não.
Você disse se a gente tivesse um filho.
Se eu tivesse um filho.
A gente quem?
Não é da sua conta.
Na sua opinião seu pai não perdeu nem um pouco de sono por causa da
bomba.
Meu pai não dormia antes da bomba e não dormiu depois. Acho que a
maioria dos cientistas não se preocupava muito com o que ia acontecer.
Estavam apenas desfrutando. Todos falaram a mesma coisa sobre o Projeto
Manhattan. Que nunca se divertiram tanto. Mas quem não percebe que o
Projeto Manhattan é um dos eventos mais significativos da história humana
não está prestando atenção. Junto com o fogo e a linguagem. No mínimo em
terceiro lugar e possivelmente em primeiro. Ainda não sabemos. Mas um dia
saberemos.
Na sua opinião seu pai não considerou devidamente as consequências do
projeto.
Acho que considerou. E nisso divergia dos outros. Ele não se solidarizou
muito com todo o mea-culpa que aconteceu depois de Hiroshima. Era mais
velho do que a maioria dos cientistas. A média de idade devia ser por volta de
vinte e seis, vinte e sete anos. Acho inclusive que alguns eram adolescentes.
Quando viraram os maiores pacifistas de uma hora pra outra ele simplesmente
achou que não passavam de um bando de hipócritas. Depois da guerra foi
trabalhar com o Teller. Eles detonaram bombas capazes de reduzir porções
razoavelmente grandes do mundo conhecido a uma pilha de escombros
inabitáveis. Todo mundo odiava o Teller, e odiaram meu pai. Uma pena. Não
sei o que dizer sobre o sono dele. Também nunca dormi. E não joguei
nenhuma bomba em ninguém.
Você nasceu em Los Alamos.
Isso. No Boxing Day de 1951.
Boxing Day? O que é isso?
O dia depois do Natal.
Por que se chama Boxing Day?
Porque nesse dia você junta todas as tralhas que ganhou e não quer e devolve
na loja.
Isso não é verdade.
Não. Tradicionalmente era o dia de trocar presentes. Caixas de biscoitos e
coisas assim. Um sargento do exército levou minha mãe para o hospital num
daqueles sedãs verde-oliva que sobraram da guerra. Não tinha mais ninguém
por perto. Era pra ela ter ido para o Tennessee mas no fim não deixaram que
viajasse.
E seu pai, onde estava?
Em Providence. Rhode Island.
O que ele estava fazendo em Providence? Visitando a família?
Foi ver uma palestra de Kurt Gödel na Sociedade Matemática Americana, na
Universidade Brown.
Ele não passou o Natal com a sua mãe.
Não.
Os dois levavam vidas separadas?
Você teria que definir separadas. Acho que não completamente. Mas eu não
estava lá. Enfim, não o culpo por querer ver Gödel. Eu também teria ido.
Embora Gödel tenha se limitado a ler o artigo com uma voz monótona. Sobre
os fundamentos da matemática. Na maior parte uma defesa do platonismo.
Não sei se meu pai tinha todo esse interesse no assunto mas estava interessado
em Gödel.
Você leu o artigo?
Li. Claro.
Claro?
Li praticamente todos os artigos de Gödel. A maioria das anotações.
Inclusive as escritas em Gabelsberger.
O que é isso?
Uma taquigrafia que Gödel usava. Combinando com suas outras
idiossincrasias. É alemão do século xix. Ou talvez xviii, não sei.
Quanto tempo você levou para aprender?
Mais do que pensei que levaria. Gödel era inteligente, mas entre outras
coisas defendia o platonismo matemático e eu queria saber por quê. Pra mim a
ideia era simplesmente incoerente. Mas naquela época eu não sabia de verdade
como Gödel era inteligente.
Hum, não tenho certeza se entendo o que isso quer dizer. Platonismo
matemático.
O que o nome sugere? Hoje em dia costuma ser chamado de rea­lismo.
Expressa supostamente uma crença na existência de entidades matemáticas
independentes da mente humana. É uma crença comum entre matemáticos
mais antigos e a meu ver parecia cheia de furos. Se objetos matemáticos
existem independentemente do pensamento humano, do que mais eles são
independentes? Do universo, imagino. Quando você resolve um problema fica
sempre uma sensação irresistível de que a solução estava lá o tempo todo e você
apenas descobriu. Sem mencionar que ela carrega certo peso empírico na
medida em que outros matemáticos concordam que a resposta está correta. Se
estiver.
E imagino que isso tem pelo menos alguma coisa a ver com o seu
entendimento da realidade em geral.
Bom. Dá pra passar um bom tempo categorizando realidades. Suas
correspondências. A gente provavelmente não vai querer ir por esse caminho.
Tudo bem. Não sei muito sobre Gödel. Sei que tinha uma teoria famosa de
que a matemática não podia resolver todas as questões que propunha. Ou algo
nessa linha.
Algo nessa linha, é. Dois teoremas. Em 1931.
Você concorda com essa teoria?
Claro. Os artigos são brilhantes. Incontestáveis. Em seus últimos anos Gödel
se afastou da matemática e mergulhou na filosofia. Depois pirou.
Pirou como?
Ficou muito mal. Parou de comer. Achava que tinham envenenado a
comida. Quando morreu pesava pouco mais de trinta quilos. Oppenheimer era
chefe do ias na época e costumava visitá-lo no hospital. Um dia o médico
entrou. Ele não sabia quem era Gödel — para ele só um professor doido da
universidade — e Oppenheimer lhe disse para cuidar bem dele porque era o
maior lógico desde Aristóteles. O médico fez que sim com a cabeça e virou
para a porta e Oppenheimer percebeu o que ele estava pensando: Meu Deus,
agora são dois.
A teoria dele. É verdade que punha a legitimidade da matemática em
dúvida? Por isso ela é famosa?
Não. Isso é tudo bobagem. Talvez tenha começado com Von Neumann. Ele
esteve presente à apresentação do Gödel para o Círculo de Viena, e quando o
Gödel terminou de ler seus papéis Von Neumann disse: Está tudo acabado.
Von Neumann disse isso.
É.
Mas não estava.
Não. Não estava. Bom, em parte. Entre outras coisas devido a uma série de
problemas de Hilbert de 1900.
Von Neumann era um matemático famoso.
Isso foi antes da fama. Mas ele queria muito ser famoso. Só fez esse
comentário pra mostrar pra todo mundo que tinha entendido o artigo.
Mas o comentário foi… o quê? Incorreto?
Provavelmente ele não era o único por lá que achava que a própria
matemática estava sendo questionada. Às vezes demora um pouco para pôr os
pingos nos is. A matemática vive sendo questionada. É pra isso que serve.
Vários bons matemáticos abandonaram a disciplina. Mais até do que a
quantidade que foi parar no manicômio.
Por quê?
Achei que era por isso que a gente estava aqui.
Você largou a matemática de vez.
É. Bom, tirando talvez o problema dos problemas. O que não quer sumir.
E qual seria?
O problema fundamental. O que fazer com Frege. Os Grundlagen. O
princípio e o fim. O que estamos fazendo e como sabemos. Um insight. As
coisas sabem? Isso é possível? E caso saibam em que devemos nos transformar
para que nos contem? O projeto Langlands. Coisas que nunca, jamais vão me
contar o que quero saber.
Sei.
Acho que não. Em última análise a matemática é uma iniciativa baseada na
fé. E fé é um negócio duvidoso.
Não sei se estou entendendo. A matemática como o quê? Uma espécie de
projeto espiritual?
Não sei de que outra forma chamar. Por muito tempo pensei que as verdades
básicas da matemática devem transcender o número. Afinal de contas é tudo
um troço bem precário. A despeito de toda a sua considerável beleza. As leis da
matemática derivam supostamente das regras da lógica. Mas não existe
nenhum argumento para as regras da lógica que não as pressuponha. Imagino
que uma coisa capaz de evocar a analogia com o espiritual seja a compreensão
de que os maiores insights espirituais parecem vir do testemunho daqueles que
vacilam tateantes nas trevas.
Não entendo como as verdades matemáticas podem transcender o número.
Eu sei.
Mas mesmo assim você é fã de Gödel.
Sou. Tremenda fã. Concordo com a opinião de Oppenheimer.
A maioria dos seus heróis são matemáticos?
São. Ou heroínas.
Quem mais você admira?
A lista é longa.
Tudo bem.
Cantor, Gauss, Riemann, Euler. Hilbert. Poincaré. Noether. Hipácia. Klein,
Minkowski, Turing, Von Neumann. Isso nem chega a ser uma lista parcial.
Cauchy, Lie, Dedekind, Brouwer. Boole. Peano. Church continua vivo.
Hamilton, Laplace, Lagrange. Os antigos, claro. Você olha pra esses nomes e o
trabalho que eles representam e percebe que os anais da literatura e da filosofia
dos tempos modernos são por comparação de uma aridez indescritível.
Não estou familiarizado com esses nomes.
Eu sei.
Alguns deles são de mulheres?
Emmy Noether. Foi uma grande matemática. Uma das maiores. Uma das
fundadoras da física matemática. Há outras. Mulheres. Mas nenhuma medalha
Fields, claro.
Essa é a maior honraria em matemática.
É.
Estou surpreso que seu amigo Grothendieck não esteja na lista. Esqueceu
dele?
Como vou esquecer Grothendieck? Todos que nomeei estão mortos.
É um pré-requisito para a grandeza?
É um pré-requisito para não levantar da cama amanhã de manhã e dizer algo
incrivelmente estúpido. Você perguntou por que Grothendieck largou a
matemática. A ideia de que isso envolva insanidade, por mais atraente que
possa ser, provavelmente não é de todo correta. Sem dúvida o fato de reescrever
a maior parte da matemática de meio século passado não ajudou muito a
atenuar o ceticismo dele. Wittgenstein gostava de dizer que nada pode ser sua
própria explicação. Não tenho certeza se isso está muito longe de dizer que as
coisas em última análise não contêm informação alguma sobre si mesmas. Mas
talvez seja verdade que você precisa estar de fora olhando para dentro. Podemos
perguntar até o que uma descrição quer dizer. Existe descrição melhor do cubo
do que construir um? Não sei. O que podemos dizer a respeito de qualquer
atributo senão que se parece com algumas coisas e não com outras? Cor.
Forma. Peso. Quando você se defronta com uma classe de um só percebe o
problema. Não precisa ser algo grandioso como o tempo ou o espaço. Pode ser
uma coisa bem comum. As partes que compõem a música. Existem objetos
musicais? A música é composta de notas? Isso está correto? A complexidade da
matemática a levou de uma descrição das coisas e dos eventos ao poder dos
operadores abstratos. Em que momento as origens dos sistemas deixam de ser
relevantes para sua descrição, sua operação? Ninguém, por mais inclinado que
seja ao platonismo, acredita de fato que os números sejam um pré-requisito
para a operação do universo. Eles apenas são úteis para falar a respeito dele.
Certo?
Não sei.
O motivo pelo qual a matemática funciona — alguns diriam — é que você
está no limite dos seus recursos. Não se pode matematizar a matemática. Você
parece em dúvida.
Perdão.
Os animais mais simples conseguem contar. Compreendem que três é mais
do que dois. Não sabem o que isso significa? Eu também não. Você me
perguntou sobre Grothendieck. A teoria do topos elaborada por ele é uma
bruxaria envolvendo topologia, álgebra e lógica matemática. Nem tem uma
identidade clara. O poder da teoria continua sendo especulativo. Mas está ali.
A gente fica com a sensação de que está esperando em silêncio com respostas
para perguntas que ninguém ainda fez.
Isso soa um pouco platônico.
Não é? Com a perspectiva animadoramente nova e infeliz de nossa espécie
ter criado algo que ainda estamos por descobrir. O Kid achava que o nome do
Dirac era Pamela.
Pamela?
Às vezes ele assinava como pam Dirac. Paul Adrien Maurice. Enfim, essa é a
minha gente. Não tenho mais ninguém.
Você parece triste. Dizendo isso.
Fico triste em dizer isso.
Tem a ver com inteligência.
É. E mais uma vez, quando você fala em inteligência está falando em
números. Afirmação que faz o analfabeto em matemática torcer o nariz na
mesma hora. Tem a ver com cálculo e a natureza do cálculo. A inteligência
verbal só nos leva até certo ponto. Ali tem uma parede e se você não entende
de números não vai nem enxergar a parede. As pessoas do outro lado vão
parecer esquisitas. E você nunca vai compreender a latitude que estendem a
você. Elas serão cordiais — ou não, dependendo da sua natureza. Claro que
poderíamos acrescentar também que a inteligência é um componente básico do
mal. Quanto mais estúpido menos mal você é capaz de causar. A não ser talvez
de um jeito desajeitado e descuidado. A palavra cretino vem do francês
chrétien. Pelo jeito, se você não conseguisse pensar em nada bom para dizer
sobre um parvo qualquer diria que ele era um bom cristão. Diabólico, por
outro lado, é basicamente sinônimo de engenhoso. O que Satã pôs à venda no
jardim foi o conhecimento.
A beleza na matemática.
É.
Isso é parte da descrição dela? É o que a torna verdade?
As equações profundas muitas vezes são chamadas de belas. Max­well, acho.
Se você ignorar o potencial dos vetores E e B em lugar do A. Se você examinar
o princípio da ação mínima provavelmente acabará num silêncio solene.
As equações são belas em si mesmas?
Não se você não sabe o que significam.
E = mc2 é considerada bela?
Você devia ver em cores.
Vamos falar de outra coisa.
Vamos.
Seu pai era uma pessoa decente?
Acho que sim. Sempre foi carinhoso comigo.
E ele de fato trabalhou na bomba lançada em Hiroshima.
Trabalhou. Minha mãe também.
Em Oak Ridge. Sua mãe.
Isso. No Y-12.
Mas sua mãe não sabia de verdade o que estava fazendo.
Provavelmente não. Ela ficava sentada diante de um medidor oito horas por
dia. Ninguém tinha permissão para conversar. No dia seguinte a Hiroshima
elas souberam. Se alguém na época tinha uma opinião negativa sobre o
trabalho na guerra nunca fiquei sabendo. Acho que sentiam muito orgulho
dele. Mas se você acha que alguma parte disso pode ter alguma relação com
anões eduardianos dançando charleston no meu quarto às duas da manhã vou
ouvir sua explicação com o maior prazer.
Talvez a gente devesse falar de outra coisa.
Tudo bem.
Tudo bem mesmo?
Claro. Você parece em dúvida outra vez. Do que ela está falando? O que está
escondendo? E se for pior do que eu pensei?
E é?
Pior?
Isso.
Provavelmente. Estamos sempre voltando ao meu pai. Não que eu não saiba
qual é o problema. Mas acho que a gente devia deixar esse assunto pra depois.
Ele morreu e eu gostaria que não tivesse morrido.
Sua família viveu quanto tempo em Wartburg?
Desde 1943. O Projeto nos forçou a deixar a fazenda.
Oak Ridge.
É. Nossa fazenda ficava na periferia de Clinton no Tennessee. Junto ao rio
Clinch. A gente estava lá desde a Guerra Civil.
Então você nem chegou a ver a fazenda.
Quando eu nasci já tinha ido parar no fundo de um lago. Minha avó
costumava falar sobre ela. Era uma construção no velho estilo postes e vigas.
Os assoalhos eram de castanheiro e foram cortados em uma serra horizontal a
vapor construída por eles. Ela dizia que as tábuas do salão de visitas — como
ela chamava — tinham quase um metro de largura.
E o que aconteceu com o lugar?
Foi condenado pelo governo americano. Demolido com escavadeiras. Para
dar lugar a uma usina de enriquecimento de combustível nuclear.
Isso é doloroso pra você.
Acho que foi. Por um tempo. Houve uma época em que eu podia me
imaginar vivendo ali. A casa foi construída pelo meu bisavô. Vi fotos e era
muito bonita. Eles nunca tinham construído uma casa antes. Não tenho
certeza se alguma vez tinham visto uma casa ser construída. E se pudessem
enxergar oitenta anos no futuro? Não é tanto tempo assim. Os planos mais
simples se baseiam num futuro sem a menor garantia.
Você disse que o Projeto Manhattan foi um evento histórico crucial. É
possível enxergar o episódio com algum tipo de perspectiva? Estamos há um
bom tempo sem uma guerra nuclear.
É. Bom, provavelmente é como qualquer falência. Quanto mais você
conseguir adiar pior vai ser. A próxima grande guerra só vai chegar quando
todo mundo que se lembra da última estiver morto.
Então você acha que uma guerra nuclear é inevitável.
Concordo com Platão que só os mortos viram o fim da guerra. E as pessoas
não usam pedras para brigar quando têm armas. Et cetera e tal.
Vivemos em um paraíso de tolos.
Não sei no que vivemos.
Tudo bem. Histórico familiar. Pelo que entendi sua mãe cresceu nessa casa.
É. Cresceu.
Mas quando perguntei sobre o lugar você me contou o que a sua avó
lembrava.
Minha mãe estava no ensino médio quando a guerra chegou na cidade.
Deve ter pensado que o mundo estava acabando. Sei lá. ­Minha avó costumava
relembrar, minha mãe costumava chorar. Toda a história recente gira em torno
da morte. Quando vemos fotos tiradas no fim do século xix nos damos conta
de que todas aquelas pessoas estão mortas. Se retrocedemos um pouco mais
todo mundo continua morto mas isso já não importa. Essas mortes
representam menos pra gente. Mas com as figuras desbotadas nas fotografias é
outra história. Até os sorrisos são deprimentes. Cheios de remorso. De
acusação.
Você não acha que isso pode ser apenas uma perspectiva sentimental da sua
parte?
Não.
Seu pai não era visto pela família como o vilão desse drama?
Era. Claro. Minha avó ficou horrorizada quando minha mãe foi trabalhar no
Y-12. Ela não sabia do que se tratava mas achava que as chances de ser coisa
boa eram praticamente nulas. Só que esses eram os empregos mais bem
remunerados num raio de mil quilômetros. Os únicos empregos remunerados.
Minha mãe tinha acabado de terminar o ensino médio e trabalhava como
garçonete em um drive-in. Era muito inteligente e deveria ter feito faculdade
mas não havia dinheiro. Ela esperava conseguir uma bolsa com o concurso de
beleza estadual mas ficou em terceiro lugar. O que foi meio constrangedor
porque todo mundo sabia que o resultado tinha sido arranjado. Ela sentiu pena
da vencedora por causa dos parabéns pouco convincentes que recebeu e tentou
ficar amiga dela só que não deu certo. O boletim da minha mãe era cheio de
notas máximas e ela foi a oradora da classe mas no concurso de Miss Tennessee
ficou em terceiro lugar. Por pouco não conseguiu a bolsa. Então foi isso. Ela
me contou que a agência de empregos da Tennessee Eastman ficava num
barracão de madeira e que quando chegou lá no escuro às cinco da manhã a fila
já estava do tamanho de um campo de futebol e a lama batia nos tornozelos.
Mas conseguiu o emprego.
Para trabalhar no quê?
Como garota calutron.
O que é calutron?
Quanto você quer saber?
Não sei. O tanto que você achar melhor.
Tudo bem. Para construir uma bomba de urânio é preciso primeiro separar o
U-238 encontrado na natureza do U-235. Em meia tonelada de urânio natural
só é possível encontrar cerca de três quilos de U-235, então haja escavação.
Existem diversas maneiras de fazer essa separação — ou enriquecimento, como
eles preferem dizer — e o sistema eletromagnético não era lá essas coisas, era só
o primeiro. O calutron foi inventado por E. O. Lawrence. Era basicamente um
espectrômetro de massa e atuava como o dispositivo de coleta para o urânio
enriquecido. Cal era a abreviatura de Califórnia. Tron vem do grego, uma
escala de medida ou talvez um instrumento. Primeiro o urânio era combinado
com cloro e depois o tetracloreto de urânio resultante era ionizado e impelido
por uma série de eletroímãs ao redor do que chamavam de pista de corrida. A
pista tinha mais de trinta metros de comprimento e os ímãs seis metros de
altura. É preciso pensar grande. Por causa da guerra eles não conseguiam
encontrar cobre suficiente para fabricar as bobinas para os ímãs, os condutores,
então procuraram o Departamento do Tesouro americano, pediram catorze mil
toneladas de prata emprestadas, transportaram em caminhões e usaram.
Emprestadas.
Emprestadas. Eles devolveram depois da guerra. As primeiras pistas que
projetaram, as pistas Alfa, não eram muito eficazes, então pegaram o material
produzido nelas e voltaram a testar em um novo projeto chamado Beta que
resultou em urânio nuclear de fato. Na realidade o Beta não era assim tão
diferente. Era até menor — mais ou menos a metade do Alfa, com ímãs de três
metros. Os próprios calutrons foram inseridos lateralmente nas pistas de
corrida e os coletores eram periodicamente removidos e esvaziados. Claro que o
que tornou o sistema inteiro operacional foi o fato de o U-238 ser três
nêutrons mais pesado do que o U-235, descrevendo portanto um arco maior
no campo magnético.
Claro.
Meu Deus.
Desculpe. Por favor, continue.
Tem certeza?
Tenho. Por favor.
No fim havia nove enormes prédios de tijolos para abrigar tudo isso. Até
onde sei devem continuar lá até hoje. Pareciam umas fábricas de sapato
gigantes. Cinco pistas Alfa e quatro Beta. No total, 1152 calutrons.
Funcionando o tempo todo, cada garota monitorando um deles. Nada de
conversa. As moças ficavam sentadas em um banquinho em longos corredores
monitorando os mostradores e ajustando os botões e alavancas para manter a
corrente do feixe maximizada. Era um processo vagaroso. O U-235 para a
Little Boy, a bomba que destruiu Hiroshima, foi transportado de poucos em
poucos quilos por trem até Santa Fe na maleta de um oficial do exército
vestindo um terno de executivo. Quando juntaram sessenta e quatro quilos se
deram por satisfeitos.
Ele não ficou exposto aos efeitos da radiação? O sujeito de terno.
Não.
Você conseguiria explicar a topologia com essa mesma clareza?
Está tentando ser engraçado?
Não. Não estou.
Acho que não. O processo de separação eletromagnética é uma operação
mecânica bem simples. Dá pra explicar para uma criança de dez anos. A
topologia tem a ver com a matemática das formas. Eu poderia dizer que a
conjectura de Poincaré se relaciona com a natureza inerentemente esférica de
formas que não parecem esféricas. Quase isso. Mas esse talvez não seja um bom
exemplo. Particularmente se a conjectura estiver errada. Bom. Para Poincaré
não era sequer uma conjectura. Estava mais para uma questão.
E você acha que ela está errada?
Não. Mas isso deve ser difícil de provar.
E seu pai estava fazendo uma visita de inspeção ao Y-12 e viu sua mãe.
É. Passou um bilhete pra ela.
Para ligar pra ele.
Isso.
Ela ligou?
Não. Dois dias depois ele voltou e pôs na mão dela uma folha de caderno e
um lápis e ela ficou olhando aquilo por um minuto e depois escreveu seu
número. E o nome. Era só o número do telefone coletivo do dormitório. Mas
no dia seguinte ele ligou.
E…
E aqui estou eu.
Lawrence foi o cara que inventou o cíclotron.
É. Ele costumava aparecer no Y-12, sentar diante de um dos calutrons e
aumentar a potência para mostrar pra todo mundo como aquilo era capaz de
produzir mais, daí levantava e ia embora. Cerca de cinco minutos depois o
negócio todo estava pegando fogo. Meu pai disse que quando Lawrence estava
trabalhando no cíclotron em Berkeley ele às vezes acionava uma chave grande
de cobre e era como num filme de Frankenstein. As labaredas subiam pelo
laboratório e depois o campus inteiro ficava às escuras. Eles se referiam a Oak
Ridge como Brejo Seco. O das tirinhas do Ferdinando. Perto do fim da guerra
a usina de difusão gasosa em K-25 estava funcionando a pleno vapor e eles
fecharam as pistas Alfa mas continuaram operando tudo a partir de K-25 pelas
máquinas Beta.
Por quanto tempo sua mãe fez isso?
Dois anos. Um pouco menos.
Quantos anos ela tinha quando conheceu seu pai?
Dezenove, acho. Talvez vinte.
E ele?
Trinta e poucos. Nem sei direito quando ele nasceu. Não era muito aberto
sobre o passado. Tinha sido casado antes. O Bobby descobriu.
Sua mãe sabia?
Não. Ele sabia que ela nunca se casaria com ele se soubesse.
Ele não tinha filhos do primeiro casamento.
Teve um menino. Morreu de pólio com uns quatro anos. Sempre penso
nele.
Sempre pensa nele?
Claro. Era meu irmão.
Quando seus pais se divorciaram?
Fiz uma visita a ela. Não parecia muito feliz.
Como?
Fiz uma visita a ela. A primeira esposa do meu pai. Ela estava morando na
Califórnia.
E ficou surpresa em ver você?
Acho que não. Tinha escutado alguns rumores sobre mim e imaginou que
eu ia acabar aparecendo mais cedo ou mais tarde.
Isso depois que seu pai morreu.
É.
E o que ela disse?
Ela disse: Bem. Você se tornou uma bela moça. Ela própria era um avião.
O que mais?
Não muito. Perguntou por que eu estava ali. O nome do meu irmão era
Aaron.
Era judia.
É.
Ele gostava de judias. Seu pai.
Ele não sabia que minha mãe era judia.
Ela era física? A primeira esposa.
Não. Era médica. Cardiologista. Mas trabalhava num laboratório. Não sei
por que meu pai se divorciou.
Duas vezes.
Duas vezes. Isso. A ideia não partiu delas.
Das esposas.
Das esposas. É.
Posso perguntar se ele era mulherengo?
Não sei dizer. Não sei se não era. Tem um cigarro?
Tenho. Está na minha maleta. Em algum lugar. Aqui.
Obrigada.
Eu trouxe um isqueiro mas não me lembrei do cinzeiro.
Posso usar o copo.
Tudo bem. Seus pais brigavam?
Não. Mais para o fim ele nunca estava muito por perto. Passava um bocado
de tempo no Pacífico Sul explodindo coisas.
Isso soa como uma crítica.
Não estou criticando. Meninos gostam de explodir coisas.
Está falando sério.
Estou.
Quantos anos você tinha quando eles se separaram?
Não sei. Acho que foi meio gradual.
O que mais aconteceu? Nenhum dos dois voltou a se casar.
Não. Acho que os dois se amavam. Só que ficou cada vez mais difícil. Ela
parece nervosa. Está fumando mais rápido. Claro que podia ser um falso
sintoma. Não dá pra confiar nessa vaca.
Eu outra vez imagino. Um falso sintoma.
Não importa. Outra coisa que aconteceu foi que minha mãe teve o que na
época chamaram de colapso nervoso.
Colapso nervoso.
No jargão da época. Ela foi hospitalizada. Duas vezes. A gente foi morar
com a minha avó. Nunca discutimos o assunto.
Quantos anos você tinha?
Quatro. Quando comecei o ensino fundamental na St. Mary’s em Knoxville
não tinha nem seis. Uma semana depois era a primeira da classe e isso calou a
boca de todo mundo.
Se nunca discutiram o assunto como você sabia o que estava acontecendo?
Não foi difícil somar dois mais dois. Lembro da minha mãe desmaiada no
chão da sala de jantar e de não saber o que fazer, mas o Bobby começou a
chorar e eu comecei a chorar também mesmo não tendo certeza de como me
sentia sobre aquilo.
Bobby começou a chorar?
É.
Quantos anos ele tinha?
Devia ter uns dez.
Isso foi em Los Alamos.
Foi.
Na sua opinião qual era a natureza dos problemas emocionais dela?
Sei lá. Depois do diagnóstico de câncer os outros sintomas sumiram. Daí ela
morreu.
Você alguma vez chegou a perguntar?
Uma vez. Ela negou tudo. Basicamente.
Na minha cabeça isso seria difícil de negar.
Há quanto tempo mesmo você está nesse ramo?
Tudo bem. Você conversou com seu irmão sobre isso?
Conversei.
E o que ele falou?
Que ela tinha tido um colapso nervoso. Imagino que você esteja procurando
uma predisposição genética para uma doença inespecífica e possivelmente
inexistente.
Talvez queira apenas ter uma ideia de como você se sente em relação a sua
família.
Onde apago isso?
Você só deu umas tragadas.
Eu sei.
Pode me dar. Acabou de me ocorrer que essas suas experiências aberrantes
começaram mais ou menos na época em que sua mãe morreu. Vocês eram
muito próximas?
A gente se dava bem. Mas ela escutava o que os médicos diziam e foi para a
cova achando que a filha era louca.
Isso foi doloroso para você?
Sim. Foi. Pior ainda depois que ela morreu. Eu percebia como tinha sido a
vida dela e me sentia mal com isso. Precisava da minha avó e nunca levei
realmente em consideração que estava longe de ser o que ela precisava. Não
levei em conta o fato de que ela tinha acabado de perder a filha. Não muito
tempo depois sonhei com ela. Minha mãe. No sonho ela tinha morrido e era
levada pelas ruas em um barco nos ombros da multidão. O barco estava cheio
de flores e havia música tocando. Quase como música de banda. Trompetes.
Quando o cortejo virou a esquina deu para ver o rosto pálido como uma
máscara entre as flores. E depois mais uma vez quando ele passou por mim na
rua. E então seguiu em frente. Daí acordei.
Sabe sobre o que era o sonho?
Não.
Você está bem?
Estou. Tudo bem.
Nunca mais teve esse sonho.
Não.
Tem sonhos recorrentes?
Tenho um. Acho que às vezes o inconsciente continua trabalhando em
certos sonhos, revisando-os, esperando que a gente finalmente os entenda. Mas
essa não é a parte interessante.
Qual é a parte interessante?
A parte interessante é que ele sabe que a gente não entendeu. Não tem de
fato nada com que continuar. Ele lê a nossa mente? Às vezes só fica ensaiando a
mesma história repetidas vezes. Fica preso. Não tem pra onde ir. O sonho
recorrente que eu tinha também é bastante incomum — inédito, na realidade
—, já que o sonhador não participa dele.
Você sempre está presente nos seus sonhos?
Sempre.
Acha que as pessoas não têm sonhos em que não estejam.
As pessoas se interessam por outras pessoas. Mas o inconsciente não. Ou
apenas no tanto que elas possam nos afetar diretamente. O papel dele é realizar
um trabalho muito específico. Ele nunca dorme. É mais confiável que Deus.
Como era o sonho?
Por que eu deveria lhe contar?
Você não está falando sério.
Talvez sim. Talvez não.
Já contou a alguém?
Não.
Nesse caso seríamos os únicos a conhecer essa história subliminar.
Você ficou tão bonzinho depois que o bebê veio.
Como?
Desculpa. É uma frase de um amigo do meu irmão. Nem sei muito bem o
que quer dizer. Sem problema. O sonho não guarda nenhum segredo que diga
respeito a mim. Ou pelo menos acho que não. É só um sonho. Palavras
fatídicas. Está mais para uma fábula antiga. Ou quem sabe até uma história
antiga. Repetida ad qualquer coisa.
Mas você não participa dele.
Não. Embora eu possa ser a sonhadora das futuras gerações que se ocupa de
efetuar algum tipo de reconstrução ao lado de seus antepassados junto ao fogo.
Acredita em um inconsciente coletivo?
Eu estaria mais inclinada a dar crédito a uma coisa dessas se não tivesse
virado uma propriedade do dr. Jung.
Talvez a gente devesse falar do sonho.
Eu não disse que ia contar.
Você sabe que vai.
Tudo bem. As mulheres param de lavar a roupa e entendem de repente que
tudo que sempre amaram e acalentaram não levou a nada. De uma hora para
outra não têm mais passado nem futuro. Tudo que ensinaram para os filhos é
varrido do mundo sem deixar vestígio e agora elas são viúvas e escravas.
Avistaram um exército a cavalo vindo de lugar nenhum perfilado no alto das
colinas que dominam a aldeia. Os cavaleiros vestem peles e suas montarias
ostentam escudos de couro pintados com geometrias circulares empalidecidas
pela terra. Os homens da aldeia saem das cabanas com machados e lanças mas
em pouco tempo estarão caídos em poças de seu sangue comunal e as mulheres
serão estupradas e a aldeia será incendiada e destruída e elas então marcharão
chorando e sangrando atreladas como gado para uma terra que nunca viram,
nunca imaginaram.
Parece muito elaborado para um sonho.
A gente passa a conhecer melhor os detalhes com a repetição.
Mas o que você acha que significa?
Não sei. Sempre achei que uma das mulheres fosse minha mãe.
Mas você mesma não está nele.
Não.
O que mais?
A não ser, é claro, que eu esteja dentro da minha mãe. Não tinha pensado
nisso. O que mais? Sei lá. Nunca contei esse sonho pra ninguém.
Acha que tem relação com alguma coisa que você leu?
Quando foi a última vez que você sonhou com alguma coisa que leu?
Você não acredita que isso aconteça.
Não. E você?
Não sei. Preciso pensar a respeito. Você se lembra da primeira vez que foi
levada ao médico?
Por ser louca?
É.
Lembro. Me levaram a Knoxville. Eu tinha quatro anos.
Louca aos quatro anos.
Um caso com agravantes. Me levaram ao oftalmologista. Eu tinha
estrabismo.
Então não a levaram ao oftalmologista por ser louca.
Não. Foi o oftalmologista que disse que eu era. Me achavam esquisita, mas
nunca tinha ocorrido a ninguém me levar ao médico por causa disso. Talvez
fosse medo de não me terem de volta. Ou de terem. Enfim, assim começou
minha vida entre os psiquiatras.
O que você lembra desse dia?
Como o quê?
De modo geral.
De modo geral.
É.
Tudo bem. Acordei lá pelas sete, desci, minha avó estava na cozinha, me deu
um copo de suco de laranja e então me disse para subir e acordar minha mãe.
Como você sabia que eram sete horas?
Olhei o relógio da cozinha.
Você já sabia ver as horas.
Já.
Com quatro anos.
É.
Continue.
Eu estava usando meu pijama de cachorrinhos, subi, acordei minha mãe, ela
me perguntou a hora e eu disse, então voltei à cozinha e a vovó Ellen me pôs
no cadeirão.
E depois?
Ela preparou o café da manhã com o rádio ligado e eu fiquei olhando pela
janela. Dava pra ver o carro parado na entrada. Era azul, ela tinha acabado de
comprar. Acho que foi o segundo carro que ela teve. Era inverno, tinha lenha
queimando no fogão, lá fora as árvores estavam desfolhadas, as vacas paradas
perto da cerca na entrada, as árvores às margens do riacho estavam cinzentas e
pareciam mortas. Comi uma tigela de flocos de milho e minha mãe desceu e
tomou um pouco de café e depois me levou pra cima e me vestiu. Pus minha
saia verde de veludo cotelê com suspensórios e um suéter verde e meus sapatos
Poll Parrot com as correias que estalavam. Saímos para Knoxville um pouco
antes das oito.
Certo. Acho que entendi. Por que não me conta o que o médico disse.
Ele disse Oi, como você se chama?
Esse é o optometrista.
Oftalmologista. Achei meio inusitado porque afinal não era como se a gente
estivesse passando na rua e resolveu entrar. Minha mãe tinha ligado e marcado
uma consulta. Então percebi logo de cara que a coisa toda era completamente
falsa mas disse meu nome e perguntei quem ele estava esperando.
O que ele disse?
Não disse nada. Ninguém escuta uma criança de quatro anos. Ele olhou para
a minha mãe e sorriu mas foi um sorrisinho falso. Tudo que eu queria era ir
embora logo dali.
Você achou que ele devia saber quem você era porque sua mãe tinha
marcado uma consulta.
Isso.
E ele achou que tinha alguma coisa errada com você.
Bom. A conversa meio que degringolou. Mas sim. Ele achou que tinha
alguma coisa errada comigo.
Foi a primeira vez que você teve uma percepção disso?
Não. Só a primeira vez que alguém falou sobre o assunto com a minha mãe.
O que ele disse a ela?
Sei lá. Coisa boa não foi.
Sua mãe comentou algo com você?
Falou que eu tinha sido mal-educada com o médico. Logo que a gente
entrou no carro. Ela vivia dizendo que precisava mandar examinar minha
cabeça. Mas isso era meio que só uma expressão familiar. Na verdade queria
dizer apenas que não concordava comigo. Só que daquela vez ela falou que iria
mesmo. Mandar examinar minha cabeça. Ela ficou nervosa.
Porque você tinha sido mal-educada com o médico?
Ela achava que ele realmente sabia do que estava falando. Não sei por quê.
Uma droga de oftalmologista. Mas quando a gente saiu deu pra perceber que
ela estava preocupada. Acho que principalmente com ela mesma. Acho que
imaginou como ficaria sobrecarregada com uma filha que além de cega era
louca.
Você pensou tudo isso?
A maior parte. A gente reflete com a mente mais velha. Mas as ideias
continuam lá. A memória tem substância. Ela não é um nada.
Ela levou você ao psiquiatra.
Um psicólogo, na verdade.
E o que aconteceu?
Nada. Eu tinha quatro anos. Como alguém vai diagnosticar problemas
mentais numa criança de quatro anos?
Foi uma época difícil pra você?
Não. Só pra eles. Eu adorava minha avó. Costumava ficar sentada na
cozinha de manhã enquanto ela fazia biscoitos. Ela abria a massa com um rolo
de mármore e eu ficava ali sentada desenhando e pintando. Adorava o inverno.
O chão coberto de neve e a lenha queimando no fogão.
Onde estava seu pai esse tempo todo?
No Pacífico Sul explodindo coisas.
Você foi diagnosticada como autista por mais de um analista. Antes que a
condição fosse bem compreendida. Bom, antes que fosse compreendida.
Porque é óbvio que continua não sendo.
Sem dúvida. Se você tem um paciente com sintomas que não são bem
compreendidos por que não atribuir a uma condição que também não é
compreendida? O autismo ocorre mais em homens do que em mulheres. Assim
como a intuição matemática de ordem mais elevada. A gente pensa: Qual a
finalidade desse negócio? Não sei. O que está no coração disso? Não sei. Só sei
que gosto de números. Gosto de suas formas, cores, cheiros, sabores. E não
gosto de me fiar pela palavra das pessoas. Meu pai finalmente veio ficar com a
gente nos últimos meses da doença da minha mãe. Ele tinha um estúdio na
cabana atrás da casa. Cortou um quadrado grande na parede e instalou uma
janela para ter vista dos campos e do riacho no fundo. Usava uma porta de
madeira apoiada em cavaletes como mesa e tinha um velho sofá de couro
estofado com pelo de cavalo. Todo ressecado e rachado e os pelos saindo mas
ele cobria com uma manta. Um dia entrei, sentei do lado da mesa e fiquei
olhando o problema em que meu pai estava trabalhando. Já sabia um pouco de
matemática. Bastante, na verdade. Tentei desvendar mas era difícil. Adorei as
equações. Adorei os grandes símbolos de sigma com os códigos para as adições.
Adorei aquela narrativa se desenrolando. Meu pai chegou e me encontrou ali.
Achei que estava encrencada e dei um pulo da cadeira, mas ele pegou minha
mão e me levou de volta, e me fez sentar e repassou o problema comigo. As
explicações dele eram claras. Simples. Mas mais do que isso. Eram cheias de
metáforas. Ele desenhou dois diagramas de Feynman e achei incríveis.
Mapeavam o mundo das partículas subatômicas que ele estava tentando me
explicar. As colisões. As trajetórias ponderadas. Entendi de verdade que as
equações não eram uma suposição da forma cuja vida se confinava aos
símbolos na página que as descreviam mas que elas estavam ali diante dos meus
olhos. Na vida real. Estavam no papel, na tinta, em mim. No universo. Sua
invisibilidade jamais poderia depor contra elas ou sua existência. Sua idade.
Que era a idade da própria realidade. Que em si era e sempre fora invisível. Ele
não largou minha mão hora nenhuma.
Está tudo bem?
Tudo bem. Desculpa.
Quer outro cigarro?
Não. Nem gosto de fumar. Vamos parar.
Certo. Posso pedir uma coisa?
Claro.
Que tal uma lembrança sobre o seu irmão.
Meu irmão.
É.
Lá vem você. Certo. A casa de praia na Carolina do Norte. Quando eu
acordava de manhã e ia pro quarto dele ele já tinha saído e eu preparava uma
garrafa térmica de chá e descia até a praia no escuro e ele estava sentado ali na
areia e a gente tomava chá e ficava esperando o sol. Ficava de óculos escuros
vendo o sol surgir vermelho e pingando do oceano. Na noite anterior a gente
tinha caminhado pela praia e visto a lua e uma lua de mentira montada nos
anéis e conversado sobre o parasselênio e eu disse qualquer coisa no sentido de
que se referir a coisas compostas exclusivamente de luz como problemáticas ou
talvez equivocadamente avistadas ou até equivocadamente sabidas ou de
realidade questionável sempre me parecera algo como uma traição. Ele olhou
para mim e disse traição? E eu falei é. Coisas compostas de luz. Precisando da
nossa proteção. Daí de manhã a gente se sentou na areia e tomou o chá e ficou
vendo o sol nascer.
iv

Bom dia.
Bom dia.
Como vão as coisas? Você parece um pouco sombria.
Sombria.
Está precisando de alguma coisa?
Poderia ser mais específico?
Desculpe. Acho que estou só perguntando se está se sentindo razoavelmente
confortável. Se tem algo que eu possa fazer por você.
Por que a gente não começa logo.
Não estou falando só por educação.
Tudo bem. Que tal uma rede de pingue-pongue?
Você joga pingue-pongue?
Não.
Como regra geral tentamos minimizar qualquer possível oportu­nidade para
os pacientes causarem mal a si mesmos. Então precisamos ser criteriosos. Nada
de cintos, cordas, nada do tipo. Vidro, objetos pon­tiagudos.
Por isso os espelhos de aço inoxidável.
Sim.
Já encontraram muitos pacientes enforcados com uma rede de pingue-
pongue?
Não, mas provavelmente já aconteceu. Em algum lugar. Que tal algo que eu
possa requisitar sem causar muitos problemas.
Sem acordo. A rede ou nada.
Lamento. Sobre o que vamos falar?
Sei lá. Me faz três perguntas depois é a minha vez.
Combinado.
Sério?
Claro.
Quem vai primeiro?
Pode ir.
Tudo bem. Qualquer coisa?
Acho que sim.
Certo. Qual é o nome da sua esposa?
Edwina.
Você está de brincadeira comigo. Ai, droga. Desculpa. Eu não devia ter dito
isso.
Sem problema.
Algum apelido?
Ed.
Você chama sua esposa de Ed?
Isso. Foram três perguntas.
Ah não.
Tudo bem. Mais uma.
Há quanto tempo são casados?
Onze anos. No total. Depois que a gente se divorciou fiquei três anos
solteiro. Daí a gente se casou de novo e continua casado. Quantas perguntas
foram?
Por que se divorciaram?
Você já me perguntou isso.
Eu sei. Você aprontou alguma?
Isso é um pouco pessoal.
Aprontou ou não?
Chega. Minha vez.
Você não respondeu. Costuma sair com sua esposa?
Sim. Claro.
Onde vocês vão?
A gente sai pra jantar. Às vezes encontra amigos. Vai ao cinema. Somos
afiliados da sinfônica. Vamos jogar boliche.
Vocês não jogam boliche.
Não. Agora é minha vez.
Tudo bem. Manda.
Era só uma piada. O boliche.
Boliche não é piada. Adoro boliche. O boliche é a minha vida.
Acho que não. Você tem um diário?
Não.
Nunca escreveu?
Não disse que nunca escrevi.
Mas não ultimamente.
Ultimamente não. Já leu o diário de algum paciente seu?
Não.
Imagino que poderia ser útil.
Você só está querendo saber sobre a minha honestidade. Quantos anos tinha
quando aprendeu a ler?
Quatro.
Sua mãe ensinou?
Não exatamente. Aprendi olhando enquanto ela lia pra mim na hora de
dormir. Quando ela descobriu que eu sabia ler levou um susto. Mas foi culpa
sua, não foi?
O divórcio.
É.
É. Foi.
E daí ela aceitou você de volta. Depois de três anos.
É. Misericordiosamente.
Você implorou de joelhos?
Não. Acho que é a minha vez.
Mas não faltou dedicação, não foi?
Não.
Certo.
Você não tem amigos. Quer dizer que não se interessa pelas ­pes­soas?
Não. Estou sempre me surpreendendo com as pessoas.
E eu, surpreendo você?
Acho que você já me fez essa pergunta. Digamos apenas que não me assusta.
Tem visto alguém ultimamente?
Meu Deus. Visto?
É.
Não vejo pessoas.
Nunca.
Não.
Imagino que isso se deva a uma decisão consciente da sua parte. Posso
perguntar como chegou a ela?
Manda ver. Sou toda sua.
Acho que não.
O cara de quem eu gostava não queria saber de mim. Então foi isso. Não
consegui parar de gostar dele. Foi praticamente o fim da linha pra mim.
O homem misterioso.
É.
Dificilmente seria alguém que eu conheço. É alguém que eu conheço?
Prefiro não dizer.
Mas você deve ter tido pretendentes.
Que coisa antiquada. Pretendentes. Isso inclui os bêbados caipiras tentando
te passar a mão na pista de dança?
Acho que não. Você parece pouco à vontade.
Mais do que o normal?
Acho que sim. O cara de quem você gostava. Quanto tempo faz isso?
Continuo a gostar.
Certo, continua.
Provavelmente a gente devia mudar de assunto.
Tudo bem.
Não despertei tanto interesse quanto você imagina. Tive que aceitar o fato
de que sou um pouco assustadora. Fora o fardo da loucura, claro. Por que
tenho a sensação de que você não vai deixar esse assunto em paz?
Desculpe. Acho que devo dizer que fico surpreso em ouvi-la se descrever
como louca.
Não falei que era assim que me descrevia. Além disso, mesmo se eu insistir
na minha sanidade você precisa levar em conta de quem parte a afirmação. E
claro que não deveria ser nenhuma surpresa descobrir que uma pessoa numa
sala acolchoada tem uma visão de mundo conflitante com a de quem jogou ela
ali.
Você não reivindica igual legitimidade para as duas opiniões.
Tudo bem.
Tudo bem o quê?
Não se isso for um problema pra você.
Sinto que estamos desviando do assunto.
Que seria?
Você.
Bem.
Acho que a sensação de ser um alienígena — diferente de apenas se sentir
alienado — é bastante comum entre pacientes com transtorno mental.
Ou entre alienígenas.
Existe uma imagem clássica em que o assassino se vê de relance num
espelho. Ele avista de repente essa figura toda manchada de sangue com um
machado na mão e percebe que está olhando para si mesmo. A ideia
geralmente é sugerir uma consciência encoberta. Como você interpretaria isso?
O que está sendo revelado?
Um gosto pelo melodrama? Quero perguntar uma coisa.
Certo.
Por que você me deixa te fazer de gato e sapato?
Não sei. Deixo?
Não importa. Seu mundo se sustenta numa coletividade de concordâncias.
Já pensou nisso? Esperamos que a verdade do mundo de algum modo resida na
experiência comum que temos dele. Claro que a história da ciência, da
matemática e até da filosofia é um ­bocado conflitante com essa ideia. Inovação
e descoberta por definição vivem em luta contra o entendimento comum. É
preciso cautela. O que você acha?
Não sei. Nem entendi direito qual é sua opinião.
Não tenho uma opinião. Costumava ter. Agora não tenho mais. Embora
deva dizer — de novo — que o solipsismo sempre me pareceu uma posição
razoavelmente indefensável.
Você voltaria a considerar a medicação? Com certeza há opções que não
foram cogitadas.
Você está dando murro em ponta de faca.
Você nunca articulou de verdade suas objeções.
Para a sua alegria.
Se é o que você diz.
Você não sabe o que são antipsicóticos nem como funcionam. Nem por quê.
No fim sobra apenas o espetáculo da discinesia tardia tateando seu caminho às
cegas pela parede. Os espasmos, a baba, os murmúrios. Claro que para os que
estão nessa jornada rumo ao vazio existem paradas onde as notícias de repente
se tornam absolutamente mais desanimadoras. Um súbito calafrio talvez.
Existem no mundo dados disponíveis apenas para os que atingiram certo nível
de sofrimento. A gente não sabe o que tem lá embaixo a menos que tenha
estado lá embaixo. A alegria, por outro lado, mal ensina a gratidão. Um
silêncio pensativo.
Só um silêncio.
Afora seu vazio geral parece haver um teto para o bem-estar. Meu palpite é
que a felicidade tem limite. Ao passo que para a tristeza parece não haver chão.
Cada novo sofrimento descendo a um estado até então nunca imaginado. Cada
um mais sugestivo de que o pior ainda está por vir.
Pelo que me lembro tínhamos começado num tom mais alegre.
Desculpa.
Quero saber se você conseguiria pôr em palavras o que mais a incomoda.
Apesar de todas as nossas conversas ainda faço pouca ideia da sua vida.
Não esquenta, doutor. Estamos os dois a caminho de um mundo totalmente
hipotético. Seremos mais felizes quando chegarmos lá.
Vou confiar na sua palavra. Você ainda toca violino?
Não.
Tocava de vez em quando?
Esporadicamente.
Faltava tempo para praticar.
Faltava disposição.
A seu ver até que ponto tinha que ser boa?
No mínimo entre os dez melhores.
Do mundo?
É. Do mundo. De onde mais?
Como descobriu que era tão boa em matemática?
A gente simplesmente sabe. Isso nem é uma pergunta.
Você acha que a música tem efeito terapêutico?
Eu deveria me jogar de volta nisso?
Foi só uma pergunta.
Suponho que depende da música.
O poder de amansar as feras selvagens. E seus encantos para amansar, na
verdade.
Peito selvagem.
Como?
A música amansa o peito selvagem.
Tem certeza?
Meu Deus.
Perdão. Sente falta do violino?
Sinto. Muita.
Acha que pode ter uma tendência a se desfazer das coisas que de fato a
confortam na vida?
Isso é psicologia, imagino. Não sei responder a sua pergunta. Como assim?
Se eu tenho? Se a gente tem? Como essa inclinação se compararia ao desejo do
próprio mundo de despojar qualquer uma dessas coisas. Acho que entendi sua
pergunta. Já falamos sobre isso. E talvez tenhamos essa superstição de que se
abrirmos mão das coisas de que gostamos o mundo não vai tirar de nós aquilo
que amamos de verdade. O que é claramente uma besteira. O mundo sabe o
que você ama.
Interessante.
Desisti de ficar me explicando faz muito tempo. O que vou dizer? Que
lamento ser o que sou? Acho que não tive muito a ver com isso. Quanto a sua
pergunta — consentir com meu gosto por vagas generalidades — eu poderia
perfeitamente dizer que o que cheira a enigma em geral não passa de tese mal-
apresentada. Coisa que acho que já sugeri antes. Na verdade nada mais é que
pintar um quadro um tanto pobre de Wittgenstein. Não sei. Talvez seja melhor
falarmos de outra coisa.
Acho que gosto da ideia.
Lá vem.
Só estou provocando. Quem é a srta. Vivian?
Uma idosa. Magra. Excêntrica. Se vestia de um jeito espalhafatoso e tinha a
cara sempre coberta por camadas e camadas de maquiagem. Uma estola de
pelo surrada. Olhava para você através de um pequeno binóculo e tinha uma
cigarreira de marfim.
Você está falando dela no passado.
Faz tempo que não a vejo.
Ela era um dos números que o Kid apresentava?
Não.
Vocês conversavam?
Claro. A gente sentava pra bater papo. Ela era muito infeliz. A maquiagem
vivia borrada de tanto que chorava. Ou escavada, no caso dela.
Infeliz por quê?
Por causa dos bebês. Costumava chorar por causa dos bebês.
Bebês?
É.
Que bebês?
Sei lá. Todos os bebês, acho.
E por que isso a interessava particularmente?
Porque chorei sem parar nos meus dois primeiros anos de vida.
Motivo suficiente, imagino. Sabe por que ela chorava pelos bebês?
Ela não me disse. Tirando o fato de que eles eram infelizes. Tem certeza de
que quer entrar nesse assunto?
Você é quem sabe. Tenho. Quero.
Ela sumiu por um bom tempo. E fiquei surpresa quando descobri que sentia
falta dela. Sonhei com ela. Achei que o fato de sentir falta e querer conversar
com ela a traria de volta. Mas não trouxe. Com o que você sonhou?
Como?
Eu só estava fazendo sua próxima pergunta.
Tudo bem. Com o que você sonhou?
Sonhei com crianças chorando. Quando acordei o choro continuava. Só que
um pouco mais distante. Acho que não tinha parado. É só que eu não escutava
mais. Nunca tinha convivido muito com bebês. Mas comecei a me perguntar
por que choravam o tempo todo.
Acho que eles choram por motivos diferentes. Não é? Porque estão
molhados, ou com fome.
Pra mim não podia ser só isso. Um animal às vezes choraminga se sente
fome ou frio. Mas não berra. É má ideia. Quanto mais barulho fizer maior a
probabilidade de ser comido. Se não há como escapar é melhor ficar em
silêncio. Se os pássaros não pudessem voar não cantariam. Quando você é
indefeso guarda suas opiniões pra si mesmo.
Isso parece um pouco metafórico.
É só biologia.
Tudo bem.
O assustador era a angústia naqueles choros. Comecei a prestar atenção.
Sempre havia bebês no terminal rodoviário e eles estavam sempre chorando. E
não eram lamentos moderados. Eu não conseguia entender como o mínimo
desconforto podia assumir a forma de uma agonia. Nenhuma outra criatura era
tão sensível. Quanto mais pensava a respeito mais claro ficava para mim que
era raiva o que eu escutava. E o mais extraordinário era que ninguém parecia
achar isso extraordinário. A não ser a srta. Vivian. Claro que alguém poderia
dizer que por mais afável, bondosa ou preocupada que pudesse ser ainda assim
ela continuava sendo uma velha doida. Com uma realidade problemática.
Então a levei pra casa comigo. Acho que nunca discutimos isso de verdade. Ela
simplesmente começava a choramingar e a abanar a cabeça. Pensei que se tinha
me trazido toda essa bagagem devia estar esperando que eu fizesse algo a
respeito mas a coisa começou a ficar mais complicada. Pensei sobre isso. A raiva
das crianças parecia inexplicável a não ser como o rompimento de uma aliança
profunda e inata de como o mundo devia ser e não era. Compreendi que sua
crua exposição ao mundo era o mundo.
Não acha isso tudo um pouco fantasioso?
Acho.
Como uma criança saberia como o mundo deve ser?
A criança tem que nascer assim. Um senso de justiça é comum ao mundo.
Certamente a todos os mamíferos. Um cachorro sabe per­feitamente bem o que
é justo e o que não é. Não aprendeu. Veio com ele. Quer que fique mais
fantasioso?
Já que você começou.
Mais fantasiosa seria a compreensão de que a ideia de justiça e a ideia da
alma humana são duas formas de um mesmo pensamento.
Você não acabou de ter essa ideia.
Não.
E quanto aos animais?
Não estão berrando. Claro que o fantasioso em si pode ser um código para a
demência. Enfim, isso levou quase diretamente à questão seguinte.
Que é?
Com que idade na vida da criança a raiva vira tristeza?
Sei lá. Não creio que Piaget tenha tratado da questão. Ou do porquê.
Acho que sei por quê. A injustiça que motiva o desespero é irremediável. E a
raiva está reservada apenas ao que acreditamos que pode ser consertado. Todo o
resto é tristeza. Chega uma hora em que elas percebem isso.
A meu ver um senso inato de justiça seria uma ideia difícil de vender. Talvez
essas crianças adquiram esse senso ao nascer.
Elas não têm muito mais que isso. Um medo de cair. De ruídos altos. Uma
ânsia pelo seio. Todo o resto é potencial. O esquema existe mas nada
aconteceu. Coisas inatas e bem formadas são raras. E primitivas. E necessárias.
Quando ouvimos uma criança chorosa dizer que algo não é justo sempre
estamos ouvindo a verdade.
E a srta… como é mesmo? Vivian?
Isso. Vivian.
Srta. Vivian. Foi enviada pra te contar isso.
Não sei. Sempre desconfiei que isso era só uma coisa que eu tinha que
entender antes que a gente pudesse passar para a próxima questão.
Qual é a próxima questão?
Não é tão fácil assim. Não pretendo ter um bom domínio dela. Se você
dissesse que o mundo em si contém o antídoto para suas próprias desgraças eu
diria que não está inteiramente equivocado. Mas na base disso está a ideia de
que há uma ordem no mundo que não se sustenta na infindável problemática
de abordar sua iteração mais recente.
Não tenho certeza se entendi. Parece um pouco platônico.
Sei. Mas a sugestão não é que exista uma realidade da qual a percepção seja
apenas uma sombra, e sim que existe uma realidade suficientemente durável
para sustentar sua própria experimentação infindável.
Você chegou aqui com uma escova de dentes. Por quê? Bom. Sem falar no
dinheiro, claro.
Não sei. Minha vida sempre foi um bocado austera. O Bobby cos­tumava me
levar pra fazer compras e depois as roupas nunca mais saíam do armário.
Imagino que não deva ter sido nada fácil para mim largar o Amati.
Você o largou?
Sei lá. Ainda queria tocar. Isso nunca some. A primeira vez que ouvi Bach
vivi uma experiência fora do corpo. Devia ter uns dez anos. Lembro de me ver
sentada no sofá da sala. Escutando. Nem achei esquisito.
Você teve mais alguma experiência fora do corpo?
Não com a música. Mas aquela vez me transformou. Foi como girar uma
chave. Foi uma coisa física. Nunca mais fui a mesma.
Se não com a música então com o quê?
Um dia fui picada por vespas, corri para a cozinha e vi minha avó Ellen
entrar e se curvar sobre mim. Eu estava deitada no chão e quando olhava para
baixo podia me ver ali estirada. Fiquei pensando se ia morrer, mas muito
vagamente. Vovó Ellen pôs um pouco de gelo embrulhado numa toalha no
meu rosto e depois de um tempo sentei.
Alguém já disse que a matéria-prima da arte é a dor. Com a música isso é
verdade?
Não sei. Nunca compus. Mas acho que deve ser.
E quanto à matemática?
Matemática é só trabalho e suor. Quem dera fosse romântico. Não é. Em
seus piores momentos tem sugestões audíveis. É duro de acompanhar. Você
não se atreve a dormir e talvez já esteja acordada há dois dias mas azar o seu.
Você se pega tomando uma decisão e descobrindo mais duas à espera e depois
quatro e mais oito. Precisa se obrigar a parar e voltar. Começar do zero. Não é a
beleza que você procura, é a simplicidade. A beleza vem mais tarde. Depois que
você virou uma pilha de nervos.
Vale a pena?
Nada no mundo se compara.
Na sua opinião que dom é indispensável?
A fé.
Parece uma opinião um tanto animada da sua parte.
Bem. Você me pegou.
Você acha que deve ser diferente da música. A matemática.
As regras da música que guiam um compositor como Bach… Tudo bem.
Nenhum compositor é como Bach. Bach é único. Mas ignorando isso por um
instante essas regras podem ser aprendidas por um leigo. Estão ali para ser
descobertas. Ou não. Estão ali mesmo que a primeira nota musical jamais
tenha sido escrita. Isso não é verdade?
Para mim, parece música platônica.
Pois é. No mínimo tão ruim quanto. Schopenhauer achava que se o universo
sumisse só a música permaneceria. As regras são a música. Sem as regras sobra
apenas ruído. Escutamos uma nota errada e fazemos careta. Sorrimos,
choramos, marchamos para a guerra. Existe alguma explicação pra isso? Como
saber quando tem gente dançando? E se estiverem dançando fora do ritmo da
música?
Não sei.
Não. Mas esse conjunto de regras — acho que eu chamaria de leis, as leis da
música — é autocontido e completo. Elas são conhecidas e nunca haverá uma
nova. Isso é verdade na matemática? Existe algo como uma grande teoria
unificada da matemática? A segunda tese de Hilbert? O sonho de Cantor?
Parece mais do que improvável. Langlands ou não. E contudo não deve haver
pelo menos uma descrição da matemática? Tanto do que é como do que deve
vir a ser? Eu queria fazer matemática. Mas também queria entender a
matemática. E jamais conseguiria. Não fui capaz sequer de formular a
pergunta.
Fico surpreso em ouvir que entender a matemática estava além da sua
capacidade. Isso é algo que preocupa a maioria dos matemáticos? Ou eles
simplesmente estão mergulhados nos cálculos?
Acho que para a maioria é uma preocupação passageira. Quando muito.
Você disse que a matemática era basicamente trabalho duro. Mas ainda não
tenho certeza de como você lida com ela.
Certo. A primeira coisa a fazer é tirar os sapatos e as meias. Para ter um
acesso paralelo à base dez.
Como sabe que não vou acreditar em você?
Como sabe que não deveria? A questão central não é como você faz
matemática mas como o inconsciente faz. Como acontece de ele ser melhor
nesse negócio que a gente? Você trabalha num problema e esquece por um
tempo. Mas o problema não vai embora. Reaparece no almoço. Ou quando
você está no banho. O inconsciente diz: Dê uma olhada nisso. O que acha?
Daí você se pergunta por que a água está fria. Ou a sopa. Isso é fazer
matemática? Acredito que sim. Como acontece? Não sabemos. Fiz essa
pergunta para excelentes matemáticos. Como o inconsciente faz matemática?
Para os que tinham pensado a respeito e para os que não tinham pensado. De
maneira geral eles pareciam achar pouco provável que o inconsciente lidasse
com ela da mesma maneira que nós. O que me surpreendeu foi o descaso com
que receberam a notícia. Como se a própria natureza da matemática não tivesse
acabado de ser confrontada. Alguns pensavam que se o inconsciente tivesse
uma maneira melhor de fazer matemática com certeza nos diria. Bom, talvez.
Ou quem sabe ele não acha que somos suficientemente inteligentes para
compreendê-la.
Não sei se entendo muito bem como isso iria funcionar.
Nem você nem ninguém. Às vezes a gente tem a clara sensação de que fazer
matemática consiste sobretudo em simplesmente alimentar a subestação com
dados e torcer pelo melhor. Nem sei direito se é tão sensato assim memorizar as
coisas. O que é registrado se torna fixo. De um modo que as maquinações do
inconsciente aparentemente não ficariam. Não gosto de pôr coisas no papel.
Isso é bom? Não sei. Grothendieck escreve tudo. Witten não escreve nada. Mas
acho que para a maioria das pessoas deixar de pôr as coisas no papel significa
permitir que permaneçam livres para buscar novas analogias. Elas fazem o que
têm de fazer e voltam de tempos em tempos para contar. Uma afirmação — ou
equação por escrito — é como uma placa de sinalização. Uma parada no
caminho. Diz onde você está e indica um novo ponto de partida. Dirac
desenha. Não acho que por acreditar na existência de representações gráficas de
entidades pequenas demais para subtenderem uma partícula de luz, mas sua
formação em engenharia não lhe deixa outra escolha. Coisas esquisitas são
úteis. Pessoas boas com o ábaco conseguem calcular perfeitamente com um
ábaco imaginário.
Isso é verdade?
Não. Estou inventando. Meu Deus.
Desculpe. Acho que nunca ouvi uma descrição do inconsciente que lhe
concedesse esse tipo de autonomia.
Bom. Ele está isolado há um bom tempo. Claro que não conta com outro
acesso ao mundo exceto seu próprio sensório. Do contrário apenas trabalharia
no escuro. Como seu fígado. Por motivos históricos ele reluta em falar com
você. Prefere o drama, a metáfora, as imagens. Mas o compreende
perfeitamente. E não defende outra causa que não a sua.
A gente tem uma relação de trabalho com o inconsciente? Esse arranjo é
recíproco?
Não. Isso seria forçar um pouco a barra.
Somos livres para ignorá-lo?
Sem dúvida. Se você preferir. Chame isso de passar os controles para o modo
manual. Claro que nem sempre é uma boa ideia.
Você já falou com outros terapeutas sobre essas ideias?
Não muito. Eles se entediam fácil.
O que eles diziam? Quando não estavam muito entediados.
Nada. Anotavam o que eu falava. Ou escreviam qualquer coisa. Ou então eu
mudava de assunto.
Como agora.
Não. Continuamos nos entendendo.
Presumo que suas reservas em relação aos médicos de almas venham de
longa data.
É uma afirmação justa.
Qual é a sua maior queixa?
Não sei. Talvez a falta de imaginação. A confusão sobre as categorias em que
tendem a separar seus pacientes. Como se nomear e curar fossem a mesma
coisa. O modo como ignoram a total falta de evidência para a eficácia mínima
de seus tratamentos. Fora isso tudo bem.
Fico aliviado em saber.
Enfim, é uma bela industriazinha essa que vocês criaram. O objeto em
questão pelo visto seria a realidade e isso em si é bem engraçado. Mesmo assim
vocês aprontam ao menos um pouco. Se conseguirem manter os pacientes
vestidos, alimentados e fora da rua já está muito bom.
O Kid. Ele tenta te influenciar? Manda você fazer coisas? Já perguntei isso
antes mas não ficou claro pra mim.
Essa eu vou ficar devendo.
Como?
Preciso pensar em outra resposta. Certamente ele me aconselhava sobre o
que eu devia fazer. De tempos em tempos. Quanto a me influenciar, por que
outra razão estaria ali?
Você acha que uma voz pode impelir uma pessoa a cometer suicídio?
Você desconfia que o Kid estivesse levando esta que vos fala ao limite?
Foi só uma pergunta.
Se você tem alucinações auditivas vai ter alguma relação definível com a voz.
A maioria dos suicidas não precisa de uma voz. O que deveria fazer a pessoa
parar pra pensar é o fato de que o suicídio aumenta proporcionalmente à
inteligência no reino animal. Deveria se perguntar se isso não é verdadeiro
tanto para os indivíduos como para as espécies. Eu me pergunto.
Acha que os suicidas têm alguma coisa em comum? Uma forma específica de
pensar?
Acho. Não gostam daqui.
Bem.
Só estou sendo besta. Meu humor hoje não anda dos melhores. Certamente
você percebeu.
Quer parar?
Não precisa.
Tudo bem.
Imagino que se o mundo é um constructo seu discuti-lo em ter­mos da
própria autonomia se torna um negócio incerto. É uma percepção, e como tal
não sei muito bem o que significaria para ele ter vida própria. Eu diria que não
tem. Ele tem a sua vida. E depois não tem.
Você já falou sobre isso antes.
Imagino que sim.
Com outros psicoterapeutas.
É.
Qual foi a reação deles?
Nenhuma.
E o que você fazia?
Sei lá. Caía na risada às vezes.
Mas falava essas coisas a sério.
Falava.
Mas então o que eles faziam?
Você sabe o que eles faziam.
Escreviam.
Isso.
O que eles escreviam?
Como vou saber? Paciente possivelmente hebefrênico. Enfim, tudo isso
virou a menor das minhas preocupações. Eu não conseguia levar nenhum deles
a sério.
Com o que estava preocupada?
Preocupações maiores.
Nunca sei até onde levar a sério esses seus comentários.
Eu sei.
Quando você estava tomando antipsicóticos as visitações pararam.
As visitações.
É.
Falando assim parece uma experiência religiosa.
Perdão.
Que um medicamento possa reestruturar o mundo em algo como uma
realidade objetiva é uma alegação com tão pouca validade quanto a realidade
objetiva em si. Acho que o que disse na época foi que tenho tantos motivos
para depositar minha confiança num estado mental medicado quanto num
sóbrio.
Então não estaria disposta a tentar outra medicação.
Você já me perguntou isso.
Tudo bem. Se alguém entrasse no seu quarto enquanto o Kid estivesse lá,
conseguiria vê-lo?
Isso também. Mas provavelmente não.
Mas não decididamente não.
Não sei.
Se a pessoa estivesse drogada com o medicamento da realidade como o resto
de nós imagino que não.
Imagino que não.
Quer fazer uma pausa?
Claro. Que tal um cigarro?
Por que não.
Você não anda com eles.
Não.
Deixa na gaveta de baixo. Pra ninguém levar?
Funcionou até agora.
Obrigada. Trouxe o cinzeiro?
Trouxe. Pode ficar com o maço se quiser.
Não precisa. Fumo pouco.
Acha relaxante?
Não sei. Talvez transgressivo.
Sério?
Claro.
Que idade você tinha quando fumou seu primeiro cigarro?
Três anos.
Isso não é verdade.
Não. Mas não foi muito mais velha que isso. Roubei um cigarro do maço do
meu tio em cima da mesinha da sala, peguei um fósforo na cozinha, fui até a
cabana atrás da casa e acendi. Devia ter seis anos.
Passou mal?
Lembro que minha cabeça ficou girando. Mas pensei que se os adultos
faziam aquilo devia ter um motivo.
Imagino que essa tenha sido uma opinião com vida útil limitada.
Acho que a maioria das crianças não considera seriamente o fato de que um
dia serão adultas. E que é desse jeito que vão ficar.
E você?
Eu considerava.
E?
Não vi saída para isso.
Quando pensou pela primeira vez no suicídio como uma opção?
Seriamente?
É.
Acho que nem sei muito bem o que isso quer dizer. Quando eu era menor
— dez, onze anos — costumava ter uma espécie de sonho acordado que achava
assustador. Daí percebi que não tinha nada de vigília nem de sonho. Era outra
coisa. E eu não tinha motivo nenhum para acreditar que o que via não existia e
que se aquele reino era ignorado de nós isso não fazia dele menos mas mais
assustador.
Como era o sonho? Ou a visão ou sei lá o quê.
Eu vi como que por um olho mágico esse mundo com sentinelas postadas
junto a um portão e sabia que além do portão havia uma coisa terrível e com
poder sobre mim.
Uma coisa terrível.
É. Um ser. Uma presença. E que a busca por abrigo e por uma aliança entre
nós tinha como objetivo simplesmente iludir essa coisa ominosa da qual
vivíamos com um medo infinito e sobre a qual no entanto nada sabíamos.
Quantos anos você tinha?
Dez. Acho que dez.
Voltou a ter essa visão?
Não. Não tinha mais nada pra ver. Os guardas no portão me viram e
gesticularam entre si, tudo ficou escuro e nunca mais voltei a ver aquilo.
Chamei de Arcatron.
A presença além do portão.
A presença além do portão.
E ficou oculta da vista.
Isso.
Mas nada mudou.
Nada mudou. Eu queria que fosse um sonho e pudesse acordar. Queria
poder esquecer mas não consigo. Queria ser quem fui antes mas jamais serei.
O que mais?
Só isso. Todo mundo sabe que o suicídio vive à espreita. Não muitos optam
por ele. Nietzsche diz que ele pode fazer o sujeito passar por um bocado de
noites ruins. Só a ideia. Mas o ato é para poucos. As pessoas são muito
apegadas à vida.
Mas nem todo mundo.
Não.
Deixa eu tentar uma tática diferente.
Cuidado com a retranca.
Você alguma vez teve a sensação de que o Kid e seus companheiros eram
designados a você?
Designados.
É.
Por quem?
Sei lá. Talvez isso esteja ligado de alguma forma à questão de terem ou não
outros clientes.
Talvez tenhamos que perguntar aos clientes. Publicar um anúncio nos
classificados.
Talvez me ocorra apenas que uma figura tão bem delineada como é sua
descrição do Kid poderia vir equipada com algum tipo de portfólio. Continuo
sem fazer ideia da sua opinião sobre ele. O cérebro deve ter que gastar um
bocado de energia para elaborar um constructo desses. Sem falar em mantê-lo
constantemente ao longo dos anos. O que a seu ver valeria tamanho gasto?
Não sei. É complicado, hein?
Bom. Algo por aí.
Pra gente ter essa conversa — qualquer conversa, imagino — tenho que
fazer uma série de concessões não só ao seu ponto de vista como também à
forma real do mundo observada do seu ponto nele. Consigo fazer isso. O
problema é que pra você nunca é uma questão de ponto de vista. Você nunca
fica preocupado de se pegar discutindo coisas muito curiosas de um modo
razoavelmente normal. Talvez isso se deva apenas à ingenuidade que traz para a
discussão. Você poderia dizer: Bem, de que outro modo você discutiria? Mas
quando o assunto são quimeras já não estamos pisando em um terreno um
pouco instável? Desde o início pensei que o Kid estava lá não para oferecer
alguma coisa mas para manter alguma coisa a distância. E nesse meio-tempo o
negócio todo é classificado sob a rubrica de uma realidade única que em si
permanece indisponível. Acordo no meu quarto à noite e fico deitada
escutando o silêncio. Você pergunta onde eles estão. Não sei onde estão. Mas
não estão em lugar nenhum. Assim como o nada o lugar nenhum requer para
sua afirmação uma testemunha que por sua própria definição não pode
fornecer. Você relutaria em conceder vontade própria a tais seres mas se eles
não fossem dotados de algo como autonomia em que sentido poderíamos dizer
que existem? Não está em meu poder nem conjurá-los nem mandá-los às favas.
Não falo por eles nem cuido de sua higiene ou guarda-roupa. Eu disse que
eram indistinguíveis de seres vivos, mas a verdade é que a realidade deles é no
mínimo mais conspícua. Não só a do Kid como a de todos eles. Seus
movimentos, sua fala, a cor e as dobras de suas roupas. De onírico eles não têm
nada. Isso tudo não ajuda muito, né? Bom, ninguém dá ouvidos a lunáticos. Só
quando dizem coisas engraçadas.
Acha que não escuto você?
Sua lunática prototípica. Você já me perguntou isso antes.
E o que você respondeu?
Deixa eu apagar isso.
Aqui.
Obrigada. Acho que está indo bem. Respondendo sua pergunta.
Que coisa é essa que ele mantém a distância?
O Kid?
O Kid.
Acho que não existe uma resposta simples pra isso. Se o mundo em si é algo
horrível não pode ser consertado por nada e a única coisa de que você poderia
ser protegido seria da sua contemplação.
Como isso seria de alguma ajuda? Não entendi.
Lamento. Mas é realmente tudo que tenho.
Você acorda e sabe que eles estão em algum lugar. Os seres. Mas sua
explicação parece um pouco filosófica. Se for mesmo uma explicação.
Eu sei. Alguém poderia simplesmente perguntar o que quimeras fazem
quando estão de folga.
É. Poderia. Berkeley continua a fazer parte da sua vida?
Tudo na minha vida é parte da minha vida. Esquecer coisas é um luxo de
que não disponho. Eu provavelmente tinha oito ou nove anos quando me dei
conta de que as coisas iam embora. Quando as pessoas diziam que não se
lembravam eu achava que isso queria dizer apenas que não queriam falar a
respeito. No lugar onde vivo as coisas não vão embora. Praticamente tudo que
já aconteceu continua ali.
Não é só uma questão de grau? Somos todos praticamente uma colagem de
memórias.
Eu sei. É um negócio incerto. Acho que confio na minha lembrança dos
eventos em grande parte devido às evidências que tenho da minha capacidade
de memorização. São todos o mesmo evento? Os versos de um poema não têm
nenhuma outra substância, mas os eventos históricos — incluindo sua história
pessoal — não têm substância alguma. A materialidade deles evaporou sem
deixar rastro. Pela minha experiência pessoas de memória fraca estão tão
propensas a estar certas quanto qualquer um.
Seu mundo deve estar um pouco lotado a essa altura.
Está. Nem tudo é bem-vindo. É preciso tomar cuidado com o que você
deixa entrar. Mas eu não mudaria nada. Nunca vou escapar de Platão. Ou
Kant. Wittgenstein vejo mais como um contemporâneo. Um colega da
faculdade. Me apaixonei por Husserl. Por ser um matemático confiava nele.
Quando era professor em Freiburg ele acolheu um jovem aluno chamado
Martin Heidegger e foi seu professor e mentor, daí os nazistas vieram e
avisaram que era para mandar Husserl embora porque ele era judeu, e
Heidegger disse tudo bem, nada mais justo. Então Husserl limpou sua mesa,
foi para casa, sentou e chorou, e quando Heidegger morreu assumiu sua
cátedra. De modo que imagino que a pergunta que nos cabe é: se a decência
humana não representa algo como a base da investigação filosófica, então para
que serve? Wittgenstein viveu toda a vida em agonia com o estado de sua alma.
A questão parece nunca ter ocorrido a Heidegger. Como foi que me tornei a
psicoterapeuta?
Não sei. Você teria sido uma das boas.
Provavelmente não. Acho que diria às pessoas que não estava a fim de ouvir
sobre suas vidas entediantes e que deveríamos passar direto para os sonhos.
A gente faz isso?
Passar direto para os sonhos?
Não sei.
Será que deveríamos ter falado mais sobre sonhos?
Ainda não terminamos.
Imagino que não. Mas ela é uma vaca astuciosa. De cada duas palavras que
diz uma certamente é mentira. Qual a ligação linguística entre devious
[malicioso] e deviant [aberrante]? Que horas é o almoço?
Meio-dia, acho. Deixa eu perguntar uma coisa. Se você era rejeitada por esse
cara por que não podia simplesmente seguir com sua vida? Você tinha o quê?
Doze anos?
É. Uma vagabunda de doze anos.
Não parece muito provável.
Só estou dizendo que já sentia tesão.
Era sexualmente ativa?
Não. Claro que não. Mas havia alguma coisa em mim mesma que eu não
tinha aceitado. Às vezes é preciso uma experiência um pouco desorientadora
para arrancar uma pessoa da sonolência.
Presumo que tal experiência tenha ocorrido.
Ocorreu.
Você estaria disposta a conversar sobre isso?
Vai parecer uma bobagem.
Tudo bem.
Aconteceu no corredor da escola entre uma aula e outra.
No ensino médio.
É. Teve esse menino do último ano que me parou e pediu pra eu virar de
costas. Era capitão do time de basquete e considerado o cara mais descolado da
escola. Ele tinha um papel e uma caneta na mão, fez um movimento giratório
com o dedo e disse: Me empresta suas costas. Junto com ele tinha uma garota
olhando e eu virei e ele pôs o papel nas minhas costas e escreveu alguma coisa.
Não sei o quê. Vai ver que só autografou. Não sei. E talvez ele soubesse o que
estava fazendo. Quer dizer, ele podia muito bem ter usado a parede. Ou uma
porta de armário. Mas eu me virei e ele escreveu nas minhas costas e eu fechei
os olhos. Foi incrivelmente sensual. Pensei no começo que fosse só uma
sensação de calafrio como quando os dedos de alguém sobem pelas suas costas.
Mas era mais que isso. Senti que ele estava escrevendo alguma coisa para mim.
Percebi que a garota estava me olhando. Ela ficou curiosa de repente. Devia ter
uns dezesseis anos. Quando ele terminou disse obrigado e abri os olhos e os
dois tinham ido embora pelo corredor.
E isso foi tudo?
Isso foi tudo. Sim.
Não tenho certeza do que você está me contando.
Eu sei.
Você disse que foi sensual.
Disse.
Foi sexual?
Foi. Muito.
Mas o que você percebeu?
Percebi que estava irremediavelmente apaixonada e que já fazia algum
tempo. Que minha vida tinha se resolvido. Quando eu não estava olhando, por
assim dizer. Nada muito incomum.
E foi isso.
Foi isso.
Você tinha doze anos.
É.
Mas não vai me contar quem era.
Não.
Como sabia que era amor? Me perdoe o ceticismo.
Como não? Eu só me sentia em paz na companhia dele. Se é que paz é a
palavra. Eu sabia que ia amá-lo para sempre. Apesar das leis do Céu. E que
jamais amaria outro.
E no fim foi isso mesmo.
É. Foi.
Mas ele não amava você.
Me amava demais.
Bem. Não entendo.
Eu sei.
Deve ter sido a diferença de idade. É a única coisa em que consigo pensar.
Nunca vi isso como um problema. Achei que a gente podia esperar um ano
se isso deixasse ele mais à vontade. Ou até dois.
Mas isso não foi o suficiente para mantê-lo fora da prisão.
No verão seguinte a gente se viu bastante. E no outro verão também.
Você tinha treze anos.
Nessa época estava com catorze. Achei que se me oferecesse de corpo e alma
ele me aceitaria sem reservas. Mas não aceitou.
Não.
Então para onde ir a partir daí? O que desejaria para si mesmo?
Não acredito que houvesse algo como uma segunda opção.
Não, a menos que você esteja sugerindo a morte.
Não estou.
Sei que você reluta em admitir que esse caso em especial possa ser difícil de
descartar como uma paixão juvenil. Sempre demandei privilégios e isenções
especiais. Certas coisas não consegui simplesmente porque não consegui
encontrar alguém a quem explicar o que eram. Mas uma privação que exige
que você descarte seu passado ou seu futuro não é só difícil. Então eu
pergunto: por onde recomeçar? Conforme sua sugestão. Ou como recomeçar.
Ou, indo mais diretamente ao ponto, por quê?
O fato de a vasta maioria das pessoas encontrar maneiras de lidar com as
próprias decepções não leva você a parar pra pensar?
Não.
Essa seria uma das isenções demandadas por você.
Sim.
A conversa está começando a enveredar por um caminho um pouco
esquisito.
Eu sei. Um anseio frustrado deixa um legado com o qual a satisfação desse
anseio pode apenas sonhar.
As leis do Céu. Você pode explicar um pouco melhor?
Não.
Tudo bem. Podemos conversar sobre o seu pai? Outra vez.
Se você quiser.
Mas sem todo esse entusiasmo.
Tudo bem. Vá em frente.
Você disse que não responsabilizava seu pai.
Não. Como se minha opinião fizesse diferença. A história vai engolir todos
eles, junto com sua responsabilidade. Mas a bomba é para sempre.
Onde fica Trinity? Em Nevada?
Novo México.
Seu pai trabalhava lá?
Sim. Claro.
Ele falava sobre isso?
Não muito. Li os depoimentos de costume. O grupo do meu pai ficou a dez
quilômetros do ponto zero. Distribuíram para eles uns óculos de proteção
muito escuros. Acho que pareciam óculos de solda. Mas meu pai tinha levado
os dele porque achou que não daria para enxergar muito bem com os óculos
cedidos pelo governo. Imagino que você poderia interpretar isso como uma
metáfora. Mas os óculos só precisavam bloquear a luz ultravioleta. Eles
ouviram a contagem regressiva pelo alto-falante. O pessoal estava bem nervoso.
Uns com medo de que a bomba não funcionasse e outros de que funcionasse.
Lembro de ouvir meu pai dizer que levou as mãos aos óculos para se proteger
do clarão inicial e que pôde ver os ossos dos dedos com os olhos fechados. Não
houve som. Só a luz branca ofuscante. E em seguida a coluna roxo-
avermelhada subindo e desabrochando no icônico cogumelo branco. O
símbolo da era. A coisa toda vagarosamente se erguendo a três mil metros de
altura. A onda de choque causou um vento supersônico que doeu nos ouvidos
por um momento. E no fim, é claro, o som da própria coisa. A detonação
ensurdecedora seguida do lento trovejar, a reverberação subsequente que
avançou através da paisagem em chamas por um mundo que nunca existira
antes deste lado do sol. As criaturas do deserto evaporando sem um pio e os
cientistas assistindo àquilo se duplicar nas lentes negras de seus óculos. E meu
pai assistindo pelas frestas dos dedos como o macaquinho que não quer ver.
Mas se tinha alguma coisa que todo mundo ali sabia é que era tarde demais pra
isso.
O que eles disseram? Os cientistas.
Levantaram da cadeira e disseram Puta Merda.
Não acredito que eles tenham falado isso.
Acho que não falaram nada. Estavam simplesmente atordoados. Um amigo
do meu pai, um físico chamado Bainbridge que era diretor do programa, falou
agora somos todos uns filhos da puta. E dizem que Oppenheimer citou o
Bhagavad Gītā, mas acho que a palavra em sânscrito para Tempo saiu como
Morte ou talvez fosse o contrário. Ou talvez as duas sejam a mesma.
Pensei que a imagem mais marcante da nossa era fosse a foto da Terra vista
do espaço feita pela Nasa. A bela esfera azul girando no vazio.
Uma justaposição interessante, não?
Você não se emociona com essa foto?
Acho assustadora. O vazio não tem o menor interesse na existência contínua
do mundo. Abriga igualmente incontáveis milhões de meteoritos. Alguns
descomunais. Rompendo as trevas a mais de sessenta quilômetros por segundo.
Acho que se houvesse algo com o qual se importar a essa altura ele já teria se
importado. Certa vez um amigo meu disse: Quando desaparecerem todos os
vestígios da nossa existência isso vai ser uma tragédia para quem? Você ouve
essas coisas ou só guarda?
As fitas.
As fitas. É.
Às vezes escuto uma ou outra. Tudo bem por você?
Claro.
Seu pai. Nunca demonstrou remorso? Nem nada do tipo?
Não. Mas um monte de cientistas sim. Estavam arrependidos. Meu pai falou
que eles deviam ter pensado nisso antes.
Teria feito alguma diferença?
Não. Era essa a questão. Nada teria feito a menor diferença. No início houve
um movimento para que os cientistas pudessem votar se a bomba seria ou não
usada mas meu pai achou aquilo ingenuidade pura. Disse que a bomba
pertencia às pessoas que haviam pagado por ela, e certamente não eram os
cientistas. Eles pagaram por nós, falou. Também fomos baratos. Ele mandou
pararem com a choradeira.
Tanto o seu pai como a sua mãe morreram de câncer.
Sim. Não acho que o trabalho no Y-12 fosse particularmente arriscado —
embora minha avó estivesse convencida de que foi o responsável pela morte da
minha mãe. Já o trabalho do meu pai no Pacífico Sul era provavelmente quase
suicídio. Claro que a radiação não era muito bem compreendida na época.
Imagino que alguns encontrem uma moral nisso.
Não você, presumo. Você disse que seu pai morreu numa cabana acima do
lago Tahoe.
Não, disse que ele viveu lá. O lugar era lindo. Dava para andar até uma área
pedregosa e ver o lago uns trinta quilômetros abaixo. Mas não foi lá que ele
morreu. Ele morreu em Juárez no México.
No México.
Isso.
O que ele estava fazendo lá?
Tratamento para o câncer.
Em Juárez?
É. Um extrato de caroço de damasco chamado amigdalina estava sendo
usado em clínicas de países do Terceiro Mundo. Acho que chamavam de
vitamina B-17. Muita gente desesperada aparecia nesses lugares. Inclusive uma
série de celebridades.
Seu pai foi ao México tratar um câncer com um bando de curandeiros.
É.
Isso não parece esquisito?
Claro. Mas ele tinha esgotado todas as possibilidades. Não acredito que
estivesse particularmente esperançoso. Acho que pensou na questão em termos
probabilísticos e não conseguiu eliminar uma probabilidade mínima de cura.
Então foi. O problema é que ele era bem informado demais para depositar
alguma fé de verdade nos poderes curativos do damasco. E a única chance de
aquilo funcionar era se ele tivesse alguma fé.
Como o efeito placebo.
Como o efeito placebo.
Ele morreu no México.
É.
Onde está enterrado?
Em algum lugar lá mesmo. Ele tinha pedido ao meu irmão para ir junto mas
Bobby não quis. Ele viajou sozinho, morreu sozinho e foi enterrado em algum
lugar do México mas não sabemos onde.
Tudo bem com você?
Tudo. Me dá um minuto.

Tudo bem?
Tudo.
Por que seu irmão não quis ir junto?
Porque achava que meu pai parecia ridículo fazendo aquilo.
E você achava que ele devia ter ido?
Achava. E Bobby também. Mas só quando já era tarde demais.
Seu pai era ateu?
Que pergunta esquisita. Você é?
Às vezes. Ele era?
Não sei. Provavelmente. Acho que considerava as crenças de uma pessoa
parte do seu caráter. Não teria achado que acreditar ou não em Deus pudesse
ser uma decisão consciente. Provavelmente a pessoa acreditava ou não. Tenho
certeza de que achava que era jovem demais pra morrer, mas não estou certa de
como alguém que não acredita em Deus lida com a morte.
Isso incluiria você?
Assim você só vai conseguir reações idiossincráticas. De que adianta?
O que vier é lucro.
Se não sabemos o que é a vida — e não sabemos — não entendo muito bem
como caracterizaríamos sua ausência. Acho que pensamos que sabemos onde
estamos mas isso é obviamente absurdo. Morrer é difícil, mas morrer sem saber
onde você estava. Ou por quê. Bom. Enfim, imagino que o que você está
tentando entender é que tipo de mente se dedicaria a explodir o mundo.
O que estou tentando entender é você. Seu irmão sentiu remorso por não
acompanhar seu pai no México.
Remorso é pouco. Meu pai acabou aparecendo pra ele num sonho e aí meu
irmão foi até o México tentar encontrá-lo.
Depois que seu pai já estava morto.
É. Ele foi ver se conseguia descobrir onde tinha sido enterrado.
Podemos mudar de assunto.
Acho só que não estou num bom dia. Tudo bem. Vá em frente.
E ele conseguiu descobrir?
Não.
Quanto tempo ficou no México?
Não sei. Eu não conseguia falar com ele. Quando finalmente o encontrei…
Estava sofrendo muito. Tinha voltado para El Paso. Consegui convencê-lo a ir
a um restaurante comigo mas ele não parava de chorar. Apoiei minha mão no
braço dele e ele a afastou.
Por quê?
É complicado.
Certo.
Ele tinha conseguido encontrar a clínica mas não quiseram contar o que
houve. Acabou entregando todo o dinheiro que tinha a funcio­nários mexicanos
mas a coisa não deu em nada. Ficou semanas por lá. Dormindo num hotel de
três dólares. Não sei quando tinha comido pela última vez. Parecia um
fantasma.
Isso foi em El Paso.
É. Ele estava no Gardner Hotel quando finalmente me ligou. Tinha tido
outro sonho. Só que não chamou de sonho. Contou que nosso pai tinha
aparecido para ele à noite no pé da cama usando a roupa que vestia na hora da
morte e então Bobby perguntou várias vezes onde ele estava mas ele não sabia
dizer. Não sabia onde estava. Meu irmão me contou isso aos soluços pelo
telefone e depois desligou e achei que fosse se matar.
Ele não descobriu onde seu pai estava enterrado.
Não.
Isso tudo foi tão doloroso para você como para o seu irmão?
Mais do que doloroso. Ainda é. Mas eu não tinha me recusado a ajudar meu
pai. Ninguém me pediu nada. Eu estava mais preocupada com o Bobby. Ele
estava péssimo.
Você realmente achou que ele podia se matar.
Achei. Eu não sabia o que ia encontrar quando chegasse lá.
E se ele tivesse se matado?
Não sei. Acho que provavelmente teria me matado o mais rápido possível
para tentar encontrá-lo.
Você não está falando sério.
Acho que estou.
Acredita em vida após a morte?
Não acredito nessa vida.
Não?
Não faço ideia. Me parece extremamente improvável. Mas a pro­babilidade
não é zero.
Nunca conversamos de verdade sobre o que fez você voltar para o Stella
Maris.
Eu não tinha nenhum outro lugar para onde ir.
Acho difícil de acreditar que teria vindo para cá se não estivesse em busca de
algum tipo de ajuda.
Se você acha.
Existem limites para essa conversa, não é? Você não quer pôr em risco seus
passeios pela natureza? Vejo que está achando graça.
Desculpa.
Não, sem problema. Independente das minhas preocupações, manter você
viva precisa ser a prioridade número um.
O que mais?
O Bobby voltou ao México alguma vez?
Não.
Seu pai nunca mais apareceu para ele? Não foi assim que ele disse?
Não, nunca mais.
Já perguntei isso antes, mas você e seu pai eram próximos?
Não. Mas eu o amava. Naquela época e hoje.
Só temos mais alguns minutos. Me conte alguma coisa esquisita sobre você.
Alguma coisa esquisita.
É.
Você está me perguntando o que tenho de esquisito?
É. Algo que eu talvez não saiba. Pode ser uma coisa boba.
Tudo bem.
Então?
Estou pensando.
Certo.
Consigo dizer as horas ao contrário.
Como assim?
Se vejo um relógio no espelho sei que horas são.
Eu também.
Não, não sabe. Tem que parar e pensar.
E você não.
E eu não.
Você praticou essa habilidade.
Acabei de me dar conta dela.
Como foi que se deu conta?
Primeiro só dobrei. Visualmente. Como uma página.
Na sua cabeça. Desculpe.
Daí depois de um tempo não precisei dobrar mais. Dava pra ver e pronto.
O que mais.
O que mais o quê?
Sei lá. O que mais sobre relógios.
No espelho o três e o nove invertem a posição mas o seis e o doze não. É um
problema de criança mas alguns adultos têm dificuldade com isso. Se a gente
joga um punhado de gravetos para o alto e bate uma foto vai ver muito mais
gravetos na horizontal do que na vertical. Por que isso acontece? Eles têm o
mesmo grau de liberdade.
Não sei.
É porque um graveto girando na vertical passa pelo plano horizontal no
meio do caminho. E brevemente se torna parte dele. Duas vezes. Mas a rotação
de um graveto na horizontal não contribui em nada para o plano vertical. Nem
um pouco justo, não é? As imagens numa porta de vidro se fechando giram
mas não se curvam. Óptica. A tendência a ser destro ou canhoto. Quiralidade.
Cor. Perguntas por toda parte.
Por que se dedicou à matemática em vez de à física?
Porque era mais difícil. Talvez. Antes de mais nada porque
independentemente de que outras coisas ela seja a realidade física é finita.
Acho que nunca vi você tão animada.
Bom. Aproveita.
O violino.
Certo.
Você disse que não tinha tempo de praticar.
Provavelmente não acreditava que fosse boa o suficiente. Pra ser honesta. A
certa altura me interessei pela matemática do violino. Me correspondi com
uma mulher de Nova Jersey chamada Carleen Hutchins que estava tentando
mapear a harmonia do instrumento. Ela tinha desmontado não sei quantos
Cremonas raros com um ferro de solda. Estava trabalhando com alguns físicos
na montagem de um equipamento sofisticado para determinar os padrões de
Chladni das placas. Mas as vibrações e frequências eram tão complexas que
resistiam a qualquer análise completa. Achei que era possível produzir modelos
matemáticos desses padrões de frequência.
Fez isso?
Fiz.
O que descobriu?
Carleen tinha registros cuidadosos. O violino mais antigo que existe é um
Amati possivelmente datado de 1564 que está no ­Ashmolean em Oxford. O
instrumento mais antigo que a gente estudou era de 1580 e o mais recente
deve ter sido um violino alemão da década de 1960. Tirando o ângulo do
braço eram iguaizinhos. Nada tinha mudado. Nada.
Isso parece incrível.
É. Mais incrível ainda é não existir um protótipo do violino. Ele
simplesmente surge em toda a sua perfeição de lugar nenhum.
A seu ver o que isso significa? Você deve estar me contando essa história por
uma razão.
É só mais um mistério para acrescentar à lista. Leonardo não tem explicação.
Ou Newton, ou Shakespeare. Nem uma infinidade de outros. Bom. Infinidade
provavelmente não. Mas pelo menos sabemos o nome deles. Mas a não ser que
a gente se disponha a conceder que Deus inventou o violino existe uma figura
que nunca será conhecida. Um sujeito humilde que foi com o filho às florestas
anãs da pequena era do gelo na Itália do século xv, abateu e serrou o bordo,
pôs as tábuas pra secar por sete anos e certo dia pela manhã se acomodou à luz
oblíqua de sua oficina, fez uma breve oração de agradecimento ao Criador e na
posse desse conhecimento perfeito pegou suas ferramentas e pôs mãos à obra.
Dizendo agora começamos.
Perdão. Você tem esse homem em grande estima.
Perdão. É. Em grande estima. Acabou o tempo.
v

Achei que você não vinha.


Demorou mais do que o esperado para me tirarem da contenção.
Você já esteve em contenção antes?
Não. Fora a terapia de choque.
Você nunca se atrasa.
Não. Às vezes só não compareço.
Parece fazer questão disso.
Da pontualidade.
É.
Faço.
Tudo bem com você?
Tudo. Claro.
Você não está preocupada.
Não. De qualquer maneira durmo com a luz acesa. Na maior parte do
tempo.
O que determina isso? A luz acesa.
Imagino que apenas o que tem no caminho.
No sentido de algo vindo?
Sim, nesse sentido.
É uma fantasia recorrente?
Por que seria uma fantasia?
Algo se aproximando no escuro.
É.
E você acha que com a luz acesa está mais segura.
Ou talvez seja mais fácil para eles me encontrarem.
Você não está falando sério.
Provavelmente não.
Mas de fato acredita que existem coisas no escuro querendo fazer mal a você.
Acredito. Você não?
Acho que não.
Bom. As pessoas têm medo do escuro há muito tempo. Em todos os
sentidos. Sempre atribuíram um ímpeto às forças do mal. Então de repente na
nossa época fome, guerra e pestilência são só eventos aleatórios. Isso serve de
consolo pra você?
Eu particularmente não gostaria de viver num mundo dominado pela
superstição. Acho que as coisas melhoraram. Na verdade, acho que melhoraram
bastante.
Graças à ciência.
Não tenho certeza se só à ciência.
Não? Diga uma coisa que faz do mundo hoje um lugar melhor do que em
1900 que não tenha a ver com a ciência.
Preciso pensar um pouco.
Tudo bem. Só estou querendo briga.
Você foi considerada uma potencial suicida da última vez devido a uma
aparente obsessão pela morte.
É o que dizem.
É o que diz o dr. Horowitz. Algum incidente em particular o deixou
alarmado?
Acho que só nervoso. Não tenho certeza do que ele pensou. Não era um
sujeito muito receptivo. Às vezes só ficava sentado me observando.
Como se estivesse tentando compreendê-la?
Sei lá. Talvez tentando me intimidar. Ele nunca entendeu que não tinha
nada para intimidar. Eu simplesmente dizia o que me passava pela cabeça. Na
verdade nem fazia tanta diferença assim o fato de ele estar presente. Ou não. O
terapeuta precisa acreditar que o paciente é o médico. Que ele encerra a
verdade em relação a si mesmo. O que acha disso?
Acho que concordo.
Imagino que eu tenha sido apenas uma experiência frustrante para o dr.
Horowitz. Ele é seu amigo?
Colega. Não o conheço bem. Você não costuma passar muito tempo com as
pessoas.
Com quem, por exemplo?
Sei lá. Qualquer um. Pessoas de quem você gosta. Você andava com seu
irmão?
Sim. O máximo que podia. Acho que sempre soube o que estava por vir.
Bom. As pessoas acham isso às vezes. Depois que o que estava por vir chega.
Por que você acha que sabia?
Sabia e pronto. Não inventei a posteriori.
Mas não quer conversar sobre seu irmão.
Não.
Você se acha honesta com as pessoas?
Quer dizer com você.
Certo. Comigo.
Imagino que tenha suas dúvidas.
Bom. Não estou apurando nenhum fato, só tentando descobrir o que pensa.
Pra mim você é só mais um Horowitz.
Acho que não. Meu maior medo é que se você estivesse com problemas não
seria muito aberta em relação a isso.
É o que o Bobby costumava dizer.
Ele tinha razão?
Tinha.
Você não queria que ele se preocupasse.
Eu não queria que ele se preocupasse.
Fica ofendida com as pessoas que tentam ajudar você.
Fico ofendida quando tentam me consertar.
Acha que isso descreve seu irmão?
Às vezes. Acho que sim. É doloroso.
Acha que ele devia ter te levado junto com ele para a Europa?
De um jeito ou de outro eu fui.
Sei. Mas a pergunta não foi essa.
Sei. Só que essa foi a resposta.
Não quer conversar sobre isso.
Sobre ele.
Eu só queria saber se ele compartilhava do seu pessimismo.
Na verdade não. Ou talvez achasse que tinha o dever de tentar me animar.
Na medida em que a gente era diferente sempre fui mais propensa do que ele
às ruminações metafísicas. A realidade inteira é destituída de senciência? Não
sei. Mas pra ele essa seria uma questão inútil.
Está querendo dizer que o mundo em si pode ser dotado de algo como uma
vontade?
Qualquer coisa nessa linha. E não seria a descoberta mais incrível? Que toda
criatura estúpida cuja existência foi um dia conjurada de modo a se arrastar por
uma paisagem de sofrimento e privação rumo à extinção eterna e derradeira
seja obra dessa vontade?
Mas a resposta, ou a solução, dificilmente viria do que sabemos.
Dificilmente.
Quantos livros você já leu?
Caramba.
Caramba?
Sei lá. Nem tantos.
Mais ou menos.
Dois por dia provavelmente. Em média. Durante uns dez anos. Digamos.
Quanto isso dá? Sete mil e trezentos. É muito? Provavelmente foram mais. Uns
dez mil. Acho que está mais pra dez mil. Às vezes eu lia o dia inteiro. Dezoito,
vinte horas.
Lembra de tudo que leu?
Lembro. Senão pra que ler?
O Kid sabe o que você sabe?
Não. Isso seria meio fácil, não é?
E sobre que tipo de coisas ele falava.
Principalmente bobagens. Intercalando com uns comentários interessantes.
Às vezes. Mas a maior parte você poderia caracterizar como esquizoide.
Aliterações. Rimas. Nada disso refletia minha própria vida interior. Antes que
você me pergunte. Mas era exaustivo ter que aguentar o showzinho
mirabolante que ele apresentava. Para dizer o mínimo. E tenho certeza de que
isso me mudou. Não dá pra tirarem o prumo da sua realidade sem que você
fique um pouco desaprumada também. Quando a ficha caiu era tarde demais
pra fazer algo a respeito. Mas de qualquer maneira sempre foi tarde demais.
Mesmo se houvesse algo a fazer. E não havia.
Mas o que ele dizia? Por exemplo?
Dizia que leite era a bebida predileta de todo notívago sensato. Ou que se
alguma coisa fosse verdade a essa altura todo mundo já saberia. Ou que a gente
não deveria se preocupar com o que os outros pensam de nós porque não
fazem isso com tanta frequência assim. Ou que dificilmente somos criaturas de
luz caso ninguém tenha notado. Ou que a hora mais escura é logo antes da
tempestade. Ou quando você fecha os olhos eu desapareço? E você?
Ele desaparecia?
Desaparecia. Eu também.
Esse é o teor geral do que ele falava?
Se você pegou o teor geral do que ele falava está anos-luz à minha frente. Ele
falava sobre ciência mas em geral entendia tudo errado. Adorava fazer citações,
só que também não acertava uma. Às vezes fazia algum sotaque mas muito
mal. Ou citava passagens de textos que certamente não existiam. Tinha um
livro sobre a sexualidade feminina chamado As úmidas e as raivosas que vivia
mencionando. Tenta dar uma pesquisada. Ele falava sobre seus próximos
números. Que nunca se concretizavam. Um fraseado esdrúxulo.
Números.
É.
Que tipo de números?
Coisas que iria apresentar. Números de vaudeville. Chautauquas. Que nunca
aconteciam, claro. Coisas como As ciganas da Taprobana. Ou A galinhola de
Angola estrelando o Galo Avoado. As atrações a seguir que nunca vinham. Se
eu tocava no assunto ele andava de um lado para o outro gesticulando com as
nadadeiras. Dizia que era querer demais que números sofisticadíssimos como
esses pudessem ser montados num mero estalar de dedos. Tentava estalar os
dedos mas é claro que não tinha e meio que simplesmente abanava as
nadadeiras.
O que mais.
Não muito. Terminava desembestando em algum tipo de palavrório. Seria
ótimo achar que pudesse haver dados reais codificados nessa lenga-lenga mas
fazia anos que eu ouvia aquilo e nem Turing seria capaz de desvendar. Na
verdade teve até um show de menestréis no começo. Quando eu tinha doze
anos. Foi anunciado como o show menstrual. Em homenagem a. Tudo de uma
pobreza indescritível. Na maior parte do tempo eu ficava encolhida na cama
trabalhando em problemas de matemática. Às vezes quando levantava a cabeça
todo mundo tinha sumido menos ele. Que continuava andando pelo quarto.
Olhando os livros na minha estante e sugerindo leituras. Só bobagem, claro.
Algumas coisas engraçadas. Provavelmente não pra ele. Tenho certeza de que
nunca vi o Kid rir de verdade. Só aquela gargalhada fingida que ele fazia. Falei
uma vez que ele estava perdendo tempo. Que eu queria ser uma guerreira. Não
uma criatura do espírito mas da carne. Era uma classicista nata e meus heróis
nunca foram santos, só assassinos. Ele assumia um ar muito sério e então
enveredava por uma diatribe sobre os imensos redutos de bolor no tapete.
Você começou a vê-lo como uma espécie de guardião? Imagino que seja uma
pergunta esquisita.
Acho que no fim comecei a vê-lo como o que tinha sobrado pra mim. Não é
muito tranquilizador, não é? Bom. Não. Não é.
Costuma sonhar com ele?
Você quer saber se a imitação de realidade dele poderia depor contra admiti-
lo no meu sonho?
Algo nessa linha. Imitação de realidade?
Chame do que quiser.
Você tem sonhos perturbadores?
Existem sonhos de outro tipo?
Tem ou não tem?
Tenho. Tenho sonhos perturbadores.
Algo a comentar sobre eles?
Claro. A pequena vagabunda tem comentários sobre tudo. E opiniões, não
se esqueça.
Esse sou eu?
Não. Apenas eu.
Toquei num ponto sensível.
Existem sonhos de outro tipo? Desculpa. É só que se a gente vai conversar
sobre meus sonhos precisa começar tudo de novo. Quem sabe levantar, sair do
consultório e voltar com outra roupa.
O que vai vestir?
Alguma coisa diáfana. Azul-nuvem, acho. E você?
Lembra deles? Dos seus sonhos?
Perfeitamente. Dos que me fazem acordar, claro.
Por que alguns sonhos nos acordam?
Porque acham que já tivemos o suficiente?
Supostamente você está sendo informada de alguma coisa. Mas não do que
fazer a respeito, não é?
Os sonhos nos acordam para nos fazer lembrar. Talvez não haja nada a ser
feito. A questão talvez seja se o terror é uma advertência sobre o mundo ou
sobre nós mesmos. O mundo noturno que faz com que pulemos da cama
ofegantes e suando. Estamos despertando por causa de algo que vimos ou de
algo que somos?
A questão é essa?
Ou talvez a verdadeira questão seja simplesmente por que a mente parece
determinada a nos convencer da realidade de coisas sem realidade alguma.
Você disse em algum momento que o inconsciente reluta em se comunicar
conosco pela linguagem. Por motivos históricos. Entendi direito?
Entendeu.
Gostaria de elaborar um pouco mais?
Acho que não. Os psiquiatras têm dificuldade em lidar sem ro­deios com o
inconsciente. Mas o inconsciente é um sistema puramente biológico, não
mágico. É um sistema biológico porque essa é sua única função. As pessoas não
gostam de falar sobre o inconsciente a menos que haja uma certa dose de
mistificação envolvida. Mas não há nenhuma. O inconsciente é só uma
máquina de operar um animal. O que mais seria? A maior parte das coisas que
fazemos é inconsciente. Atribuir tarefas à mente consciente é um negócio
arriscado. As baleias e os golfinhos precisam cronometrar a respiração para
subir à superfície. Então é claro que simplesmente morreram quando foram
anestesiados para uma cirurgia pela primeira vez. O que deveria ter sido
previsível. O inconsciente evolui junto com a espécie para ir ao encontro de
suas necessidades e a única coisa obscura a seu respeito é que às vezes parece
antecipar essas necessidades. Ele não pode se permitir surpresas. Foi uma das
coisas que incomodaram Darwin. Mas não entra de jeito nenhum na cabeça
dos médicos de almas. São cartesianos até a medula.
Mas como eles dormem?
Os golfinhos.
É.
Muito bem, imagino. Sendo, como são, criaturas sem culpa.
Não. Eu quis dizer…
Adormecem um hemisfério do cérebro de cada vez.
Sério?
Cristo numa crinolina. Como diria o Kid.
Desculpe. Eles não afundam?
Você esqueceu que eles estão acordados pela metade. Ou que metade deles
está acordada. O mais interessante a contemplar é se o cérebro desperto fica
inteirado dos sonhos do cérebro adormecido. Ou se o corpo caloso desliga à
noite. Ou por que o último suspiro de um golfinho agonizante não é um ato
de suicídio. O que vem depois do último, na verdade. O que ele se recusa a
dar.
Que tal voltarmos ao mundo dos despertos.
Sem problema.
Pelo visto nossa aposta no metafísico foi furada.
Provavelmente isso também.
Você acha que a percepção do eu é uma ilusão?
Bom. Acho que como você sabe o consenso entre o pessoal da neurologia é
que sim. Pra mim é uma questão estúpida. Como regra geral, não devemos
presumir que entidades coerentes compostas de uma grande quantidade de
partes díspares tenham suas identidades comprometidas. Sei que isso parece
corresponder a ignorar nossa percepção de nós mesmos como seres únicos. O
“eu”. Só acho que é um modo simplório de ver as coisas. Se fôssemos
construídos com uma consciência contínua de como funcionamos não
funcionaríamos. Você poderia até perguntar: se o eu é de fato uma ilusão, nesse
caso é ilusório para quem? Pensei que a gente fosse deixar a questão da mente
de lado por um tempo.
Você tem toda razão. Desde que idade foi criada pela sua avó? Doze anos?
Isso.
Você e ela estão brigadas?
Não. Claro que não.
Mas tiveram suas diferenças.
Ela não sabia o que fazer comigo. Não foi culpa dela. Eu também não sabia.
Ela achava que iria suspirar aliviada no dia em que eu fosse para a faculdade.
Estava preocupada demais com meus problemas para enxergar os dela. Ela me
levou até o terminal rodoviário em Knoxville. Eu tinha uma mala, quase tudo
livro. Virei na plataforma para dar um abraço nela e ela estava chorando, e me
dei conta de que ela es­ta­va apavorada.
Apavorada.
É.
Por sua causa.
Por minha causa. Isso.
Quantos anos você tinha?
Catorze.
Você deixou a universidade dois anos depois.
É. Eu tinha me formado.
Em dois anos.
Mais os verões. Não foi difícil. Fui aprovada no programa de doutorado mas
peguei minhas coisas e me mudei pra Tucson no Arizona. Trabalhava num bar
à noite e fazia matemática durante o dia.
Quando você dormia?
Dormia umas cinco horas por dia. Quatro.
Não era jovem demais para trabalhar em um bar? Não tinha nem idade para
ir a um bar.
Eu tinha uma carteira de motorista falsificada.
E o Kid, onde estava?
Apareceu depois de um tempo. Meu pequeno dybbuk e seus amigos. Meu
irmão tinha me dado um carro e eu costumava dirigir pelas montanhas para
mergulhar os pés no riacho e trabalhar em problemas de topologia algébrica.
Tinha lido os artigos de Noether e achei fáceis de entender. Poincaré, claro. O
que os grupos de Betti significavam de fato. Os grupos de homologia. Foi
como ela chegou lá. Fora o fato de que conhecia mais álgebra abstrata do que
todo mundo. Eu sabia que para fazer o que ela tinha feito era preciso primeiro
acreditar. Mas aquilo parecia diferente. A intuição é um segredo difícil de
desvendar. O mais legal da topologia é que os problemas em que você está
trabalhando não são sobre outra coisa. Você espera que quando resolvê-los eles
vão te explicar por que você estava perguntando. Você tenta definir o espaço
afim. É mesmo possível esticar uma superfície como a gente bem entender? E
se ela for esticada até o infinito? A largura estreitaria infinitamente. Podemos
nos aproximar eternamente dos limites do infinitesimal? A matemática talvez
diga que sim mas você não acredita. A extensão infinita já sabemos como é,
mas a contração infinita parece oferecer um conjunto diferente de problemas.
Na visão clássica. Estamos em território de Zenão. É preciso começar outra vez
e se concentrar.
Não sei o que nada disso quer dizer.
Tudo bem. Acrescente a suas dificuldades a ideia de que a topo­logia tem
bases matemáticas questionáveis — ou base nenhuma, como acreditam alguns
fundadores — e o que você tem? Você pode dizer que ela contém sua própria
lógica, mas não é esse o problema? Se você alega que a matemática não é uma
ciência pode alegar que não necessita de referente a não ser ela mesma. Quando
Wittgenstein convenceu Russell de que a matemática não passava de uma
tautologia Russell desistiu da matemática.
Sério?
Não sei. Russell dizia que sim.
E você é dessa mesma opinião?
Não acredito que essa questão possa ser respondida. No momento presumo
que deveria dizer que não. Mas àquela altura já tinha pendurado as luvas. E a
questão mais profunda, na qual a gente já tocou, é que se o trabalho
matemático é realizado sobretudo no inconsciente continuamos sem ter a
menor ideia de como ele faz isso. Você pode tentar visualizar a mente interior
somando, subtraindo, murmurando, apagando e começando outra vez mas não
vai chegar muito longe. E por que ele acerta tanto? Com quem o inconsciente
checa o próprio trabalho? Já aconteceu mais de uma vez de a solução para um
problema simplesmente cair no meu colo. Do nada. Do locus ceruleus talvez.
E o inconsciente precisa se lembrar de tudo. Sem anotações. É difícil se furtar à
inquietante conclusão de que não está usando números.
Não entendo como isso seria possível.
Talvez não seja verdade. Que ele quase sempre acerta. Mas provavelmente é
verdade que só as respostas certas são comunicadas. Em uma conferência
tempos atrás encontrei o historiador do Projeto Manhattan. Um homem
chamado David Hawkins. A gente começou a conversar sobre matemática e ele
me contou que o que despertou seu interesse pela disciplina foi o segundo
capítulo do Declínio do Ocidente de Spengler. O título do capítulo era “O
significado dos números”. Perguntei qual era a visão de Spengler e ele disse que
não tinha certeza. Que Spengler parecia ansioso em fazer uma distinção entre a
matemática como capacidade numérica e a matemática como cronologia. O
que eu achava que já estava bem estabelecido no cardinal e no ordinal mas
presumi que Spengler estivesse atrás de alguma outra coisa. Então consegui um
exemplar do livro e li o capítulo de abertura e mais outras partes aqui e ali.
Como acontece com a maioria dos filósofos — se é que ele é um filósofo — o
mais interessante não eram suas ideias mas simplesmente o modo como sua
mente funcionava. Li mais um pouco antes de deixar o livro de lado mas
aquilo me pareceu o monte de baboseira mais interessante que eu já tinha
visto. Não sei se dá para chamar de excêntrico. O homem sabe demais. E o
livro é muito bem escrito. Acho que o colocaria ao lado de Schopenhauer
como modelo de prosa alemã. Ele faz umas afirmações esquisitas. A
matemática da noite? Imagino que Grothendieck seja capaz de dizer alguma
coisa assim. Mas Grothendieck é um grande matemático. Precisa ser levado a
sério. Iniciar o extenso estudo do que ele presume ser o significado da história
com uma investigação sobre o significado da matemática é uma estratégia que
filósofos modernos poderiam perfeitamente levar em consideração. Uma parte
imensa da obra de Wittgenstein fala de matemática. Muito pouco disso foi
publicado.
Spengler entende alguma coisa de matemática?
Não sei. Nunca menciona ninguém. É tudo especulativo. Não sei como
alguém pode escrever sobre o significado dos números sem mencionar Frege.
Mesmo em 1917 ou 1919. Mas nem Frege chega completamente ao essencial.
Somar e subtrair não é matemática de verdade. Um saco de pedras dá conta.
Mas multiplicação e divisão é outra história. Se a gente multiplica dois tomates
por dois tomates não tem quatro tomates. Tem dois tomates ao quadrado.
Então o dois é o quê? Bom. É um operador matemático abstrato independente.
Ah! E isso é o quê? Não sabemos. A gente inventou. Você se lembra de ter visto
alguma coisa assim na escola?
Não tenho certeza se entendo aonde você quer chegar.
Sei. A verdadeira questão é que cem mil anos atrás alguém pulou da cadeira
e disse Puta Merda. Essa pessoa ainda não tinha uma linguagem. Mas acabou
de compreender que uma coisa pode ser outra. Não se parecer com ela nem
influenciar essa outra coisa. Ser ela. Falar em seu nome. Pedras podem ser
cabras. Sons podem ser coisas. O nome da água é água. O que nos parece
inconsequente em função do uso é na verdade o conceito fundador da
civilização. Linguagem, arte, matemática, tudo. No fim das contas o mundo
em si e tudo que contém.
E a maior de todas essas coisas pelo visto é a matemática.
Bom. Sou uma matemática.
Então Deus é um matemático?
Deus não consegue somar dois mais dois. Zero e um são tudo que tem para
trabalhar. O resto somos nós. Apesar de Kronecker. Talvez seja melhor deixar
isso pra lá por um momento.
Tudo bem. Quando você saiu da faculdade e foi para o Arizona abandonou
o programa de doutorado?
Não. De vez em quando ainda tenho notícia deles.
Querem saber como andam as coisas.
Querem saber como andam as coisas.
Imagino que exista um orientador.
Existe. Nem tenho notícia dela.
Vocês se desentenderam?
Não. Mas não confio nela de verdade.
Por quê?
Porque vi que concordava com coisas que eu sabia que não entendia. E
ficava nervosa comigo.
Um tema comum na sua vida?
Imagino que sim.
Na sua vida matemática?
Nem tanto. Matemáticos tendem a ser bem diretos. Acho que muitos nem
chegam a compreender a ideia de dissimulação. É uma turma estranha, vista
com ainda mais estranheza. Chaitin dizia que uma vez perguntaram se ele
tinha alguma ligação com a vida real. Queriam saber se lia os jornais.
Como terminou seu trabalho? Em Tucson.
Tomou basicamente o mesmo rumo de toda iniciativa condenada. Desceu
por uma ladeira gradual até desembestar de vez.
Imagino que tenha sido um pouco desestimulante.
Na verdade não. Eu sabia que o que procurava estava ali. Fazer matemática é
um pouco como vender de porta em porta. Você precisa aprender a lidar com a
rejeição. Estudei a fundo os problemas de Hilbert. Não na expectativa de
resolvê-los mas tentando descobrir o que tinham em comum, se é que tinham
alguma coisa. A matemática estava em expansão e afinava conforme se
expandia. Em certo momento no início do século xx finalmente se tornou
impossível compreendê-la em toda a sua plenitude. Cantor supostamente foi o
último matemático universal. Depois Poincaré. Depois ninguém. Enfim, houve
ocasiões em que considerei que minha carreira pudesse estar encerrada. E ao
mesmo tempo nunca questionei minha capacidade. Fui a melhor matemática
que conheci.
Então o que aconteceu?
Matemáticos tendem a se ressentir quando você sugere que as verdades
matemáticas representam uma espécie de realidade de segunda classe. Quando
estava trabalhando na teoria do calibre não abeliano Tsung-Dao Lee topou
com uma matemática chamada teoria do maço de fibras. E as duas teorias eram
iguais. Então ele procurou seus amigos matemáticos e pediu que lhe
explicassem aquilo, mas eles não viram o que precisava de explicação. Então
Lee disse que enquanto a teoria do calibre era uma teoria física e portanto real
a teoria do maço de fibras não era uma teoria física e portanto não era real. E
eles ficaram irritados e disseram não não não, é real. A topologia é capaz de
descrever com certa precisão formas que contradizem a exemplificação física. E
contudo não podem ser ideações porque nesse caso você é obrigado a
perguntar ideações do quê? Enfim, perto do final do verão eu meio que estava
em apuros.
Certo. Daí o que aconteceu?
Três reis magos vieram do Oriente.
Como?
Ganhei uma bolsa do ihes e conheci três caras com quem podia conversar.
Esse é o Instituto na França.
Isso.
Quem eram esses três caras?
Grothendieck, Deligne e Oscar Zariski.
Por que eles?
Porque eram eles, porque era eu.
Isso parece uma citação.
De fato. Montaigne.
Sua orientadora. Ela a considerava… Não sei se essa é a palavra. Um pouco
pretensiosa?
Imagino que sim. Claro que ninguém ofereceu a ela uma bolsa no ihes.
Presumo que fosse algo muito prestigioso.
Sim.
Você ainda não conhecia Grothendieck.
Não. Escrevi uma carta, ele me disse para mandar um artigo e mandei.
Sobre o que era o artigo?
Uma explicação da teoria do topos que achei que ele provavelmente não
tinha considerado. E não tinha mesmo. O que eu não sabia era que ele estava
prestes a largar a matemática. Eu não tinha muito tempo.
Está tudo bem com você?
Tudo bem.
Quer deixar para falar sobre isso mais tarde?
Estou bem.
Podemos falar sobre outra coisa. O que ainda não abordamos?
O fato de eu ser mulher.
Com relação à matemática. Ou aos médicos de almas.
Essas duas coisas também.
Então os médicos.
Para a mulher a história da loucura é diferente. Da bruxaria à his­teria somos
só encrenca. Sabemos que as mulheres eram condenadas como bruxas por
serem mentalmente instáveis mas ninguém levou em consideração a
quantidade — por menor que seja — de mulheres apedrejadas até a morte por
serem brilhantes. Que eu não tenha terminado acorrentada a uma parede de
porão nem queimada na fogueira não é testemunho de nossa crescente
civilidade mas de nosso crescente ceticismo. Se ainda acreditássemos em bruxas
continuaríamos a tocar fogo nelas. Velhas narigudas amarradas à cadeira
elétrica. Pelo jeito ninguém nunca notou que a bruxa estereotípica é feita para
parecer uma judia. Acho que o ceticismo é aceitável. Se a pessoa tem estômago
pra engolir o que vai junto. Fico feliz em ser bem tratada mas sei que é um
negócio incerto. Quando esse mundo criado pela razão finalmente for levado
embora a razão vai junto. E vai demorar um bom tempo pra voltar. O que
aconteceu com nosso revezamento?
Acho que pensei que fosse só um artifício. Um empurrãozinho inicial.
Adiante.
Que coisa antiquada de se dizer.
Adiante?
É. Já perdeu algum paciente para o suicídio?
Já. Uma vez.
Uma garota.
É.
Esteve no enterro dela?
Que pergunta esquisita. Sim. Estive.
Como foi?
Como seria de esperar. Ou pior. Ninguém queria falar comigo.
Você pensou que falariam?
Esperava que sim. Só estava tentando fazer o que achava certo. Eu podia
entender o ponto de vista deles. Uma figura desagradável espreitando num
canto. Um convidado indesejado. Nunca tinha visto gente tão devastada pelo
luto. Você se acostuma com a gratidão das pessoas. Considera normal.
Obrigado, doutor. Nem pensa a respeito. Mas a culpa é profunda e duradoura.
Fiquei ali preso no meu terno preto por um tempo depois fui embora. Ainda é
sua vez?
Chegou a considerar alguma outra vida? Algum outro lugar?
Imagino que outra vida só poderia ser em outro lugar. Não sei. Acho que
não. Outra vida? Outra carreira?
Ou vida nenhuma.
Essa seria você, não eu.
Você é feliz.
Sou feliz.
Quando eu era pequena costumava devanear com a vida em algum lugar
remoto. Vivia planejando como fazer isso.
Um lugar imaginário ou real?
Acho que começa com o imaginário. Mais tarde fica sério e você pega o
atlas.
Onde foi parar?
Aqui.
Você não encontrou o Stella Maris no atlas.
Eu sei. Encontrei a Romênia.
A Romênia.
É.
Por quê?
É de onde veio minha família. A família da minha mãe. O ­Bobby pesquisou.
A mulher que desembarcou na Ellis Island em 1848 tinha quinze anos. Partiu
da Europa com a mãe, mas a mãe nunca chegou. Não estava na lista de
desembarque. Não havia explicação no documento mas só pode ter morrido no
mar. Tinha alguém pra receber a menina quando chegou? Não sei.
Como ela foi parar no Tennessee? Se é que chegou lá?
Também não sei. Parece ter se casado por volta dos dezesseis anos. O Bobby
tentou descobrir sobre a família dela na Europa. Nossa família. Não tinha
muita coisa. A Europa da qual ela fugiu estava numa guerra sem fim. Algumas
famílias de judeus atravessaram a Ásia a pé para chegar aos portos da costa
russa. Com tudo o que podiam carregar. Quando o Bobby contou pro tio
Royal que a gente era judeu o tio Royal expulsou ele de casa.
Ele obedeceu?
Não. Claro que não.
Esse é o tio meio doido.
É.
Ele é antissemita.
O antissemitismo é o menor dos problemas dele.
É um sobrenome? Royal?
Não. É que a gente tem uns nomes muito esquisitos no sul. Pode ter sido
Raoul originalmente. Eu sei. Royal é um nome legítimo. E claro que a gente vê
um monte de nomes espanhóis. Pelo menos no Tennessee. Carlos. Wanita.
Com W.
De onde vieram?
Foram trazidos da guerra no México. Junto com os tamales apimentados.
Uma noite ele deitou na minha cama.
Seu tio?
É.
O que você fez?
Levantei, fui até a porta e chamei minha avó.
O que ele fez?
Pulou da cama e saiu correndo do quarto. De short. Um magrelo.
Quantos anos você tinha?
Treze.
Contou pra sua avó?
Não. Ela já tinha problemas demais. Quando desci na manhã seguinte falei
pra ele que ainda não tinha decidido se contava ou não ao Bobby. Isso deu um
jeito nele.
E você contou ao Bobby?
De jeito nenhum. O Bobby acabava com ele.
Seu irmão era muito protetor.
Sim. Muito.
Nunca deitou na sua cama.
Meu irmão? Não. Era o contrário.
Isso não é verdade.
Nunca deitei na cama do meu irmão.
Por que ele se interessou por carros de corrida?
Porque era bom nisso. E porque de uma hora pra outra tinha dinheiro pra
bancar. Minha avó detestava. Mas mesmo assim guardava todos os recortes de
jornal. Físicos tendem a ter hobbies arriscados. Muitos são alpinistas. Às vezes
os resultados são previsíveis. Ele foi para a Inglaterra e comprou um Lotus
Fórmula 2 na fábrica.
Imagino que seja o carro que bateu na Itália.
Por que não falamos de outra coisa.
Tudo bem. Desculpe. A Romênia.
O que é que tem?
Queria mesmo morar lá?
Queria.
E o seu irmão?
Bom. O plano era esse.
Você pensou que seu irmão fosse viver na Romênia com você.
Esperava que sim. É.
O que ele disse?
Que não era exatamente o que tinha em mente.
O que mais.
É complicado.
Como era sua relação com seu irmão?
O que você acha?
Não sei.
Eu também não. Está me perguntando se a gente transou?
Transaram?
Não.
O que mais?
Sobre esse assunto?
É.
O amor em si é muito possivelmente um transtorno mental.
Está falando sério?
Sim.
Acredita mesmo nisso?
Provavelmente. Talvez não. Às vezes. A literatura não ajuda. A experiência
também não.
Está me contando que se apaixonou pelo seu irmão?
Hum. Como todo bom psiquiatra você deve achar que não existe nada
como o incesto para conquistar o coração de uma garota.
Mas não houve incesto.
Não. Só a vontade.
Você não quer falar sobre isso.
Assuntos do coração merecem certa confidencialidade.
Tudo bem.
Eu sabia que meu lugar não era Wartburg Tennessee e pensei que o Bobby
podia ter encontrado o lugar certo para mim. Para nós.
Você estava falando sério.
Claro. Tinha até arranjado uma gramática e começado a estudar a língua.
Sabia de que parte do país era sua família?
Não. Eu queria morar nas montanhas. Não muito longe de alguma cidade
de tamanho razoável. Talvez até Bucareste. Eu precisava de uma biblioteca.
Queria morar perto de um rio e ter uma canoa.
Uma canoa.
Ridículo, não é?
Não sei. Por quanto tempo alimentou essa fantasia?
Ainda alimento.
Quer fazer uma pausa?
Desculpa. Não. Sem problema.
Você viveu na Europa mas nunca visitou a Romênia.
Não queria visitar. Queria morar.
Talvez a gente devesse dar uma parada.
Acordo é acordo. Um pouco de histeria não é motivo para não cumprir o
combinado.
A gente podia falar sobre outra coisa.
Sapatos e barcos e cera de chancela.
Você às vezes planeja esses diálogos?
Tenho certeza de que não fui a primeira jovem a se perguntar por que
alguém iria querer encerar sua cancela. Não. Vou improvisando. Como você.
Eu reflito um pouco. Anoto coisas.
O que planeja fazer com as fitas?
Escrever um artigo, se tudo correr bem. Acho que o acordo foi esse.
Contanto que eu não precise ler.
Desde pequena você é pessimista desse jeito?
Como se tudo fosse um mar de rosas antes da pubescência?
Não sei.
Não acho que as pessoas estejam erradas em se preocupar com as intenções
do mundo em relação a elas. Tem um monte de coisas desagradáveis por aí e
algumas estão bem a caminho da sua casa.
Se afogar no lago Tahoe. A ideia era mesmo séria?
Bastante séria. Imagino que esteja escrito aí.
Há uma menção. Mas você desistiu.
É.
Por que mudou de ideia?
Mulher não gosta de água gelada.
Falando sério.
Parei e pensei no assunto.
Não surpreende.
Considerei a fisiologia da coisa. Não foi muito tranquilizador.
Quer falar sobre isso?
Claro. Que se dane.
Ainda temos algum tempo.
Bom. A primeira coisa que a gente percebe é que o pânico que acompanha a
asfixia é atávico. Ele é tão antigo quanto o cérebro e não há nada que possamos
fazer a respeito. Você talvez pense que é capaz de reunir coragem para lidar
com ele mas não é. O pânico domina a razão completamente. É algo que
temos em comum com os ratos. Você poderia dizer que o medo de cair
também é primitivo, mas alpinistas do mundo inteiro que despencaram para o
que acreditavam ser a morte certa dizem que sentiram calma e aceitação. Por
quê?
Não sei.
Talvez por não haver nenhuma decisão a tomar.
Decisão.
É. Se a pessoa está se afogando a certa altura precisa tomar a decisão de
inspirar água e morrer. Você pode achar que essa decisão não vai ser sua, mas
mesmo que não consiga prender a respiração por mais um segundo ainda pode
prender por mais um milissegundo. E é claro que isso não é uma escolha mas
uma decisão. Você deve tomar a decisão de se matar. Numa queda mortal não
tem nada disso. Aí também os filmes nunca acertaram. Ninguém cai gritando e
se debatendo. A pessoa é absolvida de toda responsabilidade. Não deve nada a
quem quer que seja. Tem certeza sobre essas conversas mórbidas?
Depende de você.
Tudo bem. Minha ideia era alugar um bote. Sentada entre os pinheiros
acima do lago pensei na extraordinária transparência da água e percebi que isso
era uma vantagem. Você não vai querer se afogar em águas turvas. As pessoas
deveriam pensar sobre isso. Me vi sentada no barco com os remos recolhidos. A
certa altura eu daria uma última olhada ao redor. Levaria comigo um cinto de
couro pesado e um cadeado robusto da loja de ferragens e me prenderia à
corrente da âncora no ponto onde o cinto faz a dobra depois de passar pela
fivela. Então fecharia o cadeado e jogaria a chave na água. Talvez desse mais
umas remadas. Não ia querer ficar ali no fundo procurando a chave feito uma
desesperada. Eu daria uma última olhada, poria a âncora no colo, passaria os
pés por cima da amurada e me mandaria para a eternidade. O trabalho de um
instante. O trabalho de uma vida.
Mas não fez isso.
Não. Antes de mais nada o litoral na Costa Leste tem quase meio
quilômetro de profundidade e a água é gelada de doer. Vai acontecer uma série
de coisas que você não levou em consideração. Claro que se tivesse levado não
estaria ali pra começo de conversa. Ou fim. Conforme você afunda seus
pulmões encolhem. A trezentos metros vão estar mais ou menos do tamanho
de uma bola de tênis. Você tenta destampar os ouvidos e sente dor. Seus
tímpanos com toda probabilidade vão estourar e isso vai doer de verdade.
Existe uma técnica para forçar o ar a passar pela trompa de Eustáquio no seu
ouvido mas cadê o ar pra isso. Então você continua a afundar em sua corrente
rarefeita de bolhas. As montanhas acima recuam devagar. O sol e o casco
pintado do barco. O mundo. Seus batimentos ficam um pouco mais lentos.
Mergulhe fundo o bastante e cessarão completamente. O sangue deixa suas
extremidades para se acumular nos pulmões. Mas o maior problema mal
começou. Você fica sem ar antes de chegar ao fundo do lago. Mesmo com uma
âncora de quase trinta quilos — eu não conseguiria manusear muito mais do
que isso — sua descida não vai bater nenhum recorde. A vinte quilômetros por
hora — o que é bem rápido — uma pessoa cobre trezentos metros por minuto.
Sob as circunstâncias escolhidas a respiração talvez não dure um minuto.
Mesmo se você tiver feito respirações rápidas antes. O choque, o estresse, o
frio, a falta de ar cobrarão seu preço. Enfim, uma descida de no mínimo dois
minutos até o fundo, provavelmente mais pra quatro ou cinco. Até se sentar
confortavelmente no fundo do lago.
Confortavelmente.
Claro. Pelo menos vai poder enfim se livrar da maldita âncora.
Você gostava de fazer essas elucubrações?
Por que não? Problemas são sempre divertidos.
Nem sempre sei quando está falando sério.
Eu sei. Enfim, a essa altura você largou a âncora e vai ser rebocada pelo cinto
através dessa água que está congelando seu cérebro. Não é muito provável que
consiga continuar raciocinando mas na verdade não faz diferença. Quando
você finalmente desiste de se debater como um rato e respira dentro d’água —
um frio escaldante — a dor que sente vai além da mera agonia. Pode ser que a
distraia da angústia de ter feito isso consigo mesma, não sei. Tente se lembrar
da dor que você sente nos pulmões quando corre num dia frio de inverno e fica
sem ar. Você respira mais rápido do que seus pulmões conseguem aquecer o ar.
Dói. Agora multiplique isso por Deus sabe quanto. O calor da água
comparado ao do ar. E a dor não vai embora. Porque seus pulmões jamais
conseguirão aquecer a água aspirada. Acho que estamos falando de uma agonia
simplesmente sem proporções. Ninguém falou nada sobre isso. E é pela
eternidade. Sua eternidade.
Sentada em um bosque com vista para o lago num delicioso dia de
primavera, são esses os seus pensamentos.
É.
O que mais.
Ainda existem incógnitas, claro. Como o fundo do lago é praticamente só
cascalho não vai haver nenhuma nuvem de lodo se erguendo quando a âncora
tocar o leito. Silêncio total. Impossível dizer o que tem ali embaixo. Os
cadáveres dos que foram antes. Uma família que você nem sabia que tinha. O
lago é suficientemente fundo para a luz ficar opaca mesmo com a água
translúcida. Um mundo cinzento, gelado. Não completamente escuro ainda.
Sem vida. A única cor a manchar a água é o tênue fio róseo do sangue saindo
dos seus ouvidos. Não sabemos sobre o reflexo faríngeo mas estamos tomando
providências para descobrir.
Tomando providências.
É. Quando os pulmões ficam cheios eles cessam? Os engasgos? Não
sabemos. Ninguém nunca disse. O reflexo autônomo será tossir a água mas isso
não será possível porque ela está pesada demais. E claro que a única coisa que
pode entrar em seu lugar é mais água. Nesse meio-tempo a privação de
oxigênio e a narcose por nitrogênio começaram a competir pela sua sanidade.
Você está sentado no leito glacial do lago com o peso da água como uma bala
de canhão nos seus pulmões e a dor do frio no seu peito provavelmente é
indistinguível do fogo e você engasga em agonia e embora sua mente comece a
ceder você continua presa da tirania de um terror totalmente atávico sobre o
qual não tem controle algum e então do nada surge um novo pensamento. O
frio extraordinário provavelmente é capaz de mantê-lo vivo por um período
ignorado de tempo. Horas, quem sabe, afogado ou não. E você talvez presuma
que ficará inconsciente mas como pode ter certeza disso? E se não ficar? À
medida que se acumulam em sua cabeça os motivos para não fazer o que
irrevogavelmente acabou de fazer com você mesmo só lhe resta ficar ali
choramingando, balbuciando e rezando para estar no inferno. Enfim, sentada
em meio às árvores e à brisa, eu sabia que não estaria lá. Podia ter sido uma
pessoa má na vida, mas não tão má. Levantei, fui até o carro e voltei para San
Francisco.
Você tinha ido ao lago Tahoe com o propósito expresso de se matar?
Pois é.
O que mais.
Mais nada. Pensei em escrever sobre minhas descobertas. Como havia
algumas surpresas desagradáveis reservadas aos inclinados a se matar dessa
forma achei que talvez pudessem mudar de ideia com o que eu tinha a dizer.
Você chegou a analisar desse jeito outros métodos de suicídio?
Na verdade não. Não havia muito a analisar. Claro que certas coisas à
primeira vista são simplesmente brutais e dolorosas demais. Autoimolação. Por
exemplo.
Você não me diria se achasse que oferece risco no momento.
De atear fogo em mim mesma?
Não. Eu…
Estou brincando.
Ah.
Pensei que tínhamos decidido que eu ofereço. Ou que você tinha decidido.
Onde estava o seu irmão nessa época?
Na Itália.
Quer dizer que isso é bem recente.
É. Você devia me perguntar logo de uma vez o que quer saber.
Você quase nunca responde. Especialmente sobre seu irmão.
Eu sei.
Que outros planos fazia para pôr fim em si mesma?
Planos sérios?
De qualquer tipo. Tudo bem, sérios.
Sempre gostei da ideia de não ser encontrada. Se eu morresse e ninguém
ficasse sabendo isso seria o mais perto que poderia chegar de nunca ter estado
aqui pra começo de conversa. Eu pensava em coisas como pegar um bote
inflável com um belo motor de popa e seguir em frente até acabar a gasolina.
Daí bastaria me acorrentar ao motor, tomar um bom punhado de
comprimidos, abrir um pouquinho as válvulas, deitar e dormir. Talvez fosse
bom levar uma colcha e um travesseiro. O piso de borracha do bote ia estar
frio.
O frio outra vez.
É. Enfim, umas duas horas depois o negócio simplesmente dobraria em dois
e me levaria para o fundo do oceano para nunca mais ser vista. Coisas assim.
Coisas assim.
Pois é.
Isso é um estudo em progresso?
Eu não deveria ter contado, não é?
Por que não.
Só vai servir para deixar você preocupado. A troco de nada.
Ou seja, não há nada que eu possa fazer a respeito.
Bom. Não acho que há muito que alguém possa fazer sobre o que quer que
seja.
Por mais negativas que sejam suas opiniões você não parece de fato
clinicamente deprimida.
Eu sei. Você disse. O meu cálice transborda.
Acredita que seu pessimismo se baseie numa compreensão do mundo não
tão prontamente acessível para os outros?
Tem alguma pegadinha nessa pergunta?
Eu não diria isso.
Acho que as pessoas de modo geral têm uma compreensão razoável do
mundo. Se não tivessem não estariam aqui.
Você falou como uma darwinista.
Falei e disse. Nem todo dom é bem-vindo. Imagino que a suspeita seja de
que nosso passado comum só vai garantir um futuro comum se estivermos
dispostos a eliminar os pontos fora da curva. Um por um. Conforme vão
aparecendo. Eliminar. Confinar. O que for.
Estamos próximos do mundo de… como é? O Arcatron?
Não sei. Não faz essa cara. Realmente não sei.
A presença além do portão. Você deve ter alguma ideia dela.
Como o quê? Um vento abjeto? Uma escuridão?
O Arcatron.
Imagino que sim. Originalmente o Imperador. Eu tinha doze anos e adorava
linguagem. Vi o portão e os guardas do portão. Não consegui enxergar além.
Eles avisaram para você recuar?
Sim.
Como?
Com uma piscada de seus olhos frios de rato. Eu os via pelo olho mágico
que não deveria ter encontrado. Mas também nunca tinha estado lá antes. Eles
ficaram surpresos em me avistar. Enfim, nem toda visão do mundo com uma
especulação isolada é por isso uma visão falsa. Ou equivocada. Uma
quantidade indeterminável de verdades até então ignoradas por nós adentrou o
domínio humano pelo relato de testemunhas isoladas.
Acha que as pessoas em geral alimentam uma visão razoavelmente sombria
das coisas? Uma visão que simplesmente suprimem?
Acho. Você não?
Não sei.
As pessoas preferem o destino ao acaso. O soldado realmente acredita que
existe uma bala em algum lugar por aí com o nome dele escrito. A maioria a
meu ver acredita não só em um livro da vida como também em um livro da
sua própria vida. Podemos aplacar o destino, rezar para os deuses. Mas o acaso
é apenas o que o nome diz.
Você acredita em um livro da sua vida?
Só no sentido de que é escrito por mim. Algo que sem dúvida talvez não
passe de ilusão. Enfim, isso quase nem é pergunta que se faça. Estarei em
algum lugar na quinta que vem às dez da noite. Viva ou morta. Minha
presença nesse lugar e nessa hora é uma certeza cabal. Um somatório de todos
os eventos do mundo. Para mim. Não estarei em algum outro lugar. A falta de
conhecimento prévio não muda nada.
Certeza cabal?
Outro maneirismo sulista.
Você se considera uma ateia?
Meu Deus, não. Esses eram os bons e velhos tempos.
Não sei dizer se esse é um comentário sério ou não.
Sei. Eu também não. O que quer que eu diga? Sou uma garota moderna.
Bom. Conheci algumas garotas modernas. Não dá pra dizer que vo­cê se
enquadre particularmente no perfil. Quer encerrar por hoje?
Pareço contrariada? Acho que vamos precisar de mais determinação. Estou
bem. Suspeito há muito tempo que talvez sejamos simplesmente incapazes de
imaginar os males cataclísmicos dos quais somos justamente acusados e pensei
que é no mínimo uma possibilidade que a estrutura da realidade em si abrigue
algo como as formas das quais nossa sórdida história não é mais do que um
pálido reflexo. Pensei que Platão poderia ter considerado algo assim sem
conseguir expressar exatamente. Vejo pela sua expressão que enfim contemplou
a própria personificação da insanidade.
Continuo escutando. Presumo que nunca tenha visto o Arcatron.
Nunca imaginaria que tal coisa fosse passível de ser vista.
Passível de ser vista.
É.
Ou seja, diferente de visível.
Não sei se ele é visível ou não. Só sei que eu não vejo. Seja o que for.
Já tivemos essa discussão antes. Ou algo parecido.
Eu sei.
A caravana passa. É só uma espécie de arquétipo sinistro.
Um conceito perturbador usando roupas.
E um arquétipo do quê.
Sei lá. Imagino que o catálogo de referentes não para por aí.
Quem veio primeiro, o Arcatron ou o Kid?
O mandachuva. Acho até que deve estar por trás do surgimento do Kid.
Em algum momento o Kid se referiu a ele?
Nunca.
Chegou a conversar com seu irmão sobre o Arcatron?
Sim.
O que ele disse?
Que achava que as camisas de força eram de tamanho único mas que não
tinha certeza e que talvez existisse tamanho pequeno, médio e grande e ia dar
uma olhada.
Ele não falou isso.
Não. Mas ficou preocupado. Achava que as pessoas tinham mais alucinações
do que queriam admitir. Isso não necessariamente significava que fossem
doidas. Ainda mais se tivessem doze anos e já fossem doidas por definição. Mas
de qualquer forma ele ficou preocupado e mais tarde achou que minha
cosmovisão podia estar contaminando minha matemática. Grothendieck diz
em algum lugar que a matemática do século xx começou a perder a bússola
moral. O Bobby achava esse tipo de conversa ridícula mas quando perguntei se
tinha entendido mesmo o que Grothendieck quis dizer admitiu que não sabia.
Grothendieck já estava bastante estranho quando saiu do ihes e o Bobby
achava que ele podia ter tido uma espécie de influência maligna sobre mim —
o que não era verdade — e disse também que eu deveria pensar melhor antes
de submeter minha tese.
Ele leu sua tese.
Leu três rascunhos diferentes, na verdade.
Ele entendeu?
Quase tudo. Entendeu que tinha alguma coisa errada com ela.
E o que era?
Que ninguém conseguia entender.
Você não está falando sério.
O problema era que embora provasse três problemas na teoria do topos a
tese passava em seguida a demolir o mecanismo das demonstrações. Não para
mostrar que essas demonstrações em particular estivessem erradas mas que
quaisquer demonstrações como aquelas ignoravam seu próprio caso.
Abordando ao longo do processo os argumentos mais comumente apresentados
da realidade matemática.
A matemática tinha se tornado uma atividade questionável pra você.
Pensei em David Bohm. Ele escreveu um livro excelente sobre mecânica
quântica — em grande medida porque Einstein meio que o convencera de que
a teoria tinha falhas. Ele queria pôr os pensamentos no papel. Quando chegou
ao fim do livro não acreditava na teoria.
Escrever a tese deixou você cética.
Não ajudou.
Seu irmão se preocupava com seu estado mental?
Se ele achava que eu era louca?
É.
No vernáculo ou clinicamente louca?
Clinicamente.
Acho que não. Mas pode ser que quanto mais pensasse sobre isso mais
preocupado ficasse que eu talvez não fosse.
Que as notícias pudessem ser ainda piores?
É.
Vai ver que ele pensou e se ela tiver razão.
Não sei. O Bobby não estava contente com nada disso. Parei de falar sobre o
assunto. Mas a essa altura ele tinha abandonado qualquer suposto interesse na
veracidade da vida do lado de cá do vidro e só pensava em como se livrar
daquilo. Enquanto eu a essa altura não sabia muito bem se queria. Me livrar
daquilo.
Por quê.
Porque sabia o que meu irmão não sabia. Que havia e sempre houvera um
horror incontido sob a superfície do mundo. Que no coração da realidade
reside um profundo e eterno daemonium. Toda religião compreende isso. E ele
não iria a lugar algum. E imaginar que as desoladoras erupções deste século
fossem de algum modo singulares ou exaustivas era simplesmente uma tolice.
Você disse isso a ele?
Sim. Disse.
E o que ele falou?
Se abaixou e pôs a mão na minha testa. Como se estivesse vendo se eu tinha
febre.
Sério?
É.
Você não achou graça.
Na verdade achei.
Ele devia estar preocupado que você não concluísse o doutorado.
É. Estava.
Você apresentou a tese?
Não. Ainda nem tinha terminado os trabalhos do curso. Acho que a teoria
dos conjuntos me transformou numa fora da lei. Poincaré dizia que era uma
doença, Hilbert que era o paraíso. Pelo menos se você a inclui no corpus geral
da obra de Cantor na época. Mas quem estava ali embaixo fazendo a escavação
de verdade era Riemann. Mais de um matemático que viu o que ele estava
fazendo entendeu que a intenção dele era cravar uma estaca no coração de
Euclides.
Por que iria querer fazer isso?
Porque não gostava dele. Não gostava da esposa nem dos filhos nem do
cachorro.
Imagino que isso tenha a ver com os axiomas.
Não. Tem a ver com a realidade. Você começa com um ponto que não tem
dimensão e portanto realidade e o estende numa linha. Uma extensão de nada
pode resultar em algo? Você é obrigado a dizer que sim. Não consegue
demonstrar que sim.
Riemann demonstrou?
Se você diz. Em geral se presume que os triângulos de Riemann excederem a
soma de cento e oitenta graus seja um erro causado pela curvatura da Terra.
Mas as figuras são abstrações. Elas não vivem na Terra. Bom, poderiam viver
no espaço. E o espaço se deforma. Sim senhor. Mas Riemann não sabia disso.
Não sei se entendi seu ponto.
Sem trocadilho, tenho certeza. Tudo bem. Ninguém entende. Melhor seguir
em frente.
A tese. Onde está?
Em algum lixão por aí.
Sério?
Sério.
Mas se quiser você escreve de novo.
Se quiser. Mas não quero.
E seu irmão não viu problema nisso?
Não. Ele ficou irritado.
Mesmo depois de chamar de bobagem.
Ele não disse que era bobagem. O argumento ia do formal ao estrutural e a
partir daí a tese questionava a própria disciplina.
Não tenho certeza se entendi o que você estava buscando.
Sei. No fim das contas a tese incorria em questões como do que exatamente
você estava falando quando investigava a natureza das formas bi e
tridimensionais. A seção final era intitulada “Prestígio”. Não tinha qed no
final.
É um termo matemático? Prestígio?
Não. É a terceira parte de um número de magia. Descreve o momento em
que a mulher que você acabou de ver serrada ao meio sai da caixa e
cumprimenta o público.
Você estava comparando sua matemática a um número de magia?
Isso.
Mas certamente não acha que matemática é mágica.
Acho que é mágica se você não entende. Quanto mais aprende menos
mágica ela fica. Então à medida que você se dá conta de que num sentido
muito claro nunca vai entendê-la ela se torna mágica outra vez. A maioria das
pessoas aprende a aceitar os próprios demônios. Nem todas. Um caso contado
por Jung sugere que estados mentais aberrantes podem não ser a doença em si
mas uma proteção contra doenças maiores. Sabemos que a consciência nunca é
zerada a não ser na morte. Um paciente dele no Burghölzli ficou gravemente
doente quando estava em coma. Até que um dia se sentou no leito e começou a
dar ordens para as enfermeiras. Foi assim até se recuperar. Daí ele voltou a
dormir. E nunca mais acordou. Nem sei se essa história é verdadeira.
Provavelmente é. Por ser mais perspicaz que Jung, sobretudo. Afinal, ele
precisou contratar alguém para fazer a prova de matemática para poder entrar
na faculdade de medicina. Seja como for, a resposta é sim. Acho que ele foi
mesmo enviado. Na verdade nada mais computa.
Desculpe. Do que está falando?
Do Kid.
Ah. Certo. Foi enviado por quem?
Não sei. Ele não é mais nem menos misterioso do que as questões mais
profundas sobre qualquer outra realidade. Ou a matemática. Por falar nisso.
Formas se transformando num vazio inominável. Resgatadas de um mar
mortiço do incomputável. O tempo acabou.
vi

Bom dia.
Bom dia.
Você parece diferente hoje.
A palidez gradual. O olhar distante. Você mesmo parece um pouco
esgotado.
Dei sorte de chegar aqui. As estradas estão péssimas.
Você tem o cuidado de não contar muito sobre si mesmo. Sua vida. Talvez
não devesse seguir tão de perto a linha do partido.
Bom. Eu disse que era casado. Duas vezes com a mesma mulher. Dois filhos.
O que você quer saber?
Como se chama sua filha?
Rachel.
Nome lindo. Triste. Quantos anos ela tem?
Nove.
Como ela é?
Não é triste.
Ainda.
Não acha uma coisa esquisita de se dizer?
Acho que damos aos nossos filhos o nome de quem esperamos que sejam.
Como seria se ela se chamasse Dolly? Ela é atenciosa.
É atenciosa sim.
Alta e magra. Cabelos escuros. Inteligente. Gosta de gatos. É difícil com o
irmãozinho. A menos que ele se machuque. Nesse caso é a primeira a chegar.
Você podia fazer isso numa feira de variedades.
Talvez um dia a gente se conheça. Ela já veio aqui?
Não. Acho que não. Não. Nunca veio.
Bom. Vá em frente.
Quer dizer que é minha vez?
Isso.
Tudo bem. O que poderia me contar que nunca contou a ninguém?
Nenhum analista.
É. Nenhum analista.
Uma tonelada de coisas.
Algo significativo. Que tenha passado pela sua cabeça. Alguma questão que
pensou em levantar mas desistiu.
Você acha que nosso tempo está se esgotando.
Não sei. Está?
Sei lá.
Não precisa ser nada pessoal. Nem nada sobre você.
Sobre o que então?
Qualquer coisa. Uma decisão que você tomou. Ou alguma coisa de que
tenha se tocado.
Me tocado.
É.
Locução estranha. Ignoremos o duplo sentido. E se tudo que eu contasse
fosse apenas uma monstruosa mentira?
Por que você faria isso?
Não faria. Não disse que faria. Acho que você tende a acreditar em tudo que
digo.
Sou ingênuo demais? Crédulo demais?
Não. Nem uma coisa nem outra.
Continue.
Caí no mundo. Geograficamente falando. Passei dois meses rodan­do pelo
país. Comia e tomava banho nas paradas de caminhoneiros e quase sempre
dormia no carro.
Fazia matemática?
Não. Lia muito. Procurava um hotel barato em Boise ou qualquer outro
lugar e simplesmente me enfurnava. Deixava o carro no estacionamento de
algum centrinho comercial e levava o cabo de ignição comigo.
Por que fazia isso?
Porque sim. Estava lendo quatro, cinco livros por dia. Algumas coisas que eu
queria ler estavam esgotadas havia séculos. Eu falsificava carteirinhas das
universidades e fazia cartões nas bibliotecas. Li livros que ninguém tinha
pegado emprestado em quarenta anos.
Onde estava o Bobby nessa época?
Não sei. Acho que viajando pelo país, vivendo das moedas de ouro.
E o Kid?
Aparecia de vez em quando. Em geral meio de mau humor. Às vezes eu
acordava num quarto de hotel em algum lugar e mal fazia ideia de como tinha
chegado lá. Deitada em uma cama de metal com a roupa do corpo. E o Kid
andando de um lado para o outro e dizendo coisas como a gente está meio sem
grana mas arrumei esse lugar aqui por enquanto. Você só precisa ficar na moita.
Analisar bem a situação. Eu me sentia como o John Dillinger. Que situação?
Do que você está falando? Daí você percebe que não toma banho nem come
faz não sei quantos dias. Não sabe direito onde está seu carro. Desce para a rua
e está o maior calor. No meio da manhã. Você vai até a esquina e tem uma
banca de jornal, dá uma olhada e vê o Miami Herald. Tudo bem. Já é um
começo. Volta pro quarto e o Kid sumiu. Deita na cama e se cobre com o
lençol. Não há nada que precise fazer. Ainda tem algumas horas antes de
entregar a chave. Ninguém bate na porta. Na verdade paguei por uma semana.
Saí à tarde e encontrei meu carro estacionado em um parquímetro expirado
com uma multa presa no para-brisa. Só ia mudando o carro de rua. De um
parquímetro pra outro. De multa em multa. Fui a uma mercearia e comprei
tomate, queijo e outras coisas. Pãezinhos. Voltei pro quarto mas o Kid parecia
ter realmente sumido. Na verdade era tudo meio que bem legal. Exceto pelos
pinguços batendo na sua porta no meio da madrugada. O recepcionista de um
hotel em Topeka no Kansas me perguntou na lata se eu era garota de programa
e eu disse pra ele dar uma boa olhada em mim e depois se perguntar o que
estaria fazendo num pardieiro de merda como aquele se fosse prostituta.
O que ele disse?
Que eu tinha razão.
O que você achou que fosse acontecer?
Eu não sabia. Pensei que pudesse acabar aqui. Parei no estacionamento aqui
uma vez e dormi no carro. Mas de manhã fui embora.
Não tinha amigos. Em lugar nenhum?
Não.
Você disse que não tinha amigos no ensino médio.
Fui eleita a representante da turma no último ano. Mas acho que só queriam
ver o que ia acontecer.
O que aconteceu?
Nada. Eu estava me preparando pra ir para a faculdade. Enfim, tinha só
catorze anos.
Chegou a contar ao seu irmão que era sinestésica?
Contei. Ele me perguntou.
Perguntou?
É.
E como isso passou pela cabeça dele?
É que o Bobby é muito inteligente e sabe um monte de coisas. Percebeu que
eu era uma boa candidata. E sabia que crianças sinestésicas normalmente
escondem essa condição porque percebem que as outras crianças as acham
esquisitas.
Ele era sinestésico?
Não. Ou só de leve. Teve uns dois episódios mas não fazia parte da vida dele.
Enfim, depois disso eu contei tudo pra ele.
Sobre o Kid.
É. No verão seguinte ele voltou e ficou em casa até o final e foram os
melhores dias da minha vida. Pela última vez. Eu tinha uma bolsa em Chicago
que começava no outono. Ele voltou e a gente começou a namorar.
Namorar?
Não sei de que outro jeito dizer. Saíamos todas as noites.
Saíam juntos?
Ele costumava me levar para esses bares de música country na periferia de
Knoxville. O Indian Rock. O Moonlight Diner. Eu me vestia que nem uma
piranha e dançava até cair. O Bobby tocava com a banda. Solava no bandolim.
Eu falava pras pessoas que éramos casados. Para evitar as brigas. Adorava. Tem
certeza de que quer ouvir sobre isso?
Acho que sim. Por quê?
Pode ficar um pouco picante.
Quantos anos você tinha?
Catorze. Quase.
Falava para as pessoas que você e seu irmão eram casados?
Ninguém sabia que ele era meu irmão. Quase nunca.
Por ele não havia problema?
Imagino que não. Era pra ser uma espécie de piada.
Talvez eu deva perguntar se tem certeza de que quer continuar com isso.
Já que você começou.
Porque imagino que não fosse uma piada para você.
Não.
Gostaria de acrescentar alguma coisa?
Apenas que queria me casar com ele. Como já deve ter adivinhado. Sempre
quis. Nada muito complicado.
Queria se casar com seu irmão?
Queria me casar com ele. É.
Entendo.
Duvido. Enfim, as cartas estão na mesa.
Você disse isso ao seu irmão?
Disse.
Que queria se casar com ele.
É. Pedi pra ele casar comigo.
Pediu ao seu irmão para se casar com você.
É.
Estava falando sério.
Muito sério.
O que ele disse?
Perguntou o que eu tinha bebido.
Você bebia?
Não. Eu não bebo. Foi só um modo de dizer.
E você não via nada de errado nisso?
Pra mim o fato de não ser aceitável não era problema nosso. Eu sabia que ele
me amava. Que só estava com medo. Já sabia que isso ia acontecer fazia muito
tempo. Eu não tinha mais pra onde correr. Sabia que teríamos que fugir mas
nada disso me preocupava. Beijei ele no carro. A gente se beijou duas vezes, na
verdade. A primeira bem de leve. Ele deu uns tapinhas na minha mão
aparentando a maior inocência e se virou para ligar o carro mas pus a mão no
rosto dele e fiz com que se virasse para mim e a gente se beijou de novo e dessa
vez não teve inocência nenhuma e ele ficou ofegante. Eu fiquei ofegante.
Apoiei a cabeça no ombro dele e Bobby disse a gente não pode fazer isso. Você
sabe que a gente não pode fazer isso. Tive vontade de dizer que não sabia coisa
nenhuma. Deveria. Beijei ele no rosto. Não botei a menor fé na determinação
dele mas foi um erro meu. A gente nunca mais se beijou.
Você está falando sério.
Estou.
Você já tinha se decidido mesmo antes da noite em questão.
A noite em questão. É. Fazia anos que eu sabia. Falei pra ele que não me
importava em esperar. Daí desatei a chorar. Não conseguia mais parar.
Você realmente achou que seu irmão fosse se casar com você?
Achei. Mesmo. Devia ter se casado.
E como seria? Vocês iam viver em outro país?
É.
Não pensou que poderia encontrar outra pessoa?
Não havia mais ninguém. Nunca haveria. Pra ele também não. Ele só não
sabia disso ainda.
Quantos anos tinha quando percebeu que estava apaixonada pelo seu irmão?
Provavelmente doze. Talvez menos. Menos. Vagabunda.
E não pensou duas vezes. Como se diz.
Não é fácil explicar, mas ficou claro pra mim que não havia uma visão
alternativa das coisas para abraçar. Ele estava na faculdade e eu só me sentia
viva quando voltava pra casa. Para o Natal e outros eventos.
E na noite em questão contou tudo a ele.
É.
Não sabia o que ele ia dizer?
Eu não me importava. A gente precisava de um ponto de partida.
E o fato de ele mais ou menos rejeitar você não mudou nada.
Não. Perguntei com quem achava que eu devia me casar mas é claro que ele
não tinha resposta pra isso. Ficou repetindo que eu tinha catorze anos mas falei
que era ele que estava falando bobagem, não eu. E se um de nós morresse?
Quem dispõe da eternidade?
Quantos anos seu irmão tinha?
Vinte e um.
Ele namorava?
Tentava. Nunca dava em nada. Eu não sentia ciúme. Queria que conhecesse
outras garotas. Que percebesse a realidade da situação dele.
Que estava apaixonado por você.
É. O sangue do seu sangue. Uma pena. Éramos como os últimos da Terra.
Podíamos nos unir às crenças e práticas dos milhões de mortos sob os nossos
pés ou recomeçar. Ele precisava mesmo pensar sobre aquilo? Por que eu deveria
ficar sozinha? Ou ele? Falei que não dava nem pra saber se havia justiça no meu
coração considerando que eu não tinha ninguém para amar e ninguém que me
amasse. Uma pessoa não pode se atribuir o crédito por uma verdade que não
encontra aceitação. Onde está o reflexo do seu valor? E quem vai te defender
quando você morrer?
Desculpe. Não queria fazer você chorar.
Não fez.
Quer parar um pouco?
Não.
O que mais?
Falei que queria ter um filho com ele.
Que queria ter um filho com ele.
Olha. Não adianta nada ficar repetindo essas coisas pra mim só pra
sublinhar o seu horror e insanidade. Você não é capaz de ver o mundo que eu
vejo. Não é capaz de enxergar com meus olhos. Nunca vai ser.
Tenho certeza.
Falei para o meu irmão que estava apaixonada por ele e que sempre tinha
estado e que continuaria a estar até morrer e que não tinha culpa se ele era meu
irmão. A gente podia ver aquilo como mera má sorte. Falei que ele devia
renunciar.
Renunciar?
É. Renunciar a suas prerrogativas fraternas.
Como ele faria isso?
Sei lá. Dar três voltinhas sem sair do lugar e falar denuncio esse laço de
sangue.
E depois casar com você.
E depois casar comigo. É. Embora alguém pudesse dizer que a realidade era
um pouco mais crua que isso.
Quer dizer que você queria fazer sexo com seu irmão?
É.
O estigma do incesto não significava nada para você.
O que espera que eu diga? Que sou uma menina má? O que o Westermarck
é de mim e o que eu sou do Westermarck? Queria fazer amor com meu irmão.
Sempre quis. Ainda quero. Existem coisas piores no mundo.
Você deve ter percebido como isso o deixava aflito.
Eu sei. Só esperava que ele caísse em si. Que compreendesse de repente o
que no fundo sempre soubera. Acho que pensei que ia conseguir arrancar ele
daquele estado de complacência pela força do choque. Eu segurava a mão dele.
Sentava colada nele quando estávamos no carro voltando pra casa e deitava a
cabeça no ombro dele. Imagino que fosse uma desavergonhada mas se tinha
uma coisa que não me preocupava era a vergonha. Eu sabia que tinha uma
única chance e um único amor. E que não estava enganada sobre os
sentimentos dele. Percebia como ele me olhava.
Você parece ter tanta certeza.
É. No spring break a gente foi para uma pousada em Patagonia no Arizona e
quando não consegui dormir fui até o quarto dele, sentei na cama e pensei que
ele fosse me abraçar e me beijar mas ele não fez isso. Descobri depois dessa
noite que o desejo em seu estado mais bruto pode ser algo próximo da
angústia. Achei que alguma coisa tivesse mudado no jantar mas não tinha.
Fiquei preocupada que ele se sentisse culpado se eu morresse e essa
preocupação nunca me saía da cabeça. Uma amiga me falou que se uma pessoa
se prende a um amor que jamais será correspondido vive assombrada por uma
raiva impossível de apaziguar.
Você sente raiva?
Não sei. Só sei que não seria absurdo afirmar que toda infelicidade humana
deriva da injustiça. E que a tristeza é tudo que resta quando você gasta a raiva e
percebe sua impotência.
Que tal parar para um chá?
Está feio assim?
Preciso só de um minuto.
Sem pressa. Vou ficar vendo suas anotações.

Como se sente?
Tudo bem.
Certo. O fato de não possuir nada.
O que é que tem?
Abrir mão de tudo não seria uma forma de se preparar para a morte?
Não acredito que haja uma forma de se preparar para a morte. É preciso
inventar uma. Não existe vantagem evolutiva em ser bom em morrer. Para
quem deixaria isso? A coisa com que você está lidando — o tempo — é
imaleável. Exceto que quanto mais você o acalenta menos o tem. O fluido do
ser está vazando no chão. É bom andar rápido. Mas a pressa em si consome o
que você deseja preservar. Não há como lidar com o que você foi enviado aqui
pra lidar. É difícil demais.
Não discordo. Acho. Mesmo que provavelmente fosse incapaz de dizer isso
de um jeito tão elaborado. Ou não quisesse.
Elaborado. É um código para histérico?
Não. Presumo que você não caracterizaria os carros de corrida do seu irmão
como uma ideação suicida.
Não. Tolices não fazem minha cabeça.
Você disse que muitos físicos praticam alpinismo.
É. Mas pra ele não teria funcionado.
Por quê?
Porque ele não tinha medo de altura. Qual seria a finalidade?
Do que ele tinha medo?
De profundezas.
E da velocidade?
Nunca vi um piloto que tivesse medo da velocidade. Todos acham que os
acidentes só acontecem com os outros. Segundo um velho ditado das pistas o
que mata não é andar rápido mas parar rápido. Ninguém toca no assunto mas
está sempre lá. Tem uma foto da Nina Rindt tirada em Monza três anos atrás.
Com uma roupa linda, sentada, olhando para a pista. O marido dela acabou de
morrer mas ela não sabe. Eu e o Bobby fomos à casa deles em Genebra. Na
parede da sala tinha um carro de corrida pendurado de cabeça para baixo. Ela
foi modelo, era linda. Vinha de uma família finlandesa rica. Estavam muito
apaixonados, ela e o Jochen, e morri de inveja. Que boba. Não sabia que
estávamos para virar irmãs do único jeito que importava.
Você disse que não sentia vergonha em relação ao Bobby. Até que ponto?
Até onde vai seu apetite por detalhes lúbricos?
Sei lá. Não faço ideia do grau de lubricidade.
Contei a ele sobre um sonho que tive.
Um sonho.
É.
Com intimidades.
É.
Qual foi a reação dele?
A que seria de esperar.
Ficou horrorizado.
Com razão. Imagino.
O sonho era particularmente rico em detalhes.
Bem rico.
Era comum você ter esses sonhos com seu irmão?
Não. Na maioria das vezes eu sonhava com nós dois. Vivendo juntos.
Sonhava que éramos casados. Hoje em dia nem tanto. Acha isso triste? Imagino
que não.
Não sei o que acho.
Eu e ele estávamos em uma cabana na floresta. Talvez fosse parecida com a
cabana onde meu pai morou só que a dele ficava em um lago. Acho que podia
ser aqui em Wisconsin. Era outono, a lareira estava acesa, o chão talvez
estivesse coberto de neve. Não tenho certeza. Era uma lareira grande de pedra,
dava pra ver o clarão do fogo do quarto e havia velas por todo lado.
Quando foi isso?
Faz dois anos. Quer que conte ou não?
Quero.
Havia velas por todo lado, estávamos nus ele olhava pra mim por entre as
minhas pernas, sorria, seu rosto brilhava à luz das velas, todo lambuzado do
meu próprio fluido, daí acordei. Meu orgasmo me acordou.
Contou isso ao seu irmão?
Contei.
O que ele disse?
Disse você não pode falar comigo desse jeito. Nunca mais fale comigo desse
jeito.
E?
E o quê?
O que você disse?
Disse que não falava. E não falei.
Como se sentiu sobre isso?
Sobre o sonho?
É.
Lamentei.
Ter contado a ele?
Não. Que fosse um sonho. Só isso. Estou cansada.
Tudo bem. Vejo você na quarta?
Não sei. Está bem. A gente se vê.
vii

Como está?
Estou bem.
Não conhecia esse suéter.
É emprestado.
Você não tem casaco, tem?
Não pretendo ir a lugar nenhum.
Posso trazer um pra você.
Certo. Que tal galochas?
Por que não. O que aconteceu com seu cabelo?
O Leonard cortou um pouco.
Cortou com o quê?
Ficou tão ruim assim?
Só queria saber onde ele conseguiu a tesoura.
Isso eu não conto.
Tudo bem. Escutei a fita da nossa última sessão.
E que tal.
Fiquei pensando que quando o paciente revela alguma intimidade ao
terapeuta, mesmo que ele goste de pensar que fez por merecer um novo nível
de confiança pode acontecer de não ser nada disso.
Então acontece de ser o quê? Na sua opinião.
Pode ser que a pessoa esteja com medo de que a terapia a faça confessar
alguma outra intimidade que considera mais privada. Embora eu reconheça
que nesse caso pode ser difícil de imaginar.
Então eu contaria alguma coisa que não quero que saiba para esconder
alguma coisa que definitivamente não quero que saiba.
Algo nessa linha.
Soa psicanalítico demais pra mim.
Sei. Na verdade soa como algo que eu disse certa vez.
Enfim, tendo exposto o caráter insidioso de sua paciente, que horrores acha
que ela pode estar escondendo?
Não sei. O que tem aí pra mim?
Marlon Brando em O selvagem.
Como?
A fala dele. Enfim, por que eu contaria? Não é esse o objetivo da manobra?
Ainda imagina um relacionamento íntimo com seu irmão?
Meu irmão morreu.
Desculpe. Foi por isso que saiu do ihes? Bem. Certo. Claro. Ima­gino que.
Acho que o que eu queria perguntar é se pretende voltar.
Não.
Onde aprendeu alemão?
Na Alemanha.
Você fala sem sotaque.
Como pode saber?
Para o meu ouvido, pelo menos. Minha avó falava alemão. Alemão e iídiche.
Um motorista alemão ficou muito interessado em mim uma vez.
E vocês tiveram alguma coisa?
Não. Mas o Bobby não sabia disso. Falei que não era da conta dele. Só
queria que visse o tremendo falso que ele era.
Ele ficou com ciúme.
Nem me fale.
Gostou da Alemanha?
Gostei. Me surpreendeu. Acho que estudei alemão com mais afinco do que
qualquer outra língua. Tinha uns dez cadernos codificados com cores. Os
artigos são traiçoeiros. E é uma sociedade muito afetada. Eu mantinha um
registro de como falar e me portar.
Seu amigo tinha saído do Instituto a essa altura. É isso mesmo?
É.
Mas não foi por isso que você decidiu largar a matemática.
Não. Eu teria largado de qualquer jeito.
Não sente falta?
É como sentir falta dos mortos. Eles não vão voltar. Velhas questões
fundamentais provavelmente continuarão a tumultuar meus sonhos. E de vez
em quando sinto falta do mundo do cálculo propriamente dito. De resolver
problemas. Quando as peças de repente se encaixam após dias de labuta é
como um animal perdido se abrigando da chuva. A gente quase diz aí está
você. Fiquei tão preocupada. Mal se dá ao trabalho de revisar o que fez. Você
sabe e pronto. Que o que está olhando é real. É uma alegria.
Já tentou cortar os pulsos?
Se já tentei cortar os pulsos.
É.
Você às vezes abusa. Sabia?
Não. Suas fantasias suicidas. Em que pé estamos?
Eu não contaria se soubesse.
Você se sente culpada pelo quê?
Fora ter nascido, imagino.
Fora isso. É.
Acho que a primeira coisa a dizer é que duvido seriamente que as pessoas
sejam levadas ao suicídio pela culpa. Desde quando somos tão virtuosos?
Quando você se despediu do Kid.
O que é que tem.
Ele quis saber se você ia sentir falta dele.
É.
O que você disse?
Não sabia o que falar. A tristeza foi sufocante. Não era algo que eu esperasse.
Mas você não vai voltar a vê-lo.
Não.
Não pretendo perguntar como pode ter tanta certeza. Depois de quantos
anos?
Oito. O Ogdóade.
O Ogdóade?
Em anos gnósticos.
Você não tem nenhuma clareza do que ele representava.
Ele representava a si mesmo. Ele é seu próprio ser, não meu. Foi a única
coisa que aprendi de verdade. Interprete como achar melhor. Nunca conheci
um psicoterapeuta que não quisesse matar o Kid.
No fim você se afeiçoou a ele.
Ele é pequeno, frágil e corajoso. Como é a vida interior de um eidolon? Seus
pensamentos e perguntas se originam dele? E os meus se originam de mim? É
uma criatura minha? Sou uma criatura dele? Eu via como ele tinha que se virar
com suas nadadeiras e como ficava constrangido que eu notasse. Seu jeito de
falar, o vaivém incessante. Eram obra minha? Não tenho todo esse talento. Não
sei responder suas perguntas. A tradição de trolls ou demônios vigiando
curiosos deve ser tão antiga quanto a linguagem. Ainda assim, talvez um amigo
deva ser alguém que você consegue tocar. Sei lá. Não tenho mais uma opinião
sobre a realidade. Antes tinha. Agora não tenho mais. A primeira regra do
mundo é que tudo desaparece pra sempre. Quem se recusa a aceitar isso vive
numa fantasia.
Você chegou a fazer algum exame para verificar sua pressão intracraniana?
Não encontrei nenhum registro.
Não. Mas provavelmente é para onde estamos indo. Eu e minha grande
boca.
Sou responsável por você. Isso na verdade não mudaria nada. Quem sabe me
dê uma chance de ver melhor o que está acontecendo aí dentro.
Eu gostaria de um pouco de privacidade. Tem sempre alguém me seguindo
por toda parte. Sou observada no banho. Não posso usar nada nos pés. Tenho
certeza de que ia atrair a Enfermeira Carrancuda.
Vou pensar no seu caso.
E se eu voltar à medicação.
Faria isso?
Não.
A gente pode considerar alguns remédios.
Você nem tem um diagnóstico mas já está pronto para prescrever.
Então por que tocou no assunto?
Só queria ver se ia tentar me empurrar suas drogas. Claro que o lítio sempre
vem por último porque não é patenteável. Um negócio assim não dá um
centavo de lucro. E os nomes são fantásticos. Depakote, Seroquel. Risperdal.
Meu Deus. Quem inventa essas coisas?
Pra você é tudo uma conspiração farmacêutica.
Não. Não acredito nisso. Por que estou pegando no seu pé? Sonhos são
frágeis. Se a gente os materializa com drogas por que não deveria ser
igualmente capaz de desmaterializá-los?
É esse lado seu que os psicoterapeutas descreveram como difícil?
Acho que você podia perguntar a eles o que esperavam de uma paciente com
transtorno mental. De todo modo no fim das contas eu mal era uma paciente.
Mas eles continuaram sendo médicos difíceis.
Você estudou a literatura só para confundi-los ainda mais.
Não estudei nada. O que havia pra estudar? Se eles podiam se confundir
com as próprias doutrinas já não teriam feito isso?
Você comentou sobre despertar de sonhos ameaçadores. Chegou a ver
alguma coisa realmente perturbadora?
Nunca vi monstros. Criaturas carregando suas cabeças por aí. Sempre achei
que as piores coisas transcendiam a representação. Eu não conseguia compor
uma imagem delas. Não tinha as partes.
Era sempre assim?
Não. E às vezes tudo simplesmente sumia. Ainda some. Às vezes eu acordava
no inverno no escuro e todo vestígio de terror tinha ido embora de fininho no
meio da noite e eu só ficava ali deitada com a neve batendo no vidro. Pensava
em acender o abajur mas ficava só deitada escutando o silêncio. O vento em
meio ao silêncio. Hoje em dia quando vejo esses pacientes de camisolão cagado
largados nas macas pelo corredor com o rosto virado para a parede me
pergunto o que a humanidade significa. Se me incluo nela.
Queria estar incluída?
Muito. Só não estava disposta a pagar o ingresso. Em um dia bom podia até
admitir que fôssemos as mesmas criaturas. Muita coisa era igual e havia poucas
diferenças. As mesmas formas improváveis. Cotovelos. Crânios. Resquícios de
alma.
Fico surpreso ao ouvir que você se sentia assim.
Os animais não parecem sofrer de doença mental. Por quê, na sua opinião?
Não sei. Mas imagino que você faça alguma ideia.
Por que imagina isso?
Porque foi você quem levantou a questão. Você é como uma advogada.
No sentido de não fazer uma pergunta sem ter uma resposta para ela.
É. Mas e um cachorro com raiva?
A raiva não é uma doença mental. É uma doença do cérebro.
Distinção interessante. Tudo bem, por quê? Não são inteligentes o
suficiente?
Não acho que seja isso. Os cetáceos são bastante inteligentes e não parecem
sofrer de demência. Acho que para haver loucura é preciso haver linguagem.
Presumo que para poder escutar as vozes na sua cabeça.
Não sei bem por quê. Mas é preciso entender o que foi o advento da
linguagem. O cérebro se virou perfeitamente bem sem ela por milhões e
milhões de anos. A chegada da linguagem foi como a invasão de um sistema
parasitário. Cooptando essas áreas do cérebro que eram menos dedicadas. As
mais suscetíveis de apropriação.
Uma invasão parasitária.
É.
Você está falando sério.
Estou. A orientação interna de um sistema vivo é tão necessária para sua
sobrevivência quanto o oxigênio e o hidrogênio. A regulação de qualquer
sistema evolui concomitantemente ao próprio sistema. Desde piscar e tossir até
a decisão de fugir para salvar sua vida. Com exceção da linguagem todas as
faculdades têm a mesma história. As únicas regras da evolução que a linguagem
segue são as necessárias para sua própria construção. Um processo que levou
pouco mais que um piscar de olhos. A extraordinária utilidade da linguagem
fez dela uma epidemia do dia para a noite. Ela parece ter se espalhado de
maneira quase instantânea pelos recessos mais remotos da humanidade. O
mesmo isolamento dos grupos que levava a seu caráter único parece não ter
servido de proteção alguma contra essa invasão e tanto a forma da linguagem
como as estratégias através das quais se fixou no cérebro parecem praticamente
universais. A exigência mais imediata foi um aumento da capacidade de
produzir sons. A linguagem parece ter se originado no sul da África e essa
exigência provavelmente explica os cliques das línguas khoisan. O fato de haver
mais coisas para nomear do que sons para dar nome a elas. Em todo caso a
competência física para a fala foi provavelmente o obstáculo mais difícil. A
faringe se alongou até que o mecanismo em sua presente forma quase
estrangulasse o dono. Somos a única espécie de mamífero que não consegue
engolir e articular sons ao mesmo tempo. Pense num gato rosnando enquanto
come e tente fazer igual. Enfim, o sistema inconsciente de orientação tem
milhões de anos, a fala menos de cem mil. O cérebro não fazia a menor ideia
da chegada disso. O inconsciente deve ter feito todo tipo de reordenação para
acomodar um sistema que se revelou absolutamente incansável. A linguagem
não só pode ser comparada a uma invasão parasitária como também não pode
ser comparada a mais nada.
Bela dissertação.
O que torna a linguagem interessante é que ela não evoluiu a partir de
nenhuma necessidade conhecida. Era só uma ideia. Lysenko voltando dos
mortos. E a ideia, vale repetir, era que uma coisa podia representar outra. Um
sistema biológico sob um ataque bem-sucedido da razão humana.
Não tenho certeza se já vi a biologia evolucionária sendo discutida em
termos tão belicistas. E o inconsciente não gosta de falar conosco devido a seus
milhões de anos de história desprovidos de linguagem?
Exato. Ele resolve problemas e é perfeitamente capaz de nos fornecer as
respostas. Mas hábitos com milhões de anos de idade são difíceis de largar. Ele
podia facilmente dizer: Porra, Kekulé, é um anel. Mas acha mais cômodo
improvisar uma argola de cobra e dar voltas com ela na cachola de Kekulé
enquanto ele cochila diante do fogo. É por isso que nossos sonhos são cheios
de drama e metáfora.
Não sei a que se refere a argola de cobra.
É a configuração da molécula de benzeno. Não importa.
Palavras preocupantes. Mas pelo que entendi você está sugerindo que o
advento da linguagem, fora seu enorme valor, foi disruptivo.
Muito disruptivo. Compatível com seu valor. Destruição criativa. Todo tipo
de talentos e habilidades devem ter se perdido. Sobretudo comunicativos. Mas
também coisas como a navegação animal e provavelmente até a riqueza dos
sonhos. No fim das contas esse estranho novo código deve ter substituído ao
menos parte do mundo por aquilo que pode ser dito sobre o mundo. A
realidade pela opinião. A narrativa pelo comentário.
E a sanidade pela loucura, não se esqueça.
É. Não esqueço.
E a chegada da guerra universal.
Isso também.
Como viemos parar nesse assunto?
Não tem problema. Podemos falar de outra coisa.
O que mais?
O que mais o quê?
Quanto tempo faz que a sinestesia anda por aí? Existe alguma coisa
linguística acerca dela?
Não que eu saiba. Parece bastante primeva. Cor, sabor, cheiro. Embora eu
não tenha certeza de que combinar todos os sentidos seja uma ideia tão boa. A
título de sobrevivência.
E o autismo? Mais especificamente da variedade idiot savant.
Linguístico até a medula.
Até a medula.
A sinestesia pode ser coisa nossa também. Agora que parei para pensar. Um
sinestésico que vê o número cinco como vermelho em arábico pode
perfeitamente vê-lo em vermelho em algarismos romanos também. O que
sugere que o que veem como vermelho é um conceito e não o número físico.
Que tal?
E a sinestesia era algo que você mantinha em segredo das outras crianças.
Entre outras coisas. Muitas outras, na verdade. Ajuda você a lembrar.
O que ajuda a lembrar?
A sinestesia. É mais fácil lembrar duas coisas do que uma. Por isso é mais
fácil lembrar as palavras de uma canção do que as palavras de um poema. Por
exemplo. A música é uma armação sobre a qual a gente monta as palavras.
O que mais?
Mais um monte.
As outras crianças te achavam esquisita.
Não era uma suposição.
Você concordava com elas.
Podia entender sua perspectiva.
Alguma delas era boa em matemática?
Não.
Nem um pouco?
Nem um pouco.
O Bobby era?
Acho que você já me perguntou isso. Ele era bom. Apenas não o bastante.
Mudou pra física. Não fui eu quem disse que achava que ele devia. Ele mudou
e pronto. Era bom em fazer contas de cabeça. Melhor do que eu. Tem gente
que acha que isso é fazer matemática. Posso perguntar uma coisa?
Claro.
Estou cheirando mal?
Por quê? Tem negligenciado a higiene?
Está tão mal assim?
Você não consegue tomar banho com alguém olhando?
Eu tomo banho.
É bastante comum aqui. As pessoas tendem a negligenciar coisas como a
higiene.
O que mais é como a higiene?
Sei lá. Alguém criticou sua aparência?
Não que eu saiba. Sei que às vezes parece que saí de casa com pressa. Eu
costumava gostar de me arrumar pra ir dançar. Mas era só figurino.
Faz de conta.
É.
Você se arrumava para o Bobby.
Imagino. É.
Lamento.
Tudo bem. De vez em quando eu pegava ele me olhando e saía do quarto
aos prantos. Sabia que nunca mais seria amada daquele jeito. Só pensava que
estaríamos sempre juntos. Sei que você acha que eu deveria ter considerado a
situação mais aberrante do que considerei, mas minha vida não é como a sua.
Minha hora. Meu dia. Eu costumava sonhar com nossa primeira vez. Continuo
sonhando. Queria ser reverenciada. Queria ser adentrada como uma catedral.
Talvez fosse melhor conversarmos sobre outra coisa.
Eu sei.
Você reservou algumas farpas a Jung mas acho que pouco falou sobre Freud.
Eles eram yung e facilmente freudzardos.
Como?
Nada. Uma frase do Joyce. Acho os estudos de caso interessantes. Claro que
sempre tem alguma coisa à venda. O livro dos sonhos é bom na medida em
que não é um romance. Acho que Freud tem uma visão incerta da nossa vida
interior. Talvez até mais do que Jung. Ela não é tão complicada. Se eles
tivessem pensado um pouco mais na evolução biológica e passado menos
tempo elaborando teorias malucas poderiam ter descoberto algumas verdades
simples.
Você não concorda que as teorias deles são ainda assim baseadas na
observação real?
Como a astrologia.
Você não está falando sério.
Talvez não. Freud pelo menos não tenta dizer o que são os sonhos.
E isso é bom.
É. Porque ele não sabe. Criar uma linguagem para categorias ine­xistentes
não parece uma estratégia particularmente boa para quem pretende deixar
algum tipo de legado intelectual. É preciso haver uma metáfora pra esse tipo de
iniciativa. Uma imagem como ossos teóricos desbotando no deserto.
A matemática não está sujeita a intempéries.
Não. Quando a matemática desaparecer tudo vai desaparecer.
Mas mesmo assim…
Mesmo assim. E no entanto. A vida é dura. Nunca vou deixar de amar a
matemática mas sou uma cética contumaz e talvez minhas dúvidas não possam
ser dirimidas pela investigação lógica. O sobre-o-qual que não se pode.
Existe algum insight isolado que sustente a maior parte da matemática
moderna?
Ah, essa é boa.
Desculpe.
Não. A pergunta não é estúpida. É só que não temos a resposta. Coisas
como as profundezas da coomologia ou o discontinuum de Cantor são
contaminadas pelo sabor de mundos insuspeitados. Podemos ver as pegadas de
álgebras cujo domínio inteiro é imune à comutação. Matrizes cuja incubação
lança uma sombra sobre o solo de suas origens e que aí deixam uma marca à
qual não mais se conformam. A álgebra homológica veio a moldar boa parte da
matemática moderna. Mas no fim será simplesmente absorvida pelo mundo do
cálculo.
Presumo que a obra de Gödel jamais sofrerá o mesmo destino da obra de
Freud. Os ossos desbotando no chão ou qualquer coisa assim.
Minha bronca com os platônicos é coisa do passado. Presumindo afinal que
alguém pudesse fazer isso, qual seria a vantagem de ignorar a natureza
transcendente das verdades matemáticas. Não existe mais nada a respeito do
qual todos os homens sejam obrigados a concordar, e quando a última luz no
último olhar se apagar e levar toda especulação consigo pela eternidade acho
que poderia até acontecer de essas verdades brilharem por um breve momento
à luz final. Antes de as trevas e o frio engolirem tudo.
Quer fazer uma pausa?
Acho que sim. Se você quiser.
Aceita um cigarro?
Não. Obrigada.
Não se compreende, não é? O que é a matemática.
Não.
Algum dia será compreendida?
Não.
Seu amigo Gödel era de fato um platônico irredutível.
Era. Ele achava que os objetos matemáticos tinham a mesma realidade de
árvores e pedras.
Parece uma opinião esquisita.
É uma opinião esquisita. Imagino que outros matemáticos tendam a tomar
as opiniões de Gödel ao pé da letra, mas elas podiam refletir certo ceticismo no
que diz respeito à própria realidade. Confesso que nunca vi um seis. Não faço a
menor ideia do que constitui um objeto matemático. Na minha experiência
tudo que é matemático vem na forma de uma diretiva. O conceito numérico
de seis é totalmente inerte. Gödel nem sempre foi platônico, mas não é o
primeiro cientista a aceitar uma teoria implausível simplesmente porque
explicava os fatos. Depois dos artigos de 1931 ficou claro para ele que somos
capazes de insights matemáticos de que uma Máquina da Verdade Universal
não é. Mas por que Gödel não via o menor problema com a ideia de abstrações
matemáticas como entidades factuais eu não saberia dizer. Os platônicos
parecem mais ou menos mudos sobre a origem da matemática e
extraordinariamente despreocupados quanto ao que poderia ser o propósito do
cálculo em um universo desabitado. Acho que acreditar em fantasmas é muito
mais comum entre os matemáticos do que geralmente se imagina. Gödel no
fim se tornou algo próximo de um deísta. Não que seguisse algum tipo de
prática espiritual. É uma tradição que vai de Pitágoras a Newton e a Cantor.
Que aliás atribuiu uma origem sobrenatural aos transfinitos. Alef Zero. Alef
Um. Não foi de grande ajuda para sua causa. Suas ideias sobre infinitos
relativos tiveram de aguardar a morte de toda uma geração de matemáticos
alemães antes que pudessem mesmo ser ouvidas. O Universo é inteligente? Não
é isso que está em questão? Meu irmão costumava dizer nem tanto.
Provavelmente basta a cada dia. Gödel nunca afirma diretamente que existe
uma aliança com a qual todos os matemáticos consentem mas temos a clara
sensação de que a esperança existe. Sei do fascínio. Um palimpsesto cintilante
de eterno anuimento. Mas afirmar que os números de algum modo existam no
Universo sem ser ensejados por uma inteligência não requer um tipo diferente
de matemática. Requer um tipo diferente de universo.
Esse universo existe?
Algumas ideias de Gödel são simplesmente bizarras. A circularidade do
tempo funciona matematicamente mas nunca vai ter nada a ver com encontrar
seu avô morto. As ideias sobre Deus. Botei o platonismo na mesma caixa e
pronto. Só que ele teimava em não ficar ali. Um pouco devagar caiu a ficha que
é de Gödel que estamos falando, e embora ele pudesse ter ideias ridículas sobre
todo tipo de coisa será que podia de fato ter ideias ridículas sobre a
matemática?
E o que você concluiu?
Ainda estou concluindo.
Para que lado se inclina?
Voltei e reli duas vezes os artigos de 1931. Da última vez que reli sonhei com
eles. Sonhei com o segundo artigo. Daí acordei e conforme acordava o sonho
começou a se desfazer. O sonho e a história do sonho. E eu sabia que no sonho
havia uma compreensão que era simplesmente uma dádiva e ela estava
desaparecendo na escuridão e sentei na cama e a chamei de volta mas ela
simplesmente se desmanchou na minha mente e depois disso vi os insights do
artigo sob uma luz muito diferente mas não sei se o sonho tem algum papel
nessa compreensão e suspeito que nunca vou saber.
O sonho tinha números?
Claro que essa é a questão, não é? Não, não tinha. Consistiu inteiramente
em compreensão.
Não tenho certeza se entendi. Mas ela não ia voltar.
Não ia voltar.
Sua visão das coisas mudou.
É. Comecei a ter dúvidas sobre minha visão material do universo até então.
Isso foi algo que veio devagar?
Não sei. Não sei o que é devagar. Gödel fala de uma série de matemáticos
que passaram por experiências transformadoras. Imagino que eu deveria dar
uma examinada neles. Ele próprio nunca teve uma experiência dessas. Acho
que talvez sentisse inveja. Acho que o sonho continua ali. E que sabe se deve
ou não voltar a me visitar. Ou eu a ele. Gödel vive reclamando que não
compreendem seus artigos sobre a indeterminação. Reli os artigos e vi que ele
provavelmente estava certo. Eu não tinha compreendido.
E agora compreende?
Defina compreender.
Tudo bem. Mudando de assunto. Para você a matemática é feita pelo
inconsciente.
É. Não sei nada de matemática. Só tento anotar quando aparece.
Acho que deve estar exagerando até certo ponto.
Talvez. Até certo ponto. Por que isso interessa a você?
Porque interessa a você. Quando teve esse sonho?
Anteontem.
Mentira.
Seis meses atrás. Sete, talvez.
Se o sonho voltasse a… Que termo você usou? Visitá-la? Se conseguisse se
lembrar do sonho você me contaria?
Não sei. Teria que pensar um pouco. E se fosse obsceno?
Matemática obscena.
Claro. Por que não?
Mas o que foi que compreendeu?
Em relação a Gödel?
Em relação a Gödel.
Acho que vi o que ele viu. Que encontrar os limites de um sistema era mais
do que apenas encontrar os limites. Era encontrar o que fica além dos limites.
Você só tinha que encontrar os limites primeiro.
E o que fica além dos limites?
Nesse caso a compreensão de que aquilo de que você havia suspeitado por
tanto tempo era realmente verdade. Que a matemática não tinha limites. Que
era inexaurível. Isso não se questionava mais. E agora você tinha que parar e
pensar sobre o universo.
E o que você pensou? Sobre o universo.
Que a investigação iria penar com a disponibilidade cada vez menor do
empírico. Mesmo enquanto eu trabalhava o universo estava encolhendo.
Então o que você usaria na investigação?
Imagino que a única coisa que tinha. A mente.
E o que a faz achar que sua mente estaria à altura da tarefa?
O fato de que estamos aqui. Não em outro lugar. E não há mais nada para
saber. Algumas ideias de Gödel eram inquestionáveis. Pensei em seu
platonismo mas daí pensei que não era tão diferente do de Frege. Dar outra
olhada? Não foi de grande ajuda. Pensei que talvez a mesma audácia que os
havia levado a suas ideias fundamentais podia muito bem originar outras
investigações indistinguíveis de um mero palavrório. Tentei esquecer isso por
um tempo. Mas não consegui. Passei a discordar cada vez mais de Aristóteles.
Ele começou a parecer cada vez mais esse cara da tábula rasa. Eu sabia que não
acontecia de no nascimento não sermos seres humanos. Pelo que entendi ele
compreendeu que a mente tem forma mas parece não ter compreendido o que
isso significava. A mente precisa ser capaz de sua própria existência.
Não entendo o que isso quer dizer.
Eu sei. Só não me ocorre outro modo de dizer. Compreendi que se me
deixasse enredar completamente talvez nunca mais encontrasse a saída. Pior,
podia nem querer encontrá-la.
Anuimento. Isso é uma palavra?
Não. O substantivo seria anuência. Mas a anuência é um estado geral para a
especificidade de anuir. Não existe resposta para a questão da unanimidade
entre matemáticos. Meu novo amigo Chihara — possível admirador de Gödel
mas com certeza não de suas intuições — afirma que enquanto organismos
biológicos os matemáticos são basicamente muito similares.
É assim que ele explica a concordância deles sobre a matemática? Dizendo
que são todos iguais?
Acho que poucos matemáticos perceberiam o humor dessa afirmação. E ela
dificilmente explicaria nossa discordância sobre quase tudo o mais. Imagino
também que poderíamos dizer que a intuição matemática explica apenas um
acesso à matemática, não sua existência.
Então como explicar a existência dela?
Talvez o melhor que possamos fazer seja apontar. A exemplo de
Wittgenstein. O corpus da matemática é constituído de problemas, não
respostas. Algo que os problemas admitem.
Isso é verdade?
Se é verdade não sei. Mas talvez explique a sensação de descoberta.
Estamos rodeando o conceito de tautologia em matemática?
Gostei disso. Rodeando a tautologia.
Mas você continua admirando Gödel.
Muito.
E seu novo amigo?
Chihara.
É. Ele também seria um admirador?
Imagino que sim. Acho que o sucesso científico em tenra idade implica
fardos insuspeitados. E o maior deles é o medo. Chihara saberia disso.
Medo? De quê?
De estar errado. Quando perguntaram a Dirac faz pouco tempo por que não
tinha anunciado publicamente que a partícula espreitando em seus cálculos era
um antielétron o que você acha que ele disse?
Não sei.
Pura covardia.
O que mais?
Em relação a Gödel?
É. Pelo visto ele ocupa um bocado de espaço.
Gödel escreveu os artigos de 1931 motivado pela leitura dos Principia de
Russell e Whitehead. Russell acreditava que Gödel era o único que tinha lido
aquilo por inteiro e ficou admirado com sua compreensão da obra. Claro que
ela nunca foi concluída. Russell percebeu o problema nela e implorou que
Whitehead não a publicasse. Os dois mal se falaram depois disso. Não ajudou
muito o fato de Russell viver dando em cima da jovem esposa de Whitehead.
Ele levava uma vida social limitada na época e disse que se não dava para comer
a esposa dos amigos então quem ia comer?
Ele não disse isso.
Não. Ou não que eu saiba. Acho que no caso dele estava mais para um
princípio tácito. Whitehead tentou terminar o quarto volume sozinho mas teve
que desistir. Acho que trabalhar com Russell ao longo de todos aqueles anos o
deixara com uma falsa avaliação da dificuldade do projeto.
Russell era um matemático muito bom.
Era.
Mas desistiu. Da matemática.
Sim.
Por causa de Wittgenstein?
A maioria — Russell inclusive — afirma que foi por causa de Wittgenstein.
Mas o verdadeiro motivo é que Russell queria ser famoso. E sabia que a
matemática não podia fazer isso por ele. E claro que tinha razão. E de fato
ficou famoso. Era reconhecido no mundo todo e teve infinitas mulheres. Nem
todas esposas de amigos.
Ele desistiu da filosofia?
Basicamente. Começou a escrever livros populares. Acho que passou a ver a
tentativa de compreender o universo como algo inútil.
Um universo que não contém luz nem escuridão.
Tampouco certeza ou paz ou auxílio para a dor.
Alguma coisa sobre uma planície ensombrecida.
Isso.
Por que as pessoas não têm maior interesse pela ciência?
Elas têm medo da ciência. Até gente educada muitas vezes prefere
maluquices. Aliens, Velikovsky. Discos voadores.
Maluquices.
É.
Certo. Gödel já era?
Gödel é eterno.
Acredita mesmo nisso?
Não.
Tudo bem. Sabe fazer malabarismo?
Bom, você conseguiu.
Consegui o quê?
Finalmente me surpreendeu. Se sei malabarismo?
É.
Sei. O básico. Com três bolas de tênis. Por quê?
Só imaginei que seria algo que você tentaria. O que mais sabe fazer?
Sei lá. Como o quê?
Qualquer coisa.
Sei ler invertido. Consigo ler um texto no espelho. Quem faz isso?
Leonardo? Posso escrever um artigo justificando as margens. Não
necessariamente o conteúdo. Não acho que Leonardo conseguisse fazer isso.
Nem se tivesse uma máquina de escrever.
Não entendi.
Quando estou datilografando posso fazer uma linha ficar do mesmo
tamanho da anterior. Como numa página impressa.
Não entendo como faria isso. Não acho que seja possível.
É só substituir as palavras para as linhas ficarem do tamanho certo.
Conforme bate à máquina.
Conforme bato à máquina. É.
Não precisa parar e pensar.
Não. Vou escrevendo e pronto.
Se você diz eu acredito.
É só um truque. Não recomendo. É quase tão difícil largar quanto aprender.
Sua menstruação nunca mais voltou.
Meu Deus.
O que foi?
Vocês têm cada uma. Imagino que esteja na minha ficha.
Está no seu histórico médico sim.
Mancebos enxeridos.
Você usa um bocado de expressões inglesas. Já morou na Inglaterra?
Não.
Com que frequência se exercita?
Costumava gostar de sair para caminhar.
Está muito magra.
Eu sei. Não gosto de comer.
Conversando com um colega, ficamos pensando se o esforço mental
excessivo não pode ter mais ou menos os mesmos efeitos que o físico.
Em relação ao fluxo menstrual.
É.
Interessante. Dizem que a gente também não menstrua acima de quatro mil
metros.
Isso é verdade?
Não sei. Foi o que li. Temos treze minutos. Será que dá tempo para um chá?
Claro. Só um instante.

Aqui. Chá inglês.


Você parece em dúvida.
Tudo bem.
Leite só em pó.
Sem problema.
Vê seu amigo Leonard com frequência?
A gente conversa. Ele me contou que você o procurou.
Sim.
O que descobriu?
Sobre você, imagino.
Não me incomodo. Converso com ele porque é engraçado. E brilhante. Está
à base de Navane.
Não sei que medicação ele toma.
É um navanita. Tendemos a rir das mesmas coisas. Embora nem sempre
pelos mesmos motivos.
Ele te parece estável?
Para os parâmetros dele.
Por que foi internado? Originalmente.
Pôs fogo na casa da família e fugiu. Quando o encontraram na floresta não
conseguia pensar em nada pra dizer, daí simplesmente desandou a falar.
Você acha que não tem nada errado com ele.
Acho que tem muita coisa errada com ele.
Faz um ano mais ou menos ele fugiu. Acho que ficou sumido por três dias.
É. Bom. No entender dele se você tenta escapar da casa de malucos então
não deve ser maluco. Parece que ele causou uma briga entre o grupo na semana
passada. Bom. Talvez não uma briga.
Por quê?
Ele não parava de reclamar de tudo até que perderam a paciência e
perguntaram o que exatamente ele queria. Isso pelo jeito fez ele parar e depois
de matutar um tempinho falou que só queria ser feliz. Todo mundo se irritou
outra vez e disseram não não não, Leonard. Objetivos realistas.
Ele tem tendências suicidas?
Leonard?
É.
Claro que tem. Bom. Eu não devia ter dito isso. Às vezes esqueço que você
está do outro lado.
Do outro lado?
É.
Tudo bem. Onde a gente estava?
Acho que o assunto eram as minhas regras. Que fim levaram.
Você costuma pensar em sexo?
Penso. Você não?
Bom. Não sou o mais indicado para falar sobre o assunto. Mas às vezes
também esqueço que estou conversando com uma pessoa para quem o
imaginário tem um lugar especial. A Romênia pareceu menos atraente quando
se tornou mais real?
Não sei. Provavelmente. Sem dúvida é possível que o imaginário seja melhor.
Como a pintura de uma paisagem idílica. O lugar em que você mais gostaria
de estar. E aonde nunca vai.
Não tenho certeza do que está dizendo.
Eu também não.
Seria atípico da sua parte.
Eu sei.
Está falando sobre a morte?
Não. Só sobre o problema de acessar o mundo que você mais deseja.
Mais água quente?
Não. Obrigada. Acho que foi só que será que podia ser você?
Na pintura?
É.
Quer dizer como podia ser você? Ou como você podia fazer ser você?
Ser você. Digamos.
Como o assassino do machado no espelho?
Não sei. Talvez. Talvez como a expressão de um gesto cujo significado seja
incerto. Mas que ao se expandir pelo mundo apaga um milhão de outras
histórias.
Estou perdido.
Sem problema. Quando fui embora da Itália pensei que iria para a Romênia.
Mas isso não aconteceu. Eu não queria ser enterrada em Wartburg. Acima de
tudo não queria que ninguém soubesse.
Que tinha morrido.
É.
Mas não aconteceu.
Não morri.
Não. Você não foi para a Romênia.
Não. Não fui.
Tudo bem. Até que ponto o plano era sério?
Muito sério. Chamava-se Plano 2-A.
Por que Plano 2-A?
Porque sim. O subtítulo era ou não 2-B.
A viagem não aconteceu?
Eu não aconteci. Achei que iria para a Romênia e que ao chegar lá
encontraria alguma cidadezinha e compraria roupas usadas na feira. Sapatos.
Um cobertor. Poria fogo em todas as minhas coisas. Meu passaporte. Talvez
jogasse minhas roupas no lixo. O dinheiro trocado na rua. Então caminharia
pelas montanhas. Ficaria longe da estrada. Não correria riscos. Atravessando as
terras ancestrais a pé. Talvez à noite. Há ursos e lobos por lá. Pesquisei. Poderia
fazer uma pequena fogueira quando escurecesse. Talvez encontrar uma caverna.
Um regato na montanha. Teria um cantil de água quando estivesse fraca
demais pra me mexer. Após algum tempo a água ficaria com um gosto
extraordinário. Teria sabor de música. Eu me embrulharia no cobertor à noite
para me proteger do frio e observaria meus ossos tomando forma sob a pele e
imploraria para conseguir ver a verdade do mundo antes de morrer. De vez em
quando à noite os animais se aproximariam do limiar do fogo e se moveriam
em torno e suas sombras se moveriam entre as árvores e eu compreenderia que
quando as derradeiras chamas virassem cinzas eles viriam e me levariam dali e
eu seria sua eucaristia. E essa seria minha vida. E eu seria feliz.
Acho que nosso tempo acabou.
Eu sei. Segura minha mão.
Segurar sua mão?
É. Quero que me dê a mão.
Tudo bem. Por quê?
Porque é isso que as pessoas fazem quando estão esperando o fim de alguma
coisa.
beowulf sheehan

cormac mccarthy nasceu em Rhode Island, nos Estados Unidos, em julho de


1933. Estudou na Universidade do Tennessee, em Knoxville, e serviu na Força Aérea
entre 1953 e 1956. Seu primeiro romance, The Orchard Keeper, é de 1965. Desde
então publicou obras seminais da literatura norte-americana, como Suttree,
Meridiano de sangue, a Trilogia da Fronteira (composta de Todos os belos cavalos, A
travessia e Cidades da planície), Onde os velhos não têm vez e A estrada.
Recebeu prêmios importantes na carreira, como o Pulitzer, o National Book
Award e o National Book Critics Circle Award, e muitos de seus livros tiveram
adaptações bem-sucedidas para o cinema — com destaque para Onde os fracos não
têm vez, de Joel e Ethan Coen, que levou quatro Oscars, incluindo de melhor filme e
melhor direção.
Stella Maris compõe, junto com O passageiro, uma dupla de romances
interligados.
Copyright © 2022 by Cormac McCarthy

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil
em 2009.

Título original

Stella Maris

Capa

Casa Rex

Foto de capa

Anki Hoglund/ Alamy/ Fotoarena

Preparação

Diogo Henriques

Revisão

Ana Maria Barbosa

Luís Eduardo Gonçalves

isbn 978-85-5652-183-5

Todos os direitos desta edição reservados à

editora schwarcz s.a.

Praça Floriano, 19, sala 3001 — Cinelândia

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A travessia (Nova edição)
McCarthy, Cormac
9786557828250
408 páginas

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Depois de Todos os belos cavalos, Cormac McCarthy continua sua


Trilogia da Fronteira, apresentando agora Billy Parham, um menino
de dezesseis anos que faz a travessia dos Estados Unidos ao
México. A travessia é ao mesmo tempo luminoso e sombrio; um livro
capaz de tocar os corações dos leitores. "No âmago de todo homem
está o conhecimento de que algo sabe de sua existência. Algo sabe,
e desse algo não se pode fugir ou esconder." Depois de Todos os
belos cavalos, Cormac McCarthy continua sua Trilogia da Fronteira
apresentando agora Billy Parham. Assim como John Grady Cole,
protagonista do primeiro volume, Parham é um menino de dezesseis
anos que faz a travessia dos Estados Unidos ao México. Com o
objetivo de devolver um animal a seu lugar de origem, ele vai de
encontro a experiências que jamais esperaria ter. Nas estradas, Billy
passa por paisagens áridas e conhece pessoas vividas; encontra
realidades que vão formando um retrato do que é o grande mundo,
além da fazenda onde morava. Quando retorna, percebe que seu
próprio mundo mudou de forma irreversível. E que o
amadurecimento e a perda da inocência sempre têm um preço. "Um
épico americano, permeado de grande eloquência." — Sunday
Times

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O voo da guará vermelha
Rezende, Maria Valéria
9788556521910
160 páginas

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Maria Valéria Rezende mostra a beleza e a profundidade da vida de


pessoas comuns, que se transformam ao compartilhar suas histórias
em um mundo onde a comunicação é sempre difícil. Rosálio,
pedreiro e analfabeto, atravessa o país em busca de alguém que o
ajude a ler e escrever. Irene, prostituta e soropositiva, conhece as
letras precariamente, mas o bastante para ensiná-las. Do encontro
desses dois personagens nascem as histórias que Rosálio não
cansa de contar, e que Irene esperou tanto tempo para ouvir. O
encanto da fala de Rosálio torna mais amena a luta de Irene contra
a doença e transforma em realidade o desejo do pedreiro de ganhar
a vida como contador de histórias. Com delicadeza e inteligência,
Maria Valéria Rezende narra a trajetória desses dois personagens
que, marcados por um passado difícil, descobrem o amor, a
cumplicidade e a possibilidade de horizontes mais amplos.

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Meu irmão, eu mesmo
Trevisan, João Silvério
9788556521941
256 páginas

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Em 1992, João Silvério Trevisan descobriu-se infectado pelo vírus


HIV, e acreditava que teria pouco tempo de vida. A tragédia, no
entanto, atinge Cláudio, seu irmão mais novo. Vítima de um câncer
linfático, ele falece aos 48 anos. Neste romance autobiográfico
impactante, Trevisan aborda a intensa amizade entre ele e seu
irmão, compondo um quadro de impressionante veracidade sobre a
perda. Com uma narrativa poderosa e expressiva, Meu irmão, eu
mesmo já nasce um livro fundamental de nossa literatura. Aqui,
João Silvério Trevisan partilha com o público a experiência de amar
e sobreviver até a última gota. Filho mais velho de uma família de
baixa classe média do interior de São Paulo, João era um "outsider",
o irmão "que veio trazer o abalo", a "implosão de certezas". Seus
laços familiares com Cláudio, o irmão do meio, tido como o mais
progressista, o mais bonito, o mais querido, foram se estreitando.
"Quando lhe contei pela primeira vez da minha homossexualidade,
tornou-se meu admirador e um amigo incondicional", escreve
Trevisan. Cláudio foi um dos seus esteios psicológicos, afetivos,
políticos e financeiros. Sobretudo nos infortúnios. "Era 1992 quando
descobri que entrara na fila da morte, contaminado que estava pelo
vírus HIV", conta Trevisan. De modo inesperado, no entanto, a
tragédia se abate sobre Cláudio, vítima de um câncer linfático
fulminante, que se complica em pouco tempo — e ele falece em
1996. Com franqueza incomum, Trevisan fala do amor incondicional
pelo irmão e da dor de compartilhar seus instantes finais. Revela
muito de si, de sua vida intelectual e de suas relações amorosas.
Como pano de fundo, aborda as lutas da comunidade LGBT nos
anos 1990, suas conquistas e o pânico frente a uma doença então
desconhecida.

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João Cabral de Melo Neto em 8
tempos
Neto, João Cabral de Melo
9786557820858
33 páginas

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Poemas selecionados e comentados por Inez Cabral, João


Anzanello Carrascoza, Socorro Acioli, Antonio Carlos Secchin,
Regina Zilberman, Italo Moricone, Deborah Colker e Schneider
Carpeggiani. Um dos maiores poetas de língua portuguesa do
século XX, João Cabral de Melo Neto nasceu em 1920, na rua da
Jaqueira, no Recife. Morou em Barcelona, Sevilha, Lisboa,
Marselha, Madri, Berna, Quito... e esses locais por onde viveu e
viajou estão presentes em sua obra. Seus poemas, como A
educação pela pedra e Morte e vida severina, se tornaram clássicos
da nossa literatura. Ficou conhecido pelo rigor formal, a apurada
crítica social e o estilo conciso de sua escrita. Em uma comparação
feita por ele mesmo, seria como um escultor, que incessantemente
corta a pedra até que a escultura surja de dentro dela. Para
comemorar o centenário de nascimento do poeta, a Alfaguara
convidou oito personalidades de nosso cenário cultural e entusiastas
da obra de João Cabral para escolher e comentar seus poemas
prediletos neste e-book gratuito: Inez Cabral, João Anzanello
Carrascoza, Socorro Acioli, Antonio Carlos Secchin, Regina
Zilberman, Italo Moricone, Deborah Colker e Schneider Carpeggiani.
Esse material é só um pequeno recorte de uma obra de força
descomunal e faz parte do lançamento da Poesia completa de João
Cabral de Melo Neto, que traz ainda textos póstumos, dispersos e
inéditos, organizados por Antonio Carlos Secchin com a
colaboração de Edneia Ribeiro. "Mudou profundamente não só a
poesia, mas a cultura brasileira" — João Alexandre Barbosa "Na sua
geração, não tem quem o iguale, mesmo em dimensão universal."
— Augusto de Campos "Cortava a poesia com a faca só lâmina de
sua extraordinária força vocabular, criando impactos ao mesmo
tempo plásticos e fundamentais. Nunca usava o enfeite como
complemento da essência, tudo nele era inaugural, primeiro, único."
— Carlos Heitor Cony "Com sua memória firmemente enraizada em
seu Pernambuco natal, ele descreveu com uma obsessão
absolutamente detalhista as paisagens de sua região e o modo
como esta moldava os seres humanos." — Nelson Ascher "Foi um
homem contraditório, como todos somos. A diferença é que soube
arrancar dessa ambiguidade uma poesia genial." — José Castello

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Senhor das Moscas (Nova edição)
Golding, William
9786557822364
216 páginas

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Um romance indispensável de William Golding, vencedor do prêmio


Nobel, sobre a natureza do mal e a tênue linha que separa a
civilidade da barbárie. Considerado um dos 100 melhores romances
do século XX pela Modern Library. Senhor das Moscas é um dos
romances essenciais da literatura mundial. Adaptado duas vezes
para o cinema e traduzido para 35 idiomas, o clássico de William
Golding já foi visto como uma alegoria, uma parábola, um tratado
político e até mesmo uma visão do apocalipse. Durante a Segunda
Guerra Mundial, um avião cai numa ilha deserta e os únicos
sobreviventes são um grupo de meninos. Liderados por Ralph, eles
procuram se organizar enquanto esperam um possível resgate. Mas
aos poucos esses garotos aparentemente inocentes transformam a
ilha numa visceral disputa pelo poder, e sua selvageria rasga a fina
superfície da civilidade. Ao narrar essa história sobre meninos
perdidos numa ilha, aos poucos se deixando levar pela barbárie,
Golding constrói uma reflexão sobre o limite entre o poder e a
violência desmedida. Senhor das Moscas mantém o mesmo impacto
desde seu lançamento: um clássico moderno que retrata de maneira
inigualável as áreas de sombra e escuridão da essência do ser
humano.

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