Você está na página 1de 68

REVISTA L NGUA APRESENTA

portuguesa
Carta ao leitor

Ad introitum
L NGUA
A edição da revista Língua Portuguesa Especial Latim é a
concretização de meu projeto de conclusão do curso de Jor-

portuguesa
nalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
EspEcial latim
Para dar forma a estas 68 páginas, foram necessários dez meses
de pesquisa, período que abrange desde o pré-projeto e o meu
Esta revista foi elaborada pela acadêmica Maria-
ingresso na disciplina optativa de Latim, até o fechamento do na Cristine Hilgert, como trabalho de conclusão
produto. do curso de Jornalismo da Universidade Federal
Durante este tempo de estudo – pequeno, se considerada a de Santa Catarina, sob orientação da Prof. Dra.
complexidade do tema –, aprendi a perceber o latim. E essa per- Tattiana Teixeira. Todo o conteúdo foi produzido

cepção me ajudou a compreender um pouco mais os segredos da exclusivamente para o projeto, com exceção da

nossa própria língua e, consequentemente, a justificar, com mais publicidade, colocada com o intuito de provocar
um efeito de realidade. Todo o projeto gráfico
clareza, o porquê de minha escolha. foi feito conforme o padrão da revista Língua
Uma das primeiras entrevistas que fiz, ainda durante a apura- Portuguesa (Editora Segmento), tentando seguir,
ção, foi com a professora de Latim da Universidade de São Pau- ao máximo, os estilos de fontes, cores e esquema
lo (USP), Zélia de Almeida Cardoso. Ao fim de nossa conversa, de diagramação. As propagandas foram escane-

que gerou mais de duas horas de gravação e muitas páginas de adas de edições diversas da revista. Por ser um

texto, ela me confidenciou que achava curioso como uma pes- projeto de conclusão, este trabalho não possui
fins comerciais ou lucrativos.
soa tão jovem estava interessada em algo tão velho. “Tão ve-
lho”, respondi, “mas tão presente”. Ela concordou com a justifi- Edição, reportagem,
cativa, que me acompanhou durante todo o processo, servindo fotografia e diagramação:
de resposta a muitas das perguntas que me fizeram. Mariana Cristine Hilgert

Perceber o latim também me permitiu reconhecer que a an-


tiga língua dos romanos não deve ser o foco de apenas um grupo Orientação:
Tattiana Teixeira
restrito de estudiosos. Se o latim – ou sua origem – é encontrado
em palavras populares, como apresentado na matéria Onde está Articulistas:
o latim?, por que não torná-lo, então, mais palpável? Possibili- Charlenne Mioti, José Ernesto de Vargas,
tar a difusão de um conhecimento tão específico, erroneamente José Luiz Fiorin, Maria Helena de Moura Neves,

posto sobre um altar elitizante, pode favorecer a educação e, por Mauri Furlan.

consequência, a justiça.
Infografia e ilustração:
Naturalmente que, dentro de uma sociedade envolta por Ítalo de Oliveira Mendonça
problemas cujas raízes já saíram do âmbito educacional, toman- e Edison Patto
do dimensões maiores e menos controláveis, o latim jamais será
visto como prioridade. E, acredito, nem deve sê–lo. Mas, ao Crédito da foto da capa:

mesmo tempo, não pode ser tido como uma disciplina supér- Mariana Hilgert (inscrição localizada em cata-

flua, já que trata, justamente, do nosso maior patrimônio em cumba, na cidade de Salzburg, Áustria)

comum: a língua portuguesa. E enquanto ela e todas as outras Universidade Federal de Santa Catarina
rEVISTA lÍNGUA

línguas românicas forem preservadas, o latim continuará sendo Centro de Comunicação e Expressão
antigo, continuará sendo complicado, mas, sobretudo, continu- Departamento de Jornalismo
ará presente.
Florianópolis, junho de 2009

MARIANA CRISTINE HILGERT


marianahilgert@gmail.com

4
Sumário

6 Frases

8 Entrevista
Batismo

NASCIMENTO

12 O Império do Latim
16 Um idioma transformado
José Ernesto de Vargas

BATISMO

18 Sob a guarda do Vaticano STOCKXCHNG

20 O tradutor do papa
21 Na língua dos anjos

VIDA ESCOLAR

26 Passado do presente
30 Uma língua adotada
32 Diploma para os clássicos
36 Os porquês do latim
Charlene Miotti
37 In dubio pro reo
39 Assassinato linguístico
Maria Helena de Moura Neves

ET CETERA

40 Mutações da língua
42 Onde está o latim?
44 Noções básicas da gramática
latina para iniciantes
51 O latim e suas filhas
José Luiz Fiorin
52 Presente de gregos
56 Um latim conectado
58 Problemas de tradução
Mauri Furlan
60 Latinidades

66 O português é uma figura

5
‘‘‘‘
Batismo
Frases

Alea jacta est.


A sorte está lançada

O
ÇÃ
Por José ernesto De Vargas

GA
UL
DIV
Veni, vidi, vici.
Vim, vi, venci

Julio Cesar
(100-44 a.C.), imperador romano

Nihil est ab omni parte


beatum. Donec eris felix, multos nume-
Nada é feliz sob todos os aspectos rabis amicos:Tempora si fuerint
nubila, solus eris.
Horácio
(65-8 a.C.), filósofo e poeta romano Enquanto fores feliz, terás muitos amigos:
se os tempos forem sombrios, ficarás só.

Ovídio
(43 a.C.-17.), poeta romano

Amicus certus in re
incerta cernitur.
O verdadeiro amigo se conhece
na ocasião incerta
revista língua

Cícero
(106-43 a.C.), orador romano
DIVULGAÇÃO
Mário Eduardo Viaro
Entrevista

ARQUIVO PESSOAL

Por Mariana Hilgert

Por trás
rEVISTA lÍNGUA

das línguas
8
A
ntes de se tornar professor navam em Botucatu. Fui pedir um
de Língua Portuguesa na autógrafo e fiquei muito amigo deles.
Universidade de São Paulo O professor Benedito praticamen-
(USP), Mário Eduardo Viaro já se te me adotou como filho e me in-
considerava um curioso do idioma. centivou a ter aulas particulares de
Mais do que saber falar, ele queria alemão também. Aí a paixão pelas
compreendê-lo – e é isso que faz em línguas aumentou e aos 17 anos re-
Por trás das palavras – Manual de solvi prestar Letras (Linguística/Por-
etimologia do português (Ed. Glo- tuguês), pela USP. Fiquei preocupa-
bo, 2004). No livro, o pesquisador do em comunicar ao dr. Benedito a
explica como se formaram os vocá- minha mudança de interesses, mas
bulos portugueses de origem latina no mesmo ano ele faleceu.
e não-latina, exercendo na prática
a ciência que trata da história das
palavras: a etimologia. Cinco anos Em que momento você decidiu
antes do lançamento da obra, Viaro usar seus conhecimentos do idio-
explorou a mesma temática no artigo ma para dar início aos estudos de “Nem sempre se
A importância do latim na atualida- etimologia?
de, publicado em 1999, na Revista de Eu fazia mestrado em Filologia Româ-
deve confiar na
Ciências Sociais e Humanas. Parte nica e sempre gostei de história anti-
do material que pesquisou durante ga e dos estudos sobre indo-europeu,
intuição. Toda
esse período virou atração no Museu Mas o que me ajudou mesmo para
da Língua Portuguesa, em São Paulo, aguçar meu conhecimento etimoló- afirmação eti-
e fez de Viaro um nome recorrente gico foi ter trabalhado na equipe de
quando o assunto é o latim e sua re- etimologia do dicionário Michaelis. mológica deve
lação com o nosso idioma. É sobre Eu era revisor na editora Melhora-
a importância do estudo e conheci- mentos, mas tão logo eu fiz algumas ser pautada em
mento desse idioma dentro e fora da correções num dicionário alemão, o
etimologia que o pesquisador falou, editor Walter Weiszflog, que as achou dados e quanto
por e-mail, para a edição especial de muito pertinentes, apostou em mim,
Língua. convidando-me a integrar a equipe. mais recuados no
Ter contato com todas as palavras do
português me deu uma visão geral do tempo, melhor”
Como foi o seu primeiro contato
que é de fato etimologia. Tudo isso
com o latim?
foi antes de eu entrar para a USP e
Eu sou de família pobre e comecei hoje eu oriento estudos científicos
a estudar latim muito jovem, como sobre Morfologia Histórica.
autodidata, com uns 12 anos, na
minha cidade natal, Botucatu, no
interior de São Paulo. Eu queria ser Como funciona o estudo do pro-
entomólogo e adorava os artigos de cesso de formação de vocábulos
um casal de professores, o prof. Be- quando não há registros escritos
nedito A. M. Soares e da profa. Hélia das formas primitivas?
E. M. Soares sobre uns aracnídeos, Cada caso é um caso. Há casos em
chamados opiliões, escritos em latim. que a falta de documentos pode ser
Entrei em contato com um primo de sanada por métodos de reconstru-
minha mãe, que era ex-seminarista ção e outros casos em que é preciso
e consegui vários métodos de latim determinar um limite temporal para
e grego. A profa. de Ciências Yara etimologia. Resumindo, nem sempre
Ceribelli Maddi conseguiu um está- se deve confiar na intuição. Toda afir-
gio informal para mim, na Unesp, e mação etimológica deve ser pautada
depois de um ano, entrei pela porta em dados e quanto mais recuados
contrária ao corredor que costuma- no tempo, melhor. Por isso, recursos
va sempre entrar e descobri com o como o Google Books são verdadei-
maior espanto da minha vida, que ras maravilhas, pois nos oferecem um
os professores estavam vivos e lecio- corpus imenso de palavras em livros
9
Mário Eduardo Viaro

de bibliotecas internacionais, como a educação parecem contribuir para-


de Washington. Uma boa etimologia, doxalmente para o status quo, em
Entrevista

porém, não deve só localizar a primei- vez de alavancar as mudanças sociais


ra ocorrência escrita do vocábulo, rápidas com que sonhamos. Como
mas todo o sistema linguístico usado indivíduos, temos mais vontade do
na época. Deve observar correlações que ação; como cidadãos, estamos
com línguas aparentadas (espanhol, desamparados de políticas realmente
francês e, às vezes, o inglês). Deve transformadoras.
verificar se algumas regras específi-
cas de alteração de forma e conteúdo
foram respeitadas. Tudo isso faz uma O que significaria dizer que te-
etimologia ficar mais convincente mos este receio, se os falantes de
do que outra. O que mais existe no português no Brasil acolhem es-
mercado, porém, é achismo, e isso faz trangeirismos sem muita reação
com que muitos pensem que a etimo- contrária?
logia não tem método ou que é uma Há uma visão apocalíptica sobre o
espécie de diversão. Às vezes ainda estrangeirismo. Em algumas regiões
sou alvo desse preconceito. Mas eu do mundo, de fato, o inglês põe em
levo muito a sério o método etimoló- risco a existência de línguas, mas os
gico e o defendo. falantes são bilíngues. Não é o caso
do Brasil. O que há é modismo, como
havia com o francês até início do sé-
Em países como Alemanha, há
culo XX. Há países como a Letônia,
um estudo desenvolvido do latim. a Islândia e, em menor medida, a
Como fazer para incentivá-lo no França, que fazem campanhas contra
Brasil, onde a língua é de origem o inglês e se apressam para encontrar
latina? substitutos. Mas tudo isso é muito
Não só é um país de língua neolatina, supérfluo e meio bobo. As línguas
mas é o maior país de língua neolatina nunca foram puras e recebermos
do mundo. Morei na Alemanha e até meia-dúzia de palavras inglesas não
agora, de fato, a diferença é gritante. vai colocar nossa língua em risco. As
Não só no latim, mas no ensino de palavras que o português divulgou ao
línguas em geral. Já vi africanos fa- mundo são nomes de plantas (jaca-
lando oito línguas aprendidas de ou- randá, piranha) e animais da Amé-
vido (não só as nativas, mas alemão rica, África e Índia, no período das
e russo) e crianças búlgaras falando Grandes Navegações ou então con-
francês perfeito, aprendido na escola ceitos como auto-da-fé, no período
pública. Com relação ao latim, espe- da Inquisição ou bossa nova mais
cificamente, o mais chocante é o caso recentemente. Procure esses termos
da Finlândia, onde falam uma língua em dicionários de inglês, francês,
que não tem nenhuma relação com o italiano e você os verá lá. Se nós eli-
latim e eles têm gibis em latim, emis- minássemos todos os estrangeirismos
soras de rádio em latim e formam os do português, acho que 80% das pa-
maiores linguistas especialistas em lavras do português desapareceriam.
latim. Não sei explicar. Acho que a A grande maioria das palavras cultas
eficiência do aprendizado formal ad- é adaptação do francês, sobretudo
vém de algum discurso no ar. Além no século XIX. Palavras banalíssi-
disso, nosso país é ideologicamente mas como população vêm do francês
monolíngue, portanto, nosso conta- e não diretamente do latim. Tupi e
to com outras línguas é menor, temos línguas africanas seriam línguas es-
receio de sons estranhos e sentimos trangeiras? Há muita arbitrariedade
mais dificuldades nas línguas do que na resposta. Por isso acho que toda
elas realmente oferecem. Só um sen- a discussão sobre estrangeirismos é
timento de prazer pelo desafio supe- bobagem e resquício dos fascismos.
ra isso de forma milagrosa. O fator Que os estrangeirismos sejam bem-
facilitador e a ideologia vigente da vindos.
10
O que pode acarretar, aos alunos, O advento da internet pareceu-me
a exclusão do Latim nos cursos uma solução incrível, mas, se nada
de Letras? mudar, até mesmo isso são facilita-
Bom, isso só nos torna mais ignoran- dores para a manutenção do status
tes do que já somos. Privar um aluno quo em vez de motivadores e desa-
de humanas de um conhecimento, fiadores que geram realmente algum
com o discurso de que é inútil é ab- progresso.
surdo. Para que serve a literatura?
Para que serve a linguística? Para que Como justificar a importância de
serve a gramática? Se damos uma co- se conhecer a civilização romana
notação pragmática para tudo, as hu- nos dias de hoje?
manidades não fazem sentido algum. Eu sou linguista e apaixonado por
Não gosto de argumentos veiculados muitos outros assuntos (cognição, “Para que serve
pela mídia, como “sabendo português história, biologia, filosofia), mas
culto, você vai ter mais chances num paradoxalmente não vejo relação entender especi-
concurso”. Isso é reduzir o conhe- direta entre o latim e a civilização
cimento a um modelo behaviorista. romana. Aliás, penso que foi essa ficamente a quin-
Para que serve entender especifica- associação que desmotivou o estudo
mente a quinta declinação latina? da língua, pois se trata de algo mui- ta declinação
Eu digo: para nada. Deveria ser- to distante. Os valores romanos são
vir para algo? Ou melhor: para nos fascinantes sim, mas não mais do que latina? Eu digo:
tornarmos menos ignorantes. Para dos gregos, persas e outros povos da
sabermos que há outros pensamen- época. Obviamente para entender para nada. De-
tos e outras expressões diferentes textos escritos em latim, é preciso
da nossa. Para sabermos que há os conhecer minimamente o contexto veria servir para
mesmos pensamentos em épocas tão da época, mas isso é necessário em
distantes. Para nos aproximarmos do qualquer texto. Desmitificar é muito algo? Para nos
universal humano. Para respeitarmos importante, a meu ver. Em matéria
a diversidade humana. Isso não me de conhecimento, os entusiastas co- tornarmos menos
parece pouco. Cortes de disciplinas laboram muito, mas também atrasam
aparentemente inúteis como o latim muito, pois criam mitos. Acho que a ignorantes. Para
para mim são perdas irreparáveis na chave para tudo é a humildade. Sem
consciência de nossa humanidade. ela, nenhum empreendimento vale a sabermos que
pena.
O estudo do latim pode ser consi- há outros pensa-
derado elitizado?
Não é elitizado, porque nossa elite é É possível ensinar o latim como mentos e outras
tão ignorante quanto as outras clas- mais uma língua estrangeira?
ses. O que há é uma elite formada No caso do latim, não faz sentido expressões dife-
em bons colégios, mas eu me revolto aprender a falar. Há várias pronún-
com isso. Toda minha formação es- cias: a regional, a do Vaticano, a rentes da nossa”
colar foi péssima, mesmo assim passei científica. Qual usar? É uma língua
na Universidade de São Paulo, onde viva apenas em questões neológi-
o ensino está entre os melhores do cas. Mas ela própria não gera mais
Brasil. Na época morei em Moradia palavras, pois não possui falantes
Estudantil e tinha de trabalhar ao modernos (até onde sei) cuja língua
mesmo tempo que fazia a graduação materna é o latim. O seu ensino [do
e a pós-graduação. Estou longe de ser latim] é especial. Sua função parece
uma exceção. Se após todo esse sofri- ver de onde provém nossa língua, sua
mento, posso ser considerado como estrutura, seu vocabulário, seu modo
pertencente a uma elite intelectu- de pensar, ao mesmo tempo que nos
revista língua

al, como querem entender alguns abre janela para outras possibilidades
formadores de opinião, penso que a de estruturas e vocabulários. O latim
questão está deslocada: não é preciso não foi feito para o português, mas
reduzir a elite, mas aumentá-la, mas pode ajudar a entendê-lo um pouco
para isso, é preciso também vontade. mais.
11
O Império
Nascimento

nia fenícia, que já tinha grande


controle sobre o comércio marí-
timo da região. Foi nessa inves-
tida que ocorreram as chamadas
Guerras Púnicas.

do Latim
Após três grandes e sangren-
tas disputas, os romanos tomaram
a Sicília, a Sardenha e a Córsega,
territórios que, antes, pertenciam
aos cartaginenses.
A Itália do Norte também foi
Os romanos, através de investidas territo- conquistada, bem como as pri-
meiras regiões fora da Itália, cen-
riais, transformaram o idioma num símbolo tradas no que hoje são Andaluzia
de poder e, com ele, conquistaram o mundo e as províncias de Castela, Múr-
cia e Valência, todas situadas na
Por Mariana Hilgert Espanha. Mais tarde, os romanos
conquistaram regiões da Grécia e

A
ntes de se consagrar As similaridades entre os três da Macedônia.
como língua erudita e fizeram supor a existência de uma Depois de trinta anos, Cartago
compreendida por pou- língua primitiva, o itálico, que, já não tinha mais forças para lutar
cos, o latim era um idioma sim- junto do grego antigo, do eslavo contra os romanos, que continua-
ples, falado por camponeses e e outras, constitui a família lin- vam a investir na expansão. Pas-
trabalhadores rurais – origens guística indo-europeia. O latim saram pela África, foram para a
que ficaram marcadas em muitas também sofreu influência dos atual França e Portugal e conquis-
palavras do nosso vocabulário. O etruscos e gregos, que dominavam taram até pequenas localidades na
verbo ler, por exemplo, já era usa- a Península Itálica, respectiva- Ásia. Mais tarde, o exército roma-
do pelos latinos antes mesmo de mente, ao norte e ao sul. Para so- no chegou ao que, atualmente, é
terem surgido os primeiros docu- breviver em meio aos conflitos dos a Romênia.
mentos escritos. A diferença é que dois povos, Roma, que, nos seus Com tantos povos sendo regi-
seu ancestral, legere, queria dizer primórdios, nada mais era do que dos pela mesma lei, era pratica-
colher. A relação entre os dois pa- uma aldeia, precisou se fortalecer. mente impossível que a mistura
rece inexistir, até o momento em A partir do século V a.C., ela deu dos falares e culturas não ocor-
que se percebe que ler nada mais é início a uma marcha expansionis- resse. Os próprios romanos se
do que legere oculis – ou, simples- ta que perduraria até o século II mostravam abertos a essa mescla,
mente, colher com os olhos. da nossa era. permitindo que cada grupo manti-
A história do latim se mistura Primeiramente, sucumbiu às vesse seu idioma, o que favoreceu
à de outros idiomas, como o um- invasões do Lácio, a região da Itá- o bilinguismo. Mas, com o tempo,
bro e o osco, falados por povos lia Peninsular. Logo em seguida, os o latim começou a se impor como
vizinhos à região do Lácio, onde romanos investiram na tentativa idioma mais complexo – e o único
nasceu Roma. de conquistar a Europa Mediter- –, facilitando a comunicação e,
rânea. Para isso, eles precisariam consequentemente, as negocia-
derrubar Cartago, uma colô- ções entre os povos.
Latim e latim falem polidamente a vida inteira”.
Quando da formação do Império O idioma da elite, dos senado-
Romano, no primeiro ano do calen- res e escritores, em contraposição Os Românicos
dário cristão, o latim não era ape- ao do vulgus, é o chamado latim
nas mais uma língua da Península clássico. Por ser mais erudito, Var-
Itálica. Ele era, naquele momento, gas observa que esse latim “é abas- O Império Romano começou a
o idioma oficial de um imenso ter- tecido pela literatura e pela lingua- perder o poderio centralizado quan-
ritório, povoado por soldados, co- gem da elite. Então, quando havia do foi dividido em dois: o Império
merciantes, escravos, funcionários reunião e momentos que a situa- Romano do Ocidente, tendo Constan-
e eruditos. Cada um desses grupos ção era formal, o clássico estaria tinopla como capital, e o do Oriente,
pertencia a uma classe específica, o em evidência”. com a capital em Roma. A fraqueza
que acabou acarretando variações As preocupações de quem tra- do controle foi sentida a partir das
da língua. Duas são as distinções balhava com essa forma do idioma, chamadas invasões bárbaras*, espe-
mais comumente reconhecidas: o muito influenciada pela cultura cialmente nos séculos IV e V.
latim vulgar e o latim clássico. grega, ficavam mais restritas ao Mesmo com a queda física do im-
É do primeiro que se originaram campo da escrita e da parte esté- pério, sobreviveu, no período que diz
as atuais línguas neolatinas. A pala- tica da língua. Suas variações não respeito à Idade Média, uma unida-
vra vulgar pode ter diferentes sen- eram as mesmas daquele latim fa- de linguística, política e cultural dos
tidos, remetendo a algo corriqueiro lado pelo povo. Com as disputas povos que viveram sob o poder de
ou sugerindo, até, algo de baixo ní- territoriais, o latim vulgar – que Roma. Na tentativa de diferenciar-se
vel. Mas seu verdadeiro significado era, também, dos soldados –, foi dos bárbaros – ou seja, todos aque-
remonta à sua origem: vulgar vem absorvendo elementos linguísticos les que não eram romanos –, surgiu
de vulgus, que, em latim, quer di- e culturais de muitas populações a palavra Romania, derivada de ro-
zer povo. “Ele é falado pela plebe, conquistadas. manus, que faz referência a todas as
informal, pertencendo à sociedade O latim vulgar não surgiu do regiões com idiomas originários do
que não tinha acesso a um latim clássico, e o contrário também não latim.
mais erudito, mais elitizado. É um aconteceu. Cada um se estruturou A partir daí, houve uma série de
latim de bermuda e chinelo”, expli- em épocas diferentes: foi só quan- derivações: primeiramente, surgiu
ca José Ernesto de Vargas, professor do o primeiro já estava bem encor- romanice, advérbio que serve para
de Latim da Universidade Federal pado, que o outro passou a ser re- designar algo “à maneira romana”.
de Santa Catarina (UFSC). verenciado. As obras literárias de Depois, romanice loqui, indicando
Mas, apesar dessa infor- autores como Plauto, além de ou- os idiomas vulgares, com origem no
malidade marcante do latim tros registros escritos, apresentam latim. De romanice, aparece o subs-
vulgar, Vargas faz uma res- marcas do latim vulgar e estão tantivo romance, que, antigamente,
salva: “Os senadores, tal- entre as provas. Os dois coexisti- se referia às obras escritas em algum
vez, falassem [o latim ram, demarcando – mais do dos idiomas vulgares da época.
vulgar] em casa. que períodos temporais
Não consigo ou formas de expres-
acreditar que são – a sociedade *Do grego bárbaroi, estrangeiros,
as pes- segmentada aqueles que não são romanos.
soas da época.

STOCKXCHNG

Silhueta de Roma, mais de


2 séculos depois de sua fundação.
No horizonte, a cúpula da Basílica
de São Pedro
Flores ESPANHOL

do Lácio
(terceiro idioma mais falado no mundo)
Nascimento

A Espanha deve seu nome à antiga forma como era cha-


mada a Península Ibérica: Hispania. A conquista desse
território pelos romanos começou em 218 a.C. Na re-
POR MARIANA HILGERT gião da atual Andaluzia, a latinização foi rápida. Já na
região norte, onde se situa o País Basco, o idioma dos
INFOGRAFISTA: ÍTALO MENDONÇA conquistadores demorou em se perpetuar. O espanhol
ILUSTRADOR: EDISON PATTO ainda foi influenciado pelos visigodos e pelos árabes,
que, em algumas regiões, permaneceram por 800 anos.
Foi somente a partir da metade do séc. X, com a che-

Q
uando Olavo Bilac escreveu que a Língua Portuguesa gada do Cristianismo, que o pequeno reino de Castela
, situado ao norte do país e dono de um dialeto ainda
era “a última flor do Lácio, inculta e bela”, fez uma desconhecido , começa a conquistar o território. Esse
referência ao idioma como último filho do latim – processo perdurou até o séc. XV, dando origem, ao fim,
ao idioma espanhol – ou castelhano.
embora não o único. A propagação dos idiomas românicos
se deve ao latim, língua oficial do Império Romano e um dos

Espanha
principais legados que os antigos soldados deixaram nas
regiões conquistadas. Cada uma delas, com o tempo, deu nova
forma ao idioma, que se transformou. Através das conquistas

Portugal
marítimas e dos processos de colonização, iniciados no século
XVI, as novas línguas se espalharam, estando presentes, hoje,
nos cinco continentes. 390
215

PORTUGUÊS
(sexto idioma mais falado no mundo)

Os povos que habitavam a Península Ibérica eram


REVISTA LÍNGUA

separados pelas distinções linguísticas e culturais.


Através das invasões romanas do século II.a.C.,
esses dialetos variados são extintos, dando lugar ao
latim. Na região da Lusitânia, que não corresponde
exatamente ao território atual de Portugal, o idioma
dos romanos evoluiu e originou no século VIII d.C., o
galego-português. O português como idioma oficial
de Portugal é reconhecido seis séculos mais tarde,
e guarda, no seu vocabulário, as influências das
invasões germânicas e árabes.
FR ANCÊS
(décimo idioma mais falado no mundo)

Os gauleses, com seu falar céltico, foram um


dos primeiros povos a habitar a região que
hoje corresponde à França. Com as conquistas
lideradas por Júlio César, no século I.a.C., eles
cedem o lugar de seu idioma ao latim vulgar,
que perdura até o século VII d.C.. Nesse perí-
odo, ele dá origem a dois idiomas distintos: a
langue d’oil, usada na região norte da França, e
a langue d’oc, na parte sul. A partir de cada um
deles, surgem dialetos regionais. É de um deles,
o chamado Île-de-France, que nasce o francês
contemporâneo.
Fr ança
ROMENO
115 (quadragésimo idioma mais falado no mundo)

Na época do Império Romano, a atual Romênia era


Romênia habitada pelos Dácios. Apenas uma parte dessa po-
pulação foi romanizada, permitindo que o idioma
26 local sobrevivesse, influenciando na formação do
romeno. O território onde hoje é falado esse idioma,

a Lácio
hoje, é circundado de países de língua eslava, fora
de contexto geográfico de suas línguas-irmãs, como
o português, o espanhol, o francês etc. Isso também
permitiu que muitas características do latim perma-
necessem vivas no idioma.
Itália
60

ITALIANO
(vigésimo primeiro idioma mais falado no mundo) LEGENDA

Com a queda do Império Romano, em 476, a região da


Quantidade em milhares de falantes nativos.
Itália é subdividida em pequenos estados. Cada um deles
possuía um patois*distinto. A partir do séc. XIV, com a
difusão da literatura, o italiano começa a tomar forma.
Sua maior influência foi o dialeto toscano falado pelos
florentinos que, propagado através das obras de auto-
res como Dante Alighieri, Boccaccio e Petrarca, se fixou
como o italiano escrito. A língua falada mais uniforme
começou a se espalhar pelo país somente no séc. XX, pa-
ralelamente aos dialetos regionais, que existem até hoje.

*Patois: dialeto utilizado por pequenos grupos popula-


cionais.

Fonte: A aventura das Línguas no Ocidente, de


Henriette Walter - Editora Mandarim, 1997 N
Articulando

Um idioma
Nascimento
Batismo

transformado Por José ernesto De Vargas


Por José ernesto De Vargas

A
língua portuguesa, tal corresponde aos primeiros passos lou no parágrafo anterior, e latim
como os demais idiomas do desenvolvimento da literatura vulgar. O primeiro é entendido
neolatinos, é resultado latina, quando os primeiros escri- pela total influência da literatura
de um longo processo de trans- tos nesse idioma ainda são ape- e da escrita sobre o mesmo; seus
formação. Tem como origem o nas traduções ou adaptações das usuários são as pessoas que têm
latim, idioma falado no Lácio, obras gregas para o latim. Já o la- acesso à escrita e à leitura, à lite-
região central da Itália, e mais tim clássico é o principal modelo ratura, portanto. Ao passo que o
tarde difundido em larga escala dessa língua. Representa o auge segundo deixou poucos vestígios,
pelos romanos através de seu im- do desenvolvimento literário, porque manifesto principal e fun-
pério, juntamente com a língua linguístico, político e cultural de damentalmente de modo oral.
autóctone falada na Lusitânia, Roma. É justamente este formato Os falantes dessa modalidade
então dominada por Roma. Da linguístico que foi e continua ain- pertenciam ao vulgus, às classes
língua latina é possível rastrear da hoje a ser estudado nos cursos populares, de onde o nome vul-
um percurso histórico, ainda que secundários e superiores mundo gar, que não deve de forma algu-
não completamente. O mesmo afora. O terceiro e último proces- ma ser entendido com o sentido
não pode ser dito da língua lusi- so desse desenvolvimento é o de- pejorativo que se costuma dar à
tana original, porque não existem nominado pós-clássico. Compre- palavra. Faltou dizer no primeiro
registros, a não ser resquícios de ende o período que começa com parágrafo que a língua de Ca-
ordem fonética, perceptíveis no a decadência literária, linguística, mões é derivada do latim vulgar,
português e em outros idiomas de cultural e principalmente com a embora também tenha recebido,
regiões limítrofes. derrocada política de Roma até por diversas vezes ao longo dos
O que se conhece do latim diz os nossos dias. É marcado pelo séculos, influências da variante
respeito ao momento em que os enfraquecimento e fenecimento erudita. Para além das estruturas
romanos se fizeram importantes, da língua como representação gramaticais, morfologia, sintaxe e
dominadores da região central da cultura romana. Entretanto, é fonética, a presença do latim no
italiana e já usuários dessa lín- importante que se diga, tal época português se percebe, sobretudo,
gua. A partir daí pode-se falar não significa o fim total, mas an- no léxico.
de três períodos marcantes na tes o início dessa transformação. Certas expressões, as pessoas
história do idioma, o arcaico, o Pois que, apesar de não represen- utilizam-nas tão constantemente
clássico e o pós-clássico e de duas tar mais o Estado Romano, já ine- que nem imaginam se tratar de
variantes sociolinguísticas, a eru-
rEVISTA lÍNGUA

xistente, a língua permanecerá latim, são os casos de pro forma,


dita e a vulgar. Os períodos pré como idioma da Ciência, da cul- pro labore, in natura, in locu e
e proto-históricos são duas fases tura e da religião católica e assim grosso modo, em que muitos di-
de que não se obtém muitos da- chegará até a modernidade, além, zem “a grosso modo”, por con-
revista língua

dos e informações, porque não é claro dentro dos novos idiomas siderarem idioma pátrio, e não
foram encontrados quase regis- latinos em transformação. parece mesmo?
tros, tendo em vista que a língua Quanto às variantes sociais da
existia fundamentalmente na linguagem, o latim se divide em José ERNEsTo DE VARGAs é ProFessor De
modalidade oral. O latim arcaico erudito ou clássico, de que se fa- latiM Da uFsc

16
N
os cinco mil quartos de novos representantes. nas –, comumente celebradas até
sua nada humilde casa, O Vaticano deixou de ser ape- o Concílio Vaticano II, realizado
Bento XVI, atual papa nas o nome de uma colina em no início da década de 60.
da Igreja Católica Apostólica Ro- 1929, quando se tornou, oficial- Com as mudanças nas cele-
Batismo

mana, poderia abrigar toda a po- mente, o Estado da Cidade do brações católicas, que acabaram
pulação do estado do Vaticano, Vaticano. Firmado entre o ditador por excluir o latim como idioma
que não chega a 800 pessoas. As fascista Benito Mussolini e Pio XI, oficial, a Igreja vem tentando
200 salas de espera, os 100 gabi- o Tratado de Latrão estipulou que retomar o seu uso de outras for-
netes destinados à leitura, os 300 a Itália reconheceria “à Santa Sé mas. Com esse objetivo, o papa
banheiros, além dos mais de 20 [do latim Sancta Sedes, ou sede Paulo VI criou, em 1970, a Fun-
pátios e outros tantos cômodos santa] a inteira propriedade, o po- dação Latina do Vaticano. Foi ela
são destinados a recepções diplo- der exclusivo e absoluto e a jurisdi- a maior financiadora de uma das
máticas. Pelas imposições da mo- ção soberana sobre o Vaticano, na mais notáveis investidas da Igreja
dernidade, tudo foi adaptado. De sua atual composição, com todas para ajustar o idioma às necessi-
antigo, ali, além das construções as suas dependências e dotações, dades atuais: o lançamento de um
históricas, só o latim. (...) a Cidade do Vaticano”. Desde dicionário moderno.
O idioma dos romanos sem- a sua fundação, a Cidade do Vati- Publicado em 2003, o Lexicon
pre esteve presente na história da cano tem o latim como língua ofi- Recentis Latinitas foi editado em
Igreja, construída, simbolicamen- cial. E não poderia ser diferente, dois volumes, que, no total, con-
te, em torno da tumba do apóstolo já que a Igreja Católica foi uma tam com 15 mil palavras latinas
Pedro – localizada na outrora cha- das principais guardiãs do idioma. adaptadas para os dias de hoje. Ti-
mada Mons Vaticanus, ou Colina Mas, como ele não se renova, por rando a curiosidade agregada à pu-
Vaticana. Cada novo papa é con- não ter mais falantes nativos, aca- blicação, a professora de Linguísti-
siderado um sucessor de Pedro, o ba se restringindo aos documentos ca da Universidade Presbiteriana
primeiro pontífice da Igreja. De- oficiais e às missas tradicionais Mackenzie e da Universidade Es-
pois dele, já foram nomeados 265 – também chamadas de tridenti- tadual Paulista (Unesp –Arara-

Sob a guarda
do Vaticano
Uma das mais antigas tradições da Igreja Católica, o latim
ainda vive nas inscrições, documentos e, até mesmo, no dia a
dia do menor estado independente do mundo
rEVISTA lÍNGUA

Por Mariana Hilgert


Léxico de bolso
quara), Maria Helena de Moura Ne- cos conservadores, que mesmo com
ves, não vê como isso poderia con- o Concílio, não deixaram de lado
A lista de vocábulos que deu origem
tribuir ou aumentar o interesse pelo a missa na sua forma antiga. Outra
ao Lexicon Recentis Latinitas vem sendo
idioma. “É um dicionário de língua justificativa é de cunho mais espiri-
escrita desde 530 d.C. Veja alguns dos
morta”, enfatiza. tual. Como o latim teria sido língua
mais curiosos:
Apesar de não ser muito favo- primeira dos cristãos, não tendo so-
rável à expressão, ela explica seu frido modificações, desde então, ele
Aeronave: aeria navis
sentido: “Nunca ninguém vai pre- conseguiria aproximar mais os fiéis
Água gaseificada: gasiosa potio
cisar dele, a não ser dentro daquele de Deus e da religião.
Batata frita: globulus solanianus
ambiente. Nos dicionários de hoje,
Buzina: sonorus autocineti index
aparecem termos novos porque eles
Cigarro: fístula nicotiana
estão em uso. Enquanto naquele lá,
Computador: instrumentum computa-
a língua parou. Eles vão criá-lo arti-
torium
ficialmente e vão mudar só o léxico.
Discoteca: taberna discothecaria
A sintaxe não muda. Muda no uso,
Fim de semana: exiens hebdomada
mas não vai mudar a semântica. É
Fósforo: flammifera assula
absolutamente diferente de uma lín-
Futebol: pediludium
gua em uso, pois é utilizado de forma
Hora do rush: tempus maximae
regrada”.
Apesar das discussões, o Vati- frequentiae
cano continua apostando no latim. Jeans: bracae linteae caeruleae
Sua mais recente tentativa se deu Kamikaze: voluntarius sui
através da promulgação do Motu interemptor
Proprio Summorum Pontificum. Livraria: taberna libraria
O documento, redigido pelo papa Macarrão: pasta tubulata
Mercado negro: mercatura
Bento XVI em 2007, prevê que as
clandestina
igrejas voltem – se houver interesse
Odontologista: medicus dentarius
por parte de um grupo de fiéis – a
Omelete: ovorum intrita
celebrar missas em latim, conforme
ONU: Unitarum Nationum Coetus
previam as definições que precedem
Overdose: immodica medicamenti stu-
o Concílio Vaticano II.
pefactivi iniectio
O objetivo da proposta é acalmar
Percentual: centesima (pars)
as reivindicações de grupos católi-
Pichação: figura graphio exarata
Pizza: placenta compressa
Sobre a tumba de Pedro Playboy: iuvenis voluptarius
teriam sido erguidos os pri- Raio laser: radius lasericus
meiros muros do Vaticano. À
direita, estátua do apóstolo Repórter: chronographus
Rodeio: spectaculum equestre
NG

Sabotagem: occulta eversio


CH
STOCKX

Saca-rolhas: extraculum
Telejornal: relatio televisifica
Trem: hamaxostichus
Xampu: capitilavium
Xarope: mulso conditus

Veja mais palavras em:


http://www.alpheratz.org/

19
O tradutor
Batismo

do papa
Admirador do latim,
O
padre americano Re- ma durante o verão europeu, sem
ginald Foster é um custo algum. Ele exige, apenas,
ele tem a língua dos apaixonado pelo latim. um nível elementar de conheci-
antigos romanos não É ele o responsável pelas tradu- mento e o gosto pela língua.
ções oficiais dos documentos da Além de dar aulas, Foster é o
só como o principal Igreja e de quatro gerações de protagonista do The Latin Lover
papas. A paixão é tanta que até (O amante do Latim), programa
objeto de trabalho, caixas-eletrônicos com instru- produzido e apresentado por ele,
mas, também, como ções em latim foram instalados e transmitido, todas as sextas-
pelo Vaticano, como ele mesmo feiras, pela Rádio do Vaticano*.
seu lazer mostra numa entrevista concedi- Durante a emissão, ele traduz do
Por Mariana Hilgert da a um programa televisivo ale- inglês expressões atuais para o
mão, em 2007. Ao repórter, ele idioma antigo e comenta histó-
afirma – em latim! – que, se as rias das épocas áureas de Roma.
pessoas não puderem ler os anti- Também é possível baixar os áu-
gos manuscritos da Igreja porque dios do programa acessando o
desconhecem o idioma, todos site** do padre.
ficarão isolados desse mundo. Apesar do empenho em man-
“Então tudo se perderá. É contra ter o latim vivo, Foster acredita
isso que estou lutando. Até hoje, que o idioma está com os dias
o latim é a nossa ligação com a contados. Numa entrevista à
DI
VU
LG

história”, conta. rede BBC, ele condenou o desin-
ÃO
Foster lecionou Latim na Uni- teresse de alguns representantes
versidade Gregoriana de Roma religiosos em estudá-lo e a au-
por mais de 20 anos. Em 2007, sência da disciplina nas grades
ele decidiu abrir a própria escola, curriculares de muitas escolas
chamada Academia Romae Lati- europeias.
nitatis, onde dá aulas gratuitas O padre também se mostra
para quem tem interesse em mais cauteloso em relação ao re-
aprendê-lo ou revitalizá-lo. torno das celebrações em latim,
Sua expectativa é de atrair, segundo o antigo rito romano.
por ano, cerca de 130 Na mesma entrevista, ele decla-
estudantes. Além rou que tal decisão só faria a Igre-
das aulas regulares, ja parecer ainda mais medieval.
revista língua

Foster oferece
cursos do *www.oecumene.radiovaticana.org
idio - **www.frcoulter.com/latin/latinlover

Mesmo apostando no latim,


Foster (à esquerda) teme que a
língua esteja a caminho do fim
Amen!

Na língua O Pai Nosso teria sido pro-


nunciado pela primeira vez
Batismo

por Jesus Cristo, em aramai-


co. Mais tarde, passou para o

dos anjos
grego, de onde vem a versão
latina, já bastante diferente
da original.

“Pater noster, Qui es in caelis,


sanctificetur nomem tuum.
Adveniat regnum tuum.
Fiat voluntas tua, sicut in
A celebração em latim torna a aparecer nas caelo et in terra.
Igrejas, atraindo curiosos e gerando divergên- Panen nostrum quotidianum
da nobis hodie.
cias dentro do próprio catolicismo Et dimitte nobis debita nos-
Por Mariana Hilgert tra, sicut et nos dimittimus

A
debitoribus nostri.
s tardes de sá- causa do longo tapete Et ne nos inducas
bado são, para vermelho. Mas as mu- in tentationem: sed
Marcos, sagra- danças, sutis, cabiam libera nos a malo.
das. Desde 2007, ele vai apenas ao cenário, e Amen. “
ao mesmo lugar, no mes- não às razões – essas,
mo horário, para rever as imutáveis – que o le-
mesmas pessoas e sentar varam até ali: a fé e o
nos mesmos bancos que, latim.
naquele dia, estavam le- Aos 19 anos, Mar-
vemente diferentes, mais cos Mattke é membro
adornados do que de do Grupo de Jovens da
costume. Algumas rosas Paróquia Imaculada
brancas os enfeitavam Conceição, localizada
– para um casamento, no bairro Guabirotu-
talvez –, preenchendo o ba, em Curitiba. Dois
A celebração na
corredor que parecia não anos antes, quando já Paróquia Imacula-
ter fim, por era estudante de Re- da Conceição, em
Curitiba,: uma hora
MARIANA HILGERT

de latim e concen-
tração
MARIANA HILGERT
lações Internacionais e, nas horas conforme o Missal Romano – li- tarde, Lefebvre foi excomungado
vagas, de Latim, descobriu que um vro usado pelos padres durante a por ter ordenado bispos sem an-
pessoal da Paróquia – desconhe- celebração – aprovado por Pio V tes ter sido autorizado pelo papa.
cida para ele, na época – estava durante o Concílio de Trento. To- Morto em 1991, o arcebispo dei-
Batismo

organizando uma missa diferente, das as orações são em latim e tan- xou, segundo dados da própria
conforme um ritual outrora bas- to o celebrante quanto os fiéis se Sociedade, cerca de um milhão de
tante comum. voltam ad Orientem, onde nasce seguidores.
A proposta do grupo não sur- a luz – que para a Igreja represen- A excomunhão do arcebispo
gira do acaso. Ela coincidiu com ta Jesus Cristo. Dependendo do francês fortaleceu o clima de dis-
a promulgação do Motu Proprio ponto de vista, isso significa que o sidência entre os grupos da Igre-
Summorum Pontificum, uma es- padre, durante quase toda a cele- ja. Mas, para o teólogo Leonardo
pécie de decreto lançado pelo bração, fica de costas para os fiéis, Boff, o decreto seria uma forma de
papa Bento 16, a fim de rever cer- ou de frente para Deus. reforçar ainda mais essa segmen-
tas determinações da Igreja que Tal ritual, que representa ape- tação. “O Papa está mais perto de
vigoravam desde 1965. Naquele nas um uso diferente do mesmo Lefebvre do que do Concilio Vati-
ano, teve fim o Concílio Vaticano rito romano, é preferência de al- cano II. Neste sentido, prejudica
II, sob o papado de Paulo VI. guns fiéis, como relata o papa no a unidade da Igreja e os esforços
Durante três anos de discussão, documento. É por causa deles que de renovação. Há o risco de que a
foram elaboradas quatro constitui- o pontífice autoriza, nos 12 artigos Igreja mais e mais se isole e assu-
ções, três declarações e nove de- que compõem o Motu Proprio, a ma atitudes de seita”, reflete, em
cretos que romperam com a visão utilização do antigo Missal Ro- entrevista à Língua.
mais tradicionalista da Igreja. mano por qualquer sacerdote, A presença do latim também
diariamente, excetuando o Sa- poderia provocar um afastamento
O decreto grado Tríduo (período da Páscoa por parte dos fiéis, já que remete à
O Motu Proprio foi oficial- – quinta-feira , sexta-feira e sába- imagem de uma igreja antiga. “O
mente publicado no dia 7 de ju- do). Dispensam-se formalidades papa quer interpretar este Conci-
lho de 2007. Nele, o papa traça para autorização – basta somente lio a partir do outro, o Vaticano I,
um pequeno panorama histórico o pedido de um grupo de fiéis e o que dava centralidade infalível ao
acerca da doutrina católica. Ele aceite por parte do padre. papa e havia esvaziado a dimensão
aponta, por exemplo, que os livros Reimplementar uma celebra- de povo, de Deus e de comunida-
litúrgicos, para se adaptar às ne- ção que, por quase quatro sécu- de”, afirma Boff. Para o teólogo,
cessidades dos dias de hoje, foram los, foi a missa de sempre, não essa decisão se encaixa na men-
“restaurados e parcialmente reno- seria o objetivo do Motu Proprio, talidade tradicionalista de Bento
vados, e que ao redor do mundo conforme as palavras do papa. O XVI. “O latim é um símbolo de
foram traduzidos em diversas lín- documento seria mais uma tenta- uma atitude de fundo, restaurado-
guas vernáculas”. tiva de reconciliação com grupos ra, conservadora e até certo ponto
Essas modificações foram fei- católicos tradicionalistas, como a reacionária”.
tas em 1969, quatro anos após o Sociedade de São Pio X (SSPX),
encerramento do Concílio. O gru- fundada pelo arcebispo francês Jovens
po de especialistas que havia sido Marcel Lefebvre, em 1969. Responsável pela celebração
incumbido da revisão publicou o O grupo refutou as definições na Paróquia da Imaculada Con-
Novus Ordo Missae, a fim de rede- do Concílio e, por isso, obteve au- ceição, o padre Paulo Iubel não
finir certas questões que caracteri- torização para celebrar o rito com acredita que o rito tradicional
zam as missas atuais. A celebração base no Missal antigo. Inicialmen- possa ser um retrocesso dentro da
regida conforme o Concílio Vati- te, tal permissão era concedida Igreja, já que, como descrito no
cano II é considerada, segundo a somente em alguns casos. Com o próprio decreto, não seria uma im-
Igreja, a forma de expressão ordi- tempo, ela se expandiu, até que, posição. “É apenas uma resposta
nária, contrapondo-se àquela de- em 1984, o papa João Paulo II de- ao pedido de um grupo. Ninguém
finida em 1570, por São Pio V, que finiu que, se houvesse interessados seria coagido a participar”, explica
hoje é tida como extraordinária. em realizar a celebração, caberia o sacerdote.
Chamada de Missa Tridenti- ao bispo de cada diocese decidir a Uma das principais justifica-
na ou Tradicional, ela é realizada real viabilidade. Quatro anos mais tivas da Igreja em prol do uso do
22
latim é o caráter imutável da lín-
gua. Ela seria uma espécie de liga-
ção com o passado à medida que
preserva elementos espirituais.
“Eu me sinto pessoalmente mais
realizado [após a celebração da
missa]. É como se o fator de mis-
tério prevalecesse”, comenta.
Padre Iubel não liderou o retor-
no à celebração – por mais que ela
o agrade espiritualmente e por ter
sido, na sua época de seminarista,
a missa usual. Quem encabeçou o
movimento foram jovens tão in-
teressados quanto Marcos – que,
quando foi visitar a Paróquia pela
primeira vez, não hesitou em par-
ticipar ao descobrir que o grupo
já pretendia começar a celebra-
ção na semana seguinte. “Passei a
ajudar a organizar as missas desde
então, passando a fazer parte do
grupo, do qual fiquei muito ami-
go”, conta. O uso do véu não é obriga-
Participar da celebração só tório, mas muitas mulheres
MARIANA HILGERT

seguem a tradição
ajudou Marcos, que, anos antes,
se encontrava afastado de qual-
quer religião. “A missa é bastante
recolhida e isso facilita a oração”,

No Mosteiro
relata Patrícia Medina, integrante
do grupo, explicando a maior di-
ferença dessa missa em relação às
demais e justificando, sem querer,
porque ela e cerca de 30 outros jo-

e em latim
vens preenchiam os bancos enfei-
tados daquela tarde de sábado.

Tradução anunciou 18h, as pessoas começaram


Aos domingos, o Largo de
simultânea a cruzar a grande porta de acesso, que
São Bento, em São Paulo, dá para o Largo de São Bento, região
Nem todo mundo que vai fica cheio. Não de feiran- central de São Paulo. As conversas
eram intimidadas pela luz baixa e
à Missa Tridentina conhece tes, mas de fiéis pela devoção de fiéis que já se colo-
ou estuda latim. Por isso, a
Por Mariana Hilgert cavam de joelhos. A maior parte de-

C
Paróquia da Imaculada Con-
onstruído há mais de 400 anos, les, inclusive, era notada pela forma
ceição oferece aos fiéis um
o Mosteiro de São Bento atrai como se vestiam. Especialmente as
livreto que contém, de um
turistas, curiosos e fiéis que, mulheres e as crianças, que se escon-
lado, a versão em português
nas celebrações, ocupam, quase sem- diam por baixa do pano das saias, das
e, do outro, em latim.
pre, os seus 693 assentos. Era o caso blusas e dos véus – brancos, para as
daquele domingo. Mal o ponteiro solteiras, e pretos, para as casadas.
23
Com os dedos cruzados em
frente ao rosto, uma jovem de
cabelos amarrados, cobertos por
um lenço branco bordado, aguar-
Batismo

da os sinos anunciarem a chegada


do padre para voltar a sentar. O
silêncio que a acompanhara nas
orações até então se esvai com os
choros das muitas crianças pre-
sentes – algumas sentadas, outras
no colo dos pais. Nem isso parece
perturbar a concentração geral,
elemento importante numa missa
cuja língua pairava sobre as cabe-
ças dos fiéis, inscrita nas paredes
da basílica, entre as figuras de san-
tos: o latim.

Ritual
À frente da celebração, está
o padre Jonas dos Santos Lisboa. Com capacidade para
quase 700 pessoas, o
Com uma longa túnica roxa, ele Mosteiro de São Ben-
MARIANA HILGERT

abençoa os presentes, cruzando o to lota aos domingos


corredor principal. Lentamente,
volta ao altar e dá início à missa,
que segue rigidamente as normas
previstas pelo antigo missal ro-
mano: genuflexões, uso do latim cerdócio, padre Jonas rezou ape- Nova Iguaçu e Volta Redonda.
durante quase todo o ritual – com nas uma missa em português. Isso Curitiba também recebe o auxí-
exceção da liturgia da palavra –, se deve ao fato de ter feito parte da lio do próprio padre Jonas, que, a
sucessivas anáforas – em que o pa- diocese de Campos dos Goytaca- cada dois meses, celebra a missa
dre fala e os presentes respondem zes (RJ), orientada pelo bispo dom na forma extraordinária, na Igreja
–, entre outros elementos. Tudo Antonio de Castro Mayer. Ligado da Ordem. “Nós temos um DVD
regido pelo sacerdote que fica, na ao grupo tradicionalista do arce- que ensina a celebrar a missa no
maior parte do tempo, de frente bispo francês Marcel Lefèbvre, rito tradicional”, acrescenta. Gra-
para o altar e, consequentemente, a diocese seguiu, mesmo após o vado pela Paróquia Pessoal do Se-
de costas para os fiéis. Concílio Vaticano II, o ritual an- nhor Bom Jesus Crucificado e do
Padre Jonas é responsável, des- tigo. Em 1988, junto a Lefèbvre, Imaculado Coração de Maria, de
de outubro de 2008, pela celebra- Mayer foi excomungado da Igre- Campos, ele é enviado às igrejas
ção dominical do Mosteiro, na for- ja. Três anos depois, foi fundada a junto a um livreto de orientação.
ma extraordinária – que, para ele, Administração Apostólica Pessoal O trabalho feito pelos religio-
de extraordinário, nada tem. “Eu São João Maria Vianey, já sob a co- sos já foi alvo de críticas, pois con-
estudei latim no seminário, desde ordenação de um novo bispo. teria elementos de antissemitismo.
quando entrei, em 1964, aos 12 Todos os sacerdotes perten- Segundo reportagem da Folha de
anos de idade. Na escola, estudei centes à Administração celebram São Paulo, que teve acesso às gra-
latim até a 4ª série ginasial, e de- segundo as definições de São Pio vações, haveria uma voz ao fundo,
pois fiz literatura latina nos dois V. “Nós estamos atendendo São chamando os judeus de “povo
revista língua

anos de clássico. As nossas aulas Paulo há 5 anos”, conta o padre. deicida [assassino de Deus], o qual
de filosofia e teologia também Além de auxiliar nas celebrações um dia reconhecerá que Jesus é o
eram todas ministradas em latim. da cidade, a Administração envia Messias”. A denúncia chocou a
E pratico continuamete o latim”. material de apoio para diversas lo- comunidade judaica, que receia o
Nos seus quase 33 anos de sa- calidades, como Belo Horizonte, retorno da missa tridentina.
24
revista língua

25
Passado
Vida escolar

do presente
O ensino do latim nas
“N
ão é possível sável pela implantação da Lei
desconhecer Orgânica do Ensino Secundá-
escolas marcou um pe- a irremovível rio, que permaneceu em vigor
ríodo em que os estu- vinculação de nossa cultura por quase 20 anos.
com as origens helênicas e la- Segundo a legislação, o en-
dos clássicos e huma- tinas. Não seria conveniente sino nas escolas seria divido
romper com estas fontes”. Essa em dois ciclos: o primeiro, cha-
nísticos eram uma das foi a justificativa dada pelo Mi- mado ginasial, teria duração
bases do sistema edu- nistro da Educação Gustavo de quatro anos; o segundo, de
Capanema, em 1942, ao expli- três anos, poderia ser voltado
cacional brasileiro car as razões de se ter, dentro à área clássica ou científica.
do ensino secundário, discipli- Durante os sete anos, o latim
nas humanitárias, como o La- seria – como, efetivamente, foi
Por Mariana Hilgert tim. Capanema foi o respon- – disciplina obrigatória.
rEVISTA lÍNGUA

STOCKXCHNG

26
Zélia de Almeida Cardoso, pro- Cotidiana e Instituições, publica- de diversos outros, ele afirma que o
fessora aposentada de Latim da do também em 1962, ele organizou seu retorno não significaria, neces-
Universidade de São Paulo (USP), uma pesquisa com todos os seus co- sariamente, uma melhoria na Lín-
acredita que a resposta do Ministro legas de profissão a fim de justificar a gua Portuguesa. Como explicou no
se enquadrava nas exigências e con- importância do latim nos setes anos relatório do projeto, haveria outras
dições da época. “Além dessas razões de curso secundário. Com os resul- questões mais complexas por trás de
[apresentadas pelo Ministro], sem- tados, Nóbrega pôde afirmar aquilo tal objetivo, como “a elaboração de
pre se considerou o ensino do latim que pregou durante toda sua vida uma política de formação continua-
como importante instrumento para como docente: “[o estudo do latim] da dos professores da área, melhores
o desenvolvimento de faculdades constitui um instrumento seguro de salários e campanhas maciças de fo-
tais como o raciocínio, a atenção, a boa e sólida formação intelectual e mento ao hábito da leitura, aliadas à
memória, entre outras”. O problema prepara pela ordenação e disciplina implantação de bibliotecas públicas
é que as justificativas não afastavam do pensamento, pela agudeza do es- com acervos atualizados e redes de
das escolas as dificuldades de ensi- pírito, pelo amor à pesquisa e pelo livrarias em todo o País, com preços
no de um idioma que, para crianças respeito às tradições humanísticas de livros acessíveis ao consumidor.”
e adolescentes, aparentava não ter de nossa herança linguística, as ge-
qualquer utilidade. rações merecedoras de um futuro Inviabilidade
Um dos principais entraves era realizador”. Dentro do atual contexto sócio-
a metodologia usada na época. “Em Os resultados da pesquisa de educacional brasileiro muitos pro-
cada classe do antigo curso ginasial, Nóbrega e sua aplicação ficaram fissionais compartilham da mesma
havia apenas alguns alunos que se restritos ao Colégio Dom Pedro II. opinião: não é possível reinserir o
interessavam pela matéria. A maio- Mas na tentativa de não ter mais latim nas escolas. Cardoso acredita
ria simplesmente decorava decli- a instituição como uma exceção, o que é a condição dos próprios alu-
nações e conjugações verbais ou deputado Milton Monti (PR-SP) nos de hoje que não favorece essa
preparava meios fraudulentos para elaborou o Projeto de Lei No 3.963, reinserção, impossibilitando uma
prestar contas dos conhecimen- que pretendia reinserir o Latim, a comparação entre eles e os estu-
tos em provas escritas e chamadas partir da 5ª série do ensino funda- dantes do tempo em que vigorava a
orais”, conta Cardoso. Essa é uma mental, como disciplina obrigatória. Lei Capanema. “Nessas quase cinco
das razões pelas quais muitos alunos A questão é que a ideia foi lançada décadas [desde que o latim deixou
temiam a disciplina, que chegou a quase 40 anos depois da promulga- de ser obrigatório], a situação do
ficar conhecida como a “matemáti- ção da primeira versão da LDB (a ensino mudou completamente. O
ca das letras”. segunda foi publicada em 1996, mas próprio perfil do aluno se modifi-
Em 1962, o ensino do latim tor- não gerou mudanças no que dizia cou. Até os anos 60 do século XX, o
nou-se facultativo no segundo grau respeito ao Latim nas escolas), curso secundário era elitizante e os
– mudança prevista pela Lei de Dire- O objetivo do projeto era me- meios de informação bastante dife-
trizes e Bases da Educação Nacional lhorar a própria língua portuguesa: rentes dos de hoje. Basta considerar
(LDB). Mas foram poucas as esco- “Conhecendo a origem das pala- que a informática só se popularizou
las que optaram pela permanência vras, seu verdadeiro significado, po- a partir dos anos noventa. Os estu-
da disciplina no currículo – afinal, deremos ter uma língua rica, com a dantes – não apenas porque estuda-
além da falta de professores da área, utilização precisa dos termos. Além ram latim – são hoje muito diferen-
havia um despreparo dos poucos de auxiliar na própria gramática, na tes dos do tempo em que o latim era
que existiam. Um raro exemplo foi o análise sintática e morfológica, per- obrigatório”.
Colégio Dom Pedro II, fundado em mitirá a busca nos textos clássicos A inviabilidade de se ter uma dis-
1837, no Rio de Janeiro, que oferece da história da humanidade”, como ciplina também está ligada à falta de
a disciplina na sua grade curricular descreveu o deputado no documen- professores. De acordo com dados
até os dias de hoje. to oficial. do Censo do Ensino Superior, divul-
No mesmo ano da promulgação A tentativa de Monti não foi gado pelo Instituto Nacional de Es-
da lei, Vandick L. da Nóbrega era, já aprovada pelo relator, o deputado tudos e Pesquisas Educacionais Aní-
havia 17 anos, professor da discipli- João Matos (PMDB-SC). Apesar de sio Teixeira (Inep), do Ministério da
na na escola. Para a elaboração do reconhecer a importância do latim Educação (MEC), em fevereiro des-
livro Metodologia do Latim - Vida como língua-mãe do idioma pátrio e te ano, o número de formandos em
27
Nascimento
Batismo

Por José ernesto De Vargas

MARIANA HILGERT
Didática do futuro

áreas específicas de magistério


Responsável por preservar o nos- de vídeos, ele se torna mais um dos
caiu 4,5%, entre 2006 e 2007. O
so idioma e contar toda a sua histó- elementos que compõem a estrutura
curso de Letras teve uma redução
ria, o Museu da Língua Portuguesa, do Museu.
de 10%, ficando entre os que apre-
em São Paulo, não é apenas uma No Beco das Palavras, uma da
sentam dados mais preocupantes.
simples exposição. Interativo e inte- seções mais concorridas do local, a
As próprias universidades ten-
ressante, ele é visitado, desde a sua presença do idioma antigo se torna
tam reverter essa situação, crian-
inaguração, em 2006, por crianças, mais palpável. Com uma mesa inte-
do meios de aproximar a cultura
jovens e adultos. rativa dedicada à etimologia, o pú-
romana das crianças. É o caso do
Como não poderia ser diferente, blico brinca e aprende.
projeto Latim na Escola, colocado
o latim ganha destaque dentro da Periodicamente, o Museu tam-
em prática a partir de 2000, com a
história de formação da língua. Com bém faz exposições sobre persona-
colaboração de professores e alu-
desenhos, explicações, tabelas de lidades que tiveram a língua portu-
nos de Latim da Universidade Fe-
palavras que se modificaram, além guesa como seu foco de trabalho.
deral de Santa Catarina (UFSC).
A atividade, como consta no
documento do projeto, “visa ao
resgate da Língua Latina, à recu-
peração da sua história e cultura, difundir a história e a cultura da Apesar de não acreditar muito
ao desenvolvimento do raciocínio civilização romana. Mas é preci- em fórmulas prontas de motiva-
lógico, bem como contribuir para so incentivar outras atitudes para ção, ele visualiza uma condição
o processo ensino/aprendizagem que as crianças de hoje se interes- ideal para que ela funcione: “Acho
da língua portuguesa.” O projeto sem pelo estudo do latim. sim, que quando se junta uma so-
de aplicação nas escolas foi inter- A leitura é uma delas, como ciedade com indivíduos sedentos
rompido em 2005 – mesmo assim, afirma o professor de Lingua Por- de conhecimento e professores
o trabalho de re-edição das obras tugesa da USP, Mário Eduardo muito maleáveis, aí a fórmula dá
revista língua

voltado ao público infanto-juvenil Viaro, “Quem não gosta de ler ou certo. Uma utopia é impossível de
continua à espera de editoras inte- não gosta de desafios, jamais gos- imaginar, mas é o que se verifica
ressadas em publicá-lo. tará de línguas difíceis e o latim é em muitos países, não necessaria-
Ideias como esta podem ser uma língua difícil para nós, não mente os mais desenvolvidos eco-
bastante proveitosas no sentido de nego”. nomicamente”.
28
Uma língua
Vida escolar

adotada
Em muitos países europeus, o vínculo com o latim não vem de
berço. Mas nem isso impediu que surgisse um interesse em
conhecê-lo, estudá-lo, traduzi-lo e, até mesmo, cantá-lo
Por Mariana Hilgert

E
mbora não façam parte da dia possui um noticiário produzido Company), publica, no idioma
mesma família linguística, na língua oficial do Império Ro- clássico, as manchetes de maior
o finlandês e o latim pos- mano. O site Nuntii Latini – ou destaque mundial. Através dele
suem uma relação estreita. Locali- Notícias em Latim –, concebido também é possível escutar emis-
zada ao norte da Europa, a Finlân- pela YLE (Finnish Broadcasting sões de rádio na língua, que, em

Ranking de traduções

Não incentivar o ensino do latim nas es-


Alemanha
colas dificulta o nascimento de novos tradu-
2831 tores. E um dos objetivos do seu estudo é, jus-
tamente, permitir a leitura de obras e, talvez,
traduzi-las.
Através do site Index Translation, da
Espanha Unesco, é possível ter uma noção, em-
bora reduzida, do quanto cada país
2810 produz na área. Neste exemplo,
cinco países foram analisados
a partir do mesmo requisito:
Itália tradução de obras do latim
rEVISTA lÍNGUA

para suas respectivas línguas


1280 nativas.
Inglaterra

309 Acesse o site do Index Translation


em: http://databases.unesco.org/xtrans/

Brasil
NG

30
STOCKXCH

266
Em latim, Elvis também não morreu

2006, atraíram mais de 75 mil ou-


vintes. O número surpreendeu: há Qual a relação entre Elvis Pres- que a lenda de Elvis ainda vive e
mais pessoas escutando um progra- ley, Finlândia e latim? Nenhuma, deve ser cantada em latim, já que
ma em latim do que inúmeros outros até 2006, quando o cantor fin- esse é um idioma eterno.
transmitidos pela BBC inglesa. landês Jukka Ammondt resolveu Entre as músicas traduzidas
Por estar disponível na internet, recriar os sucessos do americano, por Ammond, estão Can’t Help
qualquer pessoa pode ter acesso e traduzindo-os para o idioma dos Falling in Love (1961) , que virou
tirar proveito do material produzido antigos romanos. Non Adamare Non Possum, e Sur-
pela YLE. Assim faz um grupo de Em entrevista ao site da BBC, render, que passou a ser Nunc Ae-
espanhóis, todos integrantes do Cir- ele justifica o trabalho, ao afirmar ternitatis.
culus Latinus Matritensis (Círculo
Latino de Madri), espécie de filial
da Societas Circulorum Latinorum,
federação que organiza círculos de venha decaindo. Entre 2006 e 2008, tes de ensino médio, que, em 2006,
conversação em latim. Para aperfei- o número de estudantes escolares da enchiam as aulas da disciplina, nas
çoar e praticar a língua, que é uti- disciplina reduziu 80%. A queda tão escolas do país. O número indica
lizada pelo menos uma vez ao mês, abrupta deu margem a uma discus- um aumento de 13% em três anos
eles escutam a rádio finlandesa, são entre professores, de um lado, e – em 2003, eles eram 654 mil. So-
participam de fóruns na rede, além políticos, de outro. Para os docentes, mente o inglês, que tinha dez vezes
de promoverem encontros entre fa- o ensino na área de Humanas vem mais alunos, e o francês, que atraía
lantes de países diferentes. Mas a ra- sendo desvalorizado, perdendo es- quase três vezes mais interessados,
zão de ser do grupo é, basicamente, paço para investimentos no campo superavam esse índice.
uma: os encontros da última sexta- tecnológico. Já segundo os repre- Uma escola da cidade de Bre-
feira do mês. sentantes do Governo, o problema men, na região noroeste da Alema-
O aviso da reunião fica preso na diz respeito aos estudantes, que não nha, virou notícia com aquilo que
cafeteria escolhida. “Aqui, fala-se estariam interessados em aprender o pode ser uma explicação para um
latim”, anuncia o cartaz, que atrai idioma. número tão alto de alunos: a busca
poucos curiosos. Os que vêm são, A Inglaterra é o exemplo contrá- por novas formas de passar o conte-
basicamente, os mesmos nove. Fora rio nesse sentido. Segundo um estu- údo aos estudantes. Em 2006, sete
dali, cada um exerce uma profissão do feito pela organização Cambridge professores se organizaram e, juntos,
distinta. Mas ao redor da mesa, to- Schools Classics Project (CSCP) passaram a transmitir, mensalmente,
dos se tornam iguais na busca de um com escolas públicas inglesas de ní- as principais notícias – fossem elas
mesmo objetivo: praticar o latim. vel secundário, em 2008, verificou- locais, nacionais ou mesmo interna-
E eles discutem tudo – até futebol! se que cerca de 200 instituições le- cionais – em latim.
– usando, quando preciso, um lé- cionavam latim em 2000; sete anos Fora da Europa, os Estados Uni-
xico atualizado pelo Vaticano, com depois, o índice subiu para 471. Os dos se destacam. Segundo reporta-
palavras adaptadas às necessidades resultados da pesquisa também de- gem do The New Tork Times, publi-
atuais. tectaram uma redução no número cada em 2008, o número de alunos
O Matritensis vem de Madri, de profissionais da área. Essa dimi- prestando o Exame Nacional de La-
uma das cidades que abriga um cír- nuição é incompatível com a de- tim cresceu. De 101 mil estudantes,
culo de conversa. Mas a Societas é manda, acentuada, também, pela em 1998, o índice subiu para mais
bem distribuída pelo continente eu- procura das escolas primárias – cer- de 134 mil em 2007.
ropeu: além de Madri, há mais 15 ca de 2500 delas preveem o ensino Uma das razões que explica esse
cidades, espalhadas por nove países. do idioma dos romanos para ajudar interesse é a curiosidade dos alunos,
A existência de uma unidade que as crianças a aprenderem a gramáti- aguçada por livros como Harry Pot-
coordena os grupos permite a tro- ca inglesa. ter. Na obra, os nomes dos feitiços e
ca e o acesso a materiais, além do Como o inglês, a língua alemã, magias são baseados no idioma.
revista língua

intercâmbio entre os curiosos estu- apesar de toda a influência que teve Se a língua clássica virar uma fe-
dantes. do latim, não é sua filha. Mesmo as- bre como já virou o livro, ela pode
O vizinho Portugal também tem sim, a Alemanha demonstra ter um vir a ser a terceira mais estudada do
um Circulus Latinus – embora o inte- grande interesse pelo seu estudo, país, perdendo apenas para espanhol
resse pelo ensino do idioma clássico como atestam os 740 mil estudan- e francês.
31
Diploma para
Vida escolar

os clássicos
Histórias de estudantes e docentes de ensino superior que ainda
veem o latim como uma chave importante para a compreensão
da própria língua portuguesa
Por Mariana Hilgert

Q
uando começou a apren- para ingressar no curso de Letras caso, o que era declinação, quan-
der latim, aos 10 anos, Português-Grego da Universidade do entram na universidade”.
Maria Helena de Moura Estadual Paulista (Unesp – Arara- A história de Neves serve
Neves ainda desconhecia a impor- quara). Atualmente, trabalhando para ilustrar uma época em
tância da língua que ouvia somen- como professora de Linguística na que o latim era prestigia-
te da boca do padre, nas missas que Universidade Presbiteriana Ma- do em todos os níveis
frequentava quando criança. O ckenzie e na mesma Unesp em que educacionais – cul-
aprendizado que teve na infância estudara, ela compara a época em tura que vem do
só foi lhe ser útil anos mais tarde, que viveu com a atual no que diz século XVII,
quando prestou vestibular. “Aqui- respeito ao estudo do latim. “Eles quando o
lo ali, para mim, era a coisa mais [os estudantes] começam a fazer ensino do
simples do mundo”, comenta, ao aquilo que eu fazia com 10 anos, idioma
relembrar a prova de latim que fez que é começar a saber o que era é in-

G
CHN
CKX
STO
REVISTA LÍNGUA
troduzido nos seminários. Os jesuítas va de que deve ser entendida como alunos quando eles a questionavam
foram os primeiros professores da lín- ‘simples matéria instrumental’’’. sobre a real utilidade do latim. “Para
gua, que só se tornou disciplina obri- Autor da obra Dal latino al italia- que serve é uma coisa relativa, eu di-
gatória, em nível secundário, no ano no, Italo Lana enxerga esse proces- zia. Saber fritar um ovo é algo muito
de 1772, mais de um século depois. so de instrumentalização de forma mais relevante quando você está com
Com o surgimento das primeiras uni- positiva. Para ele, somente usando fome”. Apesar de brincar, ela deixa-
versidades – como a de Manaus e a o latim como um meio, através do va clara a função da sua disciplina:
do Rio de Janeiro, criadas, respecti- estudo das obras literárias, será pos- explicar os fenômenos do português.
vamente, em 1909 e 1920 – e dos pri- sível compreender historicamente Mesmo assim, ela ressalta que “a pes-
meiros cursos de Filosofia, a língua e a a civilização romana. Já Alceu Dias soa pode falar um português perfeito
literatura latina se tornam disciplinas Lima, no livro Uma estranha língua: sem conhecer latim. Você pode falar
relevantes no âmbito educacional do questão de linguagem e de método, um inglês perfeito sem saber de onde
ensino superior. Em 1931, o Minis- publicado em 1995, vê a língua como ele veio”.
tro da Educação Francisco Campos um instrumento para outro fim: o Como professora de Linguística,
incentiva oficialmente a dedicação à aperfeiçoamento do português. Maria Helena de Moura Neves con-
área, através da promulgação do De- corda com a afirmação de Cardoso.
creto No 19851. “Não é dizer que eu preciso do latim
Com isso Justificativas para escrever bem. Eu estou pensan-
aumentam Nesse contexto, surge o ques- do em pessoas que se aprofundam na
as produções tionamento: afinal, por que estudar linguagem, que lidam com a lingua-
de gramáticas, latim? Para José Ernesto de Vargas, gem como objeto de investigação”,
traduções de obras professor da disciplina de História da explica, referindo-se aos discentes.
latinas e elaboração de livros Língua Portuguesa, na Universidade Para ela, o latim traz uma vantagem
didáticos diferenciados. Federal de Santa Catarina (UFSC), específica que difere seus estudantes
Trinta anos depois, a situação do é interessante suscitar tal questiona- dos demais: “Você tem um gatilho
latim já era diferente. Com a lei de mento entre os alunos. Concordando disparado para poder observar mais
Diretrizes e Bases da Educação Na- com a ideia de Lana, ele entende que coisas na sua língua. A vivência do
cional (LDB), decretada em 1962, “a razão primordial [para o estudo do latim é a preparação de um gatilho
seu ensino se restringiu ao curso de latim] é a questão histórica, e, para disponível pra você desvendar certas
Língua e Literatura Latinas e às dis- mim, história é uma preocupação construções”.
ciplinas compulsórias presentes no fundamental. O próprio Cícero dizia Responsável pelas disciplinas de
currículo de Letras. Nem mesmo as que não saber o que se passou, o que Língua, Literatura e Tradução La-
instituições de ensino superior regi- aconteceu no passado, é ter uma pos- tina no curso de Letras da UFSC,
das pela Igreja Católica, responsável tura de criança”. Mauri Furlan volta suas aulas para a
pelas primeiras investidas da língua Esse fator, que diz respeito à histó- questão do funcionamento e da es-
no país, o mantiveram, deixando tal ria da civilização, é a principal razão trutura do sistema linguístico latino.
responsabilidade a cargo das institui- levantada por Lana. Na sua obra, ele Mas, segundo ele, isso é uma questão
ções, na sua maioria, públicas. explica o porquê do estudo do latim: de escolha que fica a critério do do-
Em 1989, o professor da Univer- “A sociedade de hoje deve conhecê- cente. “Ele pode dirigir a sua prática
sidade Federal Fluminense (UFF) lo (e a cultura de hoje, a ele recorrer de acordo com os seus objetivos”,
Rosalvo do Vale escreveu o artigo Os com frequência) para conhecer a si observa. Por isso que, para ele, não
estudos clássicos na universidade, no mesma. A compreensão do presente há uma justificativa principal para o
qual justifica a crise de disciplinas passa pelo conhecimento do passado. estudo do latim. “No curso de Letras,
como o Latim, dentro do ensino su- E o nosso passado é antes de tudo a o latim é oferecido não com vistas a
perior. Um dos fatores remonta ao civilização da Roma antiga no que ler as obras clássicas. Mas isso é uma
Parecer No 283 , elaborado, no mes- teve de bom e no que teve de mau”. consequência – primeira, talvez. O
mo ano da LDB, pelo Conselho Fe- A outra justificativa, de que o latim também é a base de nossa cul-
deral de Educação. Nele, fica estabe- latim favoreceria a compreensão da tura. A gente sempre aprende que
lecido que, no currículo mínimo para língua, era usada pela professora de ela é greco-romano-judaica, mas eu
os cursos de Letras, a “Língua Latina Latim da Universidade de São Paulo deveria entender essas culturas, que
integra a parte comum, obrigatória (USP), Zélia de Almeida Cardoso. Ela estão na base da minha origem”, ex-
das disciplinas, porém com a ressal- conta que costumava brincar com os plica.
33
STOCKXCHNG
Os furos de currícul
Vida escolar

Estudos Clássicos, de dois semes- do país: cada professor usava um


A falta de metodolo- tres. Eles leem textos, depois têm método próprio, inviabilizando
gia adequada ainda a poesia lírica e o teatro. É uma que o aluno acompanhasse a mes-
matéria que geralmente eles gos- ma linha de raciocínio por todo o
é um dos fatores que tam bastante”, observa. A refor- curso. Foi para resolver esta ques-
desistimula os estu- mulação foi eficaz: com índices de tão que Furlan apostou na inova-
40%, em 1998, a desistência caiu ção do Reading. “Cada um usava
dantes universitários para apenas 9%, seis anos depois. seu método, e a gente percebeu
a darem início ou Os dados são da dissertação que havia diferença. Por sugestão
da pesquisadora Charlene Miot- minha, padronizamos um pouco
continuidade aos es- ti, da Universidade Estadual de mais”, conta. Além de permitir
Campinas (Unicamp). O peque- uma uniformidade no ensino, o
tudos do latim no vínculo que os alunos criam método causou uma revolução
Por Mariana Hilgert com o passado romano durante na própria relação com os alunos.
os estudos e até mesmo a desor- “O latim que era dado demorava

E
m 1996, mais de 30 anos ganização do corpo docente são muito tempo para dar uma noção
após o lançamento de sua alguns dos problemas levantados do sistema ao aluno. Agora, já na
primeira versão, foi apro- pela pesquisadora. Mas foi a fal- primeira fase, ele começa com a
vada a nova LDB, concedendo às ta de uma metodologia de ensino leitura de uma comédia de Plauto
universidades, o direito de decidir unificada, outro desmotivador dos e a língua já é apresentada de uma
sobre o ensino da língua latina alunos, que deu origem ao objeto forma mais completa”, garante.
nos cursos de Letras. Enquanto principal de pesquisa de Miotti: o A baixa carga-horária do latim
algumas excluíram a disciplina, método Reading Latin. em grande parte dos cursos de Le-
diversas instituições, como USP, Lançado em 1986 pelos profes- tras seria um fator que poderia jus-
Unicamp, Unesp e UFSC, man- sores Peter Jones e Keith Sidwell, tificar os poucos alunos que se in-
tiveram-na no quadro curricular. a estrutura dele se baseou na do já teressam, ao fim do curso, por uma
Mas havia, entre elas, um proble- existente Reading Greek. A ideia área tão específica. Na tentativa de
ma comum: a desistência por par- dos dois projetos era a mesma: criar ir contra esse fluxo, a UFSC é um
te dos alunos. uma forma de ensinar os idiomas exemplo único no país: hoje, ela
Para tentar melhorar os ín- para adultos e “quase-adultos” estabelece, no currículo do curso
dices, a USP, única universidade que permitisse um acesso rápido e de Letras, 72 horas-aula de Latim,
no Estado de São Paulo que pos- eficaz a obras originais de autores diferente do padrão, que é de 45
sui um departamento destinado da época. Escrito, inicialmente, horas. Mas, segundo a professora
exclusivamente aos estudos clás- em inglês, o método continha um Maria Helena de Moura Neves,
sicos, repensou a forma de in- conjunto de textos e um livro de a carga-horária não explica o bai-
troduzir o latim aos alunos. Para exercícios, teorias gramaticais e xo número de estudiosos da área.
isso, a instituição criou, em 1998, vocabulários. Em 1994, a ideia foi Para ela, o que não acontece hoje
a disciplina de Introdução aos Es- adotada pela Universidade Fede- é, justamente, o que aconteceu na
tudos Clássicos (IEC). Apesar de ral do Paraná (UFPR). Mais tarde, sua época: o incentivo ao estudo
já estar aposentada quando a IEC outras instituições também opta- do latim ainda antes do ensino su-
foi implantada, a professora Zélia ram pela novidade, como a UFSC, perior. “Um aluno começando na
de Almeida Cardoso reconhece a que, em 2002, passou a aplicar a universidade, vai sair com umas
validade da escolha feita pela ins- metodologia em sala de aula. pinceladas”, opina. “Não é ques-
tituição. “Os alunos que entram Um dos maiores obstáculos tão de carga horária, é questão de
em Letras têm algumas matérias dentro da universidade catarinen- tempo de formação, é questão de
obrigatórias, como a Iniciação aos se se repetia em outras instituições período que a pessoa fica exposta
34
De repente, latim

lo O tênis de solado baixo, as meias listradas – sutil-


mente à mostra –, e o casaco de moletom enquadram
Fernando Coelho, 29 anos, no estereótipo perfeito de
aluno universitário – coisa que ele realmente é. Mas
dois de anos de existência do grupo, os três se reu-
niam semanalmente para estudar duas horas de la-
tim, seguidas de duas horas de grego. Para ele, que
era estudante de Ciências Sociais, esse interesse por
será que também o encaixariam dentro da imagem idiomas teve uma razão bem pontual. “Quando um
usualmente feita acerca de professores de Latim e professor me falou que os professores de Ciência So-
Grego? Ele mesmo reconhece que não. ciais não sabiam falar e não conseguiam ler em outras
Quando entrou para o curso de Economia da Uni- línguas, comecei a estudar Grego sozinho. Comecei a
versidade Federal de Santa Catarina (UFSC), aos 21 me entusiasmar. Queria ler Platão e perguntei para a
anos, Coelho já se interessava pela cultura e história professora se ela conseguia ler sozinha. Ela riu”, re-
do latim, mesmo sem saber por quê. “Eu sempre tive corda.
uma afinidade inexplicável com o mundo antigo, em O estudo do Latim rendeu frutos para cada um de-
especial com o mundo romano. As imagens de Roma les. Costa disse que sentiu muita diferença no uso do
e a língua de Roma me fascinavam e eu sabia que, de português. Já Coelho levou mais adiante o gosto. Aca-
alguma forma, um dia eu as estudaria”, conta. Foi o bou terminando Filosofia e pediu retorno para o curso
que decidiu fazer um ano depois do vestibular: trocou de Letras-Francês, que concluiu em 2008. Ao mesmo
os cálculos pela Filosofia e mergulhou no latim. tempo, entrou no mestrado em Estudos da Tradução,
Coelho aprendeu o idioma sozinho, mesmo saben- na própria UFSC, defendendo a sua dissertação no co-
do que ele era oferecido como disciplina optativa no meço desse ano. Hoje, ele é professor substituto de
curso de Letras. Ele até chegou a assistir a uma aula Grego, aluno do curso de Letras-Italiano, tem um gru-
de cada professor. “Mas essas aulas me fizeram saber po de extensão de Latim iniciante e já está com ideias
que o meu ritmo de estudo era muito diferente dos de aulas para o próximo semestre. Nada planejado,
alunos”, relembra. Em 2005, ele comentou com um como ele admite. “Eu não tinha ideia dos impactos e
amigo do interesse que tinha em criar um grupo de consequências que o estudo do latim e grego teria na
estudos de Latim. Os dois levaram adiante a ideia, que minha vida. As pessoas que são levadas a ele por um
atraiu outros interessados. conselho não se dão conta, de fato, do que significa
Paulo Costa foi um deles. Ele relembra que, nos aprendê-lo.”

a este estudo. De fato, vai haver direcionar pessoas para um certo professor, eles ainda não têm uma
aqueles fatos de vocação. Eles po- rumo. “A questão não é dar estudo “combinação ideal de abrangência
dem se tornar muito bons, mas pra elite, é conseguir dar alguma vocabular e apresentação sistemáti-
como formação, eu acho tarde”, coisa da elite pro povo. Eu gostaria ca das diversas acepções, constru-
conclui. que o povo fosse elitizado. Eu acho ções, regências e exemplos”.
que isso é acrescentar”, reflete. Mas quando há muitas lacunas
Dificuldades No blog que criou para com- – não há tradução e os dicionários
Além de questões pontuais refe- plementar suas aulas, o professor são confusos – e recorrer a obras es-
rentes a escolhas de cada instituição, Adriano Scatolin, da USP, aponta trangeiras se torna inevitável, surge
há outros motivos que dificultam o outros fatores, de cunho mais prá- mais um entrave: o idioma. Scato-
ensino do latim na graduação, tanto tico, que também inviabilizam o lini afirma que é possível se dedicar
no curso de Letras, como disciplina fortalecimento do ensino e da pes- aos estudos de latim sem conhecer
obrigatória, quanto no próprio cur- quisa na área do latim. Em primeiro outras línguas, embora, como ex-
so de licenciatura. Para Neves, um lugar, ele cita a falta de traduções. plica, “isso represente uma grande
dos entraves é a elitização do latim. Segundo ele, muitas obras de auto- limitação, pelo menos com nossa
“No Brasil, não tem jeito de não ser res romanos ainda não existem em disponibilidade atual de material
considerado de elite. Todo mundo português – o que há, normalmen- básico de trabalho”. A responsabili-
revista língua

vai dizer: para quê? E a explicação te, são versões feitas a partir de ou- dade, dessa vez, recai sobre o aluno,
do ‘para quê?’ é de elite mesmo”, tra língua. que deverá trabalhar com uma si-
afirma. Essa explicação, segundo Outro empecilho seria a falta tuação irônica: antes de entender a
a professora, diz respeito aos obje- de dicionários bons à venda, hoje, língua-mãe, terá que compreender
tivos do latim. Ensiná-lo significa nas livrarias brasileiras. Segundo o as línguas-filhas.
35
Articulando

Os porquês
escolar
Batismo

do latim
Vida

Por cHarlene
Por José ernesto Miotti
De Vargas

N
ão existe uma recei- ginário coletivo construído por sobre a metodologia de ensino de
ta. Há quem diga: “sei quem ainda sofria com ele no latim nas Universidades Estaduais
conversar em latim!” colégio sob os pretextos clássicos de São Paulo. O que foi possível
ou “conheço As Metamorfoses que inúmeros professores, auto- constatar nas cinco Universida-
de cor!”. Terão esses aprendido e res de métodos e gramáticas e até des (considerando cada campus
conservado seu latim na base das admiradores leigos sustentavam: da Unesp como uma unidade)
tabelas, da tradução contumaz aprendê-lo aguça o intelecto, am- era previsível: cada professor tra-
ou ainda por uma fórmula má- plia a capacidade de observação, ta de compor por si só um méto-
gica ignorada pelos mortais? Ou aperfeiçoa o poder de concentra- do que de fato ajude seus alunos
ainda: o que é saber latim? Seria ção, desenvolve o espírito analí- a aprender aquele latim obriga-
dominar o sistema declinatório, tico, ajuda a mente a adequar-se tório do currículo mínimo dos
o universo sintático e vocabular à calma e à ponderação . Sem cursos de Letras – que não é nem
tão bem a ponto de transportar falar na militância do latim para de longe o latim necessário para
o latim para o presente e fazê-lo se tornar dono de um português se ter acesso a qualquer tipo de
sambar para se referir, por exem- impecável. Essas justificativas, literatura, mas resolve a questão
plo, ao nosso irremediavelmente são elas suficientes para embasar de quem sempre quis entender as
moderno jeans (socorre o Vatica- o ensino e o estudo de latim em frases de Edgar Allan Poe em O
no: bracae linteae caerulae)? Ou qualquer instância? Barril de Amontillado.
seria ter na ponta da língua o top Para além dos conteúdos e do O latim precisa ser encarado
da literatura clássica (junto com modo como eles vêm sendo ensi- sem o ranço erudito, tradicio-
uma galeria de aforismas de cada nados em sala de aula, há que se nalista e arcaizante que o reduz
autor)? repensar principalmente os obje- a uma língua morta (quando se
Orbitam em volta do latim tivos que norteiam esses esforços trata apenas de uma língua do
prescrições, mitos e preconcei- que, se não forem bem delinea- passado). Ora, um ensino que se
tos de todo tipo. Extinto do en- dos, produzirão pífios resultados pretenda eficaz precisa levar em
tão “segundo grau” na década de quando muito. O que buscamos conta a complexidade e as parti-
sessenta e desobrigado pelo MEC quando ensinamos latim para cularidades do sistema linguístico
no currículo universitário, o la- alunos de Letras e Filosofia em com o qual está lidando, além
tim vem ganhando uma aura de contexto universitário? Que eles das múltiplas competências sem
erudição inacessível que reforça possam conversar em latim? Que as quais é impossível alcançar
as crenças populares sobre ele. Se eles decorem os textos-base? qualquer dimensão, mesmo que
em uma roda de amigos o estu- Que eles saibam traduzir frases pequena do que de fato é deter-
rEVISTA lÍNGUA

dioso de latim cair na armadilha construídas por aqueles autores minada obra no seu registro origi-
cotidiana de contar o que faz da de gramática para quem o latim nal. E sem essa dimensão, afinal,
vida, com muita probabilidade é ferramenta indispensável para por que dedicar-se ao estudo de
revista língua

será presenteado com um bom- um bom português e um raciocí- uma língua clássica?
bardeio de perguntas curiosas: nio lógico-matemático?
CHARLENE MIoTTI é autora Da DissertaÇÃo
“para quê você usa o latim?”, “fala Essas questões vieram à tona o ensino Do latiM nas uniVersiDaDes PÚblicas
alguma coisa em latim?” etc... com o estudo em nível de mes- Do estaDo De sÃo Paulo e o MétoDo inglÊs
O latim faz parte de um ima- trado que realizamos na Unicamp reaDing latin: uM estuDo De caso.

36
In dubio
escolar
Batismo

pro reo
Vida

STOC
KXCH
NG

A expressão latina é uma das ba-


ses do Direito Penal e propõe que,
em caso de falta de provas ou dú-
vida, decida-se a favor do réu. E
se o réu for, justamente, o latim?
Por Mariana Hilgert

“V
iver honestamen- ceitos, que correspondem à época preliminar e obrigatória para que
te, não lesar nin- da Realeza (754 a.C – 509 a.C). alguém possa pronunciar-se com
guém, dar a cada Nesse período, o que valia mesmo autoridade sobre as obras clássicas
um o que lhe pertence”. Apesar eram os costumes da população. dos jurisperitos romanos”.
de simples e óbvias, estas três Foi para reorganizar essa condi-
ideias remetem a uma história ção que se instituiu a Lei das XII Interesse
bastante peculiar. Originalmente Tábuas. Como explica o histo- Mesmo não tendo a disciplina
publicadas em latim – honeste vi- riador Mario Curtis Giordani, na na sua grade curricular obrigató-
vere, alterum non laedere, suum obra História de Roma, ela teria ria, Misael Torquato de Souza,
cuique tribuere –, elas se referem sido escrita “com a finalidade de estudante da 5ª fase de Direito
aos preceitos de um dos maiores codificar o direito costumeiro, da Universidade Federal de Santa
legados deixados pelos antigos ro- impedindo as arbitrariedades dos Catarina (UFSC), fez questão de
manos: o Direito. patrícios contra os plebeus”. A aprender o idioma da civilização
A máxima foi apresentada partir disso, a organização jurídica romana – pela qual ele, aliás, nu-
no Institutas, manual destinado de Roma começa a tomar forma. tre grande interesse. “Entrei no
a estudantes de Direito organi- Até chegar às definições de Direito porque é uma produção
zado por Justiniano (482-565), hoje, o direito romano passou dos romanos”. Seu interesse pela
imperador que assumiu o Impé- por transformações e adaptações. língua começou antes mesmo da
rio Oriental anos após a queda Mesmo assim, ele sobreviveu universidade. Estudando-a, ele
de Roma (476). Ele exigiu que as como a maior fonte do sistema pretende, mais do que adquirir
ideias publicadas no seu guia fos- jurídico ocidental, regendo os um conhecimento, provocar uma
sem adicionadas, junto a outros principais conceitos das nossas re- mudança. “Eu pretendo utilizar o
trabalhos, ao Corpus Iuris Civilis. lações em sociedade. Para enten- latim para definir conceitos, para
rEVISTA lÍNGUA

A obra se opunha ao Corpus Iuris dê-los bem, é preciso se familiari- conceituar melhor, e trabalhar
Canonici, conjunto das primeiras zar com o latim, língua materna mais honestamente. Não é por
leis compiladas pela Igreja Cató- do direito que ainda se mantém reles capricho intelectual”, justi-
lica. viva nos tribunais e em textos ju- fica.
Mas foi bem antes de Justinia- rídicos. É o que afirmaVandick L. No artigo O Latim e outras di-
no que surgiram as bases iniciais da Nóbrega, no seu Metodologia ficuldades da linguagem forense,
do Direito Romano. Não há re- do latim (1972). “O conhecimen- Pedro Inácio da Silva também de-
gistro escrito dos primeiros con- to do latim é tão somente a fase fende o ensino do latim. Segundo
37
assim para evitar que futuros ad- romano. Por isso, acho que a for-
Lei das 12 Tábuas
vogados e juízes trabalhem com mação em Direito tinha que exi-
expressões as quais nem sequer gir uma boa formação em latim”,
Vida Escolar

entendem. “O que comumente defende.


ocorre é a repetição de expressões Enquanto a sua falta no ensi- Escritas por volta de 450 a.C.,
que se tornaram usuais no meio no provoca discussão entre edu- as Tábuas representam as primeiras
forense, sem o real domínio do cadores, o seu excesso no meio leis oficialmente registradas e pú-
seu significado, particularmente jurídico levanta polêmica, já que blicas – tanto que estavam expostas
em razão da supressão do ensino pode gerar um grave problema: a no Forum Romano.
do latim nos cursos de direito, incompreensão. Por causa disso, Os 12 temas sobre os quais os
língua em que foram escritas as o Código de Processo Civil de Por José ernesto
textos legislavam eram:De Vargas
linhas mestras do direito ociden- 1973 enxugou as expressões em-
tal, e que até hoje reverbera na pregadas em demasia pelo Código I De in jus vocando
linguagem forense”, analisa. anterior, de 1939, estabelecendo, Do chamamento a juízo
Quem trabalha no meio jurídi- também, a obrigatoriedade do II De judiciis
co e não possui um conhecimento uso da língua portuguesa em to- Das instâncias judiciárias
mínino do idioma, está mais sus- dos os atos e termos processuais. III De aere confesso rebusque jure
cetível a deslizes – especialmente judicatis
por se tratar de uma língua que Na prática Da execução em caso de confissão
não tem sequer falantes nativos Membro da Comissão de ou de condenação
vivos. Há muitas máximas e ci- Ensino Jurídico da Ordem dos IV De jure patrio
tações jurídicas de origem latina Advogados do Brasil (OAB) em Do pátrio poder
que se tornaram comuns e, por 2007, Paulo Roney Ávila Fa- V De haereditatibus et tutelis
isso, com mais chances de te- gundez acredita que a decisão Da tutela hereditária
rem seu e sentido e forma adul- expressa pelo Código remete ao VI De dominio et possessione
terados. Um dos exemplos é a momento contemporâneo do Di- Da propriedade e da posse
expressão data venia, que, como reito. “Seria uma necessidade do VII De jure aedium et agrorum
explica José Barbosa Moreira, na estudo do latim, muito embora Do direito relativo aos edifícios e às
obra A linguagem forense, “é uti- tenha havido uma redução dos terras
lizada em sinal de respeito, como vocábulos. Há alguns provérbios, VIII De delictis
licença à pessoa de quem se quer ditados e máximas que facilitam Dos delitos
divergir.” Mas se os romanos algumas coisas no Direito, mas, IX Do Direito Público
antigos escutassem as variações hoje, cada vez menos, se usa [o X De jure sacro
que ela já sofreu, chegando a se latim]”. Do direito sagrado
transformar em superlativos – Por já ter trabalhado na Co- XI Complementar
como em datissima venia e data missão de Ensino, ele reconhece XII Complementar
veníssima –, não se lembrariam que a questão do latim é muito
da carga semântica respeitosa da pouco discutida justamente por
expressão. causa da redução do seu uso. “E
Para evitar situações embara- até mesmo quando há o empre-
çosas causadas pelo desconheci- go, as pessoas acham estranho”, com o uso do latim nas missas.
mento, Maria Helena de Moura admite. A estranheza surge, es- Para ele, na celebração católica,
Neves, professora de Linguística pecialmente, daqueles que estão o idioma acobertaria “um misté-
da Universidade Estadual Paulista fora do contexto jurídico. O uso, rio que amplia a distância entre a
(UNESP – Campus Araraquara) aliás, de inúmeras expressões fé e o religioso; do mesmo modo,
e da Universidade Presbiteriana complicadas teria dado origem a entre o cidadão e a lei. Ou seja,
Mackenzie, apoia a implantação uma “língua” própria, compreen- o uso da linguagem rebuscada,
revista língua

de disciplinas de latim voltadas dida somente por aqueles que fa- incompreensível para a maio-
para esses estudantes. “Tem mui- zem parte do meio: o juridiquês. ria, seria também uma maneira
ta coisa ali que não dá para deco- O ex-presidente do Superior de demonstração de poder e de
rar e que é preciso saber, porque Tribunal de Justiça, Edson Vidi- manutenção do monopólio do
é tudo fundamentado no direito gal, chegou a comparar o jargão conhecimento”.
38
Articulando

Assassinato
Vida escolar

linguístico Por José ernesto De Vargas


Maria Helena De Moura neVes
Maria Helena De Moura

H
á várias maneiras de não caber dúvida de que língua competência linguística, ou seja,
discutir o conceito de viva é uma língua que está em a capacidade natural de produzir
língua morta. Existem uso, e que, a partir daí, até para linguagem ( “pode falar” uma lín-
as línguas que “morrem” porque poder responder às necessidades gua); porque ele tem o conheci-
nunca foram de grandes comuni- dos usuários, abriga variações e é mento de uma língua particular
dades e acabam circunscritas a um sujeita a mudanças com o devir historicamente inserida (“sabe
número tão diminuto de falantes do tempo. Se assim é, sânscrito, falar” uma língua); porque ele
que naturalmente chegam à ex- grego e latim não são línguas vi- tem uma situação de uso, ou seja,
tinção. Existem aquelas, porém, vas, e, na verdade, o argumento um evento comunicativo (“pro-
que foram línguas de dominação, de que o latim, por exemplo, está duz” discurso em uma língua).
e, implicadamente, foram línguas “vivo” no português, no italiano, Na verdade, do latim temos
de cultura, em relação às quais o no espanhol, no francês, etc. tem de dizer que não somente lhe fal-
processo que leva ao conceito de poesia mas não tem respaldo. ta o estatuto de língua oficial de
“morta”, mesmo que seja aceito, Por outro lado, pode-se ar- uma nação. Falta-lhe o estatuto
dificilmente envolve extinção. gumentar que cada uma dessas de língua cuja ativação se opere
Lembrem-se, no Oriente, o sâns- línguas está viva no uso que dela em um contexto de inserção na-
crito e o grego, e, no Ocidente, fazem determinados usuários: de tural de falantes pactuantes de
o latim, línguas que aí estão em um lado, por exemplo, leitores e uma atividade linguística exerci-
obras que são lidas, comentadas, estudiosos de Homero ou de Oví- da em contexto de inserção his-
discutidas e apreciadas, que aí es- dio, de outro lado, por exemplo, tórica comum.
tão em ritos consagrados, e que, comunidades religiosas, e para Entretanto, temos de con-
afinal, aí estão, modificadas, nas ilustrar aí está o latim no Vatica- vir que o rótulo “morta” para o
suas descendentes (o caso, por no, ou em ritos católicos, assim latim é extremamente infeliz. O
exemplo, das nossas línguas novi- como estão, por exemplo, o copta latim não é uma língua suscetível
latinas, ou neolatinas). e o aramaico em ritos de países a mudanças, mas também não é
A primeira discussão vai exa- orientais. Na verdade, de um uma língua enterrada e sepulta-
tamente nesse sentido: aceita-se ponto de vista científico, nada da junto com falantes derradeiros
a classificação de “mortas” para disso é “uso” linguístico, tópico que com ela sucumbiram no es-
estas últimas línguas tanto quan- que desenvolvo adiante. quecimento.
to para as línguas extintas, que se Outra questão pertinente na Opto, pois, por uma proposta
contam aos milhares? discussão é o fato de que tais lín- de que o eixo a ser estabelecido é
Todo conceito tem de ser guas não estão historicamente língua viva vérsus língua extinta,
rEVISTA lÍNGUA

discutido no universo em que inseridas, e lhes falta, pois, pelo o que leva à paradoxal conclusão
ele se insere, o que envolve um menos um dos três componentes de que, no caso, morta não é o
eixo de similaridade em que ele que Coseriu (1992) nos ensina a antônimo de viva. Se me permi-
revista língua

seja colocado para um contraste. considerar, quando ele explicita tem!


Assim, se, em princípio, o eixo a natureza da linguagem. Como
envolvido nesta discussão opõe ensina Coseriu, o homem “fala” MARIA HELENA DE MoURA NEVEs é ProFes-
tradicionalmente língua morta a (usa a linguagem) por estas razões sora De linguistica Da uniVersiDaDe Presbiteriana
língua viva. Em princípio, parece determinantes: porque ele tem a MacKenzie e Da unesP

39
Mutações da lín
Et cetera

As semelhanças le- em 146 a.C., a cultura desse país as evoluções fonéticas, a partir do
teve livre entrada no território século IX. As letras ele e ene, por
xicais não permitem conquistador. Muitas influências exemplo, caíram em desuso em
vieram dos escritores gregos e certas palavras latinas: diabolu
disfarçar que a língua sua literatura. Mas a maior parte (diabo), dolor (dor), luna (lua),
portuguesa é fruto dos vocábulos agregados ao la- tenere (ter), volare (voar). Tal
tim remete ao cotidiano do povo, transformação caracterizou o por-
das transformações como: aer (ar), amphora (ânfora), tuguês, diferenciando-o do latim e
e influências sofridas spathula (colher), gubernare (di- de outras línguas românicas – em
rigir um navio), oliva (azeitona), espanhol e francês, as consoantes
pelo latim durante sé- oleum (óleo), punire (punir) etc. permaneceram nos mesmos vocá-
culos As vogais e consoantes latinas bulos.
foram outro resquício do grego, A evolução de sons continuou
Por Mariana Hilgert cujo próprio alfabeto já havia sido diferenciando a língua portuguesa
transformado com base naquele das demais. As formas de pl, cl e

É
impossível afirmar quando usado pelos fenícios. fl , em palavras latinas, assumiram
foi que o latim deixou de ser Assim como os gregos, o povo uma nova roupagem: o ch. Os
latim para se tornar portu- etrusco, que povoava a região nor- exemplos são vários: pluvia (chu-
guês, francês, italiano, espanhol e te da Itália, também emprestou va), clamare (chamar), clavem
todas as suas demais línguas filhas. palavras ao latim. Cisterna, lan- (chave), plorare (chorar), plenus
O processo de mudança demorou terna, catena (corrente), persona (cheio), flamma (chama) etc. A
séculos e só ocorreu porque muda- (máscara de teatro; mais tarde, forma originalmente latina tam-
ram, também, os povos vizinhos, pessoa)e servus (servo) são algu- bém existe no português, indican-
os conquistadores, as necessidades mas das influências mais visíveis. do sinônimos, como em pluvial,
etc. Uma coisa, porém, é certa: o O gaulês, de origem céltica, fez clamar e plenitude.
latim evoluiu e deixou uma carga outros acréscimos, como em car- Muitas palavras da forma clás-
hereditária de vocábulos em cada rus (carroça de quatro rodas), bec- sica do latim perderam lugar para
um de seus descendentes. cus (bico), cambiare (trocar) etc. as mais populares, embora tenham
Cerca de 80% do léxico usado Todo esse léxico mesclado era sobrevivido em certos vocábulos.
pelos falantes de língua portugue- levado pelos soldados romanos Mar, por exemplo, era chamado
sa vem do latim. Muito desse total durante suas incursões pelo Im- de aequor, na versão mais culta,
é fruto de um período em que o pério. A província da Lusitania, ou mare, na mais comum. O pri-
idioma era falado pelos agriculto- região onde nasceu Portugal, não meiro modelo foi esquecido, como
res da região do Lácio – situada na resistiu ao idioma dos invasores, mostra a semelhança dos vocábu-
parte central da atual Itália –, por e foi somando as novas palavras los. Mas aquático, por exemplo,
volta do século VIII a.C. Mas as ao vocabulário que já possuía. As resistiu. Outro caso é o do animal
palavras dessa época não ficaram transformações lexicais foram ine- cavalo, dito equus e caballus. Pre-
REVISTA LÍNGUA

restritas ao meio rural (veja box). vitáveis, já que do século II a.C., dominou, no nosso vocabulário, a
Algumas perderam seu sentido ori- quando foi conquistado, até o sé- segunda forma, mais popular. Mas
ginal – que, hoje, passa desperce- culo VIII, o território português referente à primeira, tem-se equi-
bido – e tomaram outros rumos. sofreu invasões germânicas e, du- tação, que guarda a história no seu
O português também carrega, rante 500 anos, foi também ocu- étimo.
no seu léxico, marcas do grego, pado pelos árabes. O vocábulo étimo, por sua vez,
trazidas através do latim. Quando Uma das formas através da não veio do latim. Foi mais um em-
os romanos invadiram a Grécia, qual a mudança foi sentida foram préstimo do grego (étumus, verda-
40
Direto do campo

ngua EM LATIM

Cernere (verbo)
PRIMEIRO SENTIDO

peneirar
EM PORTUGUÊS

distinguir
deiro) que resistiu aos sé-
Legere (verbo) colher > legere oculis > ler
culos e às influências cul-
colher com os olhos
turais. No português, ela
é normalmente associada
Putare (verbo) podar contar
ao sufixo – também grego
– logia (estudo), dando ori-
Delirare (verbo) sair do sulco (do arado) delirar
gem à etimologia, ciência
responsável por pesquisar a
Rivalis (adjetivo) Quem tinha direito ao rival
histórias das palavras.
mesmo rivus, ou curso de água
Aos etimólogos cabe a
descoberta da língua. Fo-
Pauper (adjetivo) Referente aos produtos que pobre
ram eles que desvendaram
forneciam pouco
as transformações fonéticas
e a identificação das formas
Felix (adjetivo/antônimo Referente àquele que produz feliz
culta e popular do latim.
de pauper) (fértil); favorecido dos deuses
Eles descobriram, tam-
bém, que palavras distintas
Luxus (adjetivo) Em excesso na colheita; teve sempre luxo
(como desenhar, designar e
sentido pejorativo no latim
design) podem ter o mesmo
étimo (designare); que, se
Pagina (substantivo) Fileira de vinha que formava um página
terminadas em -us no latim,
retângulo >página do papiro> página
as palavras ficam com o fim
com uma coluna por folha
em -o (romanus – romano)
no português; se terminam
Versus (substantivo) A virada do arado no fim do campo> verso
em -bilis, viram -vel (per-
linha de escrita que se repete como
ceptibilis – perceptível); se
os sulcos no campo> verso poético
acabam em -tas, viram -
dade (caritas- caridade); se
em -ens, passam a finalizar
Fonte: A aventura das línguas no ocidente, de Henriette Walter - Ed. Mandarim, 1997
com -nte (gens – gente).
Saber de onde viriam as
palavras instigou Isidoro de
Sevilha, bispo da cidade es-
panhola e responsável por
descobertas na área duran-
te a Idade Média. Ele foi o
autor de Etymologiae, con-
junto de 20 livros, cada um hipóteses
representando uma área e fantasiosas,
as etimologias das palavras proble-
pertencentes a cada uma ma que
delas. acompa-
Muitas dessas descober- nha os
tas não tinham um emba- etimólogos STOC
KXCH
NG

samento científico – eram até hoje.


41
Onde está I.N.R.I.
Fixada na cruz de Cristo, a ex-

o latim?
pressão está em latim: Iesus
Nazarenus Rex Iudaeorum.
No latim, não havia a consoante
Et cetera

“j”. Em português, foi traduzida


por Jesus Nazareno, Rei dos Ju-
deus.

Camuflado em meio à língua portuguesa e


escondido entre palavras e expressões, o latim
é imperceptível para quem não o conhece. Mas
encontrá-lo perdido por aí não é tarefa difícil – só Ônibus
exige um pouco de atenção e curiosidade Veio da expressão latina
omnibus, que quer dizer
“para todos”.
POR MARIANA HILGERT INFOGRAFISTA: ÍTALO MENDONÇA ILUSTRADOR: EDISON PATTO

Armário
Do latim, armarium, que,
a principio, era o local onde
se guardavam armas. Mais
tarde, passou a ter o senti-
do atual, de guarda-roupa e
prateleira.

Homo Sapiens
Expressão que significa “homem que
sabe”. Desde 1758, quando foi men-
cionada pela primeira vez, a expres-
são é usada cientificamente, para
Moeda denominar o ser humano.
Na Roma antiga, as moedas PS.
eram fabricadas ao lado do tem-
plo da deusa Juno. Certa vez, os Abreviação de Post Scriptum,
gansos que ficavam ao redor de que significa, literalmente, “es-
seu templo teriam avisado, com crito depois”. É usada ao final
seus grasnados, aos romanos, de cartas ou documentos para
acerca de uma invasão dos gau- acrescentar uma informação.
leses. Como monere, em latim,
é advertir, um dos epítetos de
Juno passou a ser Moneta. Em ETC.
sua homenagem, as moedas co-
meçaram a ser assim chamadas, Abreviação de et cetera, que
originando também a palavra quer dizer “e as demais coisas”.
money, no inglês.
REVISTA LÍNGUA

Lápis
No latim, lapis signfica “pedra”.
Do italiano, teria agregado o sen-
tido de uma ferramenta que pos-
sui uma pedra com cor, o grafite.
Quarto Aedes aegypti Aranha
Ainda na época da antiga A palavra em latim aranea, que deu ori-
O popular mosquito da dengue tem a ori- gem à “aranha”, vem, na realidade, do
Roma, indicava o quarto (ori- gem do seu nome no grego e no latim. A
ginalmente, quartu) da casa grego arákne. Esse vocábulo, por sua vez,
palavra grega Aedes significa “odioso”, tem origem na mitologia grega. Aracne era
– no sentido numérico de ¼ enquanto aegypti, do latim, quer dizer
– onde se dormia. Os outros uma bordadeira que, com a sua arte, teria
“do Egito”. desafiado a deusa Atená (correspondente a
três aposentos eram a cozi-
nha e duas salas: a de visita Minerva, para os romanos). Tendo uma reles
e a de refeição. Banheiro, só humana feito trabalho tão belo, a deusa, fu-
o público. riosa, teria suspendido a moça no ar, trans-
formando-a numa aranha e condenando-a a
tecer pela eternidade.
Carpe Diem
Aparece no poema homônimo do
poeta romano Horácio, escrito no
século I a.C.. A tradução ainda
gera discussão, mas, em portu-
guês, sua versão mais comum é
“aproveite o dia”.
A.M. / P.M.

Trazidas pelo inglês, as expres-


sões estão em latim, indicando
o período anterior ao meio-dia Curriculum
(ante meridiem) e posterior
(post meridiem) Vitae
Literalmente, curriculum quer dizer
“corrida ou lugar onde se corre”,
enquanto vitae significa “da vida”.
Dessa soma, vem o sentido atual da
expressão, que indica o conjunto de
ações, estudos e trabalhos de uma
pessoa durante sua vida.

FAX
Fax veio do inglês, mas é, na realida-
Lente de, uma abreviação da expressão fac
Nos primórdios, a palavra significava simile, que quer dizer “faça de ma-
“lentilha”. Com o tempo, mudou de neira semelhante”.
sentido e, devido à sua forma, foi as-
sociada à lente dos óculos.

Óculos
Veio de oculu, que originou olho e
óculo, instrumento como uma luneta,
que auxilia na visão. Óculos é, ape-
nas, o plural, que deve sempre con- Álbum
cordar em número com o pronome: os
meus óculos e, não, o meu óculos.
A tábua branca sobre a qual
fixavam normas e atos do
governo romano era chama-
da de album. O motivo era,
justamente, a sua cor – em
latim, album também signifi-
Aquário ca “branco”. Com o tempo,
a palavra mudou seu senti-
do: foi nome de catálogo de
A princípio, servia para designar um santos, de livro no qual eram
tanque de água – palavra proveniente escritos ideias, passando a
do latim aqua. Apenas no século XIX designar, atualmente, um
é que o sentido dele passou a se rela- conjunto de elementos, seja
cionar a peixes. de música, de fotos etc.
Noções básicas da gramática latina

Para iniciantes
Por Mariana Hilgert
Et cetera

Como no português, as palavras no latim podem ser mes (adjetivos, numerais, pronomes e substantivos).As
invariáveis ou variáveis. Ao primeiro grupo pertencem peculiaridades da língua começam pela forma que essas
as conjunções, interjeições, preposições e a maioria dos palavras podem assumir dentro de um texto.
advérbios. Do segundo, fazem parte os verbos e os no- No latim, os nomes declinam. Isso quer dizer que

G
STOCKXCHN

ar
p a ra lig
m -
serve junção su
uanto njunções n
): e n q de c o ra s
s e
CARPE DIEM
o n j u nção eis, as co exemplo e c t a r as f in-
(c áv n bu
Dum tos invari Dum é um vel por co gula, atri
n s. á í r Ode (I, XI) Horácio, séc. I
m e õ e o n s a v
Ele oraç resp meir
ras e oral, la pri ntos.
palav tiva temp verso – pe e aos eve
na e eidad Tu ne quaesieris, scire nefas,
bordi as – nest ultan
sepa r a d
o de
s i m quem mihi, quem tibi
u m sentid Finem di dederint, Leuconoe,
do
Fugerit
(3ª conju
gação/ 3
nec Babylonios
pessoa d
rito do fu
o singula
r / preté
ª Tentaris numeros. Ut melius
turo): te
rá fugid
- quidquid erit pati!
o.
Loqui
mur ( Seu plures hiemes, seu tribuit
v
sente erb
do ind o depoent Jupiter ultimam,
Os ve icativo e/1ª p
rbo ): fa essoa Quae nunc oppositis debilitat
siva, m s depoente lamos do plu
a
guês, s exprimem êm uma ro
st ral/ pr
e- pumicibus mare
é um
podem
s
um se
n
upage
m Tyrrhenum, sapias, vina liques
home er compara tido de at de voz pas
tido d m via
j ado, e d o s com e iva. No Po - et spatio brevi
e ativa
. m que a strut
voz pa uras do tipo
rtu-
Spem longam reseces.
ssiva
tem s :
en-
Dum loquimur, fugerit inuida
Aetas: carpe diem, quam
minimum credula postero.
/ verbo transi-
Imperativo afirmativo
Carpe (3ª conjugação/ a.
do singular): aproveit Inuida (ad
tivo direto / 2ª pessoa ao s ve rbo s – não tem jetivo femin
ino triform
co nju ga çã o – fle xão referente gênero: inu
idus, a, um e (uma pa
A 3ª ão variáveis, ra cada
vo ga l tem áti ca , ma s possui vogais de ligaç joso )/ singular
/nominativ
uma cia - terminação o ): inve-
ctar o tema à desinên Os adjetiv
responsáveis por cone . Carpe está os qualifica
po e pessoa do verbo concordar m os subst
que indica número, tem antivos e
rEVISTA lÍNGUA

vo. Se estivesse com eles e devem


do imperativo afirmati se caso, in m gênero, nú
conjugado na forma rpis, sendo o i, uida conco mero e caso
. Nes-
2ª pe sso a do ind ica tivo presente, seria ca que se refe
re: feminin
rd a com aeta
s, substanti
na o, singular, vo a
.
uma vogal de ligação nominativo
.
eles podem tomar formas diferentes conforme a função Todas essas características são armazenadas numa
sintática que exercem – por isso que a posição deles na terminação específica ao fim da palavra. Por conseguir
frase não faz diferença. Existem, no total, seis formas di- resumir tanta informação em tão pouco espaço, a lín-
ferentes, todas possuindo correspondentes no português. gua latina é sintética - diferentemente do português, um
Cada uma delas é chamada de caso. Além da função, idioma analítico. Por isso que, em latim, é possível se di-
gênero (masculino, feminino e neutro) e número (plural zer multa paucis: muitas coisas em poucas palavras.
e singular) também fazem com que os vocábulos se mo- Abaixo, observe a análise sintática feita a partir do
difiquem. último trecho do texto de Horácio, Carpe Diem.
MARIANA HILGERT

quão
(adv érbio):
STOCKXCHNG
Quam

Credula (adjetivo/ feminino/


APROVEITA O DIA singular/ nominativo de cre
-
Tradução de Mauri Furlan dulus, a, um): crédula, fác
il
de acreditar
Tu não procures, conhecer não gular m
ascu-
deves, o fim que a mim, ivo/ sin
ação/ acusat
a ti concederam os deuses, ª declin de pa-
Die m ( 5
n o r n úmero ies
ó Leucone, nem experimentes os ia i o me s feminina. D
lino ): d nação possu de la bos
números babilônicos. A 5ª d
ecli
m a io r parte s ig n if icar am a
a is pode d
sendo entido
Melhor sofrer o que quer que seja! lavras, e s p e cial, po renciar é o s o será
aso ife ad
Seja muitos invernos, seja o último é um c s. O que irá d icar dia marc nitivo
os gên
e r o se in d . ge
O
que Júpiter concedeu, e que t exto – a sculino e,
n o io, m ndo o
palavra caso contrár ação –ei, se
agora o mar Tirreno quebra con- o;
feminin ado pela ter
min
io , é encont
r do
a
á r
tra os rochedos, sejas sábia, será m
arc
ática. N
o dicio
n
t e m
filtres os vinhos, ga
sua vo , ei.
l
ies
e pelo curto espaço de tempo como d
suprimas qualquer
Poste
longa esperança. ro
mascu (ablativo
Enquanto falamos, o tempo l
diem/ ino,por r
/ sin
adjeti eferên gular/
invejoso foge: aproveita o dia, um):
qu
vo de
p
cia a
muito pouco crédula no que virá. rior, s e vem de osterus, a
eguin pois, ,
te. poste
-

Aetas (3ª declina


ção/ nominativo/
er- A 3ª declinação singular / feminin
o sup u- é a mais complex o): tempo
–é ne tivos possuem a a e irregular. Em co
um ênero ruus, terminação is do mum, seus substa
i m g vogal temática qu genitivo. Cada de n-
Min o no tivo pa tivo e, ligada ao radica cli nação possui um
a
v la l da palavra, dará
lati o adje super re- palavra. Mas a 3ª
é conhecida com origem ao tema
da
d r o co nsonantal – seus
tro m. O e se tros possuem vogal te
mática, com exce vocábulos não
u
a, o p o d ou Para saber a qual ção de um pequ
i n e n tre vérbio declinação perte eno grupo de vo
gal i.
lat do, lo ad m sua forma no ge nce uma palavra,
a imu nitivo. Por isso qu é preciso descob
forç os, pe min aetas, atis (form e, no dicionário,
ela aparece assim
rir
d m a no nominativo,
mo : qua co. seguido de seu ge :
m u nitivo).
qua ito po
u
-m
Em busca do
Et cetera

vocábulo perdido
Achar qualquer palavra num di- dificuldades comuns. “As soluções encontradas pe-
los dicionaristas de tradição impõem inúmeras bar-
cionário latino - português exi- reiras à consulta, dificultando desde a localização do
verbete, até a compreensão do significado do item”.
ge, mais do que curiosidade, um Manejar bem o dicionário é, por isso, premissa para
bom conhecimento de gramática compreender um texto em latim. Ou chegar perto
disso.
das duas línguas A saga para encontrar um vocábulo no dicionário
Por Mariana Hilgert Latim-Português começa pela identificação da pala-
vra. Ainda usando o poema de Horácio, peguemos

O
s registros escritos e as obras literárias de au- o substantivo diem para dar início à procura no Di-
tores originalmente latinos são a única fon- cionário escolar latino português (6ª edição – 1992),
te de informação sobre a estrutura da língua de Ernesto Faria.
dos antigos romanos. Para compreender tais textos,
o dicionário bilíngue é uma ferramenta imprescindí-
vel, tanto para tradutores profissionais, quanto para
estudantes iniciantes. O problema é quando ele se
torna, em vez de solução, um obstáculo.
Com o intuito de diagnosticar as maiores dificul-
dades que os dicionários criam para alunos iniciantes
da língua, Giovanna Longo, da Universidade Esta-
dual Paulista (Unesp-Araquara) defendeu, em 2006,
a dissertação Ensino de latim – problemas linguísti-
cos e uso do dicionário. Segundo a pesquisadora, a
questão da língua clássica é bastante peculiar: “Para
quem está diante de um dicionário de uma língua
antiga como latim (...), todas as informações que
visam à produção de discursos na língua, geralmen-
te fornecidas pelos dicionários bilíngues, não têm a
mesma relevância que no dicionário de um idioma
moderno”, explica.
A maior diferença se deve ao fato de o latim ser
uma língua flexional e, também, por ter sido usada
há mais de 2 mil anos. “Uma descrição linguística do
idioma passa a exigir, desse tipo de obra [os dicioná-
rios], soluções que de algum modo permitam reduzir
as distâncias estabelecidas pelas diferenças linguís-
ticas e culturais existentes entre essa língua antiga
e os idiomas modernos”, explica Longo. Mas não é
bem isso o que acontece.
Como todos os dicionários disponíveis hoje foram
elaborados de forma padrão, todos eles apresentam
46
Primeiro passo Segundo passo

Se procurarmos pela palavra diem (abaixo) no dicioná- No dicionário, um substantivo sempre vai estar na sua
rio, não a encontraremos, o que denuncia a sua forma decli- forma de nominativo, seguido da terminação de genitivo.
nada . Para descobrirmos a qual declinação ela pertence, é No caso de diem, não é possível dizer qual seria a forma de
preciso verificar a sua função sintática. Como complemen- nominativo, se ele for de 3ª declinação, pois há variações.
to direto do verbo carpe (página seguinte), que quer dizer Caso seja de 5ª, terá a forma dies. Observe a tabela na
aproveitar, conjugado na segunda pessoa do singular, do página seguinte.
imperativo afirmativo, ela será um objeto direto, correspon-
dendo, no latim, ao caso acusativo. Com base na tabela de Observação: Para falantes de línguas neolatinas, a iden-
declinações, vemos que duas declinações têm terminação tificação do nominativo é mais fácil em virtude da seme-
-em no seu acusativo: a 3ª e a 5ª. lhança que há entre os vocábulos dos idiomas. Como lem-
bra a pesquisadora, “é no léxico que se reflete, de maneira
Observação: Longo acredita que “a baixa probabilidade mais expressiva, a história externa de uma língua, isto é, a
de correspondência entre a variante encontrada no texto, história de seus contatos culturais”.
que motiva a busca, e aquela pela qual há de ser procura-
da, é o grande obstáculo que se impõe à consulta”. Para
a pesquisadora, a superação dessa barreira está ligada ao
processo de aprendizado, demandando tempo.

No dicion
ári
sentam d o, os nomes apre-
uas form
1. dies = as:
nominati
2. diei = v o
genitivo
(ei é a m
arca do g
enitivo)

STOCKXCHNG
Terceiro passo Quarto passo

Indo direto ao dicionário, encontraremos a palavra dies, Depois de encontrar a palavra, é preciso entender o seu
ei. Sabemos agora, que ela pertence à 5ª declinação, pelo significado dentro do contexto. O maior problema com re-
seu genitivo. Mas se tivéssemos uma palavra já no genitivo lação à palavra diem diz respeito ao gênero, que pode ser
Et cetera

e quiséssemos descobrir a sua forma no nominativo, seria masculino ou feminino, conforme o sentido da frase. Mas,
preciso identificar o tema da palavra. para a tradução, o dicionário apresenta sinônimos seme-
Formado pela vogal temática, diferente para cada uma lhantes, o que não dificulta muito a compreensão.
das declinações, e pelo radical, que sempre vai pertencer
ao nome, o tema permite perceber que a irregularidade das Observação: No caso do verbo carpo, a situação é ou-
palavras é só aparente, já que, por trás, há uma estrutura tra. Mauri Furlan, tradutor do poema acima, optou pelo
solidificada. sentido de aproveitar. Embora questionado, Furlan justifica
Para encontrar o tema, a palavra deve ser colocada no sua escolha. “Traduzir é interpretar. Se você for traduzir lite-
genitivo plural. Dies, por exemplo, viraria dierum. A partir ralmente, você vai produzir um texto incompreensível”.
disso, se retira a desinência do caso e da declinação (-rum Realmente, se a palavra for versada para o português
= genitivo da 5ª). Temos, assim, die (radical di + vogal te- a partir de algum dos significados apresentados pelo dicio-
mática e), base da palavra que, independente da forma que nário, a frase ficaria sem sentido. Afinal, entre colher, arran-
essa tomar, estará sempre presente. car, consumir e censurar – algumas das opções dadas – há
muita diferença. Por essa razão, Longo questiona: “Como é
Observação: Quando se vai em busca de outras formas possível, através da leitura do texto, garantir um melhor en-
que não o nominativo, pode ocorrer uma confusão por cau- tendimento daquela civilização antiga, se o que se encon-
sa dos cortes da palavra. No caso de dies, -ei, um estudante tra no dicionário é uma lista numerosa de sinônimos que
iniciante poderá pensar que a forma de genitivo é diesei. parece em nada se comprometerem com a cultura do povo
Com os verbos, a confusão também pode ocorrer. No dicio- cujas experiências foram expressas através da língua?”.
nário, eles são sempre apresentados na forma de primeira
pessoa do singular, mas, na tradução, o sinônimo é dado a
partir do infinitivo, como no caso do verbo diffamo, encon-
trado no dicionário logo abaixo de dies.

Neste dic
ion
apresenta ário, os verbos s
1 a pessoa os de cinco form ão
d
2 a pessoa Pres. Indic.: carp as:
Infinitivo: Pres. Indic.: carp o
Pretérito carpere is
Supino: c Perfeito: carpsi
arptum

O dicioná
rio apres
bém, sina enta, tam
is -
braquia (˘ diacríticos:
vogal bre ), in dicando
uma
macro (- ve;
uma vog ), in d ic ando
de uma bal longa (dois tem
reve) pos

48
Gramática de bolso
O latim exige daquele que
o estuda muita atenção às Para declinar
regras gramaticais. Por
isso, selecionamos e re- 1a declinação
Singular Plural
sumimos alguns dos seus
Nominativo -a -ae
elementos mais importan- Genitivo -ae -arum
tes numa só página. Re- Acusativo -am -as
Dativo -ae -is (-abus)
corte-a e leve-a com você Ablativo -a -is (-abus)
Por Mariana Hilgert Vocativo -a - ae
2a declinação
Nominativo -us, -er, -ir/ -um -i/ -a
Genitivo -i -orum
Acusativo -um -os/ -a
Dativo -o -is
Para identificar Ablativo -o -is
Vocativo -e, -er, -ir/ -um -i/ -a
3a declinação
•Ausência de artigos Nominativo variável -es (-is) -a (-ia)
•Três gêneros: masculino, feminino e
Genitivo -is -um (ium)
neutro.
Acusativo -em (-im)/ variável - es (is)/ a (-ia)
•Numa frase, as palavras podem mu-
dar de posição, já que o sentido se dá Dativo -i -ibus
por causa das terminações e não pela Ablativo -e (-i) -ibus
função dos vocábulos, como no portu- Vocativo variável -es (-is)/ -a (-ia)
guês. 4a declinação
•As palavras podem tomar formas di-
Nominativo -us/ -u -us/ -ua
ferentes. O conjunto dessas variações é
chamado de declinação. Genitivo -us -uum
•O latim tem cinco declinações. Acusativo -um/ -u -us/ -ua
•Cada declinação possui seis casos, Dativo -ui/ -u -ibus (-ubus)
com correspondências no português: Ablativo -u -ibus (-ubus)
nominativo (sujeito) acusativo (objeto Vocativo -us/ -u -us/ ua
direto), genitivo (complemento nomi-
5a declinação
nal), dativo (objeto indireto), ablativo
(complemento verbal) e vocativo (cha- Nominativo -es -es
mamento). Genitivo -ei -erum
revista língua

Acusativo -em -es


Fonte (Box e Tabela): Mauri Furlan Dativo -ei -ebus
- Legenda Roma, Universidade Fe- Ablativo -e -ebus
deral de Santa Catarina/2008 Vocativo -es -es
revista língua
Gramática de bolso
Dobre aqui

L NGUA
Um presente de
portuguesa

Especial Latim
Dobre aqui
Articulando

O latim e
Et cetera

suas filhas Por José Ernesto de Vargas


Maria Helena de Moura
José Luiz Fiorin

A
s línguas românicas ou conjunto de variedades popu- social independente de Roma e,
neolatinas são dez: por- lares, utilizadas na conversação depois da invasão dos chamados
tuguês, espanhol, ca- corrente, na esfera familiar. O la- bárbaros, criam-se reinos germâ-
talão, francês, provençal, sardo, tim vulgar, sofrendo menos pres- nicos independentes. Quando as
reto-românico, italiano, dalmá- sões homogeneizadoras, era mais diferenças no latim falado nas di-
tico (hoje já extinto) e romeno. suscetível de inovações. Todas as versas províncias se tornam sig-
Os idiomas românicos represen- línguas variam de região para re- nificativas, estamos em presença
tam uma etapa qualitativamente gião, de grupo social para grupo das línguas românicas.
nova do latim. As transformações social, de geração para geração Quando essas línguas subs-
que levaram ao aparecimento e, por isso, todas mudam. Além tituíram o latim? Não se pode
das línguas neolatinas se deram disso, houve a ação do substrato precisar com exatidão, porque as
paulatinamente. sobre o latim, ou seja, das línguas mudanças linguísticas são con-
O latim pertence à grande fa- das populações que adotavam tínuas. Sabe-se, porém, que isso
mília das línguas indo-europeias. o latim, assim como acontece, deve ter ocorrido por volta dos
As conquistas romanas, ao lon- quando aprendemos uma nova séculos VIII e IX.
go de três séculos, converteram língua e a língua que usamos ha- Inúmeras classificações
a língua de Roma em língua ofi- bitualmente interfere na língua das línguas românicas foram fei-
cial de um vasto império. No en- que adquirimos mais tarde. tas, com base em dois critérios:
tanto, o domínio militar não se A evolução interna do latim as semelhanças linguísticas e
confunde necessariamente com vulgar e a ação do substrato fo- a distribuição geográfica. Para
a romanização linguística, que ram agindo no sentido de uma classificar línguas, o melhor é
só ocorreu com a implantação dialetação (criação de variedades o primeiro, baseado em identi-
do latim dos centros urbanos às regionais) da língua de Roma. No dades e diferenças de natureza
localidades rurais. entanto, enquanto se conservou estrutural. Por isso, parece mais
Ao exército seguiam mer- a unidade econômica, política e acertado dispor as línguas româ-
cadores, funcionários, coloni- administrativa do império, houve nicas em dois grupos: o oriental
zadores. Todos falavam latim uma relativa unidade linguística. (romeno, dalmático e italiano)
e impunham-no às populações Quando se rompe a organização e o ocidental (todos os demais
dominadas: as transações econô- político-social, que culmina com idiomas neolatinos).
micas e os atos da administração a queda do império romano (em
REVISTA LÍNGUA

se faziam em latim, jovens eram 476 no Ocidente e em 610 no


incorporados às legiões romanas Oriente), os fatores de unificação
e lá se valiam do latim para a do latim vulgar se enfraquecem, e
revista língua

comunicação... O latim que fala- se multiplicam e se fortalecem os


vam, no entanto, não era o latim elementos de diversificação. Di-
clássico, língua da literatura, do minuem as influências exercidas
José LUIZ FIORIN é professor de Linguistica
senado, da escola, da adminis- pelo centro do império sobre sua da Usp e autor do livro Em Busca do Sentido:
tração, etc., mas o latim vulgar, periferia, organiza-se uma vida Estudos Discursivos

51
STOCKXCHNG

Presente
Et cetera

de gregos
A literatura romana cial, de inspiração e molde para as cidade de
obras latinas. alguns seja
deve muito de seu es- Dizer que os romanos segui- contestada.
ram a tendência literária grega Dentre eles,
tilo, história e propa- não quer dizer, para o historiador A Marmita (em latim,
gação à influência da Mario Curtis Giordani, que eles a Aulularia) é um dos
copiaram. “[Eles] não só assimila- mais conhecidos – não
cultura helênica ram as obras literárias gregas, mas tanto pela sua história,
Por Mariana Hilgert souberam dar-lhes um cunho pró- mas pela repercussão
prio de um caráter nacional”, ob- que teve. Jean-Bap-

C
omo língua rústica que era serva o autor de História de Roma tiste Poquelin, sob o
nos primórdios de Roma, (1979). Uma das marcas desse na- pseudônimo de Mo-
o latim, nas suas primei- cionalismo foi a sátira, classificada lière, escreveu a obra
ras manifestações escritas, nada por Lucilius (180-103 a.C.), seu O Avarento (1668) a
tinha de literário. Representado criador, como um gênero original partir daquela de Plauto. Não foi o
em inscrições antigas, algumas e capaz de se adaptar a uma diver- único – no Brasil, Ariano Suassu-
remontando ao século VI a.C., sidade de assuntos. na fez de A Marmita, uma inspira-
foi útil, apenas, a pesquisas filoló- Nas cerca de 30 obras que pro- ção para sua cômica peça O Santo
gicas e linguísticas. Somente com duziu, o autor imprimiu sua von- e a Porca.
a conquista de Tarento (272 a.C.) tade de criticar e ridicularizar a Os textos de Plauto também
– centro helênico situado ao sul sociedade, as coisas e as pessoas repercutiram nos estudos do latim
da Península Itálica – pelo Impé- da época – temática inexistente por serem uma das poucas fontes
rio Romano, é que nasce uma li- entre as produções, até então. da versão popular – ou vulgar, por
teratura de nome latino, com jeito Mas antes mesmo do nasci- ser falado pelo vulgus (povo) – do
grego e precocemente desenvolvi- mento de Lucilius, outros autores idioma. Mas a literatura latina, na
da. já tentavam marcar suas obras sua forma preponderante, se vin-
A primeira obra efetivamente com as peculiaridades do povo la- cula mais ao latim erudito, clás-
latina foi uma tradução – feita, tino. Autor de comédias teatrais, sico, em que forma e estética são
ironicamente, por um grego. Ven- Plauto (250? – 184? a.C.) foi um importantes para a construção do
dido como escravo aos romanos, deles. Apesar de sempre ambien- texto. Seu ápice se deu na época
rEVISTA lÍNGUA

Livio Andronico traduziu o texto tar suas histórias e temáticas em em que foram escritos os registros
de Homero, Odisseia, para o la- cenários gregos, ele insere divin- históricos mais significativos do
tim, abrindo caminho para outros dades latinas nos seus textos e Império.
autores. Todos foram influencia- mescla os nomes gregos dos per- Como representante desse pe-
dos pela Poesia, Epopeia e pelo sonagens com características bem ríodo, Julio César (100-44 a.C.)
Drama, gêneros literários já bem típicas dos romanos. deixou um grande legado de obras
desenvolvidos na terra vizinha e Cem textos são atribuídos ao de caráter histórico. Como fruto
que serviram, nesse período ini- comediógrafo, embora a vera- da própria experiência que teve ao
52
Mitologia romana

Uma das maiores influências da cultura he-


lênica na literatura de Roma foi a mitologia. Os
mitos gregos foram “importados”, ganhando
novos nomes e ingressando nas histórias e no
imaginário popular.

NA GRÉCIA EM ROMA

Afrodite Vênus
Deusa da beleza

Apolo Sol
Deus da juventude

Ares Marte
Deus da guerra

Ártemis DIana
Deusa da caça

Atena Minerva
Deusa da sabedoria

Cronos Saturno
Deus do tempo

Deméter Ceres
Deusa da fertilidade

Dionísio Baco
Deus do vinho

liderar as tropas romanas du- jetivo de persuadir. As 56 obras Eros Cupido


rante as conquistas territo- que sobreviveram até hoje são Deus do amor
riais, César escreveu Comen- referência de uma literatura
tários sobre a guerra da Gália, latina madura e de um latim Hades Plutão
compêndio de oito livros, e no ápice da sua pureza. Deus do mundo dos
Comentários sobre a guerra Poucos anos depois de Cíce- mortos
civil, composto por três obras. ro, a literatura latina começa a
A morte de César se deu rumar para um fim – apesar do Hera Juno
um ano antes à de outro gran- surgimento de novos e reno- Deusa do matrimônio
de representante da época. mados autores. O paganismo e do parto
Marcus Tullius Cicero (106- que influenciava as obras vai
43 a.C.) ou apenas, Cícero, cedendo lugar ao cristianismo, Posêidon Netuno
despontou em Roma como os temas ficcionais se tornam Deus dos mares
orador. Seus discursos eram cada vez mais recorrentes, e os
marcados por uma linguagem vestígios literários ficam à es- Zeus Júpiter
excessivamente pomposa, em- pera de um novo processo de Pai dos deuses e mortais
bora sensível e com o claro ob- reconquista: a tradução.
Fonte: O livro completo da Mitologia Clássi-
ca, de Lesley Bolton - Ed. Madras, 2002
Para evitar
Et cetera

traições
Diferente de qual- lan, tradutor e professor de Lite- O berço principal do primeiro
ratura e Língua Latina da Univer- grupo é, segundo ele, a Universi-
quer outra língua, o sidade Federal de Santa Catarina dade de São Paulo (USP), através
latim não possui mais (UFSC).“Não basta o conheci- do Curso de Pós-Graduação em
mento da língua. O tradutor tem Letras Clássicas. Desde que foi
autores nativos vivos. que conhecer a matéria que traduz criado, no início da década de 70,
e ter a habilidade de expressar o o curso tem formado tradutores
Por isso, a sua tradu- texto original, com arte, com legi- que continuam preenchendo as
ção exige, além de bilidade, tentando reproduzir to- prateleiras de bibliotecas com ver-
dos os valores estéticos e de con- sões em português de César, Cíce-
conhecimento, muito teúdo que estão presentes”. ro, Plínio, Plauto etc.
cuidado A grande diferença entre um Uma característica dos tradu-
tradutor de alemão, por exemplo, tores acadêmicos é, como explica
Por Mariana Hilgert e um de latim, é que, enquanto o Queriquelli, “buscar ao máxi-
idioma germânico sofre transfor- mo uma equivalência na língua-

P
ouco adiantaria ter obras mações por estar vivo e em mo- alvo das características formais
de Plauto e Cícero em vimento, a língua dos romanos e contextuais do texto na língua
mãos se não pudéssemos não se modifica mais. Isso também fonte”. Por isso, nas obras tradu-
compreendê-las. E pouco se com- significa que não surgirão mais au- zidas por este tipo de tradutor,
preenderia do mundo de hoje se tores latinos com o tempo. Já se os textos são complexos e
não fossem estas obras. É justa- sabe o que precisa ser traduzido. oferecem, normalmente,
mente esta a função do tradutor: O problema é saber como e quem notas de ro-
STOCKXCHN
permitir que a comunicação entre irá fazê-lo. dapé, G

culturas e povos, mesmo que sécu- Durante a 2ª Jornada de Pes-


los de história os separem, acon- quisa Literatura Traduzida, rea-
teça. lizada em 2005, na UFSC, Luiz
A necessidade de profissionais Henrique Queriquelli analisou o
nesta área surgiu com o Renasci- perfil dos tradutores brasileiros
mento (1300-1650), período de de latim, que, segundo ele, é
transformações marcantes na ci- bastante heterogêneo, es-
vilização europeia, como a reva- pecialmente por causa
lorização das línguas nacionais. O da lacuna de estudos
latim, apesar de ainda continuar da língua latina
sendo usado por alguns autores no país. Den-
(veja box), começa a ser visto tro desse
como um idioma estrangeiro e vai grupo, os
perdendo seu espaço. que mais
Com o tempo, a tradução passa se desta-
a ser uma tarefa que exige não só cam são
competência, mas, também, muito os acadê-
domínio da realidade sobre a qual micos e os
se traduz, como afirma Mauri Fur- literatos.
54
comentando o porquê de certas res acadêmicos. É o estilo do tex- possibilidade da formação de tra-
traduções. to traduzido que distingue os dois dutores”, comenta, criticando a
Além de integrar o corpo docen- grupos. Analisando a tradução da medida do Ministério de Educação
te da Universidade de São Paulo obra Satyrikon, de Petrônio, feita e Cultura, que deixou, às universi-
(USP), Zélia de Almeida Cardoso é pelo dramaturgo e escritor Paulo dades, a decisão de adotar, ou não,
reconhecida por Queriquelli como Leminski, Queriquelli aponta as o Latim dentro dos currículos de
uma profissional que se encaixa marcas de liberdade desse autor. Letras.
no perfil acadêmico. Tradutora de O próprio Leminski admite, ao fim No caso da UFSC, há estudan-
obras como Troades (As Troianas), de sua obra, que “entre trair Petrô- tes no quinto semestre de latim
de Sêneca, Cardoso conhece bem nio e trair os vivos, escolhi trair os – embora seja obrigatório, somen-
as dificuldades daqueles que tra- dois, único modo de não trair nin- te, até o terceiro.
PorPor
Joséver queDeexis-
ernesto Vargas
balham com o latim como a língua guém”. te um interesse, Furlan
Maria Haposta nooura
elena De M

de partida. “Não é fácil, realmente, Apesar do pouco incentivo dado potencial dos alunos. “Eu tento
traduzir bem um texto latino, pe- à área, muito já foi feito pela tradu- estimulá-los. Eu já estou cultivan-
netrar em seu sentido profundo, ção dos clássicos latinos no Brasil. do uns futuros tradutores e tenho
descobrir-lhe as nuanças, compre- “A gente pode ter uma postura de a certeza de que algum desses vai
endê-lo, enfim, e transformá-lo em se orgulhar”, revela Furlan. “Mas a acabar se envolvendo a ponto de
outro texto, de outra língua, sem gente não pode se acomodar”. Para traduzir. De um grupo grande que
danificar suas especificidades”, ob- ele, o estudo do latim nas univer- começa, acaba ficando uns pou-
serva. sidades ainda é uma grande por- cos que vão em frente. E são esses
As dificuldades do outro grupo, ta para a formação de tradutores. poucos que vão acabar traduzindo,
os literatos, não diferem muito da- “Quando o MEC elimina a obriga- retraduzindo e melhorando as tra-
quelas enfrentadas pelos traduto- toriedade, ele elimina, também, a duções”.

A tradição do latim na escrita

Muitos autores continuaram fazendo uso do latim, mesmo quando as línguas orais já eram outras. Confira

Dante Alighieri (1265-1321): escreveu, em latim, De vulgari eloquentia, primeiro livro a tratar do vínculo entre
os idiomas românicos. A Divina Comédia, por sua vez, foi toda escrita em toscano.

Erasmo de Roterdã (1467-1536): assinando como Desiderius Erasmus Roterodamus,


o autor redigiu toda sua obra no idioma dos antigos romanos.

Nicolau Copérnico (1473-1543): revolucionou os estudos astronômicos com a teoria


do movimento duplo dos planetas sobre si e ao redor do sol. Muitas de suas criações,
deixou em latim.

René Descartes (1596-1650): os primeiros livros do filósofo e matemático foram redigidos


em latim.

Jean Jaurès (1859-1914): a tese do político francês, defendida na Sorbonne no fim do século XIX,
foi toda em latim.
revista língua

Jacques Derrida (1930-2004): ao ser recebido como Doutor Honoris Causa na Universidade de Oxford, o
filósofo francês teve de escrever seu discurso em latim.

Fonte: A aventura das línguas no ocidente, de Henriette Walter - Ed. Mandarim, 1997
55
O latim STOCKXCH
Et cetera

NG

conectado
Através da rede mundial de computado-
res, é possível perceber que o estudo e
o interesse pelo latim ainda vivem
Por Mariana Hilgert

C
omo língua materna de um ele foi criado com o por dos clássicos da literatura
povo que viveu há mais de intuito de promover latina”, enumera Pita.
dois mil anos, o latim pare- o idioma, se valen- Aprender latim via internet
ce inútil e fora de moda. Por que do, especialmente, é algo viável, se isso depender
será, então, que o próprio Google, de listas de discus- da quantidade de material dis-
ícone de uma geração conectada, são. Fala-se de tudo ponibilizado online. Além dos
já tem sua versão latina? Acesse e sobre tudo. A úni- sites que permitem entrar em
www.google.com/intl/la/ e clique ca exigência é que as contato com pesquisadores do
em Explorare Googles ope para informações sejam mundo inteiro, é possível estudar
descobrir. sempre acrescentadas a gramática e os textos a partir de
A palavra latin gera, no maior em latim, como adverte a Regula métodos de ensinos pré-defini-
site de buscas da rede, 360 mi- (–mentação!) do site. dos. Dicionários on-line também
lhões de resultados. É ali, entre Qualquer um pode entrar no não faltam: alguns possibilitam o
tópicos e links, que o latim vive. grupo. Basta enviar um email para acesso virtual e, outros, já vêm em
E vive tanto que levou o pesqui- listserv@man.torun.pl, com o versão PDF, podendo ser arquiva-
sador Luiz Fernando Dias Pita, nome numa versão latinizada. dos no computador.
da Universidade do Grande Rio Alguns exemplos estão na lis- Do ano em que escreveu o ar-
(Unigranrio), a escrever, em 2001, ta dos integrantes do grupo, que tigo até 2009, Pita analisa de for-
um artigo sobre o assunto. já passam de 500: Aberlardo vira ma positiva a evolução da internet
No texto, intitulado “Latim Abelardus, Dionísio passa a ser como fonte de informação. Para
e Esperanto, via Internet”, Pita Dionysius, Marcos vira Marcus, ele, “[foi] o surgimento dos sites
analisa como grupos linguísticos Felipe, Phillipus e assim por dian- de relacionamento o fator que
REVISTA LÍNGUA

minoritários fazem uso das ferra- te. mais alavancou o agrupamento


mentas virtuais para sobreviver. Mas o Grex Latine não é um de pessoas interessadas no latim
No caso do latim, a criação de exemplar único. “Há, em rede, di- - e no grego, no sânscrito etc.”. O
sites de debate é uma das estra- versos métodos de Latim com li- problema seria o reconhecimento
tégias mais recorrentes. O gru- vre distribuição, além de cursos de desse estudo pelos profissionais da
po Grex Latine Loquentium é o língua latina oferecidos segundo área. “O meio acadêmico vê com
maior exemplo online. Reunindo as mais diferentes metodologias. muita desconfiança o ensino a dis-
todos os tipos de latinistas – ama- Há também verdadeiras bibliote- tância – situação em que o ensino
dores, estudantes e profissionais –, cas virtuais, de onde se pode dis- do latim se inseriria”. Essa seria
56
Para navegar

Dos links rastreados pelo Google, alguns que podem ser úteis àqueles que querem se aventurar pelo latim:

Latin Dictionary and Grammar Aid YLE Radio 1 Radio Bremen


Idioma: inglês. Idioma: latim. Idioma: alemão.
Endereço: archives.nd.edu/latgramm.htm Endereço: /www.yleradio1.fi/nuntii/ Endereço: radiobremen.de/nachrichten/la-
tein/
Dicionário escolar Latim- Português Grex Latine Loquentium
Idioma: português. Idioma: latim. Latin Background Studies
Endereço:dominiopublico.gov.br/downlo- Endereço: alcuinus.net/GLL/ Idioma do site: inglês.
ad/texto/me001612.pdf Endereço:community.middlebury.edu/
Vicipaedia
The Latin Library Idioma:latim. The World of Live Latin:
Idioma : inglês. Endereço: la.wikipedia.org/wiki/Pagi- Idioma: inglês.
Endereço: thelatinlibrary.com/ na_prima Endereço:.latinitatis.com/latinitas/

uma das razões que teria impedido, 26 mil artigos encontram-se disponí- como Artes, Cultura, His-
segundo o pesquisador, o “casamen- veis numa versão latinizada da Wiki- tória, Opinião e até Mangá,
to” entre o meio acadêmico e o ensi- pedia – ou melhor, Vicipaedia – des- histórias em quadrinho ja-
no de latim”. de 2002. ponesas. Tudo, sem exce-
Outro empecilho, referente à O site do Vaticano, local onde o ção, em latim.
questão de aprendizagem, pode ser o latim ainda é reconhecidamente ofi-
próprio idioma do interessado, já que cial, também inaugurou, em 2008,
NG
STOCKXCH

grande parte dos documentos dispo- uma seção intitulada Sancta


níveis na rede está em inglês. Fran- Sedes. Nela, foram dispo-
cês, alemão e italiano são línguas que nibilizados textos religiosos
também possuem bastante material. e de papas anteriores na
Mas, em português, ainda não exis- língua, que entra no rol das
tem muitas opções. já existentes no site: inglês,
A riqueza de métodos na internet francês, alemão, italiano, por-
também reforça a ideia de que não tuguês e espanhol.
foi o latim que morreu, mas, sim, as Para praticar a habilidade
técnicas anciãs usadas para ensiná- da escuta, há quem acompanhe
lo. Como explica Pita, “através da in- a transmissão semanal Nuntii
ternet pôde esse idioma não apenas Latini. Produzido na Finlân-
integrar seus falantes, mas também dia, o noticiário abrange uma
promover a renovação das práticas variedade de temas, adaptando
pedagógicas a ele relacionadas”. Pela ao latim o vocabulário que, na
forma como é preservado e pratica- época dos romanos, não exis-
do, ele acredita, também, que a lín- tia. Com o mesmo intuito, a
gua dos romanos pode ser classifica- rádio alemã Bremen produz
da como “língua artificial”. um programa com as principais
revista língua

chamadas do mês.
Na rede Já para aprimorar o vocabulá-
Encontrar um site que disponibi- rio, há, na rede, o jornal polonês
lize seu conteúdo em latim não é algo Ephemeris. Além das notícias, há um
tão difícil. Além do Google, mais de cardápio extenso de áreas específicas,
57
Articulando

Problemas
EtBatismo
cetera

de tradução Por José ernesto De Vargas


Mauri Furlan

Por maiores que sejam os reve- do Latim é, assim, revelar a vida dução. Mas, poderia algo ser feito
ses e adversidades que atingem o do Latim, e na forma em que fora para o incremento do número de
Latim em nosso tempo, podemos praticado por uma sociedade his- latinistas?
afirmar que seu destino é o de ser toricamente extinta. É fazê-lo Em nossa sociedade capitalista
imortal! Nossa cultura ocidental pulsar novamente nessa forma técnico-pragmática, o Latim não
está fundada sobre a cultura ro- para poder auscultá-lo com ouvi- passa de uma disciplina partícipe
mana, as grandes obras literárias dos contemporâneos. Esse acon- das antigas Humanidades, cujo
sempre clamam por novas relei- tecimento se realiza através do valor puramente cultural não
turas e retraduções, muitíssimos tradutor. rende dividendos nem enrique-
textos científicos foram escritos A problemática da formação ce seus estudiosos. E as editoras,
em Latim durante todos os sé- de um tradutor de Latim diz res- com os atuais contratos de traba-
culos em que foi a língua franca peito, pois, grosso modo, aos se- lho oferecidos, não fomentam in-
do Ocidente, a literatura clássica guintes aspectos: o domínio lin- teresses para o trabalho exclusivo
da Igreja Católica foi produzida güístico das línguas de partida e da tradução. Os que ao Latim se
em Latim, sua língua oficial, e de chegada, o conhecimento do dedicam fazem-no antes por dile-
as línguas modernas ocidentais, tema abordado, o conhecimento tantismo e formação própria. De
neolatinas ou não, têm origens e cultural da época e das circuns- forma que, hodiernamente tor-
influências na língua dos roma- tâncias de cada texto, e a habili- nou-se parte do papel dos cursos
nos. É, pois, uma conditio sine dade poético-artística do tradutor universitários de Língua Latina
qua non da existência e evolução para a reprodução na tradução despertar o interesse dos alunos
de nossa cultura a manutenção e de valores semelhantes aos do que buscam tal formação pro-
revivificação do Latim. E isto se modelo. Esses aspectos, em geral, porcionando-lhes meios para um
dá, sobretudo, via tradução. se desenvolvem simultaneamen- bom aprendizado e estimulando-
Se concebemos a tradução te. A questão-chave talvez seja os a realizarem, via tradução, uma
como uma “interação entre duas onde, por quem e como pode dar- função social, a da divulgação da
poéticas” (Meschonnic, 1973), se essa formação. cultura, em nome da evolução da
entendemos que, no domínio Atualmente, no Brasil, o en- humanidade.
linguístico-literário, todas as lín- sino do Latim se restringe pra- Somos, sim, frutos de nosso
guas-culturas quando se prestam ticamente a uns poucos cursos meio e expressão de nosso tempo.
à leitura e à tradução revelam-se universitários de graduação em E nesse contexto, os tradutores
ativas e redivivas. O Latim pode Língua Latina ou a disciplinas de e as traduções do Latim surgem
rEVISTA lÍNGUA

ser considerado língua morta Língua Latina em cursos univer- como a chama parca mas imorre-
apenas sociologicamente, no sen- sitários de Letras. A qualidade doura da cultura que nos originou
tido de não possuir mais uma so- desta formação, contudo, não é e que agora luta insegura sobre os
revista língua

ciedade viva que o pratique. Por das piores. O que se pode lamen- rumos que persegue.
isso, nessa acepção, é parte, pois, tar com relação ao Latim é o pe-
da tarefa do tradutor, segundo queno número de latinistas que
Mounin (1963), o tornar-se um se formam regularmente, aptos e MAURI FURLAN é traDutor e ProFessor De
etnólogo e um filólogo. Traduzir voluntários a dedicarem-se à tra- lÍngua e literatura latina Da uFsc

58
Et cetera

L’Indovinello Veronese (Séc. IX)


(A Adivinha de Verona)

Se pareba boues
alba pratalia araba,
albo uersorio teneba,
negro semen seminaba.
Pareciam bois:
aravam um campo branco,
seguravam um arado branco
espalhavam uma semente negra
STOCKXCHNG
rEVISTA lÍNGUA

STOCKXCHNG
Jurament0 de Estrasburgo (842)
FrancÊs antigo:Pro deo amur et pro christian po-
blo et nostro commum saluament, d’ist di en avant
in quant Deus savir et podir me dunat, si salvarai
eo cist meon fradre Karlo, et in aiudha et in ca-
dhuna cosa, si cum om per dreit son fradre salver
deit, en ço que il mi altresi fazet, et ab Ludher nul
plait onques ne prendrai, que qui mien vueil cest
mien frere Charlon em dam seit;

Português:Por amor de Deus e pelo bem comum do


povo cristão e pelo nosso bem, a partir desse dia, en-
quanto Deus me der o saber e o poder, eu virei em aju-
da a meu irmão Carlos (Luís) em todas as coisas, como
se deve ajudar a um irmão, com a condição de que ele
faça a mesma coisa e eu não farei nenhum acordo com
Lotário, que, pela minha vontade, seja prejudicial ao
meu referido irmão Carlos (Luís).
STOCKXCHNG

O primeiro texto românico


O Juramento de Es- Adivinha de Verona (à
trasburgo foi pronun- esquerda), o posto de
ciado pelos irmãos Luiz documento mais antigo
o Germânico e Carlos em língua românica. A
o Calvo, durante a divi- Adivinha se trata de um
são do Império de seu enigma, escrito no que
avô, Carlos Magno. Luiz viria a ser o italiano. A
jurou em francês anti- diferença entre os dois
go, língua do irmão. O é que apenas o primeiro
texto disputa, com a tem uma data precisa.
STOCKXCHNG
Et cetera

STOCKXCHNG

Traduções curiosas
O aprendiz de bruxo mais é uma das 91 línguas que já
famoso do mundo ganhou, possuem as obras do aventu-
em 2003, sua primeira versão reiro.
em latim. A segunda obra da Asterix e Obelix são ou-
série, Harry Potter e a Câmara tros personagens que têm sua
Secreta, também foi traduzida versão latina. No total, há 23
e, desde 2007, está à venda. volumes já traduzidos para o
Dez anos antes, Tintin já ti- idioma. Eles podem ser encon-
nha sua versão em latim. Essa trados em asterix-obelix.nl/.
Hino a São João Batista

UT queant laxis Para que possam


REsonare fibris ressoar as maravilhas
MIra gestorum de teus feitos
FAmuli tuorum com largos cantos
SOLve polluti apaga os erros
LAbii reatum dos lábios manchados
Sancte Ioannes Ó São João
STOCKXCHNG

A origem das notas musicias


Foi o monge beneditino permanecendo iguais até os
Guido d’Arezzo (995-1050) que dias de hoje.
adotou, pela primeira vez, uma A exceção é o Ut, que, por
pauta de quatro linhas para re- terminar em consoante e tra-
gistrar as notas musicais. var a musicalidade, passou a
Para criá-las, ele se baseou ser dó. A ideia veio do maes-
num hino em homenagem a tro Giovanni Batista Donni, em
São João Batista. Cada primei- 1640, a partir da primeira síla-
ra sílaba virou uma das notas, ba do seu sobrenome.
STOCKXCHNG
Os Meses do Ano
Et cetera

JANUARIUS: DE JANO, DO FLORESCIMENTO


DEUS DE TUDO O QUE INI- JUNIUS: DE JUNO, DEUSA
CIA E QUE ENCERRA PROTETORA DAS MULHERES
FEBRUARIUS: DE FEBRA, JULIUS: HOMENAGEM A
DEUSA DA PURIFICAÇÃO JULIO CÉSAR
MARTIUS: DE MARTE, AUGUSTUS: HOMENAGEM A
DEUS DA GUERRA CESAR AUGUSTO
APRILIS: NÃO SE SABE AO SEPTEMBER: SÉTIMO MÊS,
CERTO SE EM HOMENAGEM NA ÉPOCA EM QUE O ANO
AAFRODITE, DEUSA GREGA COMEÇAVA EM MARÇO; A
DO AMOR, OU POR SER A REGRA VALE PARA OS TRÊS
ÉPOCA DE ABERTURA DE MESES SEGUINTES
FLORES OCTOBER, NOVEMBER,
MAIUS: DE MAIA, DEUSA DECEMBER.
STOCKXCHNG

Origens do Calendário
A palavra vem do latim deus/deusa grego tinha
Calendae, o primeiro dia uma correspondência no
do mês. Os meses e dias latim – inclusive no que
da semana vêm da mitolo- dizia respeito ao mito.
gia. Antes do cristianismo, Com base na mitolo-
os romanos eram pagãos, gia, criou-se o calendário,
e toda sua crença era ba- que só se tornou mais se-
seada naquela existente melhante ao atual a partir
na Grécia. Assim, cada de Julio Cesar (45 a.C.):
STOCKXCHNG
A Semana
DIES SOLIS (DIA DO SOL, O QUARTA FERIA
ASTRO-REI) = PRIMA FERIA = DIES IOVIS (DIA DE JUPITER,
DOMINICUS DIES = DOMINGO DEUS MAIS FURIOSO) = QUINTA
(DIA DO SENHOR). FERIA
DIES LUNAE (DIA DA LUA, DIES VENERIS (DIA DE VENUS,
QUE, DEPOIS DO SOL, ERA A DEUSA DO AMOR) VIROU SEXTA
LUZ MAIS VISTA PELO HOMEM) FERIA
= SECUNDA FERIA DIES SATURNI (DIA DE SATUR-
DIES MARTIS (DIA DE MARTE, NO) = SEPTIMA FERIA = SÁBA-
DEUS DA GUERRA) = TERTIA DO (DO HEBRAICO SHABBATH,
FERIA QUE SIGNIFICA “REPOUSO”, DIA
DIES MERCURII (DIA DE MER- DAS ORAÇÕES PARA OS JU-
CÚRIO, DEUS DO COMÉRCIO) = DEUS).
STOCKXCHNG

De onde vem a nossa Feira?


Os dias da semana origem latina.
também eram, original- O português foi o úni-
mente, em homenagem co idioma que manteve o
aos deuses. Isso permane- feira, originária de feria.
ceu, inclusive, em outras Em latim, a palavra desig-
línguas – até mesmo em nava os dias festivos, que
algumas que não são de tinham sentido religioso.
STOCKXCHNG
O português é uma figura

Latim em Drummond, Drummond em latim

FOLII DIARII CARMEN


Poema do Jornal

C
Casus nondum plene evenit
O fato ainda não acabou de acontecer
manus atque iam nervosa diurnarii
e já a mão nervosa do repórter
vertit in notitiam.
o transforma em notícia.
Morti coniux dat uxorem.
D
A
L
M
O marido está matando a mulher.
Sparsa sanguine clamat uxor.
A mulher ensanguentada grita.
Fures fores arcae effringunt.
Ladrões arrombam o cofre.
Coetum milites dissolvunt.
A polícia dissolve o meeting.
TI
Tradit folio calamus.
A pena escreve.
Camera ex machinarum dulce
melos provenit mechanicum.
Vem da sala de linotipos a doce música mecânica.

carlos DruMMonD De anDraDe


traDuÇÃo: silVa bélKior
arte: Murilo Polla, insPiraDo na PÁgina
De MarcÍlio goDoi

Mineiro de Itabira, Carlos Drummond de esse último idioma, foi feita uma edição especial,
rEVISTA lÍNGUA

Andrade nasceu em 1902. Anos mais tarde mu- intitulada Carmina drummondiana, no seu 80º
dou-se com a família para Belo Horizonte, onde aniversário. Os poemas, como o Poema do Jor-
iniciou e concluiu seus estudos em Farmácia nal, foram traduzidos por Silva Bélkior, em 1982,
– embora, para “preservar a saúde dos outros”, permitindo que a obra de Drummond fosse eter-
como dizia, não tenha exercido a profissão. nizada, também, no idioma do Império Romano.
Virou escritor, e sua obra tornou-se conheci- E não é que o latim caiu bem para ele!
da não só no Brasil, mas no mundo. Seus livros Para ler os textos, acesse o site do Jornal de
já podem ser lidos em alemão, francês, inglês, Poesia. O endereço é http://www.jornaldepoe-
italiano, sueco, tcheco e, até mesmo, latim. Para sia.jor.br/.
66
67
portuguesa

L NGUA

Você também pode gostar