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portuguesa
Carta ao leitor
Ad introitum
L NGUA
A edição da revista Língua Portuguesa Especial Latim é a
concretização de meu projeto de conclusão do curso de Jor-
portuguesa
nalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
EspEcial latim
Para dar forma a estas 68 páginas, foram necessários dez meses
de pesquisa, período que abrange desde o pré-projeto e o meu
Esta revista foi elaborada pela acadêmica Maria-
ingresso na disciplina optativa de Latim, até o fechamento do na Cristine Hilgert, como trabalho de conclusão
produto. do curso de Jornalismo da Universidade Federal
Durante este tempo de estudo – pequeno, se considerada a de Santa Catarina, sob orientação da Prof. Dra.
complexidade do tema –, aprendi a perceber o latim. E essa per- Tattiana Teixeira. Todo o conteúdo foi produzido
cepção me ajudou a compreender um pouco mais os segredos da exclusivamente para o projeto, com exceção da
nossa própria língua e, consequentemente, a justificar, com mais publicidade, colocada com o intuito de provocar
um efeito de realidade. Todo o projeto gráfico
clareza, o porquê de minha escolha. foi feito conforme o padrão da revista Língua
Uma das primeiras entrevistas que fiz, ainda durante a apura- Portuguesa (Editora Segmento), tentando seguir,
ção, foi com a professora de Latim da Universidade de São Pau- ao máximo, os estilos de fontes, cores e esquema
lo (USP), Zélia de Almeida Cardoso. Ao fim de nossa conversa, de diagramação. As propagandas foram escane-
que gerou mais de duas horas de gravação e muitas páginas de adas de edições diversas da revista. Por ser um
texto, ela me confidenciou que achava curioso como uma pes- projeto de conclusão, este trabalho não possui
fins comerciais ou lucrativos.
soa tão jovem estava interessada em algo tão velho. “Tão ve-
lho”, respondi, “mas tão presente”. Ela concordou com a justifi- Edição, reportagem,
cativa, que me acompanhou durante todo o processo, servindo fotografia e diagramação:
de resposta a muitas das perguntas que me fizeram. Mariana Cristine Hilgert
posto sobre um altar elitizante, pode favorecer a educação e, por Mauri Furlan.
consequência, a justiça.
Infografia e ilustração:
Naturalmente que, dentro de uma sociedade envolta por Ítalo de Oliveira Mendonça
problemas cujas raízes já saíram do âmbito educacional, toman- e Edison Patto
do dimensões maiores e menos controláveis, o latim jamais será
visto como prioridade. E, acredito, nem deve sê–lo. Mas, ao Crédito da foto da capa:
mesmo tempo, não pode ser tido como uma disciplina supér- Mariana Hilgert (inscrição localizada em cata-
flua, já que trata, justamente, do nosso maior patrimônio em cumba, na cidade de Salzburg, Áustria)
comum: a língua portuguesa. E enquanto ela e todas as outras Universidade Federal de Santa Catarina
rEVISTA lÍNGUA
línguas românicas forem preservadas, o latim continuará sendo Centro de Comunicação e Expressão
antigo, continuará sendo complicado, mas, sobretudo, continu- Departamento de Jornalismo
ará presente.
Florianópolis, junho de 2009
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Sumário
6 Frases
8 Entrevista
Batismo
NASCIMENTO
12 O Império do Latim
16 Um idioma transformado
José Ernesto de Vargas
BATISMO
20 O tradutor do papa
21 Na língua dos anjos
VIDA ESCOLAR
26 Passado do presente
30 Uma língua adotada
32 Diploma para os clássicos
36 Os porquês do latim
Charlene Miotti
37 In dubio pro reo
39 Assassinato linguístico
Maria Helena de Moura Neves
ET CETERA
40 Mutações da língua
42 Onde está o latim?
44 Noções básicas da gramática
latina para iniciantes
51 O latim e suas filhas
José Luiz Fiorin
52 Presente de gregos
56 Um latim conectado
58 Problemas de tradução
Mauri Furlan
60 Latinidades
5
‘‘‘‘
Batismo
Frases
O
ÇÃ
Por José ernesto De Vargas
GA
UL
DIV
Veni, vidi, vici.
Vim, vi, venci
Julio Cesar
(100-44 a.C.), imperador romano
Ovídio
(43 a.C.-17.), poeta romano
Amicus certus in re
incerta cernitur.
O verdadeiro amigo se conhece
na ocasião incerta
revista língua
Cícero
(106-43 a.C.), orador romano
DIVULGAÇÃO
Mário Eduardo Viaro
Entrevista
ARQUIVO PESSOAL
Por trás
rEVISTA lÍNGUA
das línguas
8
A
ntes de se tornar professor navam em Botucatu. Fui pedir um
de Língua Portuguesa na autógrafo e fiquei muito amigo deles.
Universidade de São Paulo O professor Benedito praticamen-
(USP), Mário Eduardo Viaro já se te me adotou como filho e me in-
considerava um curioso do idioma. centivou a ter aulas particulares de
Mais do que saber falar, ele queria alemão também. Aí a paixão pelas
compreendê-lo – e é isso que faz em línguas aumentou e aos 17 anos re-
Por trás das palavras – Manual de solvi prestar Letras (Linguística/Por-
etimologia do português (Ed. Glo- tuguês), pela USP. Fiquei preocupa-
bo, 2004). No livro, o pesquisador do em comunicar ao dr. Benedito a
explica como se formaram os vocá- minha mudança de interesses, mas
bulos portugueses de origem latina no mesmo ano ele faleceu.
e não-latina, exercendo na prática
a ciência que trata da história das
palavras: a etimologia. Cinco anos Em que momento você decidiu
antes do lançamento da obra, Viaro usar seus conhecimentos do idio-
explorou a mesma temática no artigo ma para dar início aos estudos de “Nem sempre se
A importância do latim na atualida- etimologia?
de, publicado em 1999, na Revista de Eu fazia mestrado em Filologia Româ-
deve confiar na
Ciências Sociais e Humanas. Parte nica e sempre gostei de história anti-
do material que pesquisou durante ga e dos estudos sobre indo-europeu,
intuição. Toda
esse período virou atração no Museu Mas o que me ajudou mesmo para
da Língua Portuguesa, em São Paulo, aguçar meu conhecimento etimoló- afirmação eti-
e fez de Viaro um nome recorrente gico foi ter trabalhado na equipe de
quando o assunto é o latim e sua re- etimologia do dicionário Michaelis. mológica deve
lação com o nosso idioma. É sobre Eu era revisor na editora Melhora-
a importância do estudo e conheci- mentos, mas tão logo eu fiz algumas ser pautada em
mento desse idioma dentro e fora da correções num dicionário alemão, o
etimologia que o pesquisador falou, editor Walter Weiszflog, que as achou dados e quanto
por e-mail, para a edição especial de muito pertinentes, apostou em mim,
Língua. convidando-me a integrar a equipe. mais recuados no
Ter contato com todas as palavras do
português me deu uma visão geral do tempo, melhor”
Como foi o seu primeiro contato
que é de fato etimologia. Tudo isso
com o latim?
foi antes de eu entrar para a USP e
Eu sou de família pobre e comecei hoje eu oriento estudos científicos
a estudar latim muito jovem, como sobre Morfologia Histórica.
autodidata, com uns 12 anos, na
minha cidade natal, Botucatu, no
interior de São Paulo. Eu queria ser Como funciona o estudo do pro-
entomólogo e adorava os artigos de cesso de formação de vocábulos
um casal de professores, o prof. Be- quando não há registros escritos
nedito A. M. Soares e da profa. Hélia das formas primitivas?
E. M. Soares sobre uns aracnídeos, Cada caso é um caso. Há casos em
chamados opiliões, escritos em latim. que a falta de documentos pode ser
Entrei em contato com um primo de sanada por métodos de reconstru-
minha mãe, que era ex-seminarista ção e outros casos em que é preciso
e consegui vários métodos de latim determinar um limite temporal para
e grego. A profa. de Ciências Yara etimologia. Resumindo, nem sempre
Ceribelli Maddi conseguiu um está- se deve confiar na intuição. Toda afir-
gio informal para mim, na Unesp, e mação etimológica deve ser pautada
depois de um ano, entrei pela porta em dados e quanto mais recuados
contrária ao corredor que costuma- no tempo, melhor. Por isso, recursos
va sempre entrar e descobri com o como o Google Books são verdadei-
maior espanto da minha vida, que ras maravilhas, pois nos oferecem um
os professores estavam vivos e lecio- corpus imenso de palavras em livros
9
Mário Eduardo Viaro
al, como querem entender alguns abre janela para outras possibilidades
formadores de opinião, penso que a de estruturas e vocabulários. O latim
questão está deslocada: não é preciso não foi feito para o português, mas
reduzir a elite, mas aumentá-la, mas pode ajudar a entendê-lo um pouco
para isso, é preciso também vontade. mais.
11
O Império
Nascimento
do Latim
Após três grandes e sangren-
tas disputas, os romanos tomaram
a Sicília, a Sardenha e a Córsega,
territórios que, antes, pertenciam
aos cartaginenses.
A Itália do Norte também foi
Os romanos, através de investidas territo- conquistada, bem como as pri-
meiras regiões fora da Itália, cen-
riais, transformaram o idioma num símbolo tradas no que hoje são Andaluzia
de poder e, com ele, conquistaram o mundo e as províncias de Castela, Múr-
cia e Valência, todas situadas na
Por Mariana Hilgert Espanha. Mais tarde, os romanos
conquistaram regiões da Grécia e
A
ntes de se consagrar As similaridades entre os três da Macedônia.
como língua erudita e fizeram supor a existência de uma Depois de trinta anos, Cartago
compreendida por pou- língua primitiva, o itálico, que, já não tinha mais forças para lutar
cos, o latim era um idioma sim- junto do grego antigo, do eslavo contra os romanos, que continua-
ples, falado por camponeses e e outras, constitui a família lin- vam a investir na expansão. Pas-
trabalhadores rurais – origens guística indo-europeia. O latim saram pela África, foram para a
que ficaram marcadas em muitas também sofreu influência dos atual França e Portugal e conquis-
palavras do nosso vocabulário. O etruscos e gregos, que dominavam taram até pequenas localidades na
verbo ler, por exemplo, já era usa- a Península Itálica, respectiva- Ásia. Mais tarde, o exército roma-
do pelos latinos antes mesmo de mente, ao norte e ao sul. Para so- no chegou ao que, atualmente, é
terem surgido os primeiros docu- breviver em meio aos conflitos dos a Romênia.
mentos escritos. A diferença é que dois povos, Roma, que, nos seus Com tantos povos sendo regi-
seu ancestral, legere, queria dizer primórdios, nada mais era do que dos pela mesma lei, era pratica-
colher. A relação entre os dois pa- uma aldeia, precisou se fortalecer. mente impossível que a mistura
rece inexistir, até o momento em A partir do século V a.C., ela deu dos falares e culturas não ocor-
que se percebe que ler nada mais é início a uma marcha expansionis- resse. Os próprios romanos se
do que legere oculis – ou, simples- ta que perduraria até o século II mostravam abertos a essa mescla,
mente, colher com os olhos. da nossa era. permitindo que cada grupo manti-
A história do latim se mistura Primeiramente, sucumbiu às vesse seu idioma, o que favoreceu
à de outros idiomas, como o um- invasões do Lácio, a região da Itá- o bilinguismo. Mas, com o tempo,
bro e o osco, falados por povos lia Peninsular. Logo em seguida, os o latim começou a se impor como
vizinhos à região do Lácio, onde romanos investiram na tentativa idioma mais complexo – e o único
nasceu Roma. de conquistar a Europa Mediter- –, facilitando a comunicação e,
rânea. Para isso, eles precisariam consequentemente, as negocia-
derrubar Cartago, uma colô- ções entre os povos.
Latim e latim falem polidamente a vida inteira”.
Quando da formação do Império O idioma da elite, dos senado-
Romano, no primeiro ano do calen- res e escritores, em contraposição Os Românicos
dário cristão, o latim não era ape- ao do vulgus, é o chamado latim
nas mais uma língua da Península clássico. Por ser mais erudito, Var-
Itálica. Ele era, naquele momento, gas observa que esse latim “é abas- O Império Romano começou a
o idioma oficial de um imenso ter- tecido pela literatura e pela lingua- perder o poderio centralizado quan-
ritório, povoado por soldados, co- gem da elite. Então, quando havia do foi dividido em dois: o Império
merciantes, escravos, funcionários reunião e momentos que a situa- Romano do Ocidente, tendo Constan-
e eruditos. Cada um desses grupos ção era formal, o clássico estaria tinopla como capital, e o do Oriente,
pertencia a uma classe específica, o em evidência”. com a capital em Roma. A fraqueza
que acabou acarretando variações As preocupações de quem tra- do controle foi sentida a partir das
da língua. Duas são as distinções balhava com essa forma do idioma, chamadas invasões bárbaras*, espe-
mais comumente reconhecidas: o muito influenciada pela cultura cialmente nos séculos IV e V.
latim vulgar e o latim clássico. grega, ficavam mais restritas ao Mesmo com a queda física do im-
É do primeiro que se originaram campo da escrita e da parte esté- pério, sobreviveu, no período que diz
as atuais línguas neolatinas. A pala- tica da língua. Suas variações não respeito à Idade Média, uma unida-
vra vulgar pode ter diferentes sen- eram as mesmas daquele latim fa- de linguística, política e cultural dos
tidos, remetendo a algo corriqueiro lado pelo povo. Com as disputas povos que viveram sob o poder de
ou sugerindo, até, algo de baixo ní- territoriais, o latim vulgar – que Roma. Na tentativa de diferenciar-se
vel. Mas seu verdadeiro significado era, também, dos soldados –, foi dos bárbaros – ou seja, todos aque-
remonta à sua origem: vulgar vem absorvendo elementos linguísticos les que não eram romanos –, surgiu
de vulgus, que, em latim, quer di- e culturais de muitas populações a palavra Romania, derivada de ro-
zer povo. “Ele é falado pela plebe, conquistadas. manus, que faz referência a todas as
informal, pertencendo à sociedade O latim vulgar não surgiu do regiões com idiomas originários do
que não tinha acesso a um latim clássico, e o contrário também não latim.
mais erudito, mais elitizado. É um aconteceu. Cada um se estruturou A partir daí, houve uma série de
latim de bermuda e chinelo”, expli- em épocas diferentes: foi só quan- derivações: primeiramente, surgiu
ca José Ernesto de Vargas, professor do o primeiro já estava bem encor- romanice, advérbio que serve para
de Latim da Universidade Federal pado, que o outro passou a ser re- designar algo “à maneira romana”.
de Santa Catarina (UFSC). verenciado. As obras literárias de Depois, romanice loqui, indicando
Mas, apesar dessa infor- autores como Plauto, além de ou- os idiomas vulgares, com origem no
malidade marcante do latim tros registros escritos, apresentam latim. De romanice, aparece o subs-
vulgar, Vargas faz uma res- marcas do latim vulgar e estão tantivo romance, que, antigamente,
salva: “Os senadores, tal- entre as provas. Os dois coexisti- se referia às obras escritas em algum
vez, falassem [o latim ram, demarcando – mais do dos idiomas vulgares da época.
vulgar] em casa. que períodos temporais
Não consigo ou formas de expres-
acreditar que são – a sociedade *Do grego bárbaroi, estrangeiros,
as pes- segmentada aqueles que não são romanos.
soas da época.
STOCKXCHNG
do Lácio
(terceiro idioma mais falado no mundo)
Nascimento
Q
uando Olavo Bilac escreveu que a Língua Portuguesa gada do Cristianismo, que o pequeno reino de Castela
, situado ao norte do país e dono de um dialeto ainda
era “a última flor do Lácio, inculta e bela”, fez uma desconhecido , começa a conquistar o território. Esse
referência ao idioma como último filho do latim – processo perdurou até o séc. XV, dando origem, ao fim,
ao idioma espanhol – ou castelhano.
embora não o único. A propagação dos idiomas românicos
se deve ao latim, língua oficial do Império Romano e um dos
Espanha
principais legados que os antigos soldados deixaram nas
regiões conquistadas. Cada uma delas, com o tempo, deu nova
forma ao idioma, que se transformou. Através das conquistas
Portugal
marítimas e dos processos de colonização, iniciados no século
XVI, as novas línguas se espalharam, estando presentes, hoje,
nos cinco continentes. 390
215
PORTUGUÊS
(sexto idioma mais falado no mundo)
a Lácio
hoje, é circundado de países de língua eslava, fora
de contexto geográfico de suas línguas-irmãs, como
o português, o espanhol, o francês etc. Isso também
permitiu que muitas características do latim perma-
necessem vivas no idioma.
Itália
60
ITALIANO
(vigésimo primeiro idioma mais falado no mundo) LEGENDA
Um idioma
Nascimento
Batismo
A
língua portuguesa, tal corresponde aos primeiros passos lou no parágrafo anterior, e latim
como os demais idiomas do desenvolvimento da literatura vulgar. O primeiro é entendido
neolatinos, é resultado latina, quando os primeiros escri- pela total influência da literatura
de um longo processo de trans- tos nesse idioma ainda são ape- e da escrita sobre o mesmo; seus
formação. Tem como origem o nas traduções ou adaptações das usuários são as pessoas que têm
latim, idioma falado no Lácio, obras gregas para o latim. Já o la- acesso à escrita e à leitura, à lite-
região central da Itália, e mais tim clássico é o principal modelo ratura, portanto. Ao passo que o
tarde difundido em larga escala dessa língua. Representa o auge segundo deixou poucos vestígios,
pelos romanos através de seu im- do desenvolvimento literário, porque manifesto principal e fun-
pério, juntamente com a língua linguístico, político e cultural de damentalmente de modo oral.
autóctone falada na Lusitânia, Roma. É justamente este formato Os falantes dessa modalidade
então dominada por Roma. Da linguístico que foi e continua ain- pertenciam ao vulgus, às classes
língua latina é possível rastrear da hoje a ser estudado nos cursos populares, de onde o nome vul-
um percurso histórico, ainda que secundários e superiores mundo gar, que não deve de forma algu-
não completamente. O mesmo afora. O terceiro e último proces- ma ser entendido com o sentido
não pode ser dito da língua lusi- so desse desenvolvimento é o de- pejorativo que se costuma dar à
tana original, porque não existem nominado pós-clássico. Compre- palavra. Faltou dizer no primeiro
registros, a não ser resquícios de ende o período que começa com parágrafo que a língua de Ca-
ordem fonética, perceptíveis no a decadência literária, linguística, mões é derivada do latim vulgar,
português e em outros idiomas de cultural e principalmente com a embora também tenha recebido,
regiões limítrofes. derrocada política de Roma até por diversas vezes ao longo dos
O que se conhece do latim diz os nossos dias. É marcado pelo séculos, influências da variante
respeito ao momento em que os enfraquecimento e fenecimento erudita. Para além das estruturas
romanos se fizeram importantes, da língua como representação gramaticais, morfologia, sintaxe e
dominadores da região central da cultura romana. Entretanto, é fonética, a presença do latim no
italiana e já usuários dessa lín- importante que se diga, tal época português se percebe, sobretudo,
gua. A partir daí pode-se falar não significa o fim total, mas an- no léxico.
de três períodos marcantes na tes o início dessa transformação. Certas expressões, as pessoas
história do idioma, o arcaico, o Pois que, apesar de não represen- utilizam-nas tão constantemente
clássico e o pós-clássico e de duas tar mais o Estado Romano, já ine- que nem imaginam se tratar de
variantes sociolinguísticas, a eru-
rEVISTA lÍNGUA
dos e informações, porque não é claro dentro dos novos idiomas siderarem idioma pátrio, e não
foram encontrados quase regis- latinos em transformação. parece mesmo?
tros, tendo em vista que a língua Quanto às variantes sociais da
existia fundamentalmente na linguagem, o latim se divide em José ERNEsTo DE VARGAs é ProFessor De
modalidade oral. O latim arcaico erudito ou clássico, de que se fa- latiM Da uFsc
16
N
os cinco mil quartos de novos representantes. nas –, comumente celebradas até
sua nada humilde casa, O Vaticano deixou de ser ape- o Concílio Vaticano II, realizado
Bento XVI, atual papa nas o nome de uma colina em no início da década de 60.
da Igreja Católica Apostólica Ro- 1929, quando se tornou, oficial- Com as mudanças nas cele-
Batismo
mana, poderia abrigar toda a po- mente, o Estado da Cidade do brações católicas, que acabaram
pulação do estado do Vaticano, Vaticano. Firmado entre o ditador por excluir o latim como idioma
que não chega a 800 pessoas. As fascista Benito Mussolini e Pio XI, oficial, a Igreja vem tentando
200 salas de espera, os 100 gabi- o Tratado de Latrão estipulou que retomar o seu uso de outras for-
netes destinados à leitura, os 300 a Itália reconheceria “à Santa Sé mas. Com esse objetivo, o papa
banheiros, além dos mais de 20 [do latim Sancta Sedes, ou sede Paulo VI criou, em 1970, a Fun-
pátios e outros tantos cômodos santa] a inteira propriedade, o po- dação Latina do Vaticano. Foi ela
são destinados a recepções diplo- der exclusivo e absoluto e a jurisdi- a maior financiadora de uma das
máticas. Pelas imposições da mo- ção soberana sobre o Vaticano, na mais notáveis investidas da Igreja
dernidade, tudo foi adaptado. De sua atual composição, com todas para ajustar o idioma às necessi-
antigo, ali, além das construções as suas dependências e dotações, dades atuais: o lançamento de um
históricas, só o latim. (...) a Cidade do Vaticano”. Desde dicionário moderno.
O idioma dos romanos sem- a sua fundação, a Cidade do Vati- Publicado em 2003, o Lexicon
pre esteve presente na história da cano tem o latim como língua ofi- Recentis Latinitas foi editado em
Igreja, construída, simbolicamen- cial. E não poderia ser diferente, dois volumes, que, no total, con-
te, em torno da tumba do apóstolo já que a Igreja Católica foi uma tam com 15 mil palavras latinas
Pedro – localizada na outrora cha- das principais guardiãs do idioma. adaptadas para os dias de hoje. Ti-
mada Mons Vaticanus, ou Colina Mas, como ele não se renova, por rando a curiosidade agregada à pu-
Vaticana. Cada novo papa é con- não ter mais falantes nativos, aca- blicação, a professora de Linguísti-
siderado um sucessor de Pedro, o ba se restringindo aos documentos ca da Universidade Presbiteriana
primeiro pontífice da Igreja. De- oficiais e às missas tradicionais Mackenzie e da Universidade Es-
pois dele, já foram nomeados 265 – também chamadas de tridenti- tadual Paulista (Unesp –Arara-
Sob a guarda
do Vaticano
Uma das mais antigas tradições da Igreja Católica, o latim
ainda vive nas inscrições, documentos e, até mesmo, no dia a
dia do menor estado independente do mundo
rEVISTA lÍNGUA
Saca-rolhas: extraculum
Telejornal: relatio televisifica
Trem: hamaxostichus
Xampu: capitilavium
Xarope: mulso conditus
19
O tradutor
Batismo
do papa
Admirador do latim,
O
padre americano Re- ma durante o verão europeu, sem
ginald Foster é um custo algum. Ele exige, apenas,
ele tem a língua dos apaixonado pelo latim. um nível elementar de conheci-
antigos romanos não É ele o responsável pelas tradu- mento e o gosto pela língua.
ções oficiais dos documentos da Além de dar aulas, Foster é o
só como o principal Igreja e de quatro gerações de protagonista do The Latin Lover
papas. A paixão é tanta que até (O amante do Latim), programa
objeto de trabalho, caixas-eletrônicos com instru- produzido e apresentado por ele,
mas, também, como ções em latim foram instalados e transmitido, todas as sextas-
pelo Vaticano, como ele mesmo feiras, pela Rádio do Vaticano*.
seu lazer mostra numa entrevista concedi- Durante a emissão, ele traduz do
Por Mariana Hilgert da a um programa televisivo ale- inglês expressões atuais para o
mão, em 2007. Ao repórter, ele idioma antigo e comenta histó-
afirma – em latim! – que, se as rias das épocas áureas de Roma.
pessoas não puderem ler os anti- Também é possível baixar os áu-
gos manuscritos da Igreja porque dios do programa acessando o
desconhecem o idioma, todos site** do padre.
ficarão isolados desse mundo. Apesar do empenho em man-
“Então tudo se perderá. É contra ter o latim vivo, Foster acredita
isso que estou lutando. Até hoje, que o idioma está com os dias
o latim é a nossa ligação com a contados. Numa entrevista à
DI
VU
LG
AÇ
história”, conta. rede BBC, ele condenou o desin-
ÃO
Foster lecionou Latim na Uni- teresse de alguns representantes
versidade Gregoriana de Roma religiosos em estudá-lo e a au-
por mais de 20 anos. Em 2007, sência da disciplina nas grades
ele decidiu abrir a própria escola, curriculares de muitas escolas
chamada Academia Romae Lati- europeias.
nitatis, onde dá aulas gratuitas O padre também se mostra
para quem tem interesse em mais cauteloso em relação ao re-
aprendê-lo ou revitalizá-lo. torno das celebrações em latim,
Sua expectativa é de atrair, segundo o antigo rito romano.
por ano, cerca de 130 Na mesma entrevista, ele decla-
estudantes. Além rou que tal decisão só faria a Igre-
das aulas regulares, ja parecer ainda mais medieval.
revista língua
Foster oferece
cursos do *www.oecumene.radiovaticana.org
idio - **www.frcoulter.com/latin/latinlover
dos anjos
grego, de onde vem a versão
latina, já bastante diferente
da original.
A
debitoribus nostri.
s tardes de sá- causa do longo tapete Et ne nos inducas
bado são, para vermelho. Mas as mu- in tentationem: sed
Marcos, sagra- danças, sutis, cabiam libera nos a malo.
das. Desde 2007, ele vai apenas ao cenário, e Amen. “
ao mesmo lugar, no mes- não às razões – essas,
mo horário, para rever as imutáveis – que o le-
mesmas pessoas e sentar varam até ali: a fé e o
nos mesmos bancos que, latim.
naquele dia, estavam le- Aos 19 anos, Mar-
vemente diferentes, mais cos Mattke é membro
adornados do que de do Grupo de Jovens da
costume. Algumas rosas Paróquia Imaculada
brancas os enfeitavam Conceição, localizada
– para um casamento, no bairro Guabirotu-
talvez –, preenchendo o ba, em Curitiba. Dois
A celebração na
corredor que parecia não anos antes, quando já Paróquia Imacula-
ter fim, por era estudante de Re- da Conceição, em
Curitiba,: uma hora
MARIANA HILGERT
de latim e concen-
tração
MARIANA HILGERT
lações Internacionais e, nas horas conforme o Missal Romano – li- tarde, Lefebvre foi excomungado
vagas, de Latim, descobriu que um vro usado pelos padres durante a por ter ordenado bispos sem an-
pessoal da Paróquia – desconhe- celebração – aprovado por Pio V tes ter sido autorizado pelo papa.
cida para ele, na época – estava durante o Concílio de Trento. To- Morto em 1991, o arcebispo dei-
Batismo
organizando uma missa diferente, das as orações são em latim e tan- xou, segundo dados da própria
conforme um ritual outrora bas- to o celebrante quanto os fiéis se Sociedade, cerca de um milhão de
tante comum. voltam ad Orientem, onde nasce seguidores.
A proposta do grupo não sur- a luz – que para a Igreja represen- A excomunhão do arcebispo
gira do acaso. Ela coincidiu com ta Jesus Cristo. Dependendo do francês fortaleceu o clima de dis-
a promulgação do Motu Proprio ponto de vista, isso significa que o sidência entre os grupos da Igre-
Summorum Pontificum, uma es- padre, durante quase toda a cele- ja. Mas, para o teólogo Leonardo
pécie de decreto lançado pelo bração, fica de costas para os fiéis, Boff, o decreto seria uma forma de
papa Bento 16, a fim de rever cer- ou de frente para Deus. reforçar ainda mais essa segmen-
tas determinações da Igreja que Tal ritual, que representa ape- tação. “O Papa está mais perto de
vigoravam desde 1965. Naquele nas um uso diferente do mesmo Lefebvre do que do Concilio Vati-
ano, teve fim o Concílio Vaticano rito romano, é preferência de al- cano II. Neste sentido, prejudica
II, sob o papado de Paulo VI. guns fiéis, como relata o papa no a unidade da Igreja e os esforços
Durante três anos de discussão, documento. É por causa deles que de renovação. Há o risco de que a
foram elaboradas quatro constitui- o pontífice autoriza, nos 12 artigos Igreja mais e mais se isole e assu-
ções, três declarações e nove de- que compõem o Motu Proprio, a ma atitudes de seita”, reflete, em
cretos que romperam com a visão utilização do antigo Missal Ro- entrevista à Língua.
mais tradicionalista da Igreja. mano por qualquer sacerdote, A presença do latim também
diariamente, excetuando o Sa- poderia provocar um afastamento
O decreto grado Tríduo (período da Páscoa por parte dos fiéis, já que remete à
O Motu Proprio foi oficial- – quinta-feira , sexta-feira e sába- imagem de uma igreja antiga. “O
mente publicado no dia 7 de ju- do). Dispensam-se formalidades papa quer interpretar este Conci-
lho de 2007. Nele, o papa traça para autorização – basta somente lio a partir do outro, o Vaticano I,
um pequeno panorama histórico o pedido de um grupo de fiéis e o que dava centralidade infalível ao
acerca da doutrina católica. Ele aceite por parte do padre. papa e havia esvaziado a dimensão
aponta, por exemplo, que os livros Reimplementar uma celebra- de povo, de Deus e de comunida-
litúrgicos, para se adaptar às ne- ção que, por quase quatro sécu- de”, afirma Boff. Para o teólogo,
cessidades dos dias de hoje, foram los, foi a missa de sempre, não essa decisão se encaixa na men-
“restaurados e parcialmente reno- seria o objetivo do Motu Proprio, talidade tradicionalista de Bento
vados, e que ao redor do mundo conforme as palavras do papa. O XVI. “O latim é um símbolo de
foram traduzidos em diversas lín- documento seria mais uma tenta- uma atitude de fundo, restaurado-
guas vernáculas”. tiva de reconciliação com grupos ra, conservadora e até certo ponto
Essas modificações foram fei- católicos tradicionalistas, como a reacionária”.
tas em 1969, quatro anos após o Sociedade de São Pio X (SSPX),
encerramento do Concílio. O gru- fundada pelo arcebispo francês Jovens
po de especialistas que havia sido Marcel Lefebvre, em 1969. Responsável pela celebração
incumbido da revisão publicou o O grupo refutou as definições na Paróquia da Imaculada Con-
Novus Ordo Missae, a fim de rede- do Concílio e, por isso, obteve au- ceição, o padre Paulo Iubel não
finir certas questões que caracteri- torização para celebrar o rito com acredita que o rito tradicional
zam as missas atuais. A celebração base no Missal antigo. Inicialmen- possa ser um retrocesso dentro da
regida conforme o Concílio Vati- te, tal permissão era concedida Igreja, já que, como descrito no
cano II é considerada, segundo a somente em alguns casos. Com o próprio decreto, não seria uma im-
Igreja, a forma de expressão ordi- tempo, ela se expandiu, até que, posição. “É apenas uma resposta
nária, contrapondo-se àquela de- em 1984, o papa João Paulo II de- ao pedido de um grupo. Ninguém
finida em 1570, por São Pio V, que finiu que, se houvesse interessados seria coagido a participar”, explica
hoje é tida como extraordinária. em realizar a celebração, caberia o sacerdote.
Chamada de Missa Tridenti- ao bispo de cada diocese decidir a Uma das principais justifica-
na ou Tradicional, ela é realizada real viabilidade. Quatro anos mais tivas da Igreja em prol do uso do
22
latim é o caráter imutável da lín-
gua. Ela seria uma espécie de liga-
ção com o passado à medida que
preserva elementos espirituais.
“Eu me sinto pessoalmente mais
realizado [após a celebração da
missa]. É como se o fator de mis-
tério prevalecesse”, comenta.
Padre Iubel não liderou o retor-
no à celebração – por mais que ela
o agrade espiritualmente e por ter
sido, na sua época de seminarista,
a missa usual. Quem encabeçou o
movimento foram jovens tão in-
teressados quanto Marcos – que,
quando foi visitar a Paróquia pela
primeira vez, não hesitou em par-
ticipar ao descobrir que o grupo
já pretendia começar a celebra-
ção na semana seguinte. “Passei a
ajudar a organizar as missas desde
então, passando a fazer parte do
grupo, do qual fiquei muito ami-
go”, conta. O uso do véu não é obriga-
Participar da celebração só tório, mas muitas mulheres
MARIANA HILGERT
seguem a tradição
ajudou Marcos, que, anos antes,
se encontrava afastado de qual-
quer religião. “A missa é bastante
recolhida e isso facilita a oração”,
No Mosteiro
relata Patrícia Medina, integrante
do grupo, explicando a maior di-
ferença dessa missa em relação às
demais e justificando, sem querer,
porque ela e cerca de 30 outros jo-
e em latim
vens preenchiam os bancos enfei-
tados daquela tarde de sábado.
C
Paróquia da Imaculada Con-
onstruído há mais de 400 anos, les, inclusive, era notada pela forma
ceição oferece aos fiéis um
o Mosteiro de São Bento atrai como se vestiam. Especialmente as
livreto que contém, de um
turistas, curiosos e fiéis que, mulheres e as crianças, que se escon-
lado, a versão em português
nas celebrações, ocupam, quase sem- diam por baixa do pano das saias, das
e, do outro, em latim.
pre, os seus 693 assentos. Era o caso blusas e dos véus – brancos, para as
daquele domingo. Mal o ponteiro solteiras, e pretos, para as casadas.
23
Com os dedos cruzados em
frente ao rosto, uma jovem de
cabelos amarrados, cobertos por
um lenço branco bordado, aguar-
Batismo
Ritual
À frente da celebração, está
o padre Jonas dos Santos Lisboa. Com capacidade para
quase 700 pessoas, o
Com uma longa túnica roxa, ele Mosteiro de São Ben-
MARIANA HILGERT
anos de clássico. As nossas aulas Paulo há 5 anos”, conta o padre. deicida [assassino de Deus], o qual
de filosofia e teologia também Além de auxiliar nas celebrações um dia reconhecerá que Jesus é o
eram todas ministradas em latim. da cidade, a Administração envia Messias”. A denúncia chocou a
E pratico continuamete o latim”. material de apoio para diversas lo- comunidade judaica, que receia o
Nos seus quase 33 anos de sa- calidades, como Belo Horizonte, retorno da missa tridentina.
24
revista língua
25
Passado
Vida escolar
do presente
O ensino do latim nas
“N
ão é possível sável pela implantação da Lei
desconhecer Orgânica do Ensino Secundá-
escolas marcou um pe- a irremovível rio, que permaneceu em vigor
ríodo em que os estu- vinculação de nossa cultura por quase 20 anos.
com as origens helênicas e la- Segundo a legislação, o en-
dos clássicos e huma- tinas. Não seria conveniente sino nas escolas seria divido
romper com estas fontes”. Essa em dois ciclos: o primeiro, cha-
nísticos eram uma das foi a justificativa dada pelo Mi- mado ginasial, teria duração
bases do sistema edu- nistro da Educação Gustavo de quatro anos; o segundo, de
Capanema, em 1942, ao expli- três anos, poderia ser voltado
cacional brasileiro car as razões de se ter, dentro à área clássica ou científica.
do ensino secundário, discipli- Durante os sete anos, o latim
nas humanitárias, como o La- seria – como, efetivamente, foi
Por Mariana Hilgert tim. Capanema foi o respon- – disciplina obrigatória.
rEVISTA lÍNGUA
STOCKXCHNG
26
Zélia de Almeida Cardoso, pro- Cotidiana e Instituições, publica- de diversos outros, ele afirma que o
fessora aposentada de Latim da do também em 1962, ele organizou seu retorno não significaria, neces-
Universidade de São Paulo (USP), uma pesquisa com todos os seus co- sariamente, uma melhoria na Lín-
acredita que a resposta do Ministro legas de profissão a fim de justificar a gua Portuguesa. Como explicou no
se enquadrava nas exigências e con- importância do latim nos setes anos relatório do projeto, haveria outras
dições da época. “Além dessas razões de curso secundário. Com os resul- questões mais complexas por trás de
[apresentadas pelo Ministro], sem- tados, Nóbrega pôde afirmar aquilo tal objetivo, como “a elaboração de
pre se considerou o ensino do latim que pregou durante toda sua vida uma política de formação continua-
como importante instrumento para como docente: “[o estudo do latim] da dos professores da área, melhores
o desenvolvimento de faculdades constitui um instrumento seguro de salários e campanhas maciças de fo-
tais como o raciocínio, a atenção, a boa e sólida formação intelectual e mento ao hábito da leitura, aliadas à
memória, entre outras”. O problema prepara pela ordenação e disciplina implantação de bibliotecas públicas
é que as justificativas não afastavam do pensamento, pela agudeza do es- com acervos atualizados e redes de
das escolas as dificuldades de ensi- pírito, pelo amor à pesquisa e pelo livrarias em todo o País, com preços
no de um idioma que, para crianças respeito às tradições humanísticas de livros acessíveis ao consumidor.”
e adolescentes, aparentava não ter de nossa herança linguística, as ge-
qualquer utilidade. rações merecedoras de um futuro Inviabilidade
Um dos principais entraves era realizador”. Dentro do atual contexto sócio-
a metodologia usada na época. “Em Os resultados da pesquisa de educacional brasileiro muitos pro-
cada classe do antigo curso ginasial, Nóbrega e sua aplicação ficaram fissionais compartilham da mesma
havia apenas alguns alunos que se restritos ao Colégio Dom Pedro II. opinião: não é possível reinserir o
interessavam pela matéria. A maio- Mas na tentativa de não ter mais latim nas escolas. Cardoso acredita
ria simplesmente decorava decli- a instituição como uma exceção, o que é a condição dos próprios alu-
nações e conjugações verbais ou deputado Milton Monti (PR-SP) nos de hoje que não favorece essa
preparava meios fraudulentos para elaborou o Projeto de Lei No 3.963, reinserção, impossibilitando uma
prestar contas dos conhecimen- que pretendia reinserir o Latim, a comparação entre eles e os estu-
tos em provas escritas e chamadas partir da 5ª série do ensino funda- dantes do tempo em que vigorava a
orais”, conta Cardoso. Essa é uma mental, como disciplina obrigatória. Lei Capanema. “Nessas quase cinco
das razões pelas quais muitos alunos A questão é que a ideia foi lançada décadas [desde que o latim deixou
temiam a disciplina, que chegou a quase 40 anos depois da promulga- de ser obrigatório], a situação do
ficar conhecida como a “matemáti- ção da primeira versão da LDB (a ensino mudou completamente. O
ca das letras”. segunda foi publicada em 1996, mas próprio perfil do aluno se modifi-
Em 1962, o ensino do latim tor- não gerou mudanças no que dizia cou. Até os anos 60 do século XX, o
nou-se facultativo no segundo grau respeito ao Latim nas escolas), curso secundário era elitizante e os
– mudança prevista pela Lei de Dire- O objetivo do projeto era me- meios de informação bastante dife-
trizes e Bases da Educação Nacional lhorar a própria língua portuguesa: rentes dos de hoje. Basta considerar
(LDB). Mas foram poucas as esco- “Conhecendo a origem das pala- que a informática só se popularizou
las que optaram pela permanência vras, seu verdadeiro significado, po- a partir dos anos noventa. Os estu-
da disciplina no currículo – afinal, deremos ter uma língua rica, com a dantes – não apenas porque estuda-
além da falta de professores da área, utilização precisa dos termos. Além ram latim – são hoje muito diferen-
havia um despreparo dos poucos de auxiliar na própria gramática, na tes dos do tempo em que o latim era
que existiam. Um raro exemplo foi o análise sintática e morfológica, per- obrigatório”.
Colégio Dom Pedro II, fundado em mitirá a busca nos textos clássicos A inviabilidade de se ter uma dis-
1837, no Rio de Janeiro, que oferece da história da humanidade”, como ciplina também está ligada à falta de
a disciplina na sua grade curricular descreveu o deputado no documen- professores. De acordo com dados
até os dias de hoje. to oficial. do Censo do Ensino Superior, divul-
No mesmo ano da promulgação A tentativa de Monti não foi gado pelo Instituto Nacional de Es-
da lei, Vandick L. da Nóbrega era, já aprovada pelo relator, o deputado tudos e Pesquisas Educacionais Aní-
havia 17 anos, professor da discipli- João Matos (PMDB-SC). Apesar de sio Teixeira (Inep), do Ministério da
na na escola. Para a elaboração do reconhecer a importância do latim Educação (MEC), em fevereiro des-
livro Metodologia do Latim - Vida como língua-mãe do idioma pátrio e te ano, o número de formandos em
27
Nascimento
Batismo
MARIANA HILGERT
Didática do futuro
voltado ao público infanto-juvenil Viaro, “Quem não gosta de ler ou certo. Uma utopia é impossível de
continua à espera de editoras inte- não gosta de desafios, jamais gos- imaginar, mas é o que se verifica
ressadas em publicá-lo. tará de línguas difíceis e o latim é em muitos países, não necessaria-
Ideias como esta podem ser uma língua difícil para nós, não mente os mais desenvolvidos eco-
bastante proveitosas no sentido de nego”. nomicamente”.
28
Uma língua
Vida escolar
adotada
Em muitos países europeus, o vínculo com o latim não vem de
berço. Mas nem isso impediu que surgisse um interesse em
conhecê-lo, estudá-lo, traduzi-lo e, até mesmo, cantá-lo
Por Mariana Hilgert
E
mbora não façam parte da dia possui um noticiário produzido Company), publica, no idioma
mesma família linguística, na língua oficial do Império Ro- clássico, as manchetes de maior
o finlandês e o latim pos- mano. O site Nuntii Latini – ou destaque mundial. Através dele
suem uma relação estreita. Locali- Notícias em Latim –, concebido também é possível escutar emis-
zada ao norte da Europa, a Finlân- pela YLE (Finnish Broadcasting sões de rádio na língua, que, em
Ranking de traduções
Brasil
NG
30
STOCKXCH
266
Em latim, Elvis também não morreu
intercâmbio entre os curiosos estu- apesar de toda a influência que teve Se a língua clássica virar uma fe-
dantes. do latim, não é sua filha. Mesmo as- bre como já virou o livro, ela pode
O vizinho Portugal também tem sim, a Alemanha demonstra ter um vir a ser a terceira mais estudada do
um Circulus Latinus – embora o inte- grande interesse pelo seu estudo, país, perdendo apenas para espanhol
resse pelo ensino do idioma clássico como atestam os 740 mil estudan- e francês.
31
Diploma para
Vida escolar
os clássicos
Histórias de estudantes e docentes de ensino superior que ainda
veem o latim como uma chave importante para a compreensão
da própria língua portuguesa
Por Mariana Hilgert
Q
uando começou a apren- para ingressar no curso de Letras caso, o que era declinação, quan-
der latim, aos 10 anos, Português-Grego da Universidade do entram na universidade”.
Maria Helena de Moura Estadual Paulista (Unesp – Arara- A história de Neves serve
Neves ainda desconhecia a impor- quara). Atualmente, trabalhando para ilustrar uma época em
tância da língua que ouvia somen- como professora de Linguística na que o latim era prestigia-
te da boca do padre, nas missas que Universidade Presbiteriana Ma- do em todos os níveis
frequentava quando criança. O ckenzie e na mesma Unesp em que educacionais – cul-
aprendizado que teve na infância estudara, ela compara a época em tura que vem do
só foi lhe ser útil anos mais tarde, que viveu com a atual no que diz século XVII,
quando prestou vestibular. “Aqui- respeito ao estudo do latim. “Eles quando o
lo ali, para mim, era a coisa mais [os estudantes] começam a fazer ensino do
simples do mundo”, comenta, ao aquilo que eu fazia com 10 anos, idioma
relembrar a prova de latim que fez que é começar a saber o que era é in-
G
CHN
CKX
STO
REVISTA LÍNGUA
troduzido nos seminários. Os jesuítas va de que deve ser entendida como alunos quando eles a questionavam
foram os primeiros professores da lín- ‘simples matéria instrumental’’’. sobre a real utilidade do latim. “Para
gua, que só se tornou disciplina obri- Autor da obra Dal latino al italia- que serve é uma coisa relativa, eu di-
gatória, em nível secundário, no ano no, Italo Lana enxerga esse proces- zia. Saber fritar um ovo é algo muito
de 1772, mais de um século depois. so de instrumentalização de forma mais relevante quando você está com
Com o surgimento das primeiras uni- positiva. Para ele, somente usando fome”. Apesar de brincar, ela deixa-
versidades – como a de Manaus e a o latim como um meio, através do va clara a função da sua disciplina:
do Rio de Janeiro, criadas, respecti- estudo das obras literárias, será pos- explicar os fenômenos do português.
vamente, em 1909 e 1920 – e dos pri- sível compreender historicamente Mesmo assim, ela ressalta que “a pes-
meiros cursos de Filosofia, a língua e a a civilização romana. Já Alceu Dias soa pode falar um português perfeito
literatura latina se tornam disciplinas Lima, no livro Uma estranha língua: sem conhecer latim. Você pode falar
relevantes no âmbito educacional do questão de linguagem e de método, um inglês perfeito sem saber de onde
ensino superior. Em 1931, o Minis- publicado em 1995, vê a língua como ele veio”.
tro da Educação Francisco Campos um instrumento para outro fim: o Como professora de Linguística,
incentiva oficialmente a dedicação à aperfeiçoamento do português. Maria Helena de Moura Neves con-
área, através da promulgação do De- corda com a afirmação de Cardoso.
creto No 19851. “Não é dizer que eu preciso do latim
Com isso Justificativas para escrever bem. Eu estou pensan-
aumentam Nesse contexto, surge o ques- do em pessoas que se aprofundam na
as produções tionamento: afinal, por que estudar linguagem, que lidam com a lingua-
de gramáticas, latim? Para José Ernesto de Vargas, gem como objeto de investigação”,
traduções de obras professor da disciplina de História da explica, referindo-se aos discentes.
latinas e elaboração de livros Língua Portuguesa, na Universidade Para ela, o latim traz uma vantagem
didáticos diferenciados. Federal de Santa Catarina (UFSC), específica que difere seus estudantes
Trinta anos depois, a situação do é interessante suscitar tal questiona- dos demais: “Você tem um gatilho
latim já era diferente. Com a lei de mento entre os alunos. Concordando disparado para poder observar mais
Diretrizes e Bases da Educação Na- com a ideia de Lana, ele entende que coisas na sua língua. A vivência do
cional (LDB), decretada em 1962, “a razão primordial [para o estudo do latim é a preparação de um gatilho
seu ensino se restringiu ao curso de latim] é a questão histórica, e, para disponível pra você desvendar certas
Língua e Literatura Latinas e às dis- mim, história é uma preocupação construções”.
ciplinas compulsórias presentes no fundamental. O próprio Cícero dizia Responsável pelas disciplinas de
currículo de Letras. Nem mesmo as que não saber o que se passou, o que Língua, Literatura e Tradução La-
instituições de ensino superior regi- aconteceu no passado, é ter uma pos- tina no curso de Letras da UFSC,
das pela Igreja Católica, responsável tura de criança”. Mauri Furlan volta suas aulas para a
pelas primeiras investidas da língua Esse fator, que diz respeito à histó- questão do funcionamento e da es-
no país, o mantiveram, deixando tal ria da civilização, é a principal razão trutura do sistema linguístico latino.
responsabilidade a cargo das institui- levantada por Lana. Na sua obra, ele Mas, segundo ele, isso é uma questão
ções, na sua maioria, públicas. explica o porquê do estudo do latim: de escolha que fica a critério do do-
Em 1989, o professor da Univer- “A sociedade de hoje deve conhecê- cente. “Ele pode dirigir a sua prática
sidade Federal Fluminense (UFF) lo (e a cultura de hoje, a ele recorrer de acordo com os seus objetivos”,
Rosalvo do Vale escreveu o artigo Os com frequência) para conhecer a si observa. Por isso que, para ele, não
estudos clássicos na universidade, no mesma. A compreensão do presente há uma justificativa principal para o
qual justifica a crise de disciplinas passa pelo conhecimento do passado. estudo do latim. “No curso de Letras,
como o Latim, dentro do ensino su- E o nosso passado é antes de tudo a o latim é oferecido não com vistas a
perior. Um dos fatores remonta ao civilização da Roma antiga no que ler as obras clássicas. Mas isso é uma
Parecer No 283 , elaborado, no mes- teve de bom e no que teve de mau”. consequência – primeira, talvez. O
mo ano da LDB, pelo Conselho Fe- A outra justificativa, de que o latim também é a base de nossa cul-
deral de Educação. Nele, fica estabe- latim favoreceria a compreensão da tura. A gente sempre aprende que
lecido que, no currículo mínimo para língua, era usada pela professora de ela é greco-romano-judaica, mas eu
os cursos de Letras, a “Língua Latina Latim da Universidade de São Paulo deveria entender essas culturas, que
integra a parte comum, obrigatória (USP), Zélia de Almeida Cardoso. Ela estão na base da minha origem”, ex-
das disciplinas, porém com a ressal- conta que costumava brincar com os plica.
33
STOCKXCHNG
Os furos de currícul
Vida escolar
E
m 1996, mais de 30 anos ganização do corpo docente são muito tempo para dar uma noção
após o lançamento de sua alguns dos problemas levantados do sistema ao aluno. Agora, já na
primeira versão, foi apro- pela pesquisadora. Mas foi a fal- primeira fase, ele começa com a
vada a nova LDB, concedendo às ta de uma metodologia de ensino leitura de uma comédia de Plauto
universidades, o direito de decidir unificada, outro desmotivador dos e a língua já é apresentada de uma
sobre o ensino da língua latina alunos, que deu origem ao objeto forma mais completa”, garante.
nos cursos de Letras. Enquanto principal de pesquisa de Miotti: o A baixa carga-horária do latim
algumas excluíram a disciplina, método Reading Latin. em grande parte dos cursos de Le-
diversas instituições, como USP, Lançado em 1986 pelos profes- tras seria um fator que poderia jus-
Unicamp, Unesp e UFSC, man- sores Peter Jones e Keith Sidwell, tificar os poucos alunos que se in-
tiveram-na no quadro curricular. a estrutura dele se baseou na do já teressam, ao fim do curso, por uma
Mas havia, entre elas, um proble- existente Reading Greek. A ideia área tão específica. Na tentativa de
ma comum: a desistência por par- dos dois projetos era a mesma: criar ir contra esse fluxo, a UFSC é um
te dos alunos. uma forma de ensinar os idiomas exemplo único no país: hoje, ela
Para tentar melhorar os ín- para adultos e “quase-adultos” estabelece, no currículo do curso
dices, a USP, única universidade que permitisse um acesso rápido e de Letras, 72 horas-aula de Latim,
no Estado de São Paulo que pos- eficaz a obras originais de autores diferente do padrão, que é de 45
sui um departamento destinado da época. Escrito, inicialmente, horas. Mas, segundo a professora
exclusivamente aos estudos clás- em inglês, o método continha um Maria Helena de Moura Neves,
sicos, repensou a forma de in- conjunto de textos e um livro de a carga-horária não explica o bai-
troduzir o latim aos alunos. Para exercícios, teorias gramaticais e xo número de estudiosos da área.
isso, a instituição criou, em 1998, vocabulários. Em 1994, a ideia foi Para ela, o que não acontece hoje
a disciplina de Introdução aos Es- adotada pela Universidade Fede- é, justamente, o que aconteceu na
tudos Clássicos (IEC). Apesar de ral do Paraná (UFPR). Mais tarde, sua época: o incentivo ao estudo
já estar aposentada quando a IEC outras instituições também opta- do latim ainda antes do ensino su-
foi implantada, a professora Zélia ram pela novidade, como a UFSC, perior. “Um aluno começando na
de Almeida Cardoso reconhece a que, em 2002, passou a aplicar a universidade, vai sair com umas
validade da escolha feita pela ins- metodologia em sala de aula. pinceladas”, opina. “Não é ques-
tituição. “Os alunos que entram Um dos maiores obstáculos tão de carga horária, é questão de
em Letras têm algumas matérias dentro da universidade catarinen- tempo de formação, é questão de
obrigatórias, como a Iniciação aos se se repetia em outras instituições período que a pessoa fica exposta
34
De repente, latim
a este estudo. De fato, vai haver direcionar pessoas para um certo professor, eles ainda não têm uma
aqueles fatos de vocação. Eles po- rumo. “A questão não é dar estudo “combinação ideal de abrangência
dem se tornar muito bons, mas pra elite, é conseguir dar alguma vocabular e apresentação sistemáti-
como formação, eu acho tarde”, coisa da elite pro povo. Eu gostaria ca das diversas acepções, constru-
conclui. que o povo fosse elitizado. Eu acho ções, regências e exemplos”.
que isso é acrescentar”, reflete. Mas quando há muitas lacunas
Dificuldades No blog que criou para com- – não há tradução e os dicionários
Além de questões pontuais refe- plementar suas aulas, o professor são confusos – e recorrer a obras es-
rentes a escolhas de cada instituição, Adriano Scatolin, da USP, aponta trangeiras se torna inevitável, surge
há outros motivos que dificultam o outros fatores, de cunho mais prá- mais um entrave: o idioma. Scato-
ensino do latim na graduação, tanto tico, que também inviabilizam o lini afirma que é possível se dedicar
no curso de Letras, como disciplina fortalecimento do ensino e da pes- aos estudos de latim sem conhecer
obrigatória, quanto no próprio cur- quisa na área do latim. Em primeiro outras línguas, embora, como ex-
so de licenciatura. Para Neves, um lugar, ele cita a falta de traduções. plica, “isso represente uma grande
dos entraves é a elitização do latim. Segundo ele, muitas obras de auto- limitação, pelo menos com nossa
“No Brasil, não tem jeito de não ser res romanos ainda não existem em disponibilidade atual de material
considerado de elite. Todo mundo português – o que há, normalmen- básico de trabalho”. A responsabili-
revista língua
vai dizer: para quê? E a explicação te, são versões feitas a partir de ou- dade, dessa vez, recai sobre o aluno,
do ‘para quê?’ é de elite mesmo”, tra língua. que deverá trabalhar com uma si-
afirma. Essa explicação, segundo Outro empecilho seria a falta tuação irônica: antes de entender a
a professora, diz respeito aos obje- de dicionários bons à venda, hoje, língua-mãe, terá que compreender
tivos do latim. Ensiná-lo significa nas livrarias brasileiras. Segundo o as línguas-filhas.
35
Articulando
Os porquês
escolar
Batismo
do latim
Vida
Por cHarlene
Por José ernesto Miotti
De Vargas
N
ão existe uma recei- ginário coletivo construído por sobre a metodologia de ensino de
ta. Há quem diga: “sei quem ainda sofria com ele no latim nas Universidades Estaduais
conversar em latim!” colégio sob os pretextos clássicos de São Paulo. O que foi possível
ou “conheço As Metamorfoses que inúmeros professores, auto- constatar nas cinco Universida-
de cor!”. Terão esses aprendido e res de métodos e gramáticas e até des (considerando cada campus
conservado seu latim na base das admiradores leigos sustentavam: da Unesp como uma unidade)
tabelas, da tradução contumaz aprendê-lo aguça o intelecto, am- era previsível: cada professor tra-
ou ainda por uma fórmula má- plia a capacidade de observação, ta de compor por si só um méto-
gica ignorada pelos mortais? Ou aperfeiçoa o poder de concentra- do que de fato ajude seus alunos
ainda: o que é saber latim? Seria ção, desenvolve o espírito analí- a aprender aquele latim obriga-
dominar o sistema declinatório, tico, ajuda a mente a adequar-se tório do currículo mínimo dos
o universo sintático e vocabular à calma e à ponderação . Sem cursos de Letras – que não é nem
tão bem a ponto de transportar falar na militância do latim para de longe o latim necessário para
o latim para o presente e fazê-lo se tornar dono de um português se ter acesso a qualquer tipo de
sambar para se referir, por exem- impecável. Essas justificativas, literatura, mas resolve a questão
plo, ao nosso irremediavelmente são elas suficientes para embasar de quem sempre quis entender as
moderno jeans (socorre o Vatica- o ensino e o estudo de latim em frases de Edgar Allan Poe em O
no: bracae linteae caerulae)? Ou qualquer instância? Barril de Amontillado.
seria ter na ponta da língua o top Para além dos conteúdos e do O latim precisa ser encarado
da literatura clássica (junto com modo como eles vêm sendo ensi- sem o ranço erudito, tradicio-
uma galeria de aforismas de cada nados em sala de aula, há que se nalista e arcaizante que o reduz
autor)? repensar principalmente os obje- a uma língua morta (quando se
Orbitam em volta do latim tivos que norteiam esses esforços trata apenas de uma língua do
prescrições, mitos e preconcei- que, se não forem bem delinea- passado). Ora, um ensino que se
tos de todo tipo. Extinto do en- dos, produzirão pífios resultados pretenda eficaz precisa levar em
tão “segundo grau” na década de quando muito. O que buscamos conta a complexidade e as parti-
sessenta e desobrigado pelo MEC quando ensinamos latim para cularidades do sistema linguístico
no currículo universitário, o la- alunos de Letras e Filosofia em com o qual está lidando, além
tim vem ganhando uma aura de contexto universitário? Que eles das múltiplas competências sem
erudição inacessível que reforça possam conversar em latim? Que as quais é impossível alcançar
as crenças populares sobre ele. Se eles decorem os textos-base? qualquer dimensão, mesmo que
em uma roda de amigos o estu- Que eles saibam traduzir frases pequena do que de fato é deter-
rEVISTA lÍNGUA
dioso de latim cair na armadilha construídas por aqueles autores minada obra no seu registro origi-
cotidiana de contar o que faz da de gramática para quem o latim nal. E sem essa dimensão, afinal,
vida, com muita probabilidade é ferramenta indispensável para por que dedicar-se ao estudo de
revista língua
será presenteado com um bom- um bom português e um raciocí- uma língua clássica?
bardeio de perguntas curiosas: nio lógico-matemático?
CHARLENE MIoTTI é autora Da DissertaÇÃo
“para quê você usa o latim?”, “fala Essas questões vieram à tona o ensino Do latiM nas uniVersiDaDes PÚblicas
alguma coisa em latim?” etc... com o estudo em nível de mes- Do estaDo De sÃo Paulo e o MétoDo inglÊs
O latim faz parte de um ima- trado que realizamos na Unicamp reaDing latin: uM estuDo De caso.
36
In dubio
escolar
Batismo
pro reo
Vida
STOC
KXCH
NG
“V
iver honestamen- ceitos, que correspondem à época preliminar e obrigatória para que
te, não lesar nin- da Realeza (754 a.C – 509 a.C). alguém possa pronunciar-se com
guém, dar a cada Nesse período, o que valia mesmo autoridade sobre as obras clássicas
um o que lhe pertence”. Apesar eram os costumes da população. dos jurisperitos romanos”.
de simples e óbvias, estas três Foi para reorganizar essa condi-
ideias remetem a uma história ção que se instituiu a Lei das XII Interesse
bastante peculiar. Originalmente Tábuas. Como explica o histo- Mesmo não tendo a disciplina
publicadas em latim – honeste vi- riador Mario Curtis Giordani, na na sua grade curricular obrigató-
vere, alterum non laedere, suum obra História de Roma, ela teria ria, Misael Torquato de Souza,
cuique tribuere –, elas se referem sido escrita “com a finalidade de estudante da 5ª fase de Direito
aos preceitos de um dos maiores codificar o direito costumeiro, da Universidade Federal de Santa
legados deixados pelos antigos ro- impedindo as arbitrariedades dos Catarina (UFSC), fez questão de
manos: o Direito. patrícios contra os plebeus”. A aprender o idioma da civilização
A máxima foi apresentada partir disso, a organização jurídica romana – pela qual ele, aliás, nu-
no Institutas, manual destinado de Roma começa a tomar forma. tre grande interesse. “Entrei no
a estudantes de Direito organi- Até chegar às definições de Direito porque é uma produção
zado por Justiniano (482-565), hoje, o direito romano passou dos romanos”. Seu interesse pela
imperador que assumiu o Impé- por transformações e adaptações. língua começou antes mesmo da
rio Oriental anos após a queda Mesmo assim, ele sobreviveu universidade. Estudando-a, ele
de Roma (476). Ele exigiu que as como a maior fonte do sistema pretende, mais do que adquirir
ideias publicadas no seu guia fos- jurídico ocidental, regendo os um conhecimento, provocar uma
sem adicionadas, junto a outros principais conceitos das nossas re- mudança. “Eu pretendo utilizar o
trabalhos, ao Corpus Iuris Civilis. lações em sociedade. Para enten- latim para definir conceitos, para
rEVISTA lÍNGUA
A obra se opunha ao Corpus Iuris dê-los bem, é preciso se familiari- conceituar melhor, e trabalhar
Canonici, conjunto das primeiras zar com o latim, língua materna mais honestamente. Não é por
leis compiladas pela Igreja Cató- do direito que ainda se mantém reles capricho intelectual”, justi-
lica. viva nos tribunais e em textos ju- fica.
Mas foi bem antes de Justinia- rídicos. É o que afirmaVandick L. No artigo O Latim e outras di-
no que surgiram as bases iniciais da Nóbrega, no seu Metodologia ficuldades da linguagem forense,
do Direito Romano. Não há re- do latim (1972). “O conhecimen- Pedro Inácio da Silva também de-
gistro escrito dos primeiros con- to do latim é tão somente a fase fende o ensino do latim. Segundo
37
assim para evitar que futuros ad- romano. Por isso, acho que a for-
Lei das 12 Tábuas
vogados e juízes trabalhem com mação em Direito tinha que exi-
expressões as quais nem sequer gir uma boa formação em latim”,
Vida Escolar
de disciplinas de latim voltadas dida somente por aqueles que fa- incompreensível para a maio-
para esses estudantes. “Tem mui- zem parte do meio: o juridiquês. ria, seria também uma maneira
ta coisa ali que não dá para deco- O ex-presidente do Superior de demonstração de poder e de
rar e que é preciso saber, porque Tribunal de Justiça, Edson Vidi- manutenção do monopólio do
é tudo fundamentado no direito gal, chegou a comparar o jargão conhecimento”.
38
Articulando
Assassinato
Vida escolar
H
á várias maneiras de não caber dúvida de que língua competência linguística, ou seja,
discutir o conceito de viva é uma língua que está em a capacidade natural de produzir
língua morta. Existem uso, e que, a partir daí, até para linguagem ( “pode falar” uma lín-
as línguas que “morrem” porque poder responder às necessidades gua); porque ele tem o conheci-
nunca foram de grandes comuni- dos usuários, abriga variações e é mento de uma língua particular
dades e acabam circunscritas a um sujeita a mudanças com o devir historicamente inserida (“sabe
número tão diminuto de falantes do tempo. Se assim é, sânscrito, falar” uma língua); porque ele
que naturalmente chegam à ex- grego e latim não são línguas vi- tem uma situação de uso, ou seja,
tinção. Existem aquelas, porém, vas, e, na verdade, o argumento um evento comunicativo (“pro-
que foram línguas de dominação, de que o latim, por exemplo, está duz” discurso em uma língua).
e, implicadamente, foram línguas “vivo” no português, no italiano, Na verdade, do latim temos
de cultura, em relação às quais o no espanhol, no francês, etc. tem de dizer que não somente lhe fal-
processo que leva ao conceito de poesia mas não tem respaldo. ta o estatuto de língua oficial de
“morta”, mesmo que seja aceito, Por outro lado, pode-se ar- uma nação. Falta-lhe o estatuto
dificilmente envolve extinção. gumentar que cada uma dessas de língua cuja ativação se opere
Lembrem-se, no Oriente, o sâns- línguas está viva no uso que dela em um contexto de inserção na-
crito e o grego, e, no Ocidente, fazem determinados usuários: de tural de falantes pactuantes de
o latim, línguas que aí estão em um lado, por exemplo, leitores e uma atividade linguística exerci-
obras que são lidas, comentadas, estudiosos de Homero ou de Oví- da em contexto de inserção his-
discutidas e apreciadas, que aí es- dio, de outro lado, por exemplo, tórica comum.
tão em ritos consagrados, e que, comunidades religiosas, e para Entretanto, temos de con-
afinal, aí estão, modificadas, nas ilustrar aí está o latim no Vatica- vir que o rótulo “morta” para o
suas descendentes (o caso, por no, ou em ritos católicos, assim latim é extremamente infeliz. O
exemplo, das nossas línguas novi- como estão, por exemplo, o copta latim não é uma língua suscetível
latinas, ou neolatinas). e o aramaico em ritos de países a mudanças, mas também não é
A primeira discussão vai exa- orientais. Na verdade, de um uma língua enterrada e sepulta-
tamente nesse sentido: aceita-se ponto de vista científico, nada da junto com falantes derradeiros
a classificação de “mortas” para disso é “uso” linguístico, tópico que com ela sucumbiram no es-
estas últimas línguas tanto quan- que desenvolvo adiante. quecimento.
to para as línguas extintas, que se Outra questão pertinente na Opto, pois, por uma proposta
contam aos milhares? discussão é o fato de que tais lín- de que o eixo a ser estabelecido é
Todo conceito tem de ser guas não estão historicamente língua viva vérsus língua extinta,
rEVISTA lÍNGUA
discutido no universo em que inseridas, e lhes falta, pois, pelo o que leva à paradoxal conclusão
ele se insere, o que envolve um menos um dos três componentes de que, no caso, morta não é o
eixo de similaridade em que ele que Coseriu (1992) nos ensina a antônimo de viva. Se me permi-
revista língua
39
Mutações da lín
Et cetera
As semelhanças le- em 146 a.C., a cultura desse país as evoluções fonéticas, a partir do
teve livre entrada no território século IX. As letras ele e ene, por
xicais não permitem conquistador. Muitas influências exemplo, caíram em desuso em
vieram dos escritores gregos e certas palavras latinas: diabolu
disfarçar que a língua sua literatura. Mas a maior parte (diabo), dolor (dor), luna (lua),
portuguesa é fruto dos vocábulos agregados ao la- tenere (ter), volare (voar). Tal
tim remete ao cotidiano do povo, transformação caracterizou o por-
das transformações como: aer (ar), amphora (ânfora), tuguês, diferenciando-o do latim e
e influências sofridas spathula (colher), gubernare (di- de outras línguas românicas – em
rigir um navio), oliva (azeitona), espanhol e francês, as consoantes
pelo latim durante sé- oleum (óleo), punire (punir) etc. permaneceram nos mesmos vocá-
culos As vogais e consoantes latinas bulos.
foram outro resquício do grego, A evolução de sons continuou
Por Mariana Hilgert cujo próprio alfabeto já havia sido diferenciando a língua portuguesa
transformado com base naquele das demais. As formas de pl, cl e
É
impossível afirmar quando usado pelos fenícios. fl , em palavras latinas, assumiram
foi que o latim deixou de ser Assim como os gregos, o povo uma nova roupagem: o ch. Os
latim para se tornar portu- etrusco, que povoava a região nor- exemplos são vários: pluvia (chu-
guês, francês, italiano, espanhol e te da Itália, também emprestou va), clamare (chamar), clavem
todas as suas demais línguas filhas. palavras ao latim. Cisterna, lan- (chave), plorare (chorar), plenus
O processo de mudança demorou terna, catena (corrente), persona (cheio), flamma (chama) etc. A
séculos e só ocorreu porque muda- (máscara de teatro; mais tarde, forma originalmente latina tam-
ram, também, os povos vizinhos, pessoa)e servus (servo) são algu- bém existe no português, indican-
os conquistadores, as necessidades mas das influências mais visíveis. do sinônimos, como em pluvial,
etc. Uma coisa, porém, é certa: o O gaulês, de origem céltica, fez clamar e plenitude.
latim evoluiu e deixou uma carga outros acréscimos, como em car- Muitas palavras da forma clás-
hereditária de vocábulos em cada rus (carroça de quatro rodas), bec- sica do latim perderam lugar para
um de seus descendentes. cus (bico), cambiare (trocar) etc. as mais populares, embora tenham
Cerca de 80% do léxico usado Todo esse léxico mesclado era sobrevivido em certos vocábulos.
pelos falantes de língua portugue- levado pelos soldados romanos Mar, por exemplo, era chamado
sa vem do latim. Muito desse total durante suas incursões pelo Im- de aequor, na versão mais culta,
é fruto de um período em que o pério. A província da Lusitania, ou mare, na mais comum. O pri-
idioma era falado pelos agriculto- região onde nasceu Portugal, não meiro modelo foi esquecido, como
res da região do Lácio – situada na resistiu ao idioma dos invasores, mostra a semelhança dos vocábu-
parte central da atual Itália –, por e foi somando as novas palavras los. Mas aquático, por exemplo,
volta do século VIII a.C. Mas as ao vocabulário que já possuía. As resistiu. Outro caso é o do animal
palavras dessa época não ficaram transformações lexicais foram ine- cavalo, dito equus e caballus. Pre-
REVISTA LÍNGUA
restritas ao meio rural (veja box). vitáveis, já que do século II a.C., dominou, no nosso vocabulário, a
Algumas perderam seu sentido ori- quando foi conquistado, até o sé- segunda forma, mais popular. Mas
ginal – que, hoje, passa desperce- culo VIII, o território português referente à primeira, tem-se equi-
bido – e tomaram outros rumos. sofreu invasões germânicas e, du- tação, que guarda a história no seu
O português também carrega, rante 500 anos, foi também ocu- étimo.
no seu léxico, marcas do grego, pado pelos árabes. O vocábulo étimo, por sua vez,
trazidas através do latim. Quando Uma das formas através da não veio do latim. Foi mais um em-
os romanos invadiram a Grécia, qual a mudança foi sentida foram préstimo do grego (étumus, verda-
40
Direto do campo
ngua EM LATIM
Cernere (verbo)
PRIMEIRO SENTIDO
peneirar
EM PORTUGUÊS
distinguir
deiro) que resistiu aos sé-
Legere (verbo) colher > legere oculis > ler
culos e às influências cul-
colher com os olhos
turais. No português, ela
é normalmente associada
Putare (verbo) podar contar
ao sufixo – também grego
– logia (estudo), dando ori-
Delirare (verbo) sair do sulco (do arado) delirar
gem à etimologia, ciência
responsável por pesquisar a
Rivalis (adjetivo) Quem tinha direito ao rival
histórias das palavras.
mesmo rivus, ou curso de água
Aos etimólogos cabe a
descoberta da língua. Fo-
Pauper (adjetivo) Referente aos produtos que pobre
ram eles que desvendaram
forneciam pouco
as transformações fonéticas
e a identificação das formas
Felix (adjetivo/antônimo Referente àquele que produz feliz
culta e popular do latim.
de pauper) (fértil); favorecido dos deuses
Eles descobriram, tam-
bém, que palavras distintas
Luxus (adjetivo) Em excesso na colheita; teve sempre luxo
(como desenhar, designar e
sentido pejorativo no latim
design) podem ter o mesmo
étimo (designare); que, se
Pagina (substantivo) Fileira de vinha que formava um página
terminadas em -us no latim,
retângulo >página do papiro> página
as palavras ficam com o fim
com uma coluna por folha
em -o (romanus – romano)
no português; se terminam
Versus (substantivo) A virada do arado no fim do campo> verso
em -bilis, viram -vel (per-
linha de escrita que se repete como
ceptibilis – perceptível); se
os sulcos no campo> verso poético
acabam em -tas, viram -
dade (caritas- caridade); se
em -ens, passam a finalizar
Fonte: A aventura das línguas no ocidente, de Henriette Walter - Ed. Mandarim, 1997
com -nte (gens – gente).
Saber de onde viriam as
palavras instigou Isidoro de
Sevilha, bispo da cidade es-
panhola e responsável por
descobertas na área duran-
te a Idade Média. Ele foi o
autor de Etymologiae, con-
junto de 20 livros, cada um hipóteses
representando uma área e fantasiosas,
as etimologias das palavras proble-
pertencentes a cada uma ma que
delas. acompa-
Muitas dessas descober- nha os
tas não tinham um emba- etimólogos STOC
KXCH
NG
o latim?
pressão está em latim: Iesus
Nazarenus Rex Iudaeorum.
No latim, não havia a consoante
Et cetera
Armário
Do latim, armarium, que,
a principio, era o local onde
se guardavam armas. Mais
tarde, passou a ter o senti-
do atual, de guarda-roupa e
prateleira.
Homo Sapiens
Expressão que significa “homem que
sabe”. Desde 1758, quando foi men-
cionada pela primeira vez, a expres-
são é usada cientificamente, para
Moeda denominar o ser humano.
Na Roma antiga, as moedas PS.
eram fabricadas ao lado do tem-
plo da deusa Juno. Certa vez, os Abreviação de Post Scriptum,
gansos que ficavam ao redor de que significa, literalmente, “es-
seu templo teriam avisado, com crito depois”. É usada ao final
seus grasnados, aos romanos, de cartas ou documentos para
acerca de uma invasão dos gau- acrescentar uma informação.
leses. Como monere, em latim,
é advertir, um dos epítetos de
Juno passou a ser Moneta. Em ETC.
sua homenagem, as moedas co-
meçaram a ser assim chamadas, Abreviação de et cetera, que
originando também a palavra quer dizer “e as demais coisas”.
money, no inglês.
REVISTA LÍNGUA
Lápis
No latim, lapis signfica “pedra”.
Do italiano, teria agregado o sen-
tido de uma ferramenta que pos-
sui uma pedra com cor, o grafite.
Quarto Aedes aegypti Aranha
Ainda na época da antiga A palavra em latim aranea, que deu ori-
O popular mosquito da dengue tem a ori- gem à “aranha”, vem, na realidade, do
Roma, indicava o quarto (ori- gem do seu nome no grego e no latim. A
ginalmente, quartu) da casa grego arákne. Esse vocábulo, por sua vez,
palavra grega Aedes significa “odioso”, tem origem na mitologia grega. Aracne era
– no sentido numérico de ¼ enquanto aegypti, do latim, quer dizer
– onde se dormia. Os outros uma bordadeira que, com a sua arte, teria
“do Egito”. desafiado a deusa Atená (correspondente a
três aposentos eram a cozi-
nha e duas salas: a de visita Minerva, para os romanos). Tendo uma reles
e a de refeição. Banheiro, só humana feito trabalho tão belo, a deusa, fu-
o público. riosa, teria suspendido a moça no ar, trans-
formando-a numa aranha e condenando-a a
tecer pela eternidade.
Carpe Diem
Aparece no poema homônimo do
poeta romano Horácio, escrito no
século I a.C.. A tradução ainda
gera discussão, mas, em portu-
guês, sua versão mais comum é
“aproveite o dia”.
A.M. / P.M.
FAX
Fax veio do inglês, mas é, na realida-
Lente de, uma abreviação da expressão fac
Nos primórdios, a palavra significava simile, que quer dizer “faça de ma-
“lentilha”. Com o tempo, mudou de neira semelhante”.
sentido e, devido à sua forma, foi as-
sociada à lente dos óculos.
Óculos
Veio de oculu, que originou olho e
óculo, instrumento como uma luneta,
que auxilia na visão. Óculos é, ape-
nas, o plural, que deve sempre con- Álbum
cordar em número com o pronome: os
meus óculos e, não, o meu óculos.
A tábua branca sobre a qual
fixavam normas e atos do
governo romano era chama-
da de album. O motivo era,
justamente, a sua cor – em
latim, album também signifi-
Aquário ca “branco”. Com o tempo,
a palavra mudou seu senti-
do: foi nome de catálogo de
A princípio, servia para designar um santos, de livro no qual eram
tanque de água – palavra proveniente escritos ideias, passando a
do latim aqua. Apenas no século XIX designar, atualmente, um
é que o sentido dele passou a se rela- conjunto de elementos, seja
cionar a peixes. de música, de fotos etc.
Noções básicas da gramática latina
Para iniciantes
Por Mariana Hilgert
Et cetera
Como no português, as palavras no latim podem ser mes (adjetivos, numerais, pronomes e substantivos).As
invariáveis ou variáveis. Ao primeiro grupo pertencem peculiaridades da língua começam pela forma que essas
as conjunções, interjeições, preposições e a maioria dos palavras podem assumir dentro de um texto.
advérbios. Do segundo, fazem parte os verbos e os no- No latim, os nomes declinam. Isso quer dizer que
G
STOCKXCHN
ar
p a ra lig
m -
serve junção su
uanto njunções n
): e n q de c o ra s
s e
CARPE DIEM
o n j u nção eis, as co exemplo e c t a r as f in-
(c áv n bu
Dum tos invari Dum é um vel por co gula, atri
n s. á í r Ode (I, XI) Horácio, séc. I
m e õ e o n s a v
Ele oraç resp meir
ras e oral, la pri ntos.
palav tiva temp verso – pe e aos eve
na e eidad Tu ne quaesieris, scire nefas,
bordi as – nest ultan
sepa r a d
o de
s i m quem mihi, quem tibi
u m sentid Finem di dederint, Leuconoe,
do
Fugerit
(3ª conju
gação/ 3
nec Babylonios
pessoa d
rito do fu
o singula
r / preté
ª Tentaris numeros. Ut melius
turo): te
rá fugid
- quidquid erit pati!
o.
Loqui
mur ( Seu plures hiemes, seu tribuit
v
sente erb
do ind o depoent Jupiter ultimam,
Os ve icativo e/1ª p
rbo ): fa essoa Quae nunc oppositis debilitat
siva, m s depoente lamos do plu
a
guês, s exprimem êm uma ro
st ral/ pr
e- pumicibus mare
é um
podem
s
um se
n
upage
m Tyrrhenum, sapias, vina liques
home er compara tido de at de voz pas
tido d m via
j ado, e d o s com e iva. No Po - et spatio brevi
e ativa
. m que a strut
voz pa uras do tipo
rtu-
Spem longam reseces.
ssiva
tem s :
en-
Dum loquimur, fugerit inuida
Aetas: carpe diem, quam
minimum credula postero.
/ verbo transi-
Imperativo afirmativo
Carpe (3ª conjugação/ a.
do singular): aproveit Inuida (ad
tivo direto / 2ª pessoa ao s ve rbo s – não tem jetivo femin
ino triform
co nju ga çã o – fle xão referente gênero: inu
idus, a, um e (uma pa
A 3ª ão variáveis, ra cada
vo ga l tem áti ca , ma s possui vogais de ligaç joso )/ singular
/nominativ
uma cia - terminação o ): inve-
ctar o tema à desinên Os adjetiv
responsáveis por cone . Carpe está os qualifica
po e pessoa do verbo concordar m os subst
que indica número, tem antivos e
rEVISTA lÍNGUA
quão
(adv érbio):
STOCKXCHNG
Quam
vocábulo perdido
Achar qualquer palavra num di- dificuldades comuns. “As soluções encontradas pe-
los dicionaristas de tradição impõem inúmeras bar-
cionário latino - português exi- reiras à consulta, dificultando desde a localização do
verbete, até a compreensão do significado do item”.
ge, mais do que curiosidade, um Manejar bem o dicionário é, por isso, premissa para
bom conhecimento de gramática compreender um texto em latim. Ou chegar perto
disso.
das duas línguas A saga para encontrar um vocábulo no dicionário
Por Mariana Hilgert Latim-Português começa pela identificação da pala-
vra. Ainda usando o poema de Horácio, peguemos
O
s registros escritos e as obras literárias de au- o substantivo diem para dar início à procura no Di-
tores originalmente latinos são a única fon- cionário escolar latino português (6ª edição – 1992),
te de informação sobre a estrutura da língua de Ernesto Faria.
dos antigos romanos. Para compreender tais textos,
o dicionário bilíngue é uma ferramenta imprescindí-
vel, tanto para tradutores profissionais, quanto para
estudantes iniciantes. O problema é quando ele se
torna, em vez de solução, um obstáculo.
Com o intuito de diagnosticar as maiores dificul-
dades que os dicionários criam para alunos iniciantes
da língua, Giovanna Longo, da Universidade Esta-
dual Paulista (Unesp-Araquara) defendeu, em 2006,
a dissertação Ensino de latim – problemas linguísti-
cos e uso do dicionário. Segundo a pesquisadora, a
questão da língua clássica é bastante peculiar: “Para
quem está diante de um dicionário de uma língua
antiga como latim (...), todas as informações que
visam à produção de discursos na língua, geralmen-
te fornecidas pelos dicionários bilíngues, não têm a
mesma relevância que no dicionário de um idioma
moderno”, explica.
A maior diferença se deve ao fato de o latim ser
uma língua flexional e, também, por ter sido usada
há mais de 2 mil anos. “Uma descrição linguística do
idioma passa a exigir, desse tipo de obra [os dicioná-
rios], soluções que de algum modo permitam reduzir
as distâncias estabelecidas pelas diferenças linguís-
ticas e culturais existentes entre essa língua antiga
e os idiomas modernos”, explica Longo. Mas não é
bem isso o que acontece.
Como todos os dicionários disponíveis hoje foram
elaborados de forma padrão, todos eles apresentam
46
Primeiro passo Segundo passo
Se procurarmos pela palavra diem (abaixo) no dicioná- No dicionário, um substantivo sempre vai estar na sua
rio, não a encontraremos, o que denuncia a sua forma decli- forma de nominativo, seguido da terminação de genitivo.
nada . Para descobrirmos a qual declinação ela pertence, é No caso de diem, não é possível dizer qual seria a forma de
preciso verificar a sua função sintática. Como complemen- nominativo, se ele for de 3ª declinação, pois há variações.
to direto do verbo carpe (página seguinte), que quer dizer Caso seja de 5ª, terá a forma dies. Observe a tabela na
aproveitar, conjugado na segunda pessoa do singular, do página seguinte.
imperativo afirmativo, ela será um objeto direto, correspon-
dendo, no latim, ao caso acusativo. Com base na tabela de Observação: Para falantes de línguas neolatinas, a iden-
declinações, vemos que duas declinações têm terminação tificação do nominativo é mais fácil em virtude da seme-
-em no seu acusativo: a 3ª e a 5ª. lhança que há entre os vocábulos dos idiomas. Como lem-
bra a pesquisadora, “é no léxico que se reflete, de maneira
Observação: Longo acredita que “a baixa probabilidade mais expressiva, a história externa de uma língua, isto é, a
de correspondência entre a variante encontrada no texto, história de seus contatos culturais”.
que motiva a busca, e aquela pela qual há de ser procura-
da, é o grande obstáculo que se impõe à consulta”. Para
a pesquisadora, a superação dessa barreira está ligada ao
processo de aprendizado, demandando tempo.
No dicion
ári
sentam d o, os nomes apre-
uas form
1. dies = as:
nominati
2. diei = v o
genitivo
(ei é a m
arca do g
enitivo)
STOCKXCHNG
Terceiro passo Quarto passo
Indo direto ao dicionário, encontraremos a palavra dies, Depois de encontrar a palavra, é preciso entender o seu
ei. Sabemos agora, que ela pertence à 5ª declinação, pelo significado dentro do contexto. O maior problema com re-
seu genitivo. Mas se tivéssemos uma palavra já no genitivo lação à palavra diem diz respeito ao gênero, que pode ser
Et cetera
e quiséssemos descobrir a sua forma no nominativo, seria masculino ou feminino, conforme o sentido da frase. Mas,
preciso identificar o tema da palavra. para a tradução, o dicionário apresenta sinônimos seme-
Formado pela vogal temática, diferente para cada uma lhantes, o que não dificulta muito a compreensão.
das declinações, e pelo radical, que sempre vai pertencer
ao nome, o tema permite perceber que a irregularidade das Observação: No caso do verbo carpo, a situação é ou-
palavras é só aparente, já que, por trás, há uma estrutura tra. Mauri Furlan, tradutor do poema acima, optou pelo
solidificada. sentido de aproveitar. Embora questionado, Furlan justifica
Para encontrar o tema, a palavra deve ser colocada no sua escolha. “Traduzir é interpretar. Se você for traduzir lite-
genitivo plural. Dies, por exemplo, viraria dierum. A partir ralmente, você vai produzir um texto incompreensível”.
disso, se retira a desinência do caso e da declinação (-rum Realmente, se a palavra for versada para o português
= genitivo da 5ª). Temos, assim, die (radical di + vogal te- a partir de algum dos significados apresentados pelo dicio-
mática e), base da palavra que, independente da forma que nário, a frase ficaria sem sentido. Afinal, entre colher, arran-
essa tomar, estará sempre presente. car, consumir e censurar – algumas das opções dadas – há
muita diferença. Por essa razão, Longo questiona: “Como é
Observação: Quando se vai em busca de outras formas possível, através da leitura do texto, garantir um melhor en-
que não o nominativo, pode ocorrer uma confusão por cau- tendimento daquela civilização antiga, se o que se encon-
sa dos cortes da palavra. No caso de dies, -ei, um estudante tra no dicionário é uma lista numerosa de sinônimos que
iniciante poderá pensar que a forma de genitivo é diesei. parece em nada se comprometerem com a cultura do povo
Com os verbos, a confusão também pode ocorrer. No dicio- cujas experiências foram expressas através da língua?”.
nário, eles são sempre apresentados na forma de primeira
pessoa do singular, mas, na tradução, o sinônimo é dado a
partir do infinitivo, como no caso do verbo diffamo, encon-
trado no dicionário logo abaixo de dies.
Neste dic
ion
apresenta ário, os verbos s
1 a pessoa os de cinco form ão
d
2 a pessoa Pres. Indic.: carp as:
Infinitivo: Pres. Indic.: carp o
Pretérito carpere is
Supino: c Perfeito: carpsi
arptum
O dicioná
rio apres
bém, sina enta, tam
is -
braquia (˘ diacríticos:
vogal bre ), in dicando
uma
macro (- ve;
uma vog ), in d ic ando
de uma bal longa (dois tem
reve) pos
48
Gramática de bolso
O latim exige daquele que
o estuda muita atenção às Para declinar
regras gramaticais. Por
isso, selecionamos e re- 1a declinação
Singular Plural
sumimos alguns dos seus
Nominativo -a -ae
elementos mais importan- Genitivo -ae -arum
tes numa só página. Re- Acusativo -am -as
Dativo -ae -is (-abus)
corte-a e leve-a com você Ablativo -a -is (-abus)
Por Mariana Hilgert Vocativo -a - ae
2a declinação
Nominativo -us, -er, -ir/ -um -i/ -a
Genitivo -i -orum
Acusativo -um -os/ -a
Dativo -o -is
Para identificar Ablativo -o -is
Vocativo -e, -er, -ir/ -um -i/ -a
3a declinação
•Ausência de artigos Nominativo variável -es (-is) -a (-ia)
•Três gêneros: masculino, feminino e
Genitivo -is -um (ium)
neutro.
Acusativo -em (-im)/ variável - es (is)/ a (-ia)
•Numa frase, as palavras podem mu-
dar de posição, já que o sentido se dá Dativo -i -ibus
por causa das terminações e não pela Ablativo -e (-i) -ibus
função dos vocábulos, como no portu- Vocativo variável -es (-is)/ -a (-ia)
guês. 4a declinação
•As palavras podem tomar formas di-
Nominativo -us/ -u -us/ -ua
ferentes. O conjunto dessas variações é
chamado de declinação. Genitivo -us -uum
•O latim tem cinco declinações. Acusativo -um/ -u -us/ -ua
•Cada declinação possui seis casos, Dativo -ui/ -u -ibus (-ubus)
com correspondências no português: Ablativo -u -ibus (-ubus)
nominativo (sujeito) acusativo (objeto Vocativo -us/ -u -us/ ua
direto), genitivo (complemento nomi-
5a declinação
nal), dativo (objeto indireto), ablativo
(complemento verbal) e vocativo (cha- Nominativo -es -es
mamento). Genitivo -ei -erum
revista língua
L NGUA
Um presente de
portuguesa
Especial Latim
Dobre aqui
Articulando
O latim e
Et cetera
A
s línguas românicas ou conjunto de variedades popu- social independente de Roma e,
neolatinas são dez: por- lares, utilizadas na conversação depois da invasão dos chamados
tuguês, espanhol, ca- corrente, na esfera familiar. O la- bárbaros, criam-se reinos germâ-
talão, francês, provençal, sardo, tim vulgar, sofrendo menos pres- nicos independentes. Quando as
reto-românico, italiano, dalmá- sões homogeneizadoras, era mais diferenças no latim falado nas di-
tico (hoje já extinto) e romeno. suscetível de inovações. Todas as versas províncias se tornam sig-
Os idiomas românicos represen- línguas variam de região para re- nificativas, estamos em presença
tam uma etapa qualitativamente gião, de grupo social para grupo das línguas românicas.
nova do latim. As transformações social, de geração para geração Quando essas línguas subs-
que levaram ao aparecimento e, por isso, todas mudam. Além tituíram o latim? Não se pode
das línguas neolatinas se deram disso, houve a ação do substrato precisar com exatidão, porque as
paulatinamente. sobre o latim, ou seja, das línguas mudanças linguísticas são con-
O latim pertence à grande fa- das populações que adotavam tínuas. Sabe-se, porém, que isso
mília das línguas indo-europeias. o latim, assim como acontece, deve ter ocorrido por volta dos
As conquistas romanas, ao lon- quando aprendemos uma nova séculos VIII e IX.
go de três séculos, converteram língua e a língua que usamos ha- Inúmeras classificações
a língua de Roma em língua ofi- bitualmente interfere na língua das línguas românicas foram fei-
cial de um vasto império. No en- que adquirimos mais tarde. tas, com base em dois critérios:
tanto, o domínio militar não se A evolução interna do latim as semelhanças linguísticas e
confunde necessariamente com vulgar e a ação do substrato fo- a distribuição geográfica. Para
a romanização linguística, que ram agindo no sentido de uma classificar línguas, o melhor é
só ocorreu com a implantação dialetação (criação de variedades o primeiro, baseado em identi-
do latim dos centros urbanos às regionais) da língua de Roma. No dades e diferenças de natureza
localidades rurais. entanto, enquanto se conservou estrutural. Por isso, parece mais
Ao exército seguiam mer- a unidade econômica, política e acertado dispor as línguas româ-
cadores, funcionários, coloni- administrativa do império, houve nicas em dois grupos: o oriental
zadores. Todos falavam latim uma relativa unidade linguística. (romeno, dalmático e italiano)
e impunham-no às populações Quando se rompe a organização e o ocidental (todos os demais
dominadas: as transações econô- político-social, que culmina com idiomas neolatinos).
micas e os atos da administração a queda do império romano (em
REVISTA LÍNGUA
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STOCKXCHNG
Presente
Et cetera
de gregos
A literatura romana cial, de inspiração e molde para as cidade de
obras latinas. alguns seja
deve muito de seu es- Dizer que os romanos segui- contestada.
ram a tendência literária grega Dentre eles,
tilo, história e propa- não quer dizer, para o historiador A Marmita (em latim,
gação à influência da Mario Curtis Giordani, que eles a Aulularia) é um dos
copiaram. “[Eles] não só assimila- mais conhecidos – não
cultura helênica ram as obras literárias gregas, mas tanto pela sua história,
Por Mariana Hilgert souberam dar-lhes um cunho pró- mas pela repercussão
prio de um caráter nacional”, ob- que teve. Jean-Bap-
C
omo língua rústica que era serva o autor de História de Roma tiste Poquelin, sob o
nos primórdios de Roma, (1979). Uma das marcas desse na- pseudônimo de Mo-
o latim, nas suas primei- cionalismo foi a sátira, classificada lière, escreveu a obra
ras manifestações escritas, nada por Lucilius (180-103 a.C.), seu O Avarento (1668) a
tinha de literário. Representado criador, como um gênero original partir daquela de Plauto. Não foi o
em inscrições antigas, algumas e capaz de se adaptar a uma diver- único – no Brasil, Ariano Suassu-
remontando ao século VI a.C., sidade de assuntos. na fez de A Marmita, uma inspira-
foi útil, apenas, a pesquisas filoló- Nas cerca de 30 obras que pro- ção para sua cômica peça O Santo
gicas e linguísticas. Somente com duziu, o autor imprimiu sua von- e a Porca.
a conquista de Tarento (272 a.C.) tade de criticar e ridicularizar a Os textos de Plauto também
– centro helênico situado ao sul sociedade, as coisas e as pessoas repercutiram nos estudos do latim
da Península Itálica – pelo Impé- da época – temática inexistente por serem uma das poucas fontes
rio Romano, é que nasce uma li- entre as produções, até então. da versão popular – ou vulgar, por
teratura de nome latino, com jeito Mas antes mesmo do nasci- ser falado pelo vulgus (povo) – do
grego e precocemente desenvolvi- mento de Lucilius, outros autores idioma. Mas a literatura latina, na
da. já tentavam marcar suas obras sua forma preponderante, se vin-
A primeira obra efetivamente com as peculiaridades do povo la- cula mais ao latim erudito, clás-
latina foi uma tradução – feita, tino. Autor de comédias teatrais, sico, em que forma e estética são
ironicamente, por um grego. Ven- Plauto (250? – 184? a.C.) foi um importantes para a construção do
dido como escravo aos romanos, deles. Apesar de sempre ambien- texto. Seu ápice se deu na época
rEVISTA lÍNGUA
Livio Andronico traduziu o texto tar suas histórias e temáticas em em que foram escritos os registros
de Homero, Odisseia, para o la- cenários gregos, ele insere divin- históricos mais significativos do
tim, abrindo caminho para outros dades latinas nos seus textos e Império.
autores. Todos foram influencia- mescla os nomes gregos dos per- Como representante desse pe-
dos pela Poesia, Epopeia e pelo sonagens com características bem ríodo, Julio César (100-44 a.C.)
Drama, gêneros literários já bem típicas dos romanos. deixou um grande legado de obras
desenvolvidos na terra vizinha e Cem textos são atribuídos ao de caráter histórico. Como fruto
que serviram, nesse período ini- comediógrafo, embora a vera- da própria experiência que teve ao
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Mitologia romana
NA GRÉCIA EM ROMA
Afrodite Vênus
Deusa da beleza
Apolo Sol
Deus da juventude
Ares Marte
Deus da guerra
Ártemis DIana
Deusa da caça
Atena Minerva
Deusa da sabedoria
Cronos Saturno
Deus do tempo
Deméter Ceres
Deusa da fertilidade
Dionísio Baco
Deus do vinho
traições
Diferente de qual- lan, tradutor e professor de Lite- O berço principal do primeiro
ratura e Língua Latina da Univer- grupo é, segundo ele, a Universi-
quer outra língua, o sidade Federal de Santa Catarina dade de São Paulo (USP), através
latim não possui mais (UFSC).“Não basta o conheci- do Curso de Pós-Graduação em
mento da língua. O tradutor tem Letras Clássicas. Desde que foi
autores nativos vivos. que conhecer a matéria que traduz criado, no início da década de 70,
e ter a habilidade de expressar o o curso tem formado tradutores
Por isso, a sua tradu- texto original, com arte, com legi- que continuam preenchendo as
ção exige, além de bilidade, tentando reproduzir to- prateleiras de bibliotecas com ver-
dos os valores estéticos e de con- sões em português de César, Cíce-
conhecimento, muito teúdo que estão presentes”. ro, Plínio, Plauto etc.
cuidado A grande diferença entre um Uma característica dos tradu-
tradutor de alemão, por exemplo, tores acadêmicos é, como explica
Por Mariana Hilgert e um de latim, é que, enquanto o Queriquelli, “buscar ao máxi-
idioma germânico sofre transfor- mo uma equivalência na língua-
P
ouco adiantaria ter obras mações por estar vivo e em mo- alvo das características formais
de Plauto e Cícero em vimento, a língua dos romanos e contextuais do texto na língua
mãos se não pudéssemos não se modifica mais. Isso também fonte”. Por isso, nas obras tradu-
compreendê-las. E pouco se com- significa que não surgirão mais au- zidas por este tipo de tradutor,
preenderia do mundo de hoje se tores latinos com o tempo. Já se os textos são complexos e
não fossem estas obras. É justa- sabe o que precisa ser traduzido. oferecem, normalmente,
mente esta a função do tradutor: O problema é saber como e quem notas de ro-
STOCKXCHN
permitir que a comunicação entre irá fazê-lo. dapé, G
de partida. “Não é fácil, realmente, Apesar do pouco incentivo dado potencial dos alunos. “Eu tento
traduzir bem um texto latino, pe- à área, muito já foi feito pela tradu- estimulá-los. Eu já estou cultivan-
netrar em seu sentido profundo, ção dos clássicos latinos no Brasil. do uns futuros tradutores e tenho
descobrir-lhe as nuanças, compre- “A gente pode ter uma postura de a certeza de que algum desses vai
endê-lo, enfim, e transformá-lo em se orgulhar”, revela Furlan. “Mas a acabar se envolvendo a ponto de
outro texto, de outra língua, sem gente não pode se acomodar”. Para traduzir. De um grupo grande que
danificar suas especificidades”, ob- ele, o estudo do latim nas univer- começa, acaba ficando uns pou-
serva. sidades ainda é uma grande por- cos que vão em frente. E são esses
As dificuldades do outro grupo, ta para a formação de tradutores. poucos que vão acabar traduzindo,
os literatos, não diferem muito da- “Quando o MEC elimina a obriga- retraduzindo e melhorando as tra-
quelas enfrentadas pelos traduto- toriedade, ele elimina, também, a duções”.
Muitos autores continuaram fazendo uso do latim, mesmo quando as línguas orais já eram outras. Confira
Dante Alighieri (1265-1321): escreveu, em latim, De vulgari eloquentia, primeiro livro a tratar do vínculo entre
os idiomas românicos. A Divina Comédia, por sua vez, foi toda escrita em toscano.
Jean Jaurès (1859-1914): a tese do político francês, defendida na Sorbonne no fim do século XIX,
foi toda em latim.
revista língua
Jacques Derrida (1930-2004): ao ser recebido como Doutor Honoris Causa na Universidade de Oxford, o
filósofo francês teve de escrever seu discurso em latim.
Fonte: A aventura das línguas no ocidente, de Henriette Walter - Ed. Mandarim, 1997
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O latim STOCKXCH
Et cetera
NG
conectado
Através da rede mundial de computado-
res, é possível perceber que o estudo e
o interesse pelo latim ainda vivem
Por Mariana Hilgert
C
omo língua materna de um ele foi criado com o por dos clássicos da literatura
povo que viveu há mais de intuito de promover latina”, enumera Pita.
dois mil anos, o latim pare- o idioma, se valen- Aprender latim via internet
ce inútil e fora de moda. Por que do, especialmente, é algo viável, se isso depender
será, então, que o próprio Google, de listas de discus- da quantidade de material dis-
ícone de uma geração conectada, são. Fala-se de tudo ponibilizado online. Além dos
já tem sua versão latina? Acesse e sobre tudo. A úni- sites que permitem entrar em
www.google.com/intl/la/ e clique ca exigência é que as contato com pesquisadores do
em Explorare Googles ope para informações sejam mundo inteiro, é possível estudar
descobrir. sempre acrescentadas a gramática e os textos a partir de
A palavra latin gera, no maior em latim, como adverte a Regula métodos de ensinos pré-defini-
site de buscas da rede, 360 mi- (–mentação!) do site. dos. Dicionários on-line também
lhões de resultados. É ali, entre Qualquer um pode entrar no não faltam: alguns possibilitam o
tópicos e links, que o latim vive. grupo. Basta enviar um email para acesso virtual e, outros, já vêm em
E vive tanto que levou o pesqui- listserv@man.torun.pl, com o versão PDF, podendo ser arquiva-
sador Luiz Fernando Dias Pita, nome numa versão latinizada. dos no computador.
da Universidade do Grande Rio Alguns exemplos estão na lis- Do ano em que escreveu o ar-
(Unigranrio), a escrever, em 2001, ta dos integrantes do grupo, que tigo até 2009, Pita analisa de for-
um artigo sobre o assunto. já passam de 500: Aberlardo vira ma positiva a evolução da internet
No texto, intitulado “Latim Abelardus, Dionísio passa a ser como fonte de informação. Para
e Esperanto, via Internet”, Pita Dionysius, Marcos vira Marcus, ele, “[foi] o surgimento dos sites
analisa como grupos linguísticos Felipe, Phillipus e assim por dian- de relacionamento o fator que
REVISTA LÍNGUA
Dos links rastreados pelo Google, alguns que podem ser úteis àqueles que querem se aventurar pelo latim:
uma das razões que teria impedido, 26 mil artigos encontram-se disponí- como Artes, Cultura, His-
segundo o pesquisador, o “casamen- veis numa versão latinizada da Wiki- tória, Opinião e até Mangá,
to” entre o meio acadêmico e o ensi- pedia – ou melhor, Vicipaedia – des- histórias em quadrinho ja-
no de latim”. de 2002. ponesas. Tudo, sem exce-
Outro empecilho, referente à O site do Vaticano, local onde o ção, em latim.
questão de aprendizagem, pode ser o latim ainda é reconhecidamente ofi-
próprio idioma do interessado, já que cial, também inaugurou, em 2008,
NG
STOCKXCH
chamadas do mês.
Na rede Já para aprimorar o vocabulá-
Encontrar um site que disponibi- rio, há, na rede, o jornal polonês
lize seu conteúdo em latim não é algo Ephemeris. Além das notícias, há um
tão difícil. Além do Google, mais de cardápio extenso de áreas específicas,
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Articulando
Problemas
EtBatismo
cetera
Por maiores que sejam os reve- do Latim é, assim, revelar a vida dução. Mas, poderia algo ser feito
ses e adversidades que atingem o do Latim, e na forma em que fora para o incremento do número de
Latim em nosso tempo, podemos praticado por uma sociedade his- latinistas?
afirmar que seu destino é o de ser toricamente extinta. É fazê-lo Em nossa sociedade capitalista
imortal! Nossa cultura ocidental pulsar novamente nessa forma técnico-pragmática, o Latim não
está fundada sobre a cultura ro- para poder auscultá-lo com ouvi- passa de uma disciplina partícipe
mana, as grandes obras literárias dos contemporâneos. Esse acon- das antigas Humanidades, cujo
sempre clamam por novas relei- tecimento se realiza através do valor puramente cultural não
turas e retraduções, muitíssimos tradutor. rende dividendos nem enrique-
textos científicos foram escritos A problemática da formação ce seus estudiosos. E as editoras,
em Latim durante todos os sé- de um tradutor de Latim diz res- com os atuais contratos de traba-
culos em que foi a língua franca peito, pois, grosso modo, aos se- lho oferecidos, não fomentam in-
do Ocidente, a literatura clássica guintes aspectos: o domínio lin- teresses para o trabalho exclusivo
da Igreja Católica foi produzida güístico das línguas de partida e da tradução. Os que ao Latim se
em Latim, sua língua oficial, e de chegada, o conhecimento do dedicam fazem-no antes por dile-
as línguas modernas ocidentais, tema abordado, o conhecimento tantismo e formação própria. De
neolatinas ou não, têm origens e cultural da época e das circuns- forma que, hodiernamente tor-
influências na língua dos roma- tâncias de cada texto, e a habili- nou-se parte do papel dos cursos
nos. É, pois, uma conditio sine dade poético-artística do tradutor universitários de Língua Latina
qua non da existência e evolução para a reprodução na tradução despertar o interesse dos alunos
de nossa cultura a manutenção e de valores semelhantes aos do que buscam tal formação pro-
revivificação do Latim. E isto se modelo. Esses aspectos, em geral, porcionando-lhes meios para um
dá, sobretudo, via tradução. se desenvolvem simultaneamen- bom aprendizado e estimulando-
Se concebemos a tradução te. A questão-chave talvez seja os a realizarem, via tradução, uma
como uma “interação entre duas onde, por quem e como pode dar- função social, a da divulgação da
poéticas” (Meschonnic, 1973), se essa formação. cultura, em nome da evolução da
entendemos que, no domínio Atualmente, no Brasil, o en- humanidade.
linguístico-literário, todas as lín- sino do Latim se restringe pra- Somos, sim, frutos de nosso
guas-culturas quando se prestam ticamente a uns poucos cursos meio e expressão de nosso tempo.
à leitura e à tradução revelam-se universitários de graduação em E nesse contexto, os tradutores
ativas e redivivas. O Latim pode Língua Latina ou a disciplinas de e as traduções do Latim surgem
rEVISTA lÍNGUA
ser considerado língua morta Língua Latina em cursos univer- como a chama parca mas imorre-
apenas sociologicamente, no sen- sitários de Letras. A qualidade doura da cultura que nos originou
tido de não possuir mais uma so- desta formação, contudo, não é e que agora luta insegura sobre os
revista língua
ciedade viva que o pratique. Por das piores. O que se pode lamen- rumos que persegue.
isso, nessa acepção, é parte, pois, tar com relação ao Latim é o pe-
da tarefa do tradutor, segundo queno número de latinistas que
Mounin (1963), o tornar-se um se formam regularmente, aptos e MAURI FURLAN é traDutor e ProFessor De
etnólogo e um filólogo. Traduzir voluntários a dedicarem-se à tra- lÍngua e literatura latina Da uFsc
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Et cetera
Se pareba boues
alba pratalia araba,
albo uersorio teneba,
negro semen seminaba.
Pareciam bois:
aravam um campo branco,
seguravam um arado branco
espalhavam uma semente negra
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rEVISTA lÍNGUA
STOCKXCHNG
Jurament0 de Estrasburgo (842)
FrancÊs antigo:Pro deo amur et pro christian po-
blo et nostro commum saluament, d’ist di en avant
in quant Deus savir et podir me dunat, si salvarai
eo cist meon fradre Karlo, et in aiudha et in ca-
dhuna cosa, si cum om per dreit son fradre salver
deit, en ço que il mi altresi fazet, et ab Ludher nul
plait onques ne prendrai, que qui mien vueil cest
mien frere Charlon em dam seit;
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Traduções curiosas
O aprendiz de bruxo mais é uma das 91 línguas que já
famoso do mundo ganhou, possuem as obras do aventu-
em 2003, sua primeira versão reiro.
em latim. A segunda obra da Asterix e Obelix são ou-
série, Harry Potter e a Câmara tros personagens que têm sua
Secreta, também foi traduzida versão latina. No total, há 23
e, desde 2007, está à venda. volumes já traduzidos para o
Dez anos antes, Tintin já ti- idioma. Eles podem ser encon-
nha sua versão em latim. Essa trados em asterix-obelix.nl/.
Hino a São João Batista
Origens do Calendário
A palavra vem do latim deus/deusa grego tinha
Calendae, o primeiro dia uma correspondência no
do mês. Os meses e dias latim – inclusive no que
da semana vêm da mitolo- dizia respeito ao mito.
gia. Antes do cristianismo, Com base na mitolo-
os romanos eram pagãos, gia, criou-se o calendário,
e toda sua crença era ba- que só se tornou mais se-
seada naquela existente melhante ao atual a partir
na Grécia. Assim, cada de Julio Cesar (45 a.C.):
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A Semana
DIES SOLIS (DIA DO SOL, O QUARTA FERIA
ASTRO-REI) = PRIMA FERIA = DIES IOVIS (DIA DE JUPITER,
DOMINICUS DIES = DOMINGO DEUS MAIS FURIOSO) = QUINTA
(DIA DO SENHOR). FERIA
DIES LUNAE (DIA DA LUA, DIES VENERIS (DIA DE VENUS,
QUE, DEPOIS DO SOL, ERA A DEUSA DO AMOR) VIROU SEXTA
LUZ MAIS VISTA PELO HOMEM) FERIA
= SECUNDA FERIA DIES SATURNI (DIA DE SATUR-
DIES MARTIS (DIA DE MARTE, NO) = SEPTIMA FERIA = SÁBA-
DEUS DA GUERRA) = TERTIA DO (DO HEBRAICO SHABBATH,
FERIA QUE SIGNIFICA “REPOUSO”, DIA
DIES MERCURII (DIA DE MER- DAS ORAÇÕES PARA OS JU-
CÚRIO, DEUS DO COMÉRCIO) = DEUS).
STOCKXCHNG
C
Casus nondum plene evenit
O fato ainda não acabou de acontecer
manus atque iam nervosa diurnarii
e já a mão nervosa do repórter
vertit in notitiam.
o transforma em notícia.
Morti coniux dat uxorem.
D
A
L
M
O marido está matando a mulher.
Sparsa sanguine clamat uxor.
A mulher ensanguentada grita.
Fures fores arcae effringunt.
Ladrões arrombam o cofre.
Coetum milites dissolvunt.
A polícia dissolve o meeting.
TI
Tradit folio calamus.
A pena escreve.
Camera ex machinarum dulce
melos provenit mechanicum.
Vem da sala de linotipos a doce música mecânica.
Mineiro de Itabira, Carlos Drummond de esse último idioma, foi feita uma edição especial,
rEVISTA lÍNGUA
Andrade nasceu em 1902. Anos mais tarde mu- intitulada Carmina drummondiana, no seu 80º
dou-se com a família para Belo Horizonte, onde aniversário. Os poemas, como o Poema do Jor-
iniciou e concluiu seus estudos em Farmácia nal, foram traduzidos por Silva Bélkior, em 1982,
– embora, para “preservar a saúde dos outros”, permitindo que a obra de Drummond fosse eter-
como dizia, não tenha exercido a profissão. nizada, também, no idioma do Império Romano.
Virou escritor, e sua obra tornou-se conheci- E não é que o latim caiu bem para ele!
da não só no Brasil, mas no mundo. Seus livros Para ler os textos, acesse o site do Jornal de
já podem ser lidos em alemão, francês, inglês, Poesia. O endereço é http://www.jornaldepoe-
italiano, sueco, tcheco e, até mesmo, latim. Para sia.jor.br/.
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portuguesa
L NGUA