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Folha de rosto
Sumário
I
II
III
IV
V
VI
VII
Sobre o autor
Créditos
Stella Maris
Black River Falls, Wisconsin
Fundado em 1902
Desde 1950, instituição não religiosa e asilo
Como está?
Tudo bem.
Senti sua falta semana passada.
É, bom. Sabe como é. Ocupada.
Ocupada.
Brincadeira.
Certo.
Certo.
Então, no que tem pensado?
Sei lá. Sua esposa, como ela é?
Minha esposa.
É.
Ela é italiana. Quer saber como ela é?
Isso.
É uma mulher atraente. Gosta de Bach. De comida italiana. Trabalha com
crianças surdas.
Cozinha bem?
Cozinha.
Ela não é judia.
É judia sim.
Ela é legal.
Muito legal.
Tem alguma coisa que você não está me contando.
A gente se divorciou. Por três anos. Daí casou de novo.
Você não tratou ela direito.
É. Não.
Por quê?
Porque fui um idiota. Já ia dizendo um merda.
Foi isso que disse Oppenheimer. Idiota, quero dizer. Nas audiências.
Parece um estranho candidato à idiotice.
Acho que por isso a citação é memorável. Pessoas que conheceram Einstein,
Dirac e Von Neumann disseram que era a pessoa mais inteligente que tinham
conhecido.
Oppenheimer.
É.
Presumo que seu pai o conheceu.
Meu pai trabalhou pra ele.
Que opinião ele tinha?
Sobre Oppenheimer.
É.
Que era envolvente, encantador, erudito. Excelente anfitrião. Um pouco
assustador.
Assustador?
É.
Em que sentido?
Ele achava que a inteligência do Oppenheimer não era inteiramente contida.
Que ele podia tomar decisões ruins.
Sério?
Sério.
Mas não diabólicas.
Aí seria forçar demais.
Estou presumindo que Satã não faça parte da sua visão de mundo. Ainda
que você pareça admitir algo muito semelhante ao mal no esquema das coisas.
Você mencionou o comentário de Chesterton.
Bom. Nunca vi Satã. Isso não significa que ele não possa aparecer. O que
Chesterton não comenta são os interesses peculiarmente materiais de Deus. Se
você fosse um ser totalmente espiritual que raio de assunto ia querer ter com o
material? No dia do juízo os corpos vão ascender? Que história é essa? Espíritos
são descorporificados, não incorpóreos? Cristo ascende ao céu presumivelmente
como um ser corpóreo. Estorvando a divindade com algo que ela não tivera de
suportar previamente. É difícil saber o que pensar de uma insanidade dessas.
Dá pra perceber por que Chesterton quis ficar longe.
Isso fez parte da crise espiritual que você mencionou?
É só um comentário. A natureza espiritual da realidade tem sido a principal
preocupação da humanidade desde que o mundo é mundo e não vai
desaparecer tão cedo. A ideia de que tudo é só matéria e mais nada não parece
servir para nós.
Serve pra você?
Eis a questão, não é?
Você cresceu em Los Alamos.
É. A gente morou lá até minha mãe morrer. Bom. Ela morreu no Tennessee
na verdade.
Tem lembrança de Los Alamos?
Tenho. Claro.
Quantos anos tinha quando foi embora?
Onze.
Onze.
Isso.
Como era por lá?
Los Alamos.
É.
Durante a guerra acho que bem primitivo. Teoricamente havia oito mil
extintores de incêndio e cinco banheiras. E lama a rodo. Minhas principais
lembranças são as pessoas na nossa casa conversando até as três da manhã.
Você ficava acordada até as três da manhã.
Ficava. A casa cheirava a perfume e fumaça de cigarro. Dava pra ouvir os
copos tilintando. Eu ficava deitada escutando até o último convidado ir
embora.
Não tinha como você entender o que estavam falando.
O que eu entendi foi que tinha de aprender sobre o que estavam falando.
Você consegue se lembrar dos primeiros pensamentos que teve?
Tudo que eu tinha eram pensamentos.
Não sei se compreendo.
Compreendi que estava em um lugar onde ficaria por um longo tempo e
que precisava desvendar como ele funcionava. Que tudo dependia de descobrir
onde eu estava. Não é que eu pensasse que poderia haver algum outro lugar
onde estar. O mundo como absoluto estava claro para mim. Mas eu tinha que
saber o que ele era.
Isso era motivado pelo medo?
Era.
Resposta rápida.
Criança é um bicho medroso.
Quantos anos você tinha quando descobriu a matemática?
Provavelmente foi antes do que consigo lembrar. Primeiro foi uma coisa
musical. Eu tinha ouvido absoluto. Tenho. Mais tarde imagino que passei a ver
o mundo basicamente como uma prova contra qualquer descrição abrangente
dele. Mas a música pareceu sempre se destacar como uma exceção a tudo.
Parecia sacrossanta. Autônoma. Completamente autorreferencial e coerente em
cada parte. Se você quiser descrever a música como transcendente podemos
falar de transcendência mas é provável que não cheguemos muito longe. Eu era
profundamente sinestésica e achava que se a música tinha uma realidade
inerente — cor e sabor — que poucos conseguiam identificar talvez tivesse
outros atributos ainda por discernir. O fato de essas coisas serem subjetivas de
modo algum as caracterizava como imaginárias. Não estou fazendo isso muito
bem, estou?
Continuo escutando.
Se a gente esticasse uma música, por assim dizer, conforme o tom se afastasse
a cor desbotaria. Não tenho ideia de onde situar isso.
Então de onde vem a música?
Ninguém sabe. Uma teoria musical platônica só serve para deixar a água
turva. A música não é feita de nada além de algumas regras razoavelmente
simples. Mas é verdade que ninguém inventou. As regras. As notas
propriamente ditas correspondem a quase nada. Mas por que determinado
arranjo particular dessas notas deveria exercer um efeito tão profundo em
nossas emoções é um mistério além da própria esperança de compreensão. A
música não é uma linguagem. Ela não faz referência a nada além de si mesma.
Você pode nomear as notas com as letras do alfabeto se quiser, mas isso não
muda nada. Estranhamente, não são abstrações. A música como a conhecemos
está completa? Em que sentido? Existem classes como maior e menor ainda por
descobrir? Parece improvável, não? Mesmo assim, muita coisa é improvável até
aparecer. E o que essas categorias significam? De onde vêm? O que quer dizer
elas serem dois matizes de azul? Aos meus olhos. Se a música estava aqui antes
da gente, estava aqui pra quem? Schopenhauer diz em algum lugar que se o
universo inteiro desaparecesse a única coisa que restaria seria a música.
É uma afirmação ousada. Ele acreditava nisso?
Provavelmente não.
E você?
Acho que ele só estava tentando estabelecer a primazia. Da música. Como
fenômeno transcendente? Uma coisa que pode existir sem ajuda?
Alguma coisa pode existir sem ajuda?
Logicamente não. Se tudo que o espaço contivesse fosse uma única entidade
a entidade não estaria ali. Não haveria nada ali onde pudesse estar.
Não estou entendendo.
Não importa. Esse é um mundo clássico, de qualquer modo.
Desde quando se interessa por tudo isso?
Sei lá. Não sei muito bem o que a memória significa. Pra começar. Um dos
problemas é que cada memória é a memória da memória anterior. Não é
possível lembrar a ocasião da memória real. Como fazer isso? Você apenas se
lembra de se lembrar dela. E só da memória mais recente, aliás.
Não sei se estou acompanhando seu raciocínio.
Quando cheguei ao ensino médio, o primeiro lugar que visitei foi a
biblioteca. Era só uma sala comum com uma mesa e uns mil livros. Até menos.
Mas tinha um Berkeley ali no meio. Não sei o que estava fazendo ali.
Provavelmente porque Berkeley foi um bispo. Bom. Quase certamente porque
Berkeley foi um bispo. O que importa é que sentei no chão e li Um ensaio para
uma nova teoria da visão. E mudou minha vida. Compreendi pela primeira vez
que o mundo visual estava dentro da nossa cabeça. O mundo todo, na verdade.
As especulações teológicas dele não me convenceram mas a fisiologia era
incontestável. Fiquei sentada ali um tempão. Absorvendo. Foi difícil evitar a
sensação de que o mundo visual é a criação de seres dotados de olhos para fazê-
lo. Criado não do nada mas desse algo cuja verdadeira realidade é eternamente
incognoscível. Kant. E não é verdade que podemos verificar a realidade do
mundo visual esticando as mãos e tocando nele. Por exemplo. Como ele
poderia ter alguma realidade contraditória? Se estivéssemos na posse de
sentidos discordantes entre si nem sequer estaríamos aqui.
Acho que preciso refletir um pouco sobre isso. Nesse meio-tempo preciso
dizer que você deve imaginar que os outros chegam a essa mesma descoberta
sobre onde o mundo visual de fato ocorre — no córtex visual, e não no mundo
lá fora — sem se perder da realidade do mundo por causa disso.
Não era tão simples. O que passou pela porta foi um mundo que tinha
ficado à espreita por dez milhões de anos. Quando me levantei do chão
daquela biblioteca eu era outra pessoa.
Você tem a sensação de que está sozinha no mundo?
Tenho. Você não?
Não. Não tenho. Esses artistas que começaram a aparecer no seu quarto.
Eram parte desse mundo?
Não sei. Uma teoria é que o propósito deles na verdade era desviar desse
mundo.
Uma teoria?
Exato.
O que mais?
Por onde começar.
Pelo princípio.
No princípio era o verbo.
Mas você não acredita nisso.
Uma das coisas que percebi foi que o universo tinha evoluído por
incontáveis bilhões de anos na total escuridão e no total silêncio e que a
maneira como o imaginamos não corresponde à maneira como era. No
princípio sempre houve o nada. Novas explodindo em silêncio. Na completa
escuridão. As estrelas, os cometas efêmeros. Tudo no mais alto grau da suposta
existência. Chamas negras. Como as chamas do inferno. Silêncio. Vácuo.
Noite. Sóis negros arrebanhando os planetas por um universo onde o conceito
de espaço não fazia sentido pela falta de qualquer limite para ele. Pela falta de
qualquer conceito que lhe fizesse contraposição. E a questão mais uma vez da
natureza daquela realidade para a qual não havia testemunha. Tudo isso até que
a primeira criatura viva dotada de visão consentisse em inscrever o universo em
seu trêmulo e primitivo sistema sensorial e depois o insuflasse com cor,
movimento e memória. Isso fez de mim uma solipsista da noite pro dia e até
certo ponto continuo sendo.
Quantos anos você tinha?
Doze.
E não terminou o ensino médio.
Não. Ganhei uma bolsa da Universidade de Chicago, fiz as malas e fui
embora. Hoje me admiro de como estava tranquila. Minha avó me levou ao
terminal rodoviário da Greyhound em Knoxville. Ela estava chorando e
quando o ônibus começou a andar percebi que achava que nunca mais ia me
ver.
Você parece triste contando isso.
Estou triste contando isso.
Fez alguma amizade no ensino médio?
Uma ou duas. Crianças em que ninguém mais prestava atenção.
Queria ter amigos?
Queria. Só não sabia como. Achava que talvez quando fosse para a faculdade
teria minha chance.
Teve?
Fiz algumas amizades. Mas continuava um pouco antissocial. Não levava
jeito pra coisa. Não gostava de festas nem que dessem em cima de mim.
Que dessem em cima de você. De ser paquerada?
É.
Estava interessada nos meninos?
Estava interessada em um menino. Mas não era recíproco.
Por quê? Ele não era gay, imagino.
Não. Foi um problema diferente.
Ele era mais velho.
Todo mundo era mais velho. Não foi isso que atrapalhou.
Então o que foi?
Outra coisa.
Tudo bem. E o que aconteceu com os espíritos familiares quando você
entrou na faculdade?
Apareceram umas duas semanas depois. Foram de ônibus.
Você realmente acredita que eles foram de ônibus?
Se realmente acredito que eles foram de ônibus.
Tudo bem. Você chegou a conversar com o Kid sobre essas coisas?
Conversei.
Pelo visto sem chegar a nenhuma conclusão.
Exatamente.
Imagino que não haja conclusão. Você considera o Kid seu amigo?
No fim das contas foi praticamente o único amigo que tive. Depois, mais
nenhum. Mas quando caiu a ficha de que se o Kid não existisse na minha vida
eu ia sentir falta dele tive um choque. O que você está escrevendo?
Só uma anotação para mim. Tudo bem?
Claro. Comprar leite. Ligar pra mamãe.
Quer ver?
Não.
Tem certeza? Não me incomodo.
Tenho.
Às vezes você acha que não estou escutando.
Escutando eu sei que está. Só não sei bem o quê.
Você tem amigos aqui. No Stella Maris. E quanto a eles?
Bom. Às vezes sento na sala de recreação e começo a conversar com alguém.
O que eles dizem?
Em geral nada. Mas às vezes começam a falar sobre o que está passando pela
cabeça deles e em algum momento mencionam alguma coisa que eu disse. Bem
parecido com o modo como a gente incorpora um som ao sonho durante a
noite. E devo dizer que ver meus pensamentos incluídos nesses monólogos é às
vezes meio inquietante. Eu queria ser como eles mas não sou. E eles sabem
disso. Não faz muito tempo alguns psiquiatras se internaram em uma série de
instituições mentais. Era um experimento. Bastou dizer que ouviam vozes para
que fossem imediatamente diagnosticados como esquizoides. Mas os pacientes
não caíram na deles. Davam uma olhada e diziam que não eram loucos. Que
eram jornalistas ou qualquer coisa assim. Daí simplesmente mantinham
distância.
Você queria ser como eles?
Não estou aqui em um experimento. Posso dar a interpretação que eu quiser
mas no fim das contas é aqui que estou.
Acho esse comentário um pouco estranho.
Sou uma garota um pouco estranha. Volte a fita e toque de novo. Vai escutar
outra coisa.
Você faz ideia de como é bonita?
Está tentando me comer, doutor?
Não. Nunca me relacionei com uma paciente. Seja como for, a infidelidade é
coisa do passado pra mim. Conheceu muitos psicoterapeutas que tentaram
seduzi-la?
Acho que seduzir não é uma descrição muito realista dessas investidas.
Sofreu alguma tentativa de estupro?
Sim. Uma vez.
E o que você fez?
Falei que meu irmão ia acabar com a raça dele. Que ele podia começar a
contar as horas que ainda tinha.
É verdade? Sobre seu irmão?
É.
Sem dúvida.
Sem dúvida.
Voltando a Berkeley. Depois que você leu o livro ficou mais cética em
relação à realidade?
Não tenho certeza se entendo o que isso quer dizer.
Se é que quer dizer alguma coisa.
Se é que quer dizer alguma coisa. De fato Berkeley me fez questionar minha
compreensão da realidade. Mas também tornou a história da investigação
filosófica mais plausível pra mim. Fez da epistemologia uma disciplina legítima.
Acho até que me fez enxergar a fraudulência das indagações engendradas por
ela própria.
A realidade é sempre o assunto.
Basicamente.
A realidade é cognoscível?
Ah, meu Deus.
Retiro a pergunta. Que coisa é essa que a gente não sabe que você gostaria
que a gente soubesse?
Você quer dizer além dos velhos modelos que não oferecem respostas.
Quem somos, por que estamos aqui, por que existe algo em vez de nada.
Certo.
Arriscaria um palpite sobre alguma dessas questões? Por que existe algo em
vez de nada?
O conceito de nada é inconcebível.
Ainda estuda física?
Não.
O que é um glúon?
Um conceito concebível.
É uma força ou uma partícula?
Partícula. Embora nessa escala a distinção não fique tão clara.
O que ele faz?
Transmite a mensagem de um quark pra outro. Não é tão complicado. Um
átomo é composto de partículas menores. Núcleons. E essas partículas são
compostas de quarks. Geralmente três. Os quarks têm nomes estúpidos. Top e
bottom. Up e down. Um pósitron é composto de dois quarks up e um quark
down. Um nêutron é composto de dois quarks down e um quark up. E assim
por diante. Tudo funciona. Ninguém tem muita certeza por quê. Mas é o
glúon que mantém as partículas informadas.
Por que a mecânica quântica se chama mecânica quântica?
Porque explica mecanismos. Para um físico a ênfase é em quântica. Uma
afirmação sobre o tipo de mecânica que ela é. Não mecânica quântica.
Tudo bem.
Você parece em dúvida.
Não. Sem problema. Por que ela é tão esquisita? Supostamente.
Ninguém sabe.
O que quero dizer é em que sentido ela é esquisita.
Eu sei. Tem uma série de coisas de que podemos falar. Feynman diz que o
experimento da fenda dupla é tudo de que precisamos para constatar a
esquisitice quântica. Ele deve ter razão. Geralmente tem. Esse experimento,
repetido ad qualquer coisa, demonstra que uma partícula isolada pode passar
por duas aberturas distintas ao mesmo tempo.
Você acredita nisso?
Piamente.
E isso é parte da mecânica quântica.
É.
Uma teoria física respeitada.
Exato. A teoria física mais bem-sucedida jamais concebida. A teoria das
partículas pequenas. Átomos e outras menores ainda. Ou pelo menos é como
se costuma pensar. Mas talvez isso se deva à matemática ruim. Alguns físicos
desconfiam que a teoria vai acabar chegando à compreensão do universo em si
como um fenômeno quântico. Que em última análise o que a mecânica
quântica descreve é o universo.
E você, também desconfia?
Desconfio. Estou no rol dos desconfiados.
O que mais.
O que mais?
É esquisito.
Os experimentos, imaginários ou reais, parecem exigir nosso envolvimento
ativo. Se não estivermos presentes não funcionam. A triste verdade é que
tirando as teorias de soma das histórias de Feynman não existe uma explicação
cabível da mecânica quântica que não envolva a consciência humana. Claro
que isso levanta a questão de como ela conseguiu se virar sem nós antes que
fôssemos inventados. Mas não é tão simples assim. Acho que o que está sendo
dito é que a consciência humana e a realidade não são a mesma coisa. Algo de
que já sabemos faz tempo. Mesmo que não tenhamos tanta certeza sobre Kant.
Nesse caso. Enfim, não se pode ignorar a evidência dos experimentos. Todos
eles, das duas fendas às estranhas ocorrências com os ímãs de Stern-Gerlach em
que cientistas razoavelmente brilhantes percebem ser incapazes de passar a
perna numa partícula de sódio. Em alguns meios a ideia de que essas
investigações não passam de filosofia é muito popular. E a resposta popular
para eles é simplesmente calem a boca e calculem.
Não você.
Não. Todos esses cálculos produzem equações diferenciais parciais. A
verdade do universo está do outro lado dessas equações.
O que os físicos dizem sobre isso?
Não muito. A maioria revira os olhos. Não são chegados em Kant. O
problema com o absoluto incognoscível é que se a gente pudesse realmente
dizer alguma coisa sobre ele já não seria mais o absoluto incognoscível. É
possível ir do numenal ao fenomenal sem se mexer da cadeira. Em outras
palavras, nada pode ser extraído do absoluto sem se tornar perceptual. Tendo
em vista que reivindicar o caráter real do que é incognoscível não passa de
glossolalia. O problema com o mundo perfeito e objetivo — de Kant ou
qualquer um — é que ele é incognoscível por definição. Adoro a física mas não
a confundo com a realidade absoluta. Ela é a nossa realidade. As ideias
matemáticas têm uma vida útil considerável. Elas existem no absoluto? Como é
possível? Eu dizia pra mim mesma. Mas então meu eu se tornou outro eu.
Com todo o direito. Levou a matemática consigo. A ideia. Um longo período
de incerteza. Quando voltei a mim estava em outro lugar. Como se tivesse
escapado do meu próprio cone de luz. E passado ao que se costumava chamar
de absoluto em outro lugar.
Não compreendo.
Eu sei. Eu também não. É só que a meu ver não era possível pegar algo do
absoluto sem pegá-lo do absoluto. Sem convertê-lo no fenomenológico.
Momento em que esse algo passa a ser nossa propriedade com nossas digitais
por todo lado e não se vê o absoluto em parte alguma. Hoje em dia não tenho
tanta certeza.
Podemos falar sobre o Kid?
Claro. Porra.
Toquei num ponto sensível.
Na verdade, não. Eu só estava a fim de ser grossa.
Como ele é?
Tem noventa e sete centímetros de altura. Um rosto estranho. Uma
expressão peculiar, imagino que você diria. Idade indefinida. Tem essas
nadadeiras. Pouco cabelo, pra não dizer careca. Deve pesar uns vinte e poucos
quilos. Você está achando graça.
Pensei nele subindo no barco de Caronte.
É. Eu já tinha pensado nisso. Dante só pensa no assunto depois que ele
mesmo pisa no barco e sente que parou de balançar.
Eu não sabia disso.
Tudo bem. Desculpa o palavrão.
Ninguém vai morrer por causa disso. Como você sabe que ele tem noventa e
sete centímetros?
Eu medi.
E ele ficou parado esperando?
Não. Medi do mesmo jeito que Tales mediu as Pirâmides. Anotei o
comprimento da sombra dele no tapete e comparei com o da minha sombra.
Os comprimentos relativos das nossas sombras eram equivalentes a nossas
respectivas alturas.
Por que queria saber a altura exata dele?
Acho que só queria saber se tinha altura.
O que mais?
Ele não tem sobrancelhas. Tem umas marcas. Queimaduras, talvez. O crânio
é todo marcado. Como se tivesse sofrido um acidente. Ou um parto difícil.
Seja lá o que isso quer dizer. Ele veste uma espécie de quimono. Anda o tempo
todo. Com as nadadeiras às costas. Como se estivesse esquiando no gelo. Fala
sem parar e usa idiomas que tenho certeza de que não compreende. Como se
os tivesse encontrado em algum lugar e não fizesse a menor ideia do que fazer
com eles. Apesar disso — ou quem sabe por causa disso — às vezes diz umas
coisas bem surpreendentes. Mas eu não diria que ele é uma figura onírica. É
coerente em todos os detalhes. Perfeito. É uma pessoa perfeita.
Um personagem. Acho que foi o que você disse antes.
Tudo bem, um personagem.
Voltando alguns anos. O fato de as visitas desses espíritos familiares cessarem
com a clorpromazina. Isso não te sugere alguma coisa sobre a natureza da
realidade deles?
Ou sobre minha capacidade de percebê-la.
Bom. Imagino que alguém poderia dizer assim.
Imagino que sim. Alguém acabou de dizer. As drogas alteram a percepção.
Para se acomodar a quê? Eu costumava ter convicções um pouco mais firmes
sobre a coisa toda. Mas as convicções de alguém quanto à natureza da realidade
devem representar também suas limitações quanto à percepção que tem dela. E
depois simplesmente parei de me preocupar com isso. Aceitei o fato de que iria
morrer sem saber de verdade onde tinha estado e por mim tudo bem. Bom.
Quase. Eu disse ao Leonard que a realidade era quando muito um palpite
coletivo. Mas isso foi só uma frase que roubei de uma comediante.
Leonard?
Um amigo meu aqui.
Ele riu?
Não. Levou bem a sério.
O Kid comentou com você certa vez que também podia ser visto por outras
pessoas, certo?
Por algumas pessoas.
O que você acha que isso quer dizer?
Sei lá. O psiquiatra aqui não sou eu.
Você não vai voltar a vê-lo. O Kid.
Lá vem você jogando verde outra vez.
Mas você se despediu dele.
Sim.
O que ele disse?
Não muito. Quis saber se eu ia sentir falta dele.
Se você ia sentir falta dele.
É. Declamou um poema pra mim. O que me surpreendeu. Não sei o que
significa.
Lembra como foi?
Sim. Bem rápido.
Eu quis dizer o poema.
Eu sei o que você quis dizer.
Acho que eu devia perguntar simplesmente se poderia repetir o poema pra
mim.
Poderia. Mas não quero.
Tudo bem. A ideia do Kid como uma espécie de djim malévolo — e
presumo que era assim que a maioria dos seus psicoterapeutas o via — não é
como você o vê. Ou talvez você dissesse que não é o caso.
Não é o caso.
Mas você poderia me dizer como de fato o vê?
Acho que o modo como o vejo é o caso. Não é?
Tudo bem.
Você não está me perguntando sobre o Kid. Está perguntando sobre mim. E
não tenho como contar o que quer saber. Mesmo que pudesse provavelmente
não diria.
Certo. Desculpe.
Tudo bem. Você conhece o Tratado? Você sabia de onde vinha a citação do
sobre-o-qual.
Dei uma lida. Não entendi muita coisa.
Acho que no caso do Kid ele estava apenas fazendo o melhor que podia.
Como qualquer um.
Você o vê como benigno?
Se o vejo como benigno é porque sei o que mais existe por aí.
Coisas de que eu por exemplo provavelmente não teria consciência.
Digamos apenas que eu ficaria surpresa se tivesse.
O que você pensa das pessoas? Em geral.
Isso é mesmo uma pergunta?
Por que não?
Acho que tento não pensar nelas.
Sério?
Não. Acredito ter amor no coração. Mas ele só se manifesta como pena.
Imagino ter visto os horrores do mundo mas sei que isso não é verdade.
Mesmo assim, não dá para desver o que está visto. Não houve século mais
tenebroso do que este. Alguém realmente acredita que vimos o último desse
tipo? E, de qualquer forma, o que os problemas do mundo podem significar
para alguém incapaz de cuidar dos próprios problemas?
Às vezes tudo?
É. Acho que você pode ter razão.
Perdão. Eu não queria irritar você.
Não estou irritada. Tem mais de onde isso veio.
Que tal a gente fazer uma pausa.
Tudo bem.
Bom dia.
Bom dia.
Como vão as coisas? Você parece um pouco sombria.
Sombria.
Está precisando de alguma coisa?
Poderia ser mais específico?
Desculpe. Acho que estou só perguntando se está se sentindo razoavelmente
confortável. Se tem algo que eu possa fazer por você.
Por que a gente não começa logo.
Não estou falando só por educação.
Tudo bem. Que tal uma rede de pingue-pongue?
Você joga pingue-pongue?
Não.
Como regra geral tentamos minimizar qualquer possível oportunidade para
os pacientes causarem mal a si mesmos. Então precisamos ser criteriosos. Nada
de cintos, cordas, nada do tipo. Vidro, objetos pontiagudos.
Por isso os espelhos de aço inoxidável.
Sim.
Já encontraram muitos pacientes enforcados com uma rede de pingue-
pongue?
Não, mas provavelmente já aconteceu. Em algum lugar. Que tal algo que eu
possa requisitar sem causar muitos problemas.
Sem acordo. A rede ou nada.
Lamento. Sobre o que vamos falar?
Sei lá. Me faz três perguntas depois é a minha vez.
Combinado.
Sério?
Claro.
Quem vai primeiro?
Pode ir.
Tudo bem. Qualquer coisa?
Acho que sim.
Certo. Qual é o nome da sua esposa?
Edwina.
Você está de brincadeira comigo. Ai, droga. Desculpa. Eu não devia ter dito
isso.
Sem problema.
Algum apelido?
Ed.
Você chama sua esposa de Ed?
Isso. Foram três perguntas.
Ah não.
Tudo bem. Mais uma.
Há quanto tempo são casados?
Onze anos. No total. Depois que a gente se divorciou fiquei três anos
solteiro. Daí a gente se casou de novo e continua casado. Quantas perguntas
foram?
Por que se divorciaram?
Você já me perguntou isso.
Eu sei. Você aprontou alguma?
Isso é um pouco pessoal.
Aprontou ou não?
Chega. Minha vez.
Você não respondeu. Costuma sair com sua esposa?
Sim. Claro.
Onde vocês vão?
A gente sai pra jantar. Às vezes encontra amigos. Vai ao cinema. Somos
afiliados da sinfônica. Vamos jogar boliche.
Vocês não jogam boliche.
Não. Agora é minha vez.
Tudo bem. Manda.
Era só uma piada. O boliche.
Boliche não é piada. Adoro boliche. O boliche é a minha vida.
Acho que não. Você tem um diário?
Não.
Nunca escreveu?
Não disse que nunca escrevi.
Mas não ultimamente.
Ultimamente não. Já leu o diário de algum paciente seu?
Não.
Imagino que poderia ser útil.
Você só está querendo saber sobre a minha honestidade. Quantos anos tinha
quando aprendeu a ler?
Quatro.
Sua mãe ensinou?
Não exatamente. Aprendi olhando enquanto ela lia pra mim na hora de
dormir. Quando ela descobriu que eu sabia ler levou um susto. Mas foi culpa
sua, não foi?
O divórcio.
É.
É. Foi.
E daí ela aceitou você de volta. Depois de três anos.
É. Misericordiosamente.
Você implorou de joelhos?
Não. Acho que é a minha vez.
Mas não faltou dedicação, não foi?
Não.
Certo.
Você não tem amigos. Quer dizer que não se interessa pelas pessoas?
Não. Estou sempre me surpreendendo com as pessoas.
E eu, surpreendo você?
Acho que você já me fez essa pergunta. Digamos apenas que não me assusta.
Tem visto alguém ultimamente?
Meu Deus. Visto?
É.
Não vejo pessoas.
Nunca.
Não.
Imagino que isso se deva a uma decisão consciente da sua parte. Posso
perguntar como chegou a ela?
Manda ver. Sou toda sua.
Acho que não.
O cara de quem eu gostava não queria saber de mim. Então foi isso. Não
consegui parar de gostar dele. Foi praticamente o fim da linha pra mim.
O homem misterioso.
É.
Dificilmente seria alguém que eu conheço. É alguém que eu conheço?
Prefiro não dizer.
Mas você deve ter tido pretendentes.
Que coisa antiquada. Pretendentes. Isso inclui os bêbados caipiras tentando
te passar a mão na pista de dança?
Acho que não. Você parece pouco à vontade.
Mais do que o normal?
Acho que sim. O cara de quem você gostava. Quanto tempo faz isso?
Continuo a gostar.
Certo, continua.
Provavelmente a gente devia mudar de assunto.
Tudo bem.
Não despertei tanto interesse quanto você imagina. Tive que aceitar o fato
de que sou um pouco assustadora. Fora o fardo da loucura, claro. Por que
tenho a sensação de que você não vai deixar esse assunto em paz?
Desculpe. Acho que devo dizer que fico surpreso em ouvi-la se descrever
como louca.
Não falei que era assim que me descrevia. Além disso, mesmo se eu insistir
na minha sanidade você precisa levar em conta de quem parte a afirmação. E
claro que não deveria ser nenhuma surpresa descobrir que uma pessoa numa
sala acolchoada tem uma visão de mundo conflitante com a de quem jogou ela
ali.
Você não reivindica igual legitimidade para as duas opiniões.
Tudo bem.
Tudo bem o quê?
Não se isso for um problema pra você.
Sinto que estamos desviando do assunto.
Que seria?
Você.
Bem.
Acho que a sensação de ser um alienígena — diferente de apenas se sentir
alienado — é bastante comum entre pacientes com transtorno mental.
Ou entre alienígenas.
Existe uma imagem clássica em que o assassino se vê de relance num
espelho. Ele avista de repente essa figura toda manchada de sangue com um
machado na mão e percebe que está olhando para si mesmo. A ideia
geralmente é sugerir uma consciência encoberta. Como você interpretaria isso?
O que está sendo revelado?
Um gosto pelo melodrama? Quero perguntar uma coisa.
Certo.
Por que você me deixa te fazer de gato e sapato?
Não sei. Deixo?
Não importa. Seu mundo se sustenta numa coletividade de concordâncias.
Já pensou nisso? Esperamos que a verdade do mundo de algum modo resida na
experiência comum que temos dele. Claro que a história da ciência, da
matemática e até da filosofia é um bocado conflitante com essa ideia. Inovação
e descoberta por definição vivem em luta contra o entendimento comum. É
preciso cautela. O que você acha?
Não sei. Nem entendi direito qual é sua opinião.
Não tenho uma opinião. Costumava ter. Agora não tenho mais. Embora
deva dizer — de novo — que o solipsismo sempre me pareceu uma posição
razoavelmente indefensável.
Você voltaria a considerar a medicação? Com certeza há opções que não
foram cogitadas.
Você está dando murro em ponta de faca.
Você nunca articulou de verdade suas objeções.
Para a sua alegria.
Se é o que você diz.
Você não sabe o que são antipsicóticos nem como funcionam. Nem por quê.
No fim sobra apenas o espetáculo da discinesia tardia tateando seu caminho às
cegas pela parede. Os espasmos, a baba, os murmúrios. Claro que para os que
estão nessa jornada rumo ao vazio existem paradas onde as notícias de repente
se tornam absolutamente mais desanimadoras. Um súbito calafrio talvez.
Existem no mundo dados disponíveis apenas para os que atingiram certo nível
de sofrimento. A gente não sabe o que tem lá embaixo a menos que tenha
estado lá embaixo. A alegria, por outro lado, mal ensina a gratidão. Um
silêncio pensativo.
Só um silêncio.
Afora seu vazio geral parece haver um teto para o bem-estar. Meu palpite é
que a felicidade tem limite. Ao passo que para a tristeza parece não haver chão.
Cada novo sofrimento descendo a um estado até então nunca imaginado. Cada
um mais sugestivo de que o pior ainda está por vir.
Pelo que me lembro tínhamos começado num tom mais alegre.
Desculpa.
Quero saber se você conseguiria pôr em palavras o que mais a incomoda.
Apesar de todas as nossas conversas ainda faço pouca ideia da sua vida.
Não esquenta, doutor. Estamos os dois a caminho de um mundo totalmente
hipotético. Seremos mais felizes quando chegarmos lá.
Vou confiar na sua palavra. Você ainda toca violino?
Não.
Tocava de vez em quando?
Esporadicamente.
Faltava tempo para praticar.
Faltava disposição.
A seu ver até que ponto tinha que ser boa?
No mínimo entre os dez melhores.
Do mundo?
É. Do mundo. De onde mais?
Como descobriu que era tão boa em matemática?
A gente simplesmente sabe. Isso nem é uma pergunta.
Você acha que a música tem efeito terapêutico?
Eu deveria me jogar de volta nisso?
Foi só uma pergunta.
Suponho que depende da música.
O poder de amansar as feras selvagens. E seus encantos para amansar, na
verdade.
Peito selvagem.
Como?
A música amansa o peito selvagem.
Tem certeza?
Meu Deus.
Perdão. Sente falta do violino?
Sinto. Muita.
Acha que pode ter uma tendência a se desfazer das coisas que de fato a
confortam na vida?
Isso é psicologia, imagino. Não sei responder a sua pergunta. Como assim?
Se eu tenho? Se a gente tem? Como essa inclinação se compararia ao desejo do
próprio mundo de despojar qualquer uma dessas coisas. Acho que entendi sua
pergunta. Já falamos sobre isso. E talvez tenhamos essa superstição de que se
abrirmos mão das coisas de que gostamos o mundo não vai tirar de nós aquilo
que amamos de verdade. O que é claramente uma besteira. O mundo sabe o
que você ama.
Interessante.
Desisti de ficar me explicando faz muito tempo. O que vou dizer? Que
lamento ser o que sou? Acho que não tive muito a ver com isso. Quanto a sua
pergunta — consentir com meu gosto por vagas generalidades — eu poderia
perfeitamente dizer que o que cheira a enigma em geral não passa de tese mal-
apresentada. Coisa que acho que já sugeri antes. Na verdade nada mais é que
pintar um quadro um tanto pobre de Wittgenstein. Não sei. Talvez seja melhor
falarmos de outra coisa.
Acho que gosto da ideia.
Lá vem.
Só estou provocando. Quem é a srta. Vivian?
Uma idosa. Magra. Excêntrica. Se vestia de um jeito espalhafatoso e tinha a
cara sempre coberta por camadas e camadas de maquiagem. Uma estola de
pelo surrada. Olhava para você através de um pequeno binóculo e tinha uma
cigarreira de marfim.
Você está falando dela no passado.
Faz tempo que não a vejo.
Ela era um dos números que o Kid apresentava?
Não.
Vocês conversavam?
Claro. A gente sentava pra bater papo. Ela era muito infeliz. A maquiagem
vivia borrada de tanto que chorava. Ou escavada, no caso dela.
Infeliz por quê?
Por causa dos bebês. Costumava chorar por causa dos bebês.
Bebês?
É.
Que bebês?
Sei lá. Todos os bebês, acho.
E por que isso a interessava particularmente?
Porque chorei sem parar nos meus dois primeiros anos de vida.
Motivo suficiente, imagino. Sabe por que ela chorava pelos bebês?
Ela não me disse. Tirando o fato de que eles eram infelizes. Tem certeza de
que quer entrar nesse assunto?
Você é quem sabe. Tenho. Quero.
Ela sumiu por um bom tempo. E fiquei surpresa quando descobri que sentia
falta dela. Sonhei com ela. Achei que o fato de sentir falta e querer conversar
com ela a traria de volta. Mas não trouxe. Com o que você sonhou?
Como?
Eu só estava fazendo sua próxima pergunta.
Tudo bem. Com o que você sonhou?
Sonhei com crianças chorando. Quando acordei o choro continuava. Só que
um pouco mais distante. Acho que não tinha parado. É só que eu não escutava
mais. Nunca tinha convivido muito com bebês. Mas comecei a me perguntar
por que choravam o tempo todo.
Acho que eles choram por motivos diferentes. Não é? Porque estão
molhados, ou com fome.
Pra mim não podia ser só isso. Um animal às vezes choraminga se sente
fome ou frio. Mas não berra. É má ideia. Quanto mais barulho fizer maior a
probabilidade de ser comido. Se não há como escapar é melhor ficar em
silêncio. Se os pássaros não pudessem voar não cantariam. Quando você é
indefeso guarda suas opiniões pra si mesmo.
Isso parece um pouco metafórico.
É só biologia.
Tudo bem.
O assustador era a angústia naqueles choros. Comecei a prestar atenção.
Sempre havia bebês no terminal rodoviário e eles estavam sempre chorando. E
não eram lamentos moderados. Eu não conseguia entender como o mínimo
desconforto podia assumir a forma de uma agonia. Nenhuma outra criatura era
tão sensível. Quanto mais pensava a respeito mais claro ficava para mim que
era raiva o que eu escutava. E o mais extraordinário era que ninguém parecia
achar isso extraordinário. A não ser a srta. Vivian. Claro que alguém poderia
dizer que por mais afável, bondosa ou preocupada que pudesse ser ainda assim
ela continuava sendo uma velha doida. Com uma realidade problemática.
Então a levei pra casa comigo. Acho que nunca discutimos isso de verdade. Ela
simplesmente começava a choramingar e a abanar a cabeça. Pensei que se tinha
me trazido toda essa bagagem devia estar esperando que eu fizesse algo a
respeito mas a coisa começou a ficar mais complicada. Pensei sobre isso. A raiva
das crianças parecia inexplicável a não ser como o rompimento de uma aliança
profunda e inata de como o mundo devia ser e não era. Compreendi que sua
crua exposição ao mundo era o mundo.
Não acha isso tudo um pouco fantasioso?
Acho.
Como uma criança saberia como o mundo deve ser?
A criança tem que nascer assim. Um senso de justiça é comum ao mundo.
Certamente a todos os mamíferos. Um cachorro sabe perfeitamente bem o que
é justo e o que não é. Não aprendeu. Veio com ele. Quer que fique mais
fantasioso?
Já que você começou.
Mais fantasiosa seria a compreensão de que a ideia de justiça e a ideia da
alma humana são duas formas de um mesmo pensamento.
Você não acabou de ter essa ideia.
Não.
E quanto aos animais?
Não estão berrando. Claro que o fantasioso em si pode ser um código para a
demência. Enfim, isso levou quase diretamente à questão seguinte.
Que é?
Com que idade na vida da criança a raiva vira tristeza?
Sei lá. Não creio que Piaget tenha tratado da questão. Ou do porquê.
Acho que sei por quê. A injustiça que motiva o desespero é irremediável. E a
raiva está reservada apenas ao que acreditamos que pode ser consertado. Todo o
resto é tristeza. Chega uma hora em que elas percebem isso.
A meu ver um senso inato de justiça seria uma ideia difícil de vender. Talvez
essas crianças adquiram esse senso ao nascer.
Elas não têm muito mais que isso. Um medo de cair. De ruídos altos. Uma
ânsia pelo seio. Todo o resto é potencial. O esquema existe mas nada
aconteceu. Coisas inatas e bem formadas são raras. E primitivas. E necessárias.
Quando ouvimos uma criança chorosa dizer que algo não é justo sempre
estamos ouvindo a verdade.
E a srta… como é mesmo? Vivian?
Isso. Vivian.
Srta. Vivian. Foi enviada pra te contar isso.
Não sei. Sempre desconfiei que isso era só uma coisa que eu tinha que
entender antes que a gente pudesse passar para a próxima questão.
Qual é a próxima questão?
Não é tão fácil assim. Não pretendo ter um bom domínio dela. Se você
dissesse que o mundo em si contém o antídoto para suas próprias desgraças eu
diria que não está inteiramente equivocado. Mas na base disso está a ideia de
que há uma ordem no mundo que não se sustenta na infindável problemática
de abordar sua iteração mais recente.
Não tenho certeza se entendi. Parece um pouco platônico.
Sei. Mas a sugestão não é que exista uma realidade da qual a percepção seja
apenas uma sombra, e sim que existe uma realidade suficientemente durável
para sustentar sua própria experimentação infindável.
Você chegou aqui com uma escova de dentes. Por quê? Bom. Sem falar no
dinheiro, claro.
Não sei. Minha vida sempre foi um bocado austera. O Bobby costumava me
levar pra fazer compras e depois as roupas nunca mais saíam do armário.
Imagino que não deva ter sido nada fácil para mim largar o Amati.
Você o largou?
Sei lá. Ainda queria tocar. Isso nunca some. A primeira vez que ouvi Bach
vivi uma experiência fora do corpo. Devia ter uns dez anos. Lembro de me ver
sentada no sofá da sala. Escutando. Nem achei esquisito.
Você teve mais alguma experiência fora do corpo?
Não com a música. Mas aquela vez me transformou. Foi como girar uma
chave. Foi uma coisa física. Nunca mais fui a mesma.
Se não com a música então com o quê?
Um dia fui picada por vespas, corri para a cozinha e vi minha avó Ellen
entrar e se curvar sobre mim. Eu estava deitada no chão e quando olhava para
baixo podia me ver ali estirada. Fiquei pensando se ia morrer, mas muito
vagamente. Vovó Ellen pôs um pouco de gelo embrulhado numa toalha no
meu rosto e depois de um tempo sentei.
Alguém já disse que a matéria-prima da arte é a dor. Com a música isso é
verdade?
Não sei. Nunca compus. Mas acho que deve ser.
E quanto à matemática?
Matemática é só trabalho e suor. Quem dera fosse romântico. Não é. Em
seus piores momentos tem sugestões audíveis. É duro de acompanhar. Você
não se atreve a dormir e talvez já esteja acordada há dois dias mas azar o seu.
Você se pega tomando uma decisão e descobrindo mais duas à espera e depois
quatro e mais oito. Precisa se obrigar a parar e voltar. Começar do zero. Não é a
beleza que você procura, é a simplicidade. A beleza vem mais tarde. Depois que
você virou uma pilha de nervos.
Vale a pena?
Nada no mundo se compara.
Na sua opinião que dom é indispensável?
A fé.
Parece uma opinião um tanto animada da sua parte.
Bem. Você me pegou.
Você acha que deve ser diferente da música. A matemática.
As regras da música que guiam um compositor como Bach… Tudo bem.
Nenhum compositor é como Bach. Bach é único. Mas ignorando isso por um
instante essas regras podem ser aprendidas por um leigo. Estão ali para ser
descobertas. Ou não. Estão ali mesmo que a primeira nota musical jamais
tenha sido escrita. Isso não é verdade?
Para mim, parece música platônica.
Pois é. No mínimo tão ruim quanto. Schopenhauer achava que se o universo
sumisse só a música permaneceria. As regras são a música. Sem as regras sobra
apenas ruído. Escutamos uma nota errada e fazemos careta. Sorrimos,
choramos, marchamos para a guerra. Existe alguma explicação pra isso? Como
saber quando tem gente dançando? E se estiverem dançando fora do ritmo da
música?
Não sei.
Não. Mas esse conjunto de regras — acho que eu chamaria de leis, as leis da
música — é autocontido e completo. Elas são conhecidas e nunca haverá uma
nova. Isso é verdade na matemática? Existe algo como uma grande teoria
unificada da matemática? A segunda tese de Hilbert? O sonho de Cantor?
Parece mais do que improvável. Langlands ou não. E contudo não deve haver
pelo menos uma descrição da matemática? Tanto do que é como do que deve
vir a ser? Eu queria fazer matemática. Mas também queria entender a
matemática. E jamais conseguiria. Não fui capaz sequer de formular a
pergunta.
Fico surpreso em ouvir que entender a matemática estava além da sua
capacidade. Isso é algo que preocupa a maioria dos matemáticos? Ou eles
simplesmente estão mergulhados nos cálculos?
Acho que para a maioria é uma preocupação passageira. Quando muito.
Você disse que a matemática era basicamente trabalho duro. Mas ainda não
tenho certeza de como você lida com ela.
Certo. A primeira coisa a fazer é tirar os sapatos e as meias. Para ter um
acesso paralelo à base dez.
Como sabe que não vou acreditar em você?
Como sabe que não deveria? A questão central não é como você faz
matemática mas como o inconsciente faz. Como acontece de ele ser melhor
nesse negócio que a gente? Você trabalha num problema e esquece por um
tempo. Mas o problema não vai embora. Reaparece no almoço. Ou quando
você está no banho. O inconsciente diz: Dê uma olhada nisso. O que acha?
Daí você se pergunta por que a água está fria. Ou a sopa. Isso é fazer
matemática? Acredito que sim. Como acontece? Não sabemos. Fiz essa
pergunta para excelentes matemáticos. Como o inconsciente faz matemática?
Para os que tinham pensado a respeito e para os que não tinham pensado. De
maneira geral eles pareciam achar pouco provável que o inconsciente lidasse
com ela da mesma maneira que nós. O que me surpreendeu foi o descaso com
que receberam a notícia. Como se a própria natureza da matemática não tivesse
acabado de ser confrontada. Alguns pensavam que se o inconsciente tivesse
uma maneira melhor de fazer matemática com certeza nos diria. Bom, talvez.
Ou quem sabe ele não acha que somos suficientemente inteligentes para
compreendê-la.
Não sei se entendo muito bem como isso iria funcionar.
Nem você nem ninguém. Às vezes a gente tem a clara sensação de que fazer
matemática consiste sobretudo em simplesmente alimentar a subestação com
dados e torcer pelo melhor. Nem sei direito se é tão sensato assim memorizar as
coisas. O que é registrado se torna fixo. De um modo que as maquinações do
inconsciente aparentemente não ficariam. Não gosto de pôr coisas no papel.
Isso é bom? Não sei. Grothendieck escreve tudo. Witten não escreve nada. Mas
acho que para a maioria das pessoas deixar de pôr as coisas no papel significa
permitir que permaneçam livres para buscar novas analogias. Elas fazem o que
têm de fazer e voltam de tempos em tempos para contar. Uma afirmação — ou
equação por escrito — é como uma placa de sinalização. Uma parada no
caminho. Diz onde você está e indica um novo ponto de partida. Dirac
desenha. Não acho que por acreditar na existência de representações gráficas de
entidades pequenas demais para subtenderem uma partícula de luz, mas sua
formação em engenharia não lhe deixa outra escolha. Coisas esquisitas são
úteis. Pessoas boas com o ábaco conseguem calcular perfeitamente com um
ábaco imaginário.
Isso é verdade?
Não. Estou inventando. Meu Deus.
Desculpe. Acho que nunca ouvi uma descrição do inconsciente que lhe
concedesse esse tipo de autonomia.
Bom. Ele está isolado há um bom tempo. Claro que não conta com outro
acesso ao mundo exceto seu próprio sensório. Do contrário apenas trabalharia
no escuro. Como seu fígado. Por motivos históricos ele reluta em falar com
você. Prefere o drama, a metáfora, as imagens. Mas o compreende
perfeitamente. E não defende outra causa que não a sua.
A gente tem uma relação de trabalho com o inconsciente? Esse arranjo é
recíproco?
Não. Isso seria forçar um pouco a barra.
Somos livres para ignorá-lo?
Sem dúvida. Se você preferir. Chame isso de passar os controles para o modo
manual. Claro que nem sempre é uma boa ideia.
Você já falou com outros terapeutas sobre essas ideias?
Não muito. Eles se entediam fácil.
O que eles diziam? Quando não estavam muito entediados.
Nada. Anotavam o que eu falava. Ou escreviam qualquer coisa. Ou então eu
mudava de assunto.
Como agora.
Não. Continuamos nos entendendo.
Presumo que suas reservas em relação aos médicos de almas venham de
longa data.
É uma afirmação justa.
Qual é a sua maior queixa?
Não sei. Talvez a falta de imaginação. A confusão sobre as categorias em que
tendem a separar seus pacientes. Como se nomear e curar fossem a mesma
coisa. O modo como ignoram a total falta de evidência para a eficácia mínima
de seus tratamentos. Fora isso tudo bem.
Fico aliviado em saber.
Enfim, é uma bela industriazinha essa que vocês criaram. O objeto em
questão pelo visto seria a realidade e isso em si é bem engraçado. Mesmo assim
vocês aprontam ao menos um pouco. Se conseguirem manter os pacientes
vestidos, alimentados e fora da rua já está muito bom.
O Kid. Ele tenta te influenciar? Manda você fazer coisas? Já perguntei isso
antes mas não ficou claro pra mim.
Essa eu vou ficar devendo.
Como?
Preciso pensar em outra resposta. Certamente ele me aconselhava sobre o
que eu devia fazer. De tempos em tempos. Quanto a me influenciar, por que
outra razão estaria ali?
Você acha que uma voz pode impelir uma pessoa a cometer suicídio?
Você desconfia que o Kid estivesse levando esta que vos fala ao limite?
Foi só uma pergunta.
Se você tem alucinações auditivas vai ter alguma relação definível com a voz.
A maioria dos suicidas não precisa de uma voz. O que deveria fazer a pessoa
parar pra pensar é o fato de que o suicídio aumenta proporcionalmente à
inteligência no reino animal. Deveria se perguntar se isso não é verdadeiro
tanto para os indivíduos como para as espécies. Eu me pergunto.
Acha que os suicidas têm alguma coisa em comum? Uma forma específica de
pensar?
Acho. Não gostam daqui.
Bem.
Só estou sendo besta. Meu humor hoje não anda dos melhores. Certamente
você percebeu.
Quer parar?
Não precisa.
Tudo bem.
Imagino que se o mundo é um constructo seu discuti-lo em termos da
própria autonomia se torna um negócio incerto. É uma percepção, e como tal
não sei muito bem o que significaria para ele ter vida própria. Eu diria que não
tem. Ele tem a sua vida. E depois não tem.
Você já falou sobre isso antes.
Imagino que sim.
Com outros psicoterapeutas.
É.
Qual foi a reação deles?
Nenhuma.
E o que você fazia?
Sei lá. Caía na risada às vezes.
Mas falava essas coisas a sério.
Falava.
Mas então o que eles faziam?
Você sabe o que eles faziam.
Escreviam.
Isso.
O que eles escreviam?
Como vou saber? Paciente possivelmente hebefrênico. Enfim, tudo isso
virou a menor das minhas preocupações. Eu não conseguia levar nenhum deles
a sério.
Com o que estava preocupada?
Preocupações maiores.
Nunca sei até onde levar a sério esses seus comentários.
Eu sei.
Quando você estava tomando antipsicóticos as visitações pararam.
As visitações.
É.
Falando assim parece uma experiência religiosa.
Perdão.
Que um medicamento possa reestruturar o mundo em algo como uma
realidade objetiva é uma alegação com tão pouca validade quanto a realidade
objetiva em si. Acho que o que disse na época foi que tenho tantos motivos
para depositar minha confiança num estado mental medicado quanto num
sóbrio.
Então não estaria disposta a tentar outra medicação.
Você já me perguntou isso.
Tudo bem. Se alguém entrasse no seu quarto enquanto o Kid estivesse lá,
conseguiria vê-lo?
Isso também. Mas provavelmente não.
Mas não decididamente não.
Não sei.
Se a pessoa estivesse drogada com o medicamento da realidade como o resto
de nós imagino que não.
Imagino que não.
Quer fazer uma pausa?
Claro. Que tal um cigarro?
Por que não.
Você não anda com eles.
Não.
Deixa na gaveta de baixo. Pra ninguém levar?
Funcionou até agora.
Obrigada. Trouxe o cinzeiro?
Trouxe. Pode ficar com o maço se quiser.
Não precisa. Fumo pouco.
Acha relaxante?
Não sei. Talvez transgressivo.
Sério?
Claro.
Que idade você tinha quando fumou seu primeiro cigarro?
Três anos.
Isso não é verdade.
Não. Mas não foi muito mais velha que isso. Roubei um cigarro do maço do
meu tio em cima da mesinha da sala, peguei um fósforo na cozinha, fui até a
cabana atrás da casa e acendi. Devia ter seis anos.
Passou mal?
Lembro que minha cabeça ficou girando. Mas pensei que se os adultos
faziam aquilo devia ter um motivo.
Imagino que essa tenha sido uma opinião com vida útil limitada.
Acho que a maioria das crianças não considera seriamente o fato de que um
dia serão adultas. E que é desse jeito que vão ficar.
E você?
Eu considerava.
E?
Não vi saída para isso.
Quando pensou pela primeira vez no suicídio como uma opção?
Seriamente?
É.
Acho que nem sei muito bem o que isso quer dizer. Quando eu era menor
— dez, onze anos — costumava ter uma espécie de sonho acordado que achava
assustador. Daí percebi que não tinha nada de vigília nem de sonho. Era outra
coisa. E eu não tinha motivo nenhum para acreditar que o que via não existia e
que se aquele reino era ignorado de nós isso não fazia dele menos mas mais
assustador.
Como era o sonho? Ou a visão ou sei lá o quê.
Eu vi como que por um olho mágico esse mundo com sentinelas postadas
junto a um portão e sabia que além do portão havia uma coisa terrível e com
poder sobre mim.
Uma coisa terrível.
É. Um ser. Uma presença. E que a busca por abrigo e por uma aliança entre
nós tinha como objetivo simplesmente iludir essa coisa ominosa da qual
vivíamos com um medo infinito e sobre a qual no entanto nada sabíamos.
Quantos anos você tinha?
Dez. Acho que dez.
Voltou a ter essa visão?
Não. Não tinha mais nada pra ver. Os guardas no portão me viram e
gesticularam entre si, tudo ficou escuro e nunca mais voltei a ver aquilo.
Chamei de Arcatron.
A presença além do portão.
A presença além do portão.
E ficou oculta da vista.
Isso.
Mas nada mudou.
Nada mudou. Eu queria que fosse um sonho e pudesse acordar. Queria
poder esquecer mas não consigo. Queria ser quem fui antes mas jamais serei.
O que mais?
Só isso. Todo mundo sabe que o suicídio vive à espreita. Não muitos optam
por ele. Nietzsche diz que ele pode fazer o sujeito passar por um bocado de
noites ruins. Só a ideia. Mas o ato é para poucos. As pessoas são muito
apegadas à vida.
Mas nem todo mundo.
Não.
Deixa eu tentar uma tática diferente.
Cuidado com a retranca.
Você alguma vez teve a sensação de que o Kid e seus companheiros eram
designados a você?
Designados.
É.
Por quem?
Sei lá. Talvez isso esteja ligado de alguma forma à questão de terem ou não
outros clientes.
Talvez tenhamos que perguntar aos clientes. Publicar um anúncio nos
classificados.
Talvez me ocorra apenas que uma figura tão bem delineada como é sua
descrição do Kid poderia vir equipada com algum tipo de portfólio. Continuo
sem fazer ideia da sua opinião sobre ele. O cérebro deve ter que gastar um
bocado de energia para elaborar um constructo desses. Sem falar em mantê-lo
constantemente ao longo dos anos. O que a seu ver valeria tamanho gasto?
Não sei. É complicado, hein?
Bom. Algo por aí.
Pra gente ter essa conversa — qualquer conversa, imagino — tenho que
fazer uma série de concessões não só ao seu ponto de vista como também à
forma real do mundo observada do seu ponto nele. Consigo fazer isso. O
problema é que pra você nunca é uma questão de ponto de vista. Você nunca
fica preocupado de se pegar discutindo coisas muito curiosas de um modo
razoavelmente normal. Talvez isso se deva apenas à ingenuidade que traz para a
discussão. Você poderia dizer: Bem, de que outro modo você discutiria? Mas
quando o assunto são quimeras já não estamos pisando em um terreno um
pouco instável? Desde o início pensei que o Kid estava lá não para oferecer
alguma coisa mas para manter alguma coisa a distância. E nesse meio-tempo o
negócio todo é classificado sob a rubrica de uma realidade única que em si
permanece indisponível. Acordo no meu quarto à noite e fico deitada
escutando o silêncio. Você pergunta onde eles estão. Não sei onde estão. Mas
não estão em lugar nenhum. Assim como o nada o lugar nenhum requer para
sua afirmação uma testemunha que por sua própria definição não pode
fornecer. Você relutaria em conceder vontade própria a tais seres mas se eles
não fossem dotados de algo como autonomia em que sentido poderíamos dizer
que existem? Não está em meu poder nem conjurá-los nem mandá-los às favas.
Não falo por eles nem cuido de sua higiene ou guarda-roupa. Eu disse que
eram indistinguíveis de seres vivos, mas a verdade é que a realidade deles é no
mínimo mais conspícua. Não só a do Kid como a de todos eles. Seus
movimentos, sua fala, a cor e as dobras de suas roupas. De onírico eles não têm
nada. Isso tudo não ajuda muito, né? Bom, ninguém dá ouvidos a lunáticos. Só
quando dizem coisas engraçadas.
Acha que não escuto você?
Sua lunática prototípica. Você já me perguntou isso antes.
E o que você respondeu?
Deixa eu apagar isso.
Aqui.
Obrigada. Acho que está indo bem. Respondendo sua pergunta.
Que coisa é essa que ele mantém a distância?
O Kid?
O Kid.
Acho que não existe uma resposta simples pra isso. Se o mundo em si é algo
horrível não pode ser consertado por nada e a única coisa de que você poderia
ser protegido seria da sua contemplação.
Como isso seria de alguma ajuda? Não entendi.
Lamento. Mas é realmente tudo que tenho.
Você acorda e sabe que eles estão em algum lugar. Os seres. Mas sua
explicação parece um pouco filosófica. Se for mesmo uma explicação.
Eu sei. Alguém poderia simplesmente perguntar o que quimeras fazem
quando estão de folga.
É. Poderia. Berkeley continua a fazer parte da sua vida?
Tudo na minha vida é parte da minha vida. Esquecer coisas é um luxo de
que não disponho. Eu provavelmente tinha oito ou nove anos quando me dei
conta de que as coisas iam embora. Quando as pessoas diziam que não se
lembravam eu achava que isso queria dizer apenas que não queriam falar a
respeito. No lugar onde vivo as coisas não vão embora. Praticamente tudo que
já aconteceu continua ali.
Não é só uma questão de grau? Somos todos praticamente uma colagem de
memórias.
Eu sei. É um negócio incerto. Acho que confio na minha lembrança dos
eventos em grande parte devido às evidências que tenho da minha capacidade
de memorização. São todos o mesmo evento? Os versos de um poema não têm
nenhuma outra substância, mas os eventos históricos — incluindo sua história
pessoal — não têm substância alguma. A materialidade deles evaporou sem
deixar rastro. Pela minha experiência pessoas de memória fraca estão tão
propensas a estar certas quanto qualquer um.
Seu mundo deve estar um pouco lotado a essa altura.
Está. Nem tudo é bem-vindo. É preciso tomar cuidado com o que você
deixa entrar. Mas eu não mudaria nada. Nunca vou escapar de Platão. Ou
Kant. Wittgenstein vejo mais como um contemporâneo. Um colega da
faculdade. Me apaixonei por Husserl. Por ser um matemático confiava nele.
Quando era professor em Freiburg ele acolheu um jovem aluno chamado
Martin Heidegger e foi seu professor e mentor, daí os nazistas vieram e
avisaram que era para mandar Husserl embora porque ele era judeu, e
Heidegger disse tudo bem, nada mais justo. Então Husserl limpou sua mesa,
foi para casa, sentou e chorou, e quando Heidegger morreu assumiu sua
cátedra. De modo que imagino que a pergunta que nos cabe é: se a decência
humana não representa algo como a base da investigação filosófica, então para
que serve? Wittgenstein viveu toda a vida em agonia com o estado de sua alma.
A questão parece nunca ter ocorrido a Heidegger. Como foi que me tornei a
psicoterapeuta?
Não sei. Você teria sido uma das boas.
Provavelmente não. Acho que diria às pessoas que não estava a fim de ouvir
sobre suas vidas entediantes e que deveríamos passar direto para os sonhos.
A gente faz isso?
Passar direto para os sonhos?
Não sei.
Será que deveríamos ter falado mais sobre sonhos?
Ainda não terminamos.
Imagino que não. Mas ela é uma vaca astuciosa. De cada duas palavras que
diz uma certamente é mentira. Qual a ligação linguística entre devious
[malicioso] e deviant [aberrante]? Que horas é o almoço?
Meio-dia, acho. Deixa eu perguntar uma coisa. Se você era rejeitada por esse
cara por que não podia simplesmente seguir com sua vida? Você tinha o quê?
Doze anos?
É. Uma vagabunda de doze anos.
Não parece muito provável.
Só estou dizendo que já sentia tesão.
Era sexualmente ativa?
Não. Claro que não. Mas havia alguma coisa em mim mesma que eu não
tinha aceitado. Às vezes é preciso uma experiência um pouco desorientadora
para arrancar uma pessoa da sonolência.
Presumo que tal experiência tenha ocorrido.
Ocorreu.
Você estaria disposta a conversar sobre isso?
Vai parecer uma bobagem.
Tudo bem.
Aconteceu no corredor da escola entre uma aula e outra.
No ensino médio.
É. Teve esse menino do último ano que me parou e pediu pra eu virar de
costas. Era capitão do time de basquete e considerado o cara mais descolado da
escola. Ele tinha um papel e uma caneta na mão, fez um movimento giratório
com o dedo e disse: Me empresta suas costas. Junto com ele tinha uma garota
olhando e eu virei e ele pôs o papel nas minhas costas e escreveu alguma coisa.
Não sei o quê. Vai ver que só autografou. Não sei. E talvez ele soubesse o que
estava fazendo. Quer dizer, ele podia muito bem ter usado a parede. Ou uma
porta de armário. Mas eu me virei e ele escreveu nas minhas costas e eu fechei
os olhos. Foi incrivelmente sensual. Pensei no começo que fosse só uma
sensação de calafrio como quando os dedos de alguém sobem pelas suas costas.
Mas era mais que isso. Senti que ele estava escrevendo alguma coisa para mim.
Percebi que a garota estava me olhando. Ela ficou curiosa de repente. Devia ter
uns dezesseis anos. Quando ele terminou disse obrigado e abri os olhos e os
dois tinham ido embora pelo corredor.
E isso foi tudo?
Isso foi tudo. Sim.
Não tenho certeza do que você está me contando.
Eu sei.
Você disse que foi sensual.
Disse.
Foi sexual?
Foi. Muito.
Mas o que você percebeu?
Percebi que estava irremediavelmente apaixonada e que já fazia algum
tempo. Que minha vida tinha se resolvido. Quando eu não estava olhando, por
assim dizer. Nada muito incomum.
E foi isso.
Foi isso.
Você tinha doze anos.
É.
Mas não vai me contar quem era.
Não.
Como sabia que era amor? Me perdoe o ceticismo.
Como não? Eu só me sentia em paz na companhia dele. Se é que paz é a
palavra. Eu sabia que ia amá-lo para sempre. Apesar das leis do Céu. E que
jamais amaria outro.
E no fim foi isso mesmo.
É. Foi.
Mas ele não amava você.
Me amava demais.
Bem. Não entendo.
Eu sei.
Deve ter sido a diferença de idade. É a única coisa em que consigo pensar.
Nunca vi isso como um problema. Achei que a gente podia esperar um ano
se isso deixasse ele mais à vontade. Ou até dois.
Mas isso não foi o suficiente para mantê-lo fora da prisão.
No verão seguinte a gente se viu bastante. E no outro verão também.
Você tinha treze anos.
Nessa época estava com catorze. Achei que se me oferecesse de corpo e alma
ele me aceitaria sem reservas. Mas não aceitou.
Não.
Então para onde ir a partir daí? O que desejaria para si mesmo?
Não acredito que houvesse algo como uma segunda opção.
Não, a menos que você esteja sugerindo a morte.
Não estou.
Sei que você reluta em admitir que esse caso em especial possa ser difícil de
descartar como uma paixão juvenil. Sempre demandei privilégios e isenções
especiais. Certas coisas não consegui simplesmente porque não consegui
encontrar alguém a quem explicar o que eram. Mas uma privação que exige
que você descarte seu passado ou seu futuro não é só difícil. Então eu
pergunto: por onde recomeçar? Conforme sua sugestão. Ou como recomeçar.
Ou, indo mais diretamente ao ponto, por quê?
O fato de a vasta maioria das pessoas encontrar maneiras de lidar com as
próprias decepções não leva você a parar pra pensar?
Não.
Essa seria uma das isenções demandadas por você.
Sim.
A conversa está começando a enveredar por um caminho um pouco
esquisito.
Eu sei. Um anseio frustrado deixa um legado com o qual a satisfação desse
anseio pode apenas sonhar.
As leis do Céu. Você pode explicar um pouco melhor?
Não.
Tudo bem. Podemos conversar sobre o seu pai? Outra vez.
Se você quiser.
Mas sem todo esse entusiasmo.
Tudo bem. Vá em frente.
Você disse que não responsabilizava seu pai.
Não. Como se minha opinião fizesse diferença. A história vai engolir todos
eles, junto com sua responsabilidade. Mas a bomba é para sempre.
Onde fica Trinity? Em Nevada?
Novo México.
Seu pai trabalhava lá?
Sim. Claro.
Ele falava sobre isso?
Não muito. Li os depoimentos de costume. O grupo do meu pai ficou a dez
quilômetros do ponto zero. Distribuíram para eles uns óculos de proteção
muito escuros. Acho que pareciam óculos de solda. Mas meu pai tinha levado
os dele porque achou que não daria para enxergar muito bem com os óculos
cedidos pelo governo. Imagino que você poderia interpretar isso como uma
metáfora. Mas os óculos só precisavam bloquear a luz ultravioleta. Eles
ouviram a contagem regressiva pelo alto-falante. O pessoal estava bem nervoso.
Uns com medo de que a bomba não funcionasse e outros de que funcionasse.
Lembro de ouvir meu pai dizer que levou as mãos aos óculos para se proteger
do clarão inicial e que pôde ver os ossos dos dedos com os olhos fechados. Não
houve som. Só a luz branca ofuscante. E em seguida a coluna roxo-
avermelhada subindo e desabrochando no icônico cogumelo branco. O
símbolo da era. A coisa toda vagarosamente se erguendo a três mil metros de
altura. A onda de choque causou um vento supersônico que doeu nos ouvidos
por um momento. E no fim, é claro, o som da própria coisa. A detonação
ensurdecedora seguida do lento trovejar, a reverberação subsequente que
avançou através da paisagem em chamas por um mundo que nunca existira
antes deste lado do sol. As criaturas do deserto evaporando sem um pio e os
cientistas assistindo àquilo se duplicar nas lentes negras de seus óculos. E meu
pai assistindo pelas frestas dos dedos como o macaquinho que não quer ver.
Mas se tinha alguma coisa que todo mundo ali sabia é que era tarde demais pra
isso.
O que eles disseram? Os cientistas.
Levantaram da cadeira e disseram Puta Merda.
Não acredito que eles tenham falado isso.
Acho que não falaram nada. Estavam simplesmente atordoados. Um amigo
do meu pai, um físico chamado Bainbridge que era diretor do programa, falou
agora somos todos uns filhos da puta. E dizem que Oppenheimer citou o
Bhagavad Gītā, mas acho que a palavra em sânscrito para Tempo saiu como
Morte ou talvez fosse o contrário. Ou talvez as duas sejam a mesma.
Pensei que a imagem mais marcante da nossa era fosse a foto da Terra vista
do espaço feita pela Nasa. A bela esfera azul girando no vazio.
Uma justaposição interessante, não?
Você não se emociona com essa foto?
Acho assustadora. O vazio não tem o menor interesse na existência contínua
do mundo. Abriga igualmente incontáveis milhões de meteoritos. Alguns
descomunais. Rompendo as trevas a mais de sessenta quilômetros por segundo.
Acho que se houvesse algo com o qual se importar a essa altura ele já teria se
importado. Certa vez um amigo meu disse: Quando desaparecerem todos os
vestígios da nossa existência isso vai ser uma tragédia para quem? Você ouve
essas coisas ou só guarda?
As fitas.
As fitas. É.
Às vezes escuto uma ou outra. Tudo bem por você?
Claro.
Seu pai. Nunca demonstrou remorso? Nem nada do tipo?
Não. Mas um monte de cientistas sim. Estavam arrependidos. Meu pai falou
que eles deviam ter pensado nisso antes.
Teria feito alguma diferença?
Não. Era essa a questão. Nada teria feito a menor diferença. No início houve
um movimento para que os cientistas pudessem votar se a bomba seria ou não
usada mas meu pai achou aquilo ingenuidade pura. Disse que a bomba
pertencia às pessoas que haviam pagado por ela, e certamente não eram os
cientistas. Eles pagaram por nós, falou. Também fomos baratos. Ele mandou
pararem com a choradeira.
Tanto o seu pai como a sua mãe morreram de câncer.
Sim. Não acho que o trabalho no Y-12 fosse particularmente arriscado —
embora minha avó estivesse convencida de que foi o responsável pela morte da
minha mãe. Já o trabalho do meu pai no Pacífico Sul era provavelmente quase
suicídio. Claro que a radiação não era muito bem compreendida na época.
Imagino que alguns encontrem uma moral nisso.
Não você, presumo. Você disse que seu pai morreu numa cabana acima do
lago Tahoe.
Não, disse que ele viveu lá. O lugar era lindo. Dava para andar até uma área
pedregosa e ver o lago uns trinta quilômetros abaixo. Mas não foi lá que ele
morreu. Ele morreu em Juárez no México.
No México.
Isso.
O que ele estava fazendo lá?
Tratamento para o câncer.
Em Juárez?
É. Um extrato de caroço de damasco chamado amigdalina estava sendo
usado em clínicas de países do Terceiro Mundo. Acho que chamavam de
vitamina B-17. Muita gente desesperada aparecia nesses lugares. Inclusive uma
série de celebridades.
Seu pai foi ao México tratar um câncer com um bando de curandeiros.
É.
Isso não parece esquisito?
Claro. Mas ele tinha esgotado todas as possibilidades. Não acredito que
estivesse particularmente esperançoso. Acho que pensou na questão em termos
probabilísticos e não conseguiu eliminar uma probabilidade mínima de cura.
Então foi. O problema é que ele era bem informado demais para depositar
alguma fé de verdade nos poderes curativos do damasco. E a única chance de
aquilo funcionar era se ele tivesse alguma fé.
Como o efeito placebo.
Como o efeito placebo.
Ele morreu no México.
É.
Onde está enterrado?
Em algum lugar lá mesmo. Ele tinha pedido ao meu irmão para ir junto mas
Bobby não quis. Ele viajou sozinho, morreu sozinho e foi enterrado em algum
lugar do México mas não sabemos onde.
Tudo bem com você?
Tudo. Me dá um minuto.
Tudo bem?
Tudo.
Por que seu irmão não quis ir junto?
Porque achava que meu pai parecia ridículo fazendo aquilo.
E você achava que ele devia ter ido?
Achava. E Bobby também. Mas só quando já era tarde demais.
Seu pai era ateu?
Que pergunta esquisita. Você é?
Às vezes. Ele era?
Não sei. Provavelmente. Acho que considerava as crenças de uma pessoa
parte do seu caráter. Não teria achado que acreditar ou não em Deus pudesse
ser uma decisão consciente. Provavelmente a pessoa acreditava ou não. Tenho
certeza de que achava que era jovem demais pra morrer, mas não estou certa de
como alguém que não acredita em Deus lida com a morte.
Isso incluiria você?
Assim você só vai conseguir reações idiossincráticas. De que adianta?
O que vier é lucro.
Se não sabemos o que é a vida — e não sabemos — não entendo muito bem
como caracterizaríamos sua ausência. Acho que pensamos que sabemos onde
estamos mas isso é obviamente absurdo. Morrer é difícil, mas morrer sem saber
onde você estava. Ou por quê. Bom. Enfim, imagino que o que você está
tentando entender é que tipo de mente se dedicaria a explodir o mundo.
O que estou tentando entender é você. Seu irmão sentiu remorso por não
acompanhar seu pai no México.
Remorso é pouco. Meu pai acabou aparecendo pra ele num sonho e aí meu
irmão foi até o México tentar encontrá-lo.
Depois que seu pai já estava morto.
É. Ele foi ver se conseguia descobrir onde tinha sido enterrado.
Podemos mudar de assunto.
Acho só que não estou num bom dia. Tudo bem. Vá em frente.
E ele conseguiu descobrir?
Não.
Quanto tempo ficou no México?
Não sei. Eu não conseguia falar com ele. Quando finalmente o encontrei…
Estava sofrendo muito. Tinha voltado para El Paso. Consegui convencê-lo a ir
a um restaurante comigo mas ele não parava de chorar. Apoiei minha mão no
braço dele e ele a afastou.
Por quê?
É complicado.
Certo.
Ele tinha conseguido encontrar a clínica mas não quiseram contar o que
houve. Acabou entregando todo o dinheiro que tinha a funcionários mexicanos
mas a coisa não deu em nada. Ficou semanas por lá. Dormindo num hotel de
três dólares. Não sei quando tinha comido pela última vez. Parecia um
fantasma.
Isso foi em El Paso.
É. Ele estava no Gardner Hotel quando finalmente me ligou. Tinha tido
outro sonho. Só que não chamou de sonho. Contou que nosso pai tinha
aparecido para ele à noite no pé da cama usando a roupa que vestia na hora da
morte e então Bobby perguntou várias vezes onde ele estava mas ele não sabia
dizer. Não sabia onde estava. Meu irmão me contou isso aos soluços pelo
telefone e depois desligou e achei que fosse se matar.
Ele não descobriu onde seu pai estava enterrado.
Não.
Isso tudo foi tão doloroso para você como para o seu irmão?
Mais do que doloroso. Ainda é. Mas eu não tinha me recusado a ajudar meu
pai. Ninguém me pediu nada. Eu estava mais preocupada com o Bobby. Ele
estava péssimo.
Você realmente achou que ele podia se matar.
Achei. Eu não sabia o que ia encontrar quando chegasse lá.
E se ele tivesse se matado?
Não sei. Acho que provavelmente teria me matado o mais rápido possível
para tentar encontrá-lo.
Você não está falando sério.
Acho que estou.
Acredita em vida após a morte?
Não acredito nessa vida.
Não?
Não faço ideia. Me parece extremamente improvável. Mas a probabilidade
não é zero.
Nunca conversamos de verdade sobre o que fez você voltar para o Stella
Maris.
Eu não tinha nenhum outro lugar para onde ir.
Acho difícil de acreditar que teria vindo para cá se não estivesse em busca de
algum tipo de ajuda.
Se você acha.
Existem limites para essa conversa, não é? Você não quer pôr em risco seus
passeios pela natureza? Vejo que está achando graça.
Desculpa.
Não, sem problema. Independente das minhas preocupações, manter você
viva precisa ser a prioridade número um.
O que mais?
O Bobby voltou ao México alguma vez?
Não.
Seu pai nunca mais apareceu para ele? Não foi assim que ele disse?
Não, nunca mais.
Já perguntei isso antes, mas você e seu pai eram próximos?
Não. Mas eu o amava. Naquela época e hoje.
Só temos mais alguns minutos. Me conte alguma coisa esquisita sobre você.
Alguma coisa esquisita.
É.
Você está me perguntando o que tenho de esquisito?
É. Algo que eu talvez não saiba. Pode ser uma coisa boba.
Tudo bem.
Então?
Estou pensando.
Certo.
Consigo dizer as horas ao contrário.
Como assim?
Se vejo um relógio no espelho sei que horas são.
Eu também.
Não, não sabe. Tem que parar e pensar.
E você não.
E eu não.
Você praticou essa habilidade.
Acabei de me dar conta dela.
Como foi que se deu conta?
Primeiro só dobrei. Visualmente. Como uma página.
Na sua cabeça. Desculpe.
Daí depois de um tempo não precisei dobrar mais. Dava pra ver e pronto.
O que mais.
O que mais o quê?
Sei lá. O que mais sobre relógios.
No espelho o três e o nove invertem a posição mas o seis e o doze não. É um
problema de criança mas alguns adultos têm dificuldade com isso. Se a gente
joga um punhado de gravetos para o alto e bate uma foto vai ver muito mais
gravetos na horizontal do que na vertical. Por que isso acontece? Eles têm o
mesmo grau de liberdade.
Não sei.
É porque um graveto girando na vertical passa pelo plano horizontal no
meio do caminho. E brevemente se torna parte dele. Duas vezes. Mas a rotação
de um graveto na horizontal não contribui em nada para o plano vertical. Nem
um pouco justo, não é? As imagens numa porta de vidro se fechando giram
mas não se curvam. Óptica. A tendência a ser destro ou canhoto. Quiralidade.
Cor. Perguntas por toda parte.
Por que se dedicou à matemática em vez de à física?
Porque era mais difícil. Talvez. Antes de mais nada porque
independentemente de que outras coisas ela seja a realidade física é finita.
Acho que nunca vi você tão animada.
Bom. Aproveita.
O violino.
Certo.
Você disse que não tinha tempo de praticar.
Provavelmente não acreditava que fosse boa o suficiente. Pra ser honesta. A
certa altura me interessei pela matemática do violino. Me correspondi com
uma mulher de Nova Jersey chamada Carleen Hutchins que estava tentando
mapear a harmonia do instrumento. Ela tinha desmontado não sei quantos
Cremonas raros com um ferro de solda. Estava trabalhando com alguns físicos
na montagem de um equipamento sofisticado para determinar os padrões de
Chladni das placas. Mas as vibrações e frequências eram tão complexas que
resistiam a qualquer análise completa. Achei que era possível produzir modelos
matemáticos desses padrões de frequência.
Fez isso?
Fiz.
O que descobriu?
Carleen tinha registros cuidadosos. O violino mais antigo que existe é um
Amati possivelmente datado de 1564 que está no Ashmolean em Oxford. O
instrumento mais antigo que a gente estudou era de 1580 e o mais recente
deve ter sido um violino alemão da década de 1960. Tirando o ângulo do
braço eram iguaizinhos. Nada tinha mudado. Nada.
Isso parece incrível.
É. Mais incrível ainda é não existir um protótipo do violino. Ele
simplesmente surge em toda a sua perfeição de lugar nenhum.
A seu ver o que isso significa? Você deve estar me contando essa história por
uma razão.
É só mais um mistério para acrescentar à lista. Leonardo não tem explicação.
Ou Newton, ou Shakespeare. Nem uma infinidade de outros. Bom. Infinidade
provavelmente não. Mas pelo menos sabemos o nome deles. Mas a não ser que
a gente se disponha a conceder que Deus inventou o violino existe uma figura
que nunca será conhecida. Um sujeito humilde que foi com o filho às florestas
anãs da pequena era do gelo na Itália do século xv, abateu e serrou o bordo,
pôs as tábuas pra secar por sete anos e certo dia pela manhã se acomodou à luz
oblíqua de sua oficina, fez uma breve oração de agradecimento ao Criador e na
posse desse conhecimento perfeito pegou suas ferramentas e pôs mãos à obra.
Dizendo agora começamos.
Perdão. Você tem esse homem em grande estima.
Perdão. É. Em grande estima. Acabou o tempo.
v
Bom dia.
Bom dia.
Você parece diferente hoje.
A palidez gradual. O olhar distante. Você mesmo parece um pouco
esgotado.
Dei sorte de chegar aqui. As estradas estão péssimas.
Você tem o cuidado de não contar muito sobre si mesmo. Sua vida. Talvez
não devesse seguir tão de perto a linha do partido.
Bom. Eu disse que era casado. Duas vezes com a mesma mulher. Dois filhos.
O que você quer saber?
Como se chama sua filha?
Rachel.
Nome lindo. Triste. Quantos anos ela tem?
Nove.
Como ela é?
Não é triste.
Ainda.
Não acha uma coisa esquisita de se dizer?
Acho que damos aos nossos filhos o nome de quem esperamos que sejam.
Como seria se ela se chamasse Dolly? Ela é atenciosa.
É atenciosa sim.
Alta e magra. Cabelos escuros. Inteligente. Gosta de gatos. É difícil com o
irmãozinho. A menos que ele se machuque. Nesse caso é a primeira a chegar.
Você podia fazer isso numa feira de variedades.
Talvez um dia a gente se conheça. Ela já veio aqui?
Não. Acho que não. Não. Nunca veio.
Bom. Vá em frente.
Quer dizer que é minha vez?
Isso.
Tudo bem. O que poderia me contar que nunca contou a ninguém?
Nenhum analista.
É. Nenhum analista.
Uma tonelada de coisas.
Algo significativo. Que tenha passado pela sua cabeça. Alguma questão que
pensou em levantar mas desistiu.
Você acha que nosso tempo está se esgotando.
Não sei. Está?
Sei lá.
Não precisa ser nada pessoal. Nem nada sobre você.
Sobre o que então?
Qualquer coisa. Uma decisão que você tomou. Ou alguma coisa de que
tenha se tocado.
Me tocado.
É.
Locução estranha. Ignoremos o duplo sentido. E se tudo que eu contasse
fosse apenas uma monstruosa mentira?
Por que você faria isso?
Não faria. Não disse que faria. Acho que você tende a acreditar em tudo que
digo.
Sou ingênuo demais? Crédulo demais?
Não. Nem uma coisa nem outra.
Continue.
Caí no mundo. Geograficamente falando. Passei dois meses rodando pelo
país. Comia e tomava banho nas paradas de caminhoneiros e quase sempre
dormia no carro.
Fazia matemática?
Não. Lia muito. Procurava um hotel barato em Boise ou qualquer outro
lugar e simplesmente me enfurnava. Deixava o carro no estacionamento de
algum centrinho comercial e levava o cabo de ignição comigo.
Por que fazia isso?
Porque sim. Estava lendo quatro, cinco livros por dia. Algumas coisas que eu
queria ler estavam esgotadas havia séculos. Eu falsificava carteirinhas das
universidades e fazia cartões nas bibliotecas. Li livros que ninguém tinha
pegado emprestado em quarenta anos.
Onde estava o Bobby nessa época?
Não sei. Acho que viajando pelo país, vivendo das moedas de ouro.
E o Kid?
Aparecia de vez em quando. Em geral meio de mau humor. Às vezes eu
acordava num quarto de hotel em algum lugar e mal fazia ideia de como tinha
chegado lá. Deitada em uma cama de metal com a roupa do corpo. E o Kid
andando de um lado para o outro e dizendo coisas como a gente está meio sem
grana mas arrumei esse lugar aqui por enquanto. Você só precisa ficar na moita.
Analisar bem a situação. Eu me sentia como o John Dillinger. Que situação?
Do que você está falando? Daí você percebe que não toma banho nem come
faz não sei quantos dias. Não sabe direito onde está seu carro. Desce para a rua
e está o maior calor. No meio da manhã. Você vai até a esquina e tem uma
banca de jornal, dá uma olhada e vê o Miami Herald. Tudo bem. Já é um
começo. Volta pro quarto e o Kid sumiu. Deita na cama e se cobre com o
lençol. Não há nada que precise fazer. Ainda tem algumas horas antes de
entregar a chave. Ninguém bate na porta. Na verdade paguei por uma semana.
Saí à tarde e encontrei meu carro estacionado em um parquímetro expirado
com uma multa presa no para-brisa. Só ia mudando o carro de rua. De um
parquímetro pra outro. De multa em multa. Fui a uma mercearia e comprei
tomate, queijo e outras coisas. Pãezinhos. Voltei pro quarto mas o Kid parecia
ter realmente sumido. Na verdade era tudo meio que bem legal. Exceto pelos
pinguços batendo na sua porta no meio da madrugada. O recepcionista de um
hotel em Topeka no Kansas me perguntou na lata se eu era garota de programa
e eu disse pra ele dar uma boa olhada em mim e depois se perguntar o que
estaria fazendo num pardieiro de merda como aquele se fosse prostituta.
O que ele disse?
Que eu tinha razão.
O que você achou que fosse acontecer?
Eu não sabia. Pensei que pudesse acabar aqui. Parei no estacionamento aqui
uma vez e dormi no carro. Mas de manhã fui embora.
Não tinha amigos. Em lugar nenhum?
Não.
Você disse que não tinha amigos no ensino médio.
Fui eleita a representante da turma no último ano. Mas acho que só queriam
ver o que ia acontecer.
O que aconteceu?
Nada. Eu estava me preparando pra ir para a faculdade. Enfim, tinha só
catorze anos.
Chegou a contar ao seu irmão que era sinestésica?
Contei. Ele me perguntou.
Perguntou?
É.
E como isso passou pela cabeça dele?
É que o Bobby é muito inteligente e sabe um monte de coisas. Percebeu que
eu era uma boa candidata. E sabia que crianças sinestésicas normalmente
escondem essa condição porque percebem que as outras crianças as acham
esquisitas.
Ele era sinestésico?
Não. Ou só de leve. Teve uns dois episódios mas não fazia parte da vida dele.
Enfim, depois disso eu contei tudo pra ele.
Sobre o Kid.
É. No verão seguinte ele voltou e ficou em casa até o final e foram os
melhores dias da minha vida. Pela última vez. Eu tinha uma bolsa em Chicago
que começava no outono. Ele voltou e a gente começou a namorar.
Namorar?
Não sei de que outro jeito dizer. Saíamos todas as noites.
Saíam juntos?
Ele costumava me levar para esses bares de música country na periferia de
Knoxville. O Indian Rock. O Moonlight Diner. Eu me vestia que nem uma
piranha e dançava até cair. O Bobby tocava com a banda. Solava no bandolim.
Eu falava pras pessoas que éramos casados. Para evitar as brigas. Adorava. Tem
certeza de que quer ouvir sobre isso?
Acho que sim. Por quê?
Pode ficar um pouco picante.
Quantos anos você tinha?
Catorze. Quase.
Falava para as pessoas que você e seu irmão eram casados?
Ninguém sabia que ele era meu irmão. Quase nunca.
Por ele não havia problema?
Imagino que não. Era pra ser uma espécie de piada.
Talvez eu deva perguntar se tem certeza de que quer continuar com isso.
Já que você começou.
Porque imagino que não fosse uma piada para você.
Não.
Gostaria de acrescentar alguma coisa?
Apenas que queria me casar com ele. Como já deve ter adivinhado. Sempre
quis. Nada muito complicado.
Queria se casar com seu irmão?
Queria me casar com ele. É.
Entendo.
Duvido. Enfim, as cartas estão na mesa.
Você disse isso ao seu irmão?
Disse.
Que queria se casar com ele.
É. Pedi pra ele casar comigo.
Pediu ao seu irmão para se casar com você.
É.
Estava falando sério.
Muito sério.
O que ele disse?
Perguntou o que eu tinha bebido.
Você bebia?
Não. Eu não bebo. Foi só um modo de dizer.
E você não via nada de errado nisso?
Pra mim o fato de não ser aceitável não era problema nosso. Eu sabia que ele
me amava. Que só estava com medo. Já sabia que isso ia acontecer fazia muito
tempo. Eu não tinha mais pra onde correr. Sabia que teríamos que fugir mas
nada disso me preocupava. Beijei ele no carro. A gente se beijou duas vezes, na
verdade. A primeira bem de leve. Ele deu uns tapinhas na minha mão
aparentando a maior inocência e se virou para ligar o carro mas pus a mão no
rosto dele e fiz com que se virasse para mim e a gente se beijou de novo e dessa
vez não teve inocência nenhuma e ele ficou ofegante. Eu fiquei ofegante.
Apoiei a cabeça no ombro dele e Bobby disse a gente não pode fazer isso. Você
sabe que a gente não pode fazer isso. Tive vontade de dizer que não sabia coisa
nenhuma. Deveria. Beijei ele no rosto. Não botei a menor fé na determinação
dele mas foi um erro meu. A gente nunca mais se beijou.
Você está falando sério.
Estou.
Você já tinha se decidido mesmo antes da noite em questão.
A noite em questão. É. Fazia anos que eu sabia. Falei pra ele que não me
importava em esperar. Daí desatei a chorar. Não conseguia mais parar.
Você realmente achou que seu irmão fosse se casar com você?
Achei. Mesmo. Devia ter se casado.
E como seria? Vocês iam viver em outro país?
É.
Não pensou que poderia encontrar outra pessoa?
Não havia mais ninguém. Nunca haveria. Pra ele também não. Ele só não
sabia disso ainda.
Quantos anos tinha quando percebeu que estava apaixonada pelo seu irmão?
Provavelmente doze. Talvez menos. Menos. Vagabunda.
E não pensou duas vezes. Como se diz.
Não é fácil explicar, mas ficou claro pra mim que não havia uma visão
alternativa das coisas para abraçar. Ele estava na faculdade e eu só me sentia
viva quando voltava pra casa. Para o Natal e outros eventos.
E na noite em questão contou tudo a ele.
É.
Não sabia o que ele ia dizer?
Eu não me importava. A gente precisava de um ponto de partida.
E o fato de ele mais ou menos rejeitar você não mudou nada.
Não. Perguntei com quem achava que eu devia me casar mas é claro que ele
não tinha resposta pra isso. Ficou repetindo que eu tinha catorze anos mas falei
que era ele que estava falando bobagem, não eu. E se um de nós morresse?
Quem dispõe da eternidade?
Quantos anos seu irmão tinha?
Vinte e um.
Ele namorava?
Tentava. Nunca dava em nada. Eu não sentia ciúme. Queria que conhecesse
outras garotas. Que percebesse a realidade da situação dele.
Que estava apaixonado por você.
É. O sangue do seu sangue. Uma pena. Éramos como os últimos da Terra.
Podíamos nos unir às crenças e práticas dos milhões de mortos sob os nossos
pés ou recomeçar. Ele precisava mesmo pensar sobre aquilo? Por que eu deveria
ficar sozinha? Ou ele? Falei que não dava nem pra saber se havia justiça no meu
coração considerando que eu não tinha ninguém para amar e ninguém que me
amasse. Uma pessoa não pode se atribuir o crédito por uma verdade que não
encontra aceitação. Onde está o reflexo do seu valor? E quem vai te defender
quando você morrer?
Desculpe. Não queria fazer você chorar.
Não fez.
Quer parar um pouco?
Não.
O que mais?
Falei que queria ter um filho com ele.
Que queria ter um filho com ele.
Olha. Não adianta nada ficar repetindo essas coisas pra mim só pra
sublinhar o seu horror e insanidade. Você não é capaz de ver o mundo que eu
vejo. Não é capaz de enxergar com meus olhos. Nunca vai ser.
Tenho certeza.
Falei para o meu irmão que estava apaixonada por ele e que sempre tinha
estado e que continuaria a estar até morrer e que não tinha culpa se ele era meu
irmão. A gente podia ver aquilo como mera má sorte. Falei que ele devia
renunciar.
Renunciar?
É. Renunciar a suas prerrogativas fraternas.
Como ele faria isso?
Sei lá. Dar três voltinhas sem sair do lugar e falar denuncio esse laço de
sangue.
E depois casar com você.
E depois casar comigo. É. Embora alguém pudesse dizer que a realidade era
um pouco mais crua que isso.
Quer dizer que você queria fazer sexo com seu irmão?
É.
O estigma do incesto não significava nada para você.
O que espera que eu diga? Que sou uma menina má? O que o Westermarck
é de mim e o que eu sou do Westermarck? Queria fazer amor com meu irmão.
Sempre quis. Ainda quero. Existem coisas piores no mundo.
Você deve ter percebido como isso o deixava aflito.
Eu sei. Só esperava que ele caísse em si. Que compreendesse de repente o
que no fundo sempre soubera. Acho que pensei que ia conseguir arrancar ele
daquele estado de complacência pela força do choque. Eu segurava a mão dele.
Sentava colada nele quando estávamos no carro voltando pra casa e deitava a
cabeça no ombro dele. Imagino que fosse uma desavergonhada mas se tinha
uma coisa que não me preocupava era a vergonha. Eu sabia que tinha uma
única chance e um único amor. E que não estava enganada sobre os
sentimentos dele. Percebia como ele me olhava.
Você parece ter tanta certeza.
É. No spring break a gente foi para uma pousada em Patagonia no Arizona e
quando não consegui dormir fui até o quarto dele, sentei na cama e pensei que
ele fosse me abraçar e me beijar mas ele não fez isso. Descobri depois dessa
noite que o desejo em seu estado mais bruto pode ser algo próximo da
angústia. Achei que alguma coisa tivesse mudado no jantar mas não tinha.
Fiquei preocupada que ele se sentisse culpado se eu morresse e essa
preocupação nunca me saía da cabeça. Uma amiga me falou que se uma pessoa
se prende a um amor que jamais será correspondido vive assombrada por uma
raiva impossível de apaziguar.
Você sente raiva?
Não sei. Só sei que não seria absurdo afirmar que toda infelicidade humana
deriva da injustiça. E que a tristeza é tudo que resta quando você gasta a raiva e
percebe sua impotência.
Que tal parar para um chá?
Está feio assim?
Preciso só de um minuto.
Sem pressa. Vou ficar vendo suas anotações.
Como se sente?
Tudo bem.
Certo. O fato de não possuir nada.
O que é que tem?
Abrir mão de tudo não seria uma forma de se preparar para a morte?
Não acredito que haja uma forma de se preparar para a morte. É preciso
inventar uma. Não existe vantagem evolutiva em ser bom em morrer. Para
quem deixaria isso? A coisa com que você está lidando — o tempo — é
imaleável. Exceto que quanto mais você o acalenta menos o tem. O fluido do
ser está vazando no chão. É bom andar rápido. Mas a pressa em si consome o
que você deseja preservar. Não há como lidar com o que você foi enviado aqui
pra lidar. É difícil demais.
Não discordo. Acho. Mesmo que provavelmente fosse incapaz de dizer isso
de um jeito tão elaborado. Ou não quisesse.
Elaborado. É um código para histérico?
Não. Presumo que você não caracterizaria os carros de corrida do seu irmão
como uma ideação suicida.
Não. Tolices não fazem minha cabeça.
Você disse que muitos físicos praticam alpinismo.
É. Mas pra ele não teria funcionado.
Por quê?
Porque ele não tinha medo de altura. Qual seria a finalidade?
Do que ele tinha medo?
De profundezas.
E da velocidade?
Nunca vi um piloto que tivesse medo da velocidade. Todos acham que os
acidentes só acontecem com os outros. Segundo um velho ditado das pistas o
que mata não é andar rápido mas parar rápido. Ninguém toca no assunto mas
está sempre lá. Tem uma foto da Nina Rindt tirada em Monza três anos atrás.
Com uma roupa linda, sentada, olhando para a pista. O marido dela acabou de
morrer mas ela não sabe. Eu e o Bobby fomos à casa deles em Genebra. Na
parede da sala tinha um carro de corrida pendurado de cabeça para baixo. Ela
foi modelo, era linda. Vinha de uma família finlandesa rica. Estavam muito
apaixonados, ela e o Jochen, e morri de inveja. Que boba. Não sabia que
estávamos para virar irmãs do único jeito que importava.
Você disse que não sentia vergonha em relação ao Bobby. Até que ponto?
Até onde vai seu apetite por detalhes lúbricos?
Sei lá. Não faço ideia do grau de lubricidade.
Contei a ele sobre um sonho que tive.
Um sonho.
É.
Com intimidades.
É.
Qual foi a reação dele?
A que seria de esperar.
Ficou horrorizado.
Com razão. Imagino.
O sonho era particularmente rico em detalhes.
Bem rico.
Era comum você ter esses sonhos com seu irmão?
Não. Na maioria das vezes eu sonhava com nós dois. Vivendo juntos.
Sonhava que éramos casados. Hoje em dia nem tanto. Acha isso triste? Imagino
que não.
Não sei o que acho.
Eu e ele estávamos em uma cabana na floresta. Talvez fosse parecida com a
cabana onde meu pai morou só que a dele ficava em um lago. Acho que podia
ser aqui em Wisconsin. Era outono, a lareira estava acesa, o chão talvez
estivesse coberto de neve. Não tenho certeza. Era uma lareira grande de pedra,
dava pra ver o clarão do fogo do quarto e havia velas por todo lado.
Quando foi isso?
Faz dois anos. Quer que conte ou não?
Quero.
Havia velas por todo lado, estávamos nus ele olhava pra mim por entre as
minhas pernas, sorria, seu rosto brilhava à luz das velas, todo lambuzado do
meu próprio fluido, daí acordei. Meu orgasmo me acordou.
Contou isso ao seu irmão?
Contei.
O que ele disse?
Disse você não pode falar comigo desse jeito. Nunca mais fale comigo desse
jeito.
E?
E o quê?
O que você disse?
Disse que não falava. E não falei.
Como se sentiu sobre isso?
Sobre o sonho?
É.
Lamentei.
Ter contado a ele?
Não. Que fosse um sonho. Só isso. Estou cansada.
Tudo bem. Vejo você na quarta?
Não sei. Está bem. A gente se vê.
vii
Como está?
Estou bem.
Não conhecia esse suéter.
É emprestado.
Você não tem casaco, tem?
Não pretendo ir a lugar nenhum.
Posso trazer um pra você.
Certo. Que tal galochas?
Por que não. O que aconteceu com seu cabelo?
O Leonard cortou um pouco.
Cortou com o quê?
Ficou tão ruim assim?
Só queria saber onde ele conseguiu a tesoura.
Isso eu não conto.
Tudo bem. Escutei a fita da nossa última sessão.
E que tal.
Fiquei pensando que quando o paciente revela alguma intimidade ao
terapeuta, mesmo que ele goste de pensar que fez por merecer um novo nível
de confiança pode acontecer de não ser nada disso.
Então acontece de ser o quê? Na sua opinião.
Pode ser que a pessoa esteja com medo de que a terapia a faça confessar
alguma outra intimidade que considera mais privada. Embora eu reconheça
que nesse caso pode ser difícil de imaginar.
Então eu contaria alguma coisa que não quero que saiba para esconder
alguma coisa que definitivamente não quero que saiba.
Algo nessa linha.
Soa psicanalítico demais pra mim.
Sei. Na verdade soa como algo que eu disse certa vez.
Enfim, tendo exposto o caráter insidioso de sua paciente, que horrores acha
que ela pode estar escondendo?
Não sei. O que tem aí pra mim?
Marlon Brando em O selvagem.
Como?
A fala dele. Enfim, por que eu contaria? Não é esse o objetivo da manobra?
Ainda imagina um relacionamento íntimo com seu irmão?
Meu irmão morreu.
Desculpe. Foi por isso que saiu do ihes? Bem. Certo. Claro. Imagino que.
Acho que o que eu queria perguntar é se pretende voltar.
Não.
Onde aprendeu alemão?
Na Alemanha.
Você fala sem sotaque.
Como pode saber?
Para o meu ouvido, pelo menos. Minha avó falava alemão. Alemão e iídiche.
Um motorista alemão ficou muito interessado em mim uma vez.
E vocês tiveram alguma coisa?
Não. Mas o Bobby não sabia disso. Falei que não era da conta dele. Só
queria que visse o tremendo falso que ele era.
Ele ficou com ciúme.
Nem me fale.
Gostou da Alemanha?
Gostei. Me surpreendeu. Acho que estudei alemão com mais afinco do que
qualquer outra língua. Tinha uns dez cadernos codificados com cores. Os
artigos são traiçoeiros. E é uma sociedade muito afetada. Eu mantinha um
registro de como falar e me portar.
Seu amigo tinha saído do Instituto a essa altura. É isso mesmo?
É.
Mas não foi por isso que você decidiu largar a matemática.
Não. Eu teria largado de qualquer jeito.
Não sente falta?
É como sentir falta dos mortos. Eles não vão voltar. Velhas questões
fundamentais provavelmente continuarão a tumultuar meus sonhos. E de vez
em quando sinto falta do mundo do cálculo propriamente dito. De resolver
problemas. Quando as peças de repente se encaixam após dias de labuta é
como um animal perdido se abrigando da chuva. A gente quase diz aí está
você. Fiquei tão preocupada. Mal se dá ao trabalho de revisar o que fez. Você
sabe e pronto. Que o que está olhando é real. É uma alegria.
Já tentou cortar os pulsos?
Se já tentei cortar os pulsos.
É.
Você às vezes abusa. Sabia?
Não. Suas fantasias suicidas. Em que pé estamos?
Eu não contaria se soubesse.
Você se sente culpada pelo quê?
Fora ter nascido, imagino.
Fora isso. É.
Acho que a primeira coisa a dizer é que duvido seriamente que as pessoas
sejam levadas ao suicídio pela culpa. Desde quando somos tão virtuosos?
Quando você se despediu do Kid.
O que é que tem.
Ele quis saber se você ia sentir falta dele.
É.
O que você disse?
Não sabia o que falar. A tristeza foi sufocante. Não era algo que eu esperasse.
Mas você não vai voltar a vê-lo.
Não.
Não pretendo perguntar como pode ter tanta certeza. Depois de quantos
anos?
Oito. O Ogdóade.
O Ogdóade?
Em anos gnósticos.
Você não tem nenhuma clareza do que ele representava.
Ele representava a si mesmo. Ele é seu próprio ser, não meu. Foi a única
coisa que aprendi de verdade. Interprete como achar melhor. Nunca conheci
um psicoterapeuta que não quisesse matar o Kid.
No fim você se afeiçoou a ele.
Ele é pequeno, frágil e corajoso. Como é a vida interior de um eidolon? Seus
pensamentos e perguntas se originam dele? E os meus se originam de mim? É
uma criatura minha? Sou uma criatura dele? Eu via como ele tinha que se virar
com suas nadadeiras e como ficava constrangido que eu notasse. Seu jeito de
falar, o vaivém incessante. Eram obra minha? Não tenho todo esse talento. Não
sei responder suas perguntas. A tradição de trolls ou demônios vigiando
curiosos deve ser tão antiga quanto a linguagem. Ainda assim, talvez um amigo
deva ser alguém que você consegue tocar. Sei lá. Não tenho mais uma opinião
sobre a realidade. Antes tinha. Agora não tenho mais. A primeira regra do
mundo é que tudo desaparece pra sempre. Quem se recusa a aceitar isso vive
numa fantasia.
Você chegou a fazer algum exame para verificar sua pressão intracraniana?
Não encontrei nenhum registro.
Não. Mas provavelmente é para onde estamos indo. Eu e minha grande
boca.
Sou responsável por você. Isso na verdade não mudaria nada. Quem sabe me
dê uma chance de ver melhor o que está acontecendo aí dentro.
Eu gostaria de um pouco de privacidade. Tem sempre alguém me seguindo
por toda parte. Sou observada no banho. Não posso usar nada nos pés. Tenho
certeza de que ia atrair a Enfermeira Carrancuda.
Vou pensar no seu caso.
E se eu voltar à medicação.
Faria isso?
Não.
A gente pode considerar alguns remédios.
Você nem tem um diagnóstico mas já está pronto para prescrever.
Então por que tocou no assunto?
Só queria ver se ia tentar me empurrar suas drogas. Claro que o lítio sempre
vem por último porque não é patenteável. Um negócio assim não dá um
centavo de lucro. E os nomes são fantásticos. Depakote, Seroquel. Risperdal.
Meu Deus. Quem inventa essas coisas?
Pra você é tudo uma conspiração farmacêutica.
Não. Não acredito nisso. Por que estou pegando no seu pé? Sonhos são
frágeis. Se a gente os materializa com drogas por que não deveria ser
igualmente capaz de desmaterializá-los?
É esse lado seu que os psicoterapeutas descreveram como difícil?
Acho que você podia perguntar a eles o que esperavam de uma paciente com
transtorno mental. De todo modo no fim das contas eu mal era uma paciente.
Mas eles continuaram sendo médicos difíceis.
Você estudou a literatura só para confundi-los ainda mais.
Não estudei nada. O que havia pra estudar? Se eles podiam se confundir
com as próprias doutrinas já não teriam feito isso?
Você comentou sobre despertar de sonhos ameaçadores. Chegou a ver
alguma coisa realmente perturbadora?
Nunca vi monstros. Criaturas carregando suas cabeças por aí. Sempre achei
que as piores coisas transcendiam a representação. Eu não conseguia compor
uma imagem delas. Não tinha as partes.
Era sempre assim?
Não. E às vezes tudo simplesmente sumia. Ainda some. Às vezes eu acordava
no inverno no escuro e todo vestígio de terror tinha ido embora de fininho no
meio da noite e eu só ficava ali deitada com a neve batendo no vidro. Pensava
em acender o abajur mas ficava só deitada escutando o silêncio. O vento em
meio ao silêncio. Hoje em dia quando vejo esses pacientes de camisolão cagado
largados nas macas pelo corredor com o rosto virado para a parede me
pergunto o que a humanidade significa. Se me incluo nela.
Queria estar incluída?
Muito. Só não estava disposta a pagar o ingresso. Em um dia bom podia até
admitir que fôssemos as mesmas criaturas. Muita coisa era igual e havia poucas
diferenças. As mesmas formas improváveis. Cotovelos. Crânios. Resquícios de
alma.
Fico surpreso ao ouvir que você se sentia assim.
Os animais não parecem sofrer de doença mental. Por quê, na sua opinião?
Não sei. Mas imagino que você faça alguma ideia.
Por que imagina isso?
Porque foi você quem levantou a questão. Você é como uma advogada.
No sentido de não fazer uma pergunta sem ter uma resposta para ela.
É. Mas e um cachorro com raiva?
A raiva não é uma doença mental. É uma doença do cérebro.
Distinção interessante. Tudo bem, por quê? Não são inteligentes o
suficiente?
Não acho que seja isso. Os cetáceos são bastante inteligentes e não parecem
sofrer de demência. Acho que para haver loucura é preciso haver linguagem.
Presumo que para poder escutar as vozes na sua cabeça.
Não sei bem por quê. Mas é preciso entender o que foi o advento da
linguagem. O cérebro se virou perfeitamente bem sem ela por milhões e
milhões de anos. A chegada da linguagem foi como a invasão de um sistema
parasitário. Cooptando essas áreas do cérebro que eram menos dedicadas. As
mais suscetíveis de apropriação.
Uma invasão parasitária.
É.
Você está falando sério.
Estou. A orientação interna de um sistema vivo é tão necessária para sua
sobrevivência quanto o oxigênio e o hidrogênio. A regulação de qualquer
sistema evolui concomitantemente ao próprio sistema. Desde piscar e tossir até
a decisão de fugir para salvar sua vida. Com exceção da linguagem todas as
faculdades têm a mesma história. As únicas regras da evolução que a linguagem
segue são as necessárias para sua própria construção. Um processo que levou
pouco mais que um piscar de olhos. A extraordinária utilidade da linguagem
fez dela uma epidemia do dia para a noite. Ela parece ter se espalhado de
maneira quase instantânea pelos recessos mais remotos da humanidade. O
mesmo isolamento dos grupos que levava a seu caráter único parece não ter
servido de proteção alguma contra essa invasão e tanto a forma da linguagem
como as estratégias através das quais se fixou no cérebro parecem praticamente
universais. A exigência mais imediata foi um aumento da capacidade de
produzir sons. A linguagem parece ter se originado no sul da África e essa
exigência provavelmente explica os cliques das línguas khoisan. O fato de haver
mais coisas para nomear do que sons para dar nome a elas. Em todo caso a
competência física para a fala foi provavelmente o obstáculo mais difícil. A
faringe se alongou até que o mecanismo em sua presente forma quase
estrangulasse o dono. Somos a única espécie de mamífero que não consegue
engolir e articular sons ao mesmo tempo. Pense num gato rosnando enquanto
come e tente fazer igual. Enfim, o sistema inconsciente de orientação tem
milhões de anos, a fala menos de cem mil. O cérebro não fazia a menor ideia
da chegada disso. O inconsciente deve ter feito todo tipo de reordenação para
acomodar um sistema que se revelou absolutamente incansável. A linguagem
não só pode ser comparada a uma invasão parasitária como também não pode
ser comparada a mais nada.
Bela dissertação.
O que torna a linguagem interessante é que ela não evoluiu a partir de
nenhuma necessidade conhecida. Era só uma ideia. Lysenko voltando dos
mortos. E a ideia, vale repetir, era que uma coisa podia representar outra. Um
sistema biológico sob um ataque bem-sucedido da razão humana.
Não tenho certeza se já vi a biologia evolucionária sendo discutida em
termos tão belicistas. E o inconsciente não gosta de falar conosco devido a seus
milhões de anos de história desprovidos de linguagem?
Exato. Ele resolve problemas e é perfeitamente capaz de nos fornecer as
respostas. Mas hábitos com milhões de anos de idade são difíceis de largar. Ele
podia facilmente dizer: Porra, Kekulé, é um anel. Mas acha mais cômodo
improvisar uma argola de cobra e dar voltas com ela na cachola de Kekulé
enquanto ele cochila diante do fogo. É por isso que nossos sonhos são cheios
de drama e metáfora.
Não sei a que se refere a argola de cobra.
É a configuração da molécula de benzeno. Não importa.
Palavras preocupantes. Mas pelo que entendi você está sugerindo que o
advento da linguagem, fora seu enorme valor, foi disruptivo.
Muito disruptivo. Compatível com seu valor. Destruição criativa. Todo tipo
de talentos e habilidades devem ter se perdido. Sobretudo comunicativos. Mas
também coisas como a navegação animal e provavelmente até a riqueza dos
sonhos. No fim das contas esse estranho novo código deve ter substituído ao
menos parte do mundo por aquilo que pode ser dito sobre o mundo. A
realidade pela opinião. A narrativa pelo comentário.
E a sanidade pela loucura, não se esqueça.
É. Não esqueço.
E a chegada da guerra universal.
Isso também.
Como viemos parar nesse assunto?
Não tem problema. Podemos falar de outra coisa.
O que mais?
O que mais o quê?
Quanto tempo faz que a sinestesia anda por aí? Existe alguma coisa
linguística acerca dela?
Não que eu saiba. Parece bastante primeva. Cor, sabor, cheiro. Embora eu
não tenha certeza de que combinar todos os sentidos seja uma ideia tão boa. A
título de sobrevivência.
E o autismo? Mais especificamente da variedade idiot savant.
Linguístico até a medula.
Até a medula.
A sinestesia pode ser coisa nossa também. Agora que parei para pensar. Um
sinestésico que vê o número cinco como vermelho em arábico pode
perfeitamente vê-lo em vermelho em algarismos romanos também. O que
sugere que o que veem como vermelho é um conceito e não o número físico.
Que tal?
E a sinestesia era algo que você mantinha em segredo das outras crianças.
Entre outras coisas. Muitas outras, na verdade. Ajuda você a lembrar.
O que ajuda a lembrar?
A sinestesia. É mais fácil lembrar duas coisas do que uma. Por isso é mais
fácil lembrar as palavras de uma canção do que as palavras de um poema. Por
exemplo. A música é uma armação sobre a qual a gente monta as palavras.
O que mais?
Mais um monte.
As outras crianças te achavam esquisita.
Não era uma suposição.
Você concordava com elas.
Podia entender sua perspectiva.
Alguma delas era boa em matemática?
Não.
Nem um pouco?
Nem um pouco.
O Bobby era?
Acho que você já me perguntou isso. Ele era bom. Apenas não o bastante.
Mudou pra física. Não fui eu quem disse que achava que ele devia. Ele mudou
e pronto. Era bom em fazer contas de cabeça. Melhor do que eu. Tem gente
que acha que isso é fazer matemática. Posso perguntar uma coisa?
Claro.
Estou cheirando mal?
Por quê? Tem negligenciado a higiene?
Está tão mal assim?
Você não consegue tomar banho com alguém olhando?
Eu tomo banho.
É bastante comum aqui. As pessoas tendem a negligenciar coisas como a
higiene.
O que mais é como a higiene?
Sei lá. Alguém criticou sua aparência?
Não que eu saiba. Sei que às vezes parece que saí de casa com pressa. Eu
costumava gostar de me arrumar pra ir dançar. Mas era só figurino.
Faz de conta.
É.
Você se arrumava para o Bobby.
Imagino. É.
Lamento.
Tudo bem. De vez em quando eu pegava ele me olhando e saía do quarto
aos prantos. Sabia que nunca mais seria amada daquele jeito. Só pensava que
estaríamos sempre juntos. Sei que você acha que eu deveria ter considerado a
situação mais aberrante do que considerei, mas minha vida não é como a sua.
Minha hora. Meu dia. Eu costumava sonhar com nossa primeira vez. Continuo
sonhando. Queria ser reverenciada. Queria ser adentrada como uma catedral.
Talvez fosse melhor conversarmos sobre outra coisa.
Eu sei.
Você reservou algumas farpas a Jung mas acho que pouco falou sobre Freud.
Eles eram yung e facilmente freudzardos.
Como?
Nada. Uma frase do Joyce. Acho os estudos de caso interessantes. Claro que
sempre tem alguma coisa à venda. O livro dos sonhos é bom na medida em
que não é um romance. Acho que Freud tem uma visão incerta da nossa vida
interior. Talvez até mais do que Jung. Ela não é tão complicada. Se eles
tivessem pensado um pouco mais na evolução biológica e passado menos
tempo elaborando teorias malucas poderiam ter descoberto algumas verdades
simples.
Você não concorda que as teorias deles são ainda assim baseadas na
observação real?
Como a astrologia.
Você não está falando sério.
Talvez não. Freud pelo menos não tenta dizer o que são os sonhos.
E isso é bom.
É. Porque ele não sabe. Criar uma linguagem para categorias inexistentes
não parece uma estratégia particularmente boa para quem pretende deixar
algum tipo de legado intelectual. É preciso haver uma metáfora pra esse tipo de
iniciativa. Uma imagem como ossos teóricos desbotando no deserto.
A matemática não está sujeita a intempéries.
Não. Quando a matemática desaparecer tudo vai desaparecer.
Mas mesmo assim…
Mesmo assim. E no entanto. A vida é dura. Nunca vou deixar de amar a
matemática mas sou uma cética contumaz e talvez minhas dúvidas não possam
ser dirimidas pela investigação lógica. O sobre-o-qual que não se pode.
Existe algum insight isolado que sustente a maior parte da matemática
moderna?
Ah, essa é boa.
Desculpe.
Não. A pergunta não é estúpida. É só que não temos a resposta. Coisas
como as profundezas da coomologia ou o discontinuum de Cantor são
contaminadas pelo sabor de mundos insuspeitados. Podemos ver as pegadas de
álgebras cujo domínio inteiro é imune à comutação. Matrizes cuja incubação
lança uma sombra sobre o solo de suas origens e que aí deixam uma marca à
qual não mais se conformam. A álgebra homológica veio a moldar boa parte da
matemática moderna. Mas no fim será simplesmente absorvida pelo mundo do
cálculo.
Presumo que a obra de Gödel jamais sofrerá o mesmo destino da obra de
Freud. Os ossos desbotando no chão ou qualquer coisa assim.
Minha bronca com os platônicos é coisa do passado. Presumindo afinal que
alguém pudesse fazer isso, qual seria a vantagem de ignorar a natureza
transcendente das verdades matemáticas. Não existe mais nada a respeito do
qual todos os homens sejam obrigados a concordar, e quando a última luz no
último olhar se apagar e levar toda especulação consigo pela eternidade acho
que poderia até acontecer de essas verdades brilharem por um breve momento
à luz final. Antes de as trevas e o frio engolirem tudo.
Quer fazer uma pausa?
Acho que sim. Se você quiser.
Aceita um cigarro?
Não. Obrigada.
Não se compreende, não é? O que é a matemática.
Não.
Algum dia será compreendida?
Não.
Seu amigo Gödel era de fato um platônico irredutível.
Era. Ele achava que os objetos matemáticos tinham a mesma realidade de
árvores e pedras.
Parece uma opinião esquisita.
É uma opinião esquisita. Imagino que outros matemáticos tendam a tomar
as opiniões de Gödel ao pé da letra, mas elas podiam refletir certo ceticismo no
que diz respeito à própria realidade. Confesso que nunca vi um seis. Não faço a
menor ideia do que constitui um objeto matemático. Na minha experiência
tudo que é matemático vem na forma de uma diretiva. O conceito numérico
de seis é totalmente inerte. Gödel nem sempre foi platônico, mas não é o
primeiro cientista a aceitar uma teoria implausível simplesmente porque
explicava os fatos. Depois dos artigos de 1931 ficou claro para ele que somos
capazes de insights matemáticos de que uma Máquina da Verdade Universal
não é. Mas por que Gödel não via o menor problema com a ideia de abstrações
matemáticas como entidades factuais eu não saberia dizer. Os platônicos
parecem mais ou menos mudos sobre a origem da matemática e
extraordinariamente despreocupados quanto ao que poderia ser o propósito do
cálculo em um universo desabitado. Acho que acreditar em fantasmas é muito
mais comum entre os matemáticos do que geralmente se imagina. Gödel no
fim se tornou algo próximo de um deísta. Não que seguisse algum tipo de
prática espiritual. É uma tradição que vai de Pitágoras a Newton e a Cantor.
Que aliás atribuiu uma origem sobrenatural aos transfinitos. Alef Zero. Alef
Um. Não foi de grande ajuda para sua causa. Suas ideias sobre infinitos
relativos tiveram de aguardar a morte de toda uma geração de matemáticos
alemães antes que pudessem mesmo ser ouvidas. O Universo é inteligente? Não
é isso que está em questão? Meu irmão costumava dizer nem tanto.
Provavelmente basta a cada dia. Gödel nunca afirma diretamente que existe
uma aliança com a qual todos os matemáticos consentem mas temos a clara
sensação de que a esperança existe. Sei do fascínio. Um palimpsesto cintilante
de eterno anuimento. Mas afirmar que os números de algum modo existam no
Universo sem ser ensejados por uma inteligência não requer um tipo diferente
de matemática. Requer um tipo diferente de universo.
Esse universo existe?
Algumas ideias de Gödel são simplesmente bizarras. A circularidade do
tempo funciona matematicamente mas nunca vai ter nada a ver com encontrar
seu avô morto. As ideias sobre Deus. Botei o platonismo na mesma caixa e
pronto. Só que ele teimava em não ficar ali. Um pouco devagar caiu a ficha que
é de Gödel que estamos falando, e embora ele pudesse ter ideias ridículas sobre
todo tipo de coisa será que podia de fato ter ideias ridículas sobre a
matemática?
E o que você concluiu?
Ainda estou concluindo.
Para que lado se inclina?
Voltei e reli duas vezes os artigos de 1931. Da última vez que reli sonhei com
eles. Sonhei com o segundo artigo. Daí acordei e conforme acordava o sonho
começou a se desfazer. O sonho e a história do sonho. E eu sabia que no sonho
havia uma compreensão que era simplesmente uma dádiva e ela estava
desaparecendo na escuridão e sentei na cama e a chamei de volta mas ela
simplesmente se desmanchou na minha mente e depois disso vi os insights do
artigo sob uma luz muito diferente mas não sei se o sonho tem algum papel
nessa compreensão e suspeito que nunca vou saber.
O sonho tinha números?
Claro que essa é a questão, não é? Não, não tinha. Consistiu inteiramente
em compreensão.
Não tenho certeza se entendi. Mas ela não ia voltar.
Não ia voltar.
Sua visão das coisas mudou.
É. Comecei a ter dúvidas sobre minha visão material do universo até então.
Isso foi algo que veio devagar?
Não sei. Não sei o que é devagar. Gödel fala de uma série de matemáticos
que passaram por experiências transformadoras. Imagino que eu deveria dar
uma examinada neles. Ele próprio nunca teve uma experiência dessas. Acho
que talvez sentisse inveja. Acho que o sonho continua ali. E que sabe se deve
ou não voltar a me visitar. Ou eu a ele. Gödel vive reclamando que não
compreendem seus artigos sobre a indeterminação. Reli os artigos e vi que ele
provavelmente estava certo. Eu não tinha compreendido.
E agora compreende?
Defina compreender.
Tudo bem. Mudando de assunto. Para você a matemática é feita pelo
inconsciente.
É. Não sei nada de matemática. Só tento anotar quando aparece.
Acho que deve estar exagerando até certo ponto.
Talvez. Até certo ponto. Por que isso interessa a você?
Porque interessa a você. Quando teve esse sonho?
Anteontem.
Mentira.
Seis meses atrás. Sete, talvez.
Se o sonho voltasse a… Que termo você usou? Visitá-la? Se conseguisse se
lembrar do sonho você me contaria?
Não sei. Teria que pensar um pouco. E se fosse obsceno?
Matemática obscena.
Claro. Por que não?
Mas o que foi que compreendeu?
Em relação a Gödel?
Em relação a Gödel.
Acho que vi o que ele viu. Que encontrar os limites de um sistema era mais
do que apenas encontrar os limites. Era encontrar o que fica além dos limites.
Você só tinha que encontrar os limites primeiro.
E o que fica além dos limites?
Nesse caso a compreensão de que aquilo de que você havia suspeitado por
tanto tempo era realmente verdade. Que a matemática não tinha limites. Que
era inexaurível. Isso não se questionava mais. E agora você tinha que parar e
pensar sobre o universo.
E o que você pensou? Sobre o universo.
Que a investigação iria penar com a disponibilidade cada vez menor do
empírico. Mesmo enquanto eu trabalhava o universo estava encolhendo.
Então o que você usaria na investigação?
Imagino que a única coisa que tinha. A mente.
E o que a faz achar que sua mente estaria à altura da tarefa?
O fato de que estamos aqui. Não em outro lugar. E não há mais nada para
saber. Algumas ideias de Gödel eram inquestionáveis. Pensei em seu
platonismo mas daí pensei que não era tão diferente do de Frege. Dar outra
olhada? Não foi de grande ajuda. Pensei que talvez a mesma audácia que os
havia levado a suas ideias fundamentais podia muito bem originar outras
investigações indistinguíveis de um mero palavrório. Tentei esquecer isso por
um tempo. Mas não consegui. Passei a discordar cada vez mais de Aristóteles.
Ele começou a parecer cada vez mais esse cara da tábula rasa. Eu sabia que não
acontecia de no nascimento não sermos seres humanos. Pelo que entendi ele
compreendeu que a mente tem forma mas parece não ter compreendido o que
isso significava. A mente precisa ser capaz de sua própria existência.
Não entendo o que isso quer dizer.
Eu sei. Só não me ocorre outro modo de dizer. Compreendi que se me
deixasse enredar completamente talvez nunca mais encontrasse a saída. Pior,
podia nem querer encontrá-la.
Anuimento. Isso é uma palavra?
Não. O substantivo seria anuência. Mas a anuência é um estado geral para a
especificidade de anuir. Não existe resposta para a questão da unanimidade
entre matemáticos. Meu novo amigo Chihara — possível admirador de Gödel
mas com certeza não de suas intuições — afirma que enquanto organismos
biológicos os matemáticos são basicamente muito similares.
É assim que ele explica a concordância deles sobre a matemática? Dizendo
que são todos iguais?
Acho que poucos matemáticos perceberiam o humor dessa afirmação. E ela
dificilmente explicaria nossa discordância sobre quase tudo o mais. Imagino
também que poderíamos dizer que a intuição matemática explica apenas um
acesso à matemática, não sua existência.
Então como explicar a existência dela?
Talvez o melhor que possamos fazer seja apontar. A exemplo de
Wittgenstein. O corpus da matemática é constituído de problemas, não
respostas. Algo que os problemas admitem.
Isso é verdade?
Se é verdade não sei. Mas talvez explique a sensação de descoberta.
Estamos rodeando o conceito de tautologia em matemática?
Gostei disso. Rodeando a tautologia.
Mas você continua admirando Gödel.
Muito.
E seu novo amigo?
Chihara.
É. Ele também seria um admirador?
Imagino que sim. Acho que o sucesso científico em tenra idade implica
fardos insuspeitados. E o maior deles é o medo. Chihara saberia disso.
Medo? De quê?
De estar errado. Quando perguntaram a Dirac faz pouco tempo por que não
tinha anunciado publicamente que a partícula espreitando em seus cálculos era
um antielétron o que você acha que ele disse?
Não sei.
Pura covardia.
O que mais?
Em relação a Gödel?
É. Pelo visto ele ocupa um bocado de espaço.
Gödel escreveu os artigos de 1931 motivado pela leitura dos Principia de
Russell e Whitehead. Russell acreditava que Gödel era o único que tinha lido
aquilo por inteiro e ficou admirado com sua compreensão da obra. Claro que
ela nunca foi concluída. Russell percebeu o problema nela e implorou que
Whitehead não a publicasse. Os dois mal se falaram depois disso. Não ajudou
muito o fato de Russell viver dando em cima da jovem esposa de Whitehead.
Ele levava uma vida social limitada na época e disse que se não dava para comer
a esposa dos amigos então quem ia comer?
Ele não disse isso.
Não. Ou não que eu saiba. Acho que no caso dele estava mais para um
princípio tácito. Whitehead tentou terminar o quarto volume sozinho mas teve
que desistir. Acho que trabalhar com Russell ao longo de todos aqueles anos o
deixara com uma falsa avaliação da dificuldade do projeto.
Russell era um matemático muito bom.
Era.
Mas desistiu. Da matemática.
Sim.
Por causa de Wittgenstein?
A maioria — Russell inclusive — afirma que foi por causa de Wittgenstein.
Mas o verdadeiro motivo é que Russell queria ser famoso. E sabia que a
matemática não podia fazer isso por ele. E claro que tinha razão. E de fato
ficou famoso. Era reconhecido no mundo todo e teve infinitas mulheres. Nem
todas esposas de amigos.
Ele desistiu da filosofia?
Basicamente. Começou a escrever livros populares. Acho que passou a ver a
tentativa de compreender o universo como algo inútil.
Um universo que não contém luz nem escuridão.
Tampouco certeza ou paz ou auxílio para a dor.
Alguma coisa sobre uma planície ensombrecida.
Isso.
Por que as pessoas não têm maior interesse pela ciência?
Elas têm medo da ciência. Até gente educada muitas vezes prefere
maluquices. Aliens, Velikovsky. Discos voadores.
Maluquices.
É.
Certo. Gödel já era?
Gödel é eterno.
Acredita mesmo nisso?
Não.
Tudo bem. Sabe fazer malabarismo?
Bom, você conseguiu.
Consegui o quê?
Finalmente me surpreendeu. Se sei malabarismo?
É.
Sei. O básico. Com três bolas de tênis. Por quê?
Só imaginei que seria algo que você tentaria. O que mais sabe fazer?
Sei lá. Como o quê?
Qualquer coisa.
Sei ler invertido. Consigo ler um texto no espelho. Quem faz isso?
Leonardo? Posso escrever um artigo justificando as margens. Não
necessariamente o conteúdo. Não acho que Leonardo conseguisse fazer isso.
Nem se tivesse uma máquina de escrever.
Não entendi.
Quando estou datilografando posso fazer uma linha ficar do mesmo
tamanho da anterior. Como numa página impressa.
Não entendo como faria isso. Não acho que seja possível.
É só substituir as palavras para as linhas ficarem do tamanho certo.
Conforme bate à máquina.
Conforme bato à máquina. É.
Não precisa parar e pensar.
Não. Vou escrevendo e pronto.
Se você diz eu acredito.
É só um truque. Não recomendo. É quase tão difícil largar quanto aprender.
Sua menstruação nunca mais voltou.
Meu Deus.
O que foi?
Vocês têm cada uma. Imagino que esteja na minha ficha.
Está no seu histórico médico sim.
Mancebos enxeridos.
Você usa um bocado de expressões inglesas. Já morou na Inglaterra?
Não.
Com que frequência se exercita?
Costumava gostar de sair para caminhar.
Está muito magra.
Eu sei. Não gosto de comer.
Conversando com um colega, ficamos pensando se o esforço mental
excessivo não pode ter mais ou menos os mesmos efeitos que o físico.
Em relação ao fluxo menstrual.
É.
Interessante. Dizem que a gente também não menstrua acima de quatro mil
metros.
Isso é verdade?
Não sei. Foi o que li. Temos treze minutos. Será que dá tempo para um chá?
Claro. Só um instante.
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil
em 2009.
Título original
Stella Maris
Capa
Casa Rex
Foto de capa
Preparação
Diogo Henriques
Revisão
isbn 978-85-5652-183-5
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A travessia (Nova edição)
McCarthy, Cormac
9786557828250
408 páginas