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SÓ SE APRENDE A ALFABETIZAR AO

ALFABETIZAR: UMA ENTREVISTA


COM MAGDA SOARES
Driele Fernanda Nery Severo¹
Joseane Matias²

RESUMO
A presente entrevista, concedida pela professora Magda Soares, aconteceu no
contexto da implementação de um programa institucional que tem como propósito
qualificar os processos de alfabetização em nossa rede. O texto está organizado em
três blocos. O primeiro trata da obra da pesquisadora, em especial o livro “Alfaletrar”,
focado na sua experiência da parceria com Lagoa Santa. O segundo fala da formação
de professores para a alfabetização e da importância dos estudos da Linguística nessa
área. O terceiro apresenta comentários da pesquisadora sobre a implementação do
Programa de Leitura e Escrita na Escola em Novo Hamburgo/RS.

Palavras-chave: Alfabetização. Letramento. Formação Docente.

1 Especialista em Gestão Escolar - Mestranda em Educação UFRGS, professora, Núcleo de Formação Continuada SMED.
2 Mestra e Doutoranda em Linguística Aplicada - Unisinos - professora, Núcleo de Formação Continuada SMED

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Driele Fernanda Nery Severo e Joseane Matias

ABSTRACT
The present interview, granted by Professor Magda Soares, took place in the context
of the implementation of an institutional program that aims to qualify the literacy
processes in our network. The text is organized into three blocks. The first deals with
the researcher's work, especially the book “Alfaletrar”, focused on her experience of the
partnership with Lagoa Santa. The second talks about teacher training for literacy and
the importance of linguistics studies in this area. The third presents the researcher's
comments on the implementation of the Reading and Writing Program at School in
Novo Hamburgo/RS.

Keywords: Literacy. Literacy. Teacher Training.

INTRODUÇÃO

No contexto da implementação de um programa institucional que tem como


objetivo qualificar os processos pedagógicos relacionados à alfabetização na rede
municipal de ensino de Novo Hamburgo - RS, uma das nossas primeiras ações foi a
de listar possíveis inspirações e referências. Dessa forma, recorremos à professora
Magda Soares, entendendo que sua trajetória de professora e pesquisadora com o
olhar para o chão da escola enriqueceria nosso propósito. Em um primeiro momento,
um convite foi feito para que ela participasse de uma live destinada a todos os
professores de nossa rede. Depois, propusemos um pouco mais.
Magda Becker Soares é referência nacional nos estudos sobre alfabetização
e letramento. Professora Emérita da Universidade Federal de Minas Gerais, a
pesquisadora é conhecida pela produção de materiais didáticos, pela popularização
do conhecimento através do portal do Centro de Estudos sobre Alfabetização,
Leitura e Escrita (CEALE) e, mais recentemente, pela implementação do Núcleo de
Alfabetização e Letramento na rede municipal de Lagoa Santa - Minas Gerais. Aos
88 anos, sua produção não cessa: a obra Alfaletrar - toda criança pode aprender
a ler e escrever, lançada em 2020, traz não só reflexões sobre sua experiência na
cidade mineira, mas também apresenta propostas fundamentadas na concepção de
linguagem como interação e na defesa dos direitos de aprendizagem para todos.
“Trazer” Magda Soares para conversar com os professores da rede de Novo
Hamburgo é, sem dúvidas, uma grande ação em prol da formação continuada desses
profissionais. Por isso, ousamos não ficarmos restritas apenas à live: propusemos
uma entrevista, para que tenhamos a oportunidade de dialogar com uma pesquisadora
referência no assunto sobre o qual mais nos debruçamos em nossos estudos e
trabalho enquanto professores e, neste momento, formadores de nossos colegas: as
práticas de linguagem no contexto da escola.
Organizamos a entrevista em três blocos, buscando contemplar questões de
interesse para nossas pesquisas e principalmente para nossa atuação. O primeiro
bloco consiste na obra da pesquisadora, em especial o último livro “Alfaletrar”, focado
na experiência da parceria de Magda Soares com Lagoa Santa, com o intuito de

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acompanhar e qualificar os processos de alfabetização naquela rede. O segundo


bloco trata da formação de professores para a alfabetização e da importância dos
estudos da Linguística nessa área. O terceiro bloco apresenta comentários da
pesquisadora sobre a implementação do Programa de Leitura e Escrita na Escola em
Novo Hamburgo/RS.

BLOCO 1 - OBRA E EXPERIÊNCIA

1. Gostaríamos que a senhora nos contasse sobre a parceria com Lagoa Santa: como ela
iniciou? Como foi a adesão dos professores? Como foi o processo de reconfiguração das
práticas pedagógicas? O que foi necessário reconfigurar também no acompanhamento da
própria secretaria de educação?

Em Lagoa Santa, eu me ofereci para um trabalho voluntário, mas não para


desenvolver um projeto. Fiz questão de não ter projeto para construí-lo junto com as
professoras da rede. Tanto que, hoje, elas se sentem autoras e eu me sinto muito menos
autora do projeto do que elas, porque tudo foi construído em conjunto. Nós até temos
mantido o nome de “projeto”, exatamente para ficar essa ideia expressa pelos termos
advindos do latim pro (para frente) e -jectum (jogado para frente). Então, nós estamos
sempre indo para a frente, construindo o projeto, que nunca está realmente pronto.
Agora, então, com a pandemia, nós estamos tendo que, novamente, reformulá-lo. É
assim que trabalhamos em Lagoa Santa: o que funciona é o núcleo de alfabetização e
letramentos, que é composto por uma professora representante de cada escola. Essa
representante é uma professora da escola escolhida pelas colegas. Esse grupo tem
se consolidado e as representantes compartilham o projeto com suas colegas em sua
escola. Um projeto como este precisa ter o objetivo de desenvolvimento profissional e
não de formação continuada.

BLOCO 2 - FORMAÇÃO DE PROFESSORES


1. Se a senhora pudesse definir como deveria ser o perfil de um professor alfabetizador,
ou melhor, de um professor capaz de “alfaletrar”, que características seriam
imprescindíveis para esse profissional?

É preciso partir do princípio de que nós não temos, nos cursos de Pedagogia,
nenhuma formação para a alfabetização. É uma luta que eu acabei desistindo de fazer, a
de que a alfabetização tivesse um lugar grande, maior, no curso de Pedagogia. No currículo
de um ou outro curso há uma disciplina sobre alfabetização, nunca sobre letramento,
em geral seguida de um estágio, as alunas vão pra alguma escola e voltam com um
relatório. Não adianta. Além disso, nós não podemos contar (eu não conto, nunca contei)
com o que as alfabetizadoras já sabiam ou não. Então, em Lagoa Santa, elas foram se
tornando alfabetizadoras por meio de um processo de desenvolvimento, com muito apoio
de uma coordenação especializada em alfabetização e letramento, às vezes apoio de
professoras mais experientes que toda escola tem. O argumento da experiência já obtida
costuma ser um problema, porque a alfabetizadora que se considera experiente pensa

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assim: “eu já sei alfabetizar, fiz a vida inteira, deu certo”. As que pensam assim querem
repetir o que sempre fizeram, costumam ser resistentes a uma nova proposta. Mas,
quase sempre, as professoras se ajudam muito, aperfeiçoam a alfabetização, revendo e
alterando suas ações. Aprendem, por exemplo, pela própria discussão sobre quais são
as metas que nós temos que alcançar no processo de alfabetização, acompanhando a
evolução das crianças. Ao discutir isso, a professora que vai ser ou já é alfabetizadora
está aprendendo.
Outro conceito muito frequente, não só nas escolas, nas pessoas em geral é
que, se a pessoa sabe ler e escrever, sabe ensinar a ler e escrever, o que é uma ideia
inteiramente equivocada. Não é quem sabe ler e escrever que está pronto para ensinar
o outro a ler e escrever. Mas também não adianta você fazer um curso que pretenda
ensinar a alfabetizar. As professoras têm que vivenciar esse desafio com orientação de
que é preciso pensar o que fazer para que a criança aprenda. Eu tenho muita esperança
de que meu livro Alfaletrar, que relata a experiência em Lagoa Santa, ajude.
Quando eu entreguei esse livro para a editora, ela falou: “Magda, mas está tão
bom, você pega a professora pela mão e vai conduzindo-a”. Tomara que seja isso,
porque é com essa orientação que ela vai fazendo, lendo, fazendo e aprendendo. Mas
não pense que você vai ter alguma “varinha de condão” para transformar uma pedagoga,
ainda que saída do melhor curso de pedagogia do Brasil, nem uma professora sai “pronta”
para alfabetizar. Essa é uma falha muito grande nossa, porque nós deveríamos, no meu
entender, ter um curso específico de formação de alfabetizadores, articulado com o
desenvolvimento profissional. Mas em faltando isso, vamos fazê-lo quando a professora
já está com a “mão na massa”, trabalhando. Talvez isso seja até uma vantagem, porque
ela já vai aprendendo no fazer. Aliás, qualquer profissional aprende no fazer. O que
nós aprendemos foi no fazer. Quer dizer, eu fiz um bom curso de Letras, em uma boa
universidade, mas eu fui aprender a dar aula quando entrei na sala de aula para trabalhar
com os alunos. E na alfabetização acontece algo semelhante.

2. Sabemos que quase a totalidade dos/as professores/as que trabalham no bloco de


alfabetização são pedagogos/as. Enquanto linguista, que conhecimentos da Linguística a
senhora apontaria ser importante aprofundar entre esses/as pedagogos/as para qualificar
suas práticas quando tratamos de letramento e alfabetização?

Fundamentos fonológicos para a alfabetização são indispensáveis,


indispensáveis. Seria fundamental tópicos de Linguística na formação, não só do
alfabetizador, mas dos professores das séries iniciais e da educação infantil. Para a
alfabetização, uma reflexão sobre as relações entre oralidade e escrita é fundamental,
porque, ao alfabetizarmos, o nosso trabalho central é levar a criança a relacionar
oralidade e escrita, fazer ver como a escrita registra o oral, torna visível a oralidade. Por
outro lado, linguística textual é a que orienta o professor a fazer uma boa análise de
texto, a interpretar um texto e identificar princípios de paragrafação, de referenciação,
de elementos de coesão, coerência para construir um texto, alfabetizadoras não
aprendem isso, e, assim, não ensinam isso para as crianças. Fala-se assim: “Já sabe
ler e escrever, então escreve um texto aí pra mim sobre tal assunto”. Quando ninguém
ensinou o que é estruturar um texto, quais são os recursos para controlar o nível de

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informatividade, a coesão, a coerência. Seria necessário um curso de Linguística para


os professores das séries iniciais que incluísse a fonologia, as teorias de relações
oralidade e escrita, a linguística textual, a pragmática, tudo isso seria importante para
as pessoas poderem trabalhar com leitura e escrita na sala de aula. Uma das coisas que
também me impressionou quando eu comecei a dar aula depois que me formei em Letras
foi a presença de variação linguística entre estudantes e mesmo entre professores.
Eu me dediquei muito a trabalhar isso, o meu primeiro livro se chama “Linguagem e
Escola: Uma Perspectiva Social”. Esse livro nasceu da questão da variação linguística
e como elas são elementos de discriminação das crianças. O professor tem que tomar
uma postura diante disso, que não é de censurar a criança porque ela fala "erra", mas
fazê-la compreender essas diferenças, manter o que eu chamo, no livro que citei, de
bidialetalismo. A criança precisa compreender que há, de certa forma, usos diferentes
da língua, o uso de prestígio, e o uso da língua em seu contexto social e cultural, que é
parte da constituição de sua identidade.

3. Na sua opinião, que princípios devem guiar a formação continuada de professores


alfabetizadores numa rede pública que pretende alcançar não apenas bons índices mas
também (e principalmente) a garantia dos direitos de aprendizagem dos estudantes?

Vou fazer só algumas considerações que acho importantes. Vocês falaram em


incluir uma formação continuada, mas eu não gosto dessa expressão e não gosto do
que é feito no quadro de formação continuada. Deixem-me dizer o porquê: primeiro,
eu acho pouco respeitoso com as professoras, quando se fala que elas precisam de
formação continuada, quando já receberam um diploma dizendo que estão formadas.
Acho que isso abala um pouco a identidade da professora. E o que ela em geral recebe
é mais um curso, como teve na formação, e não precisa de mais um curso. Eu prefiro
a expressão desenvolvimento profissional, porque acho que é isso que nós temos que
propiciar às professoras, deixando claro para elas que nós reconhecemos que elas
trabalham, que elas constroem saberes e práticas pedagógicas. E, principalmente,
que o objetivo de uma coordenação pedagógica é ajudá-las a desenvolver esse saber
que elas já têm, acrescentar saberes etc. Da mesma forma, gostaria também de falar
do perigo de irmos para a escola com uma atitude de pesquisadores. Foi difícil para
mim evitar essa atitude, porque eu passei minha vida inteira fazendo pesquisa na
universidade e a atitude de parceria com as professoras tem de ser completamente
diferente. Precisamos estar ao lado delas com olhos de colaboração, de parceria, com
a convicção de que as professoras, ainda que com dificuldade, se esforçam, fazem o
que elas têm condições de fazer. Elas não estão ali para você dizer o que elas têm de
fazer. Você está ali para analisar junto com elas o que está sendo feito, fazer sugestões,
ajudar a interpretar fatos que ocorrem e as dificuldades das crianças. O ideal (e eu
sei que é muito difícil), é você estar permanentemente na escola. Eu estou com muita
frequência nas escolas, acompanhando o que está acontecendo e ajudando a analisar
o que está acontecendo. O que eu aprendi enquanto eu estive lá no chamado "chão
da escola" vale mais do que eu aprendi lendo, estudando, fazendo pesquisa. Você se
inserir na realidade do que é uma escola pública, com aquelas crianças, nas condições
que elas e aquelas professoras têm, é muito importante. Só quem é freiriano é que
sabe como é que você faz isso... As pessoas falam muito de Paulo Freire, mas nem

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sempre aprenderam o fundamental da perspectiva freireana, que é adotar uma atitude


de empatia, de compreensão e de colaboração com o outro.

BLOCO 3 - PROGRAMA DE LEITURA E ESCRITA


NA ESCOLA
1. Sabemos sobre seu posicionamento a respeito da (não) viabilidade das propostas de
alfabetização no contexto do ensino remoto ou híbrido. Por isso, neste momento, na sua
opinião e com base em seus estudos, que ações precisamos fazer, enquanto rede, para
minimizar os efeitos da pandemia nas aprendizagens das nossas crianças?

Essa questão vai depender de um esforço grande dos professores, particularmente


na alfabetização, porque vejam a situação das crianças, lá em Lagoa Santa, que, no
momento em que surgiu a pandemia e o afastamento da escola, tinham entrado no
primeiro ano, vindas da educação infantil. Ou seja: elas tiveram um mês de aula e
veio a pandemia. Passou-se um ano, meio ano, um ano e meio em que as crianças
ficaram em casa com os pais, sem escolarização ou com escolarização muito precária
particularmente no caso da alfabetização. E sem tecnologias para ajudar, que é o comum
nas camadas subalternas. Eu considero que as professoras que fizeram alguma coisa
(porque houve um número muito grande de escolas que não fizeram nada e as crianças
ficaram absolutamente sem nenhum acompanhamento esse tempo todo) fizeram um
esforço muito grande.
Lá em Lagoa Santa, as nossas escolas fizeram um acompanhamento sobretudo
por WhatsApp, de que hoje dispõe a maioria das pessoas, mesmo das camadas
populares. Cada professora ficou responsável por sua turma, preparava material,
imprimia, os pais iam buscar na escola, trabalhavam lá com seus filhos, tanto quanto
estava a seu alcance, traziam de volta e levavam outro pacote. Mas não vamos nos
iludir que isso resolveu, supriu o período de aprendizagem longe da escola, sob vários
aspectos. O aspecto da socialização, por exemplo, o do desenvolvimento emocional, o
do contato com os colegas e com a professora e o do aprendizado compartilhado com
colegas.
O que as escolas vão precisar fazer é, logo de início, um movimento de
reintrodução das crianças no ambiente escolar. Afinal, elas viveram um ano e meio,
quase dois anos, no ambiente doméstico, que é completamente diferente do escolar,
será preciso reintroduzi-las na cultura da escola.
Para as crianças, perder um ano e meio de vivência escolar é muita coisa. Por
isso, é preciso dar atenção ao emocional da criança, à recuperação da sociabilidade e
não só da aprendizagem. Na aprendizagem, eu não vejo outra solução senão realizar
inicialmente um bom diagnóstico das crianças. No caso de Lagoa Santa, eu decidi o
seguinte: vamos usar as metas que estabelecemos para cada ano e verificar como estão
as crianças. Se a aprendizagem “parou” no primeiro ano, vamos ver o que elas fizeram
durante a pandemia, se elas avançaram, ou se estão no mesmo lugar, considerando o
diagnóstico feito antes da pandemia, e daí para frente.
A partir de um diagnóstico, deve-se pensar como levar adiante o ensino sem

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a preocupação com as questões burocráticas no sentido de “encaixar” a criança no


segundo ou no terceiro ano, por exemplo, no ano em que estaria caso seu processo
de escolarização não tivesse sido interrompido. Neste momento, eu acho que nós não
devemos nos guiar por questões burocráticas de organização do ensino em anos,
porque a organização tem de ser em função do desenvolvimento da criança. A solução
será colocar a criança naquele ponto a partir do qual ela pode crescer. Depois de tudo
que se passou, era para ela estar no terceiro ano, mas ela vai estar no segundo. Nós
vamos explicar aos pais, é preferível ela perder um ano agora do que ela ficar defasada
lá na frente.
Porque não dá para você “saltar” um ano, em um processo que é progressivo,
cumulativo de aprendizagem. Para haver a igualdade no país, devíamos ter tido uma
orientação em nível federal. Mas não podemos esperar nada do MEC que temos agora e
muito menos da equipe desse Governo, esse desgoverno que temos atualmente no país.
Então, vamos cuidar das nossas crianças, aquelas sobre as quais nós temos controle, no
nosso espaço. No nosso espaço nós temos autonomia e controle.
Quando falo em autonomia, incluo não aderir ao que venha do MEC e não tenha
a ver com as nossas concepções. É o que está acontecendo na alfabetização, com a
imposição do método fônico e de um conceito equivocado de letramento, retraduzido
para "Literacia Familiar", com programas que chegam a ser ridículos como o "Conta
pra Mim", que deturpam a literatura infantil utilizando-a para imposição de princípios
tradicionais de moralidade. Enfim, não vamos ter a ilusão de que poderemos recuperar
alguma coisa que foi perdida. O perdido está perdido. Vamos recomeçar. A palavra é
recomeçar.

2. No mês de agosto, nosso município lança o Programa Veredas, que tem como foco
qualificar os processos de alfabetização na nossa rede. Ele reúne um conjunto de ações
que vão desde a formação continuada e o acompanhamento sistemático das práticas
pedagógicas e da aprendizagem dos estudantes até a qualificação de tempos, espaços e
ações dentro das nossas escolas. Com base na sua experiência em Lagoa Santa, que dicas/
recomendações a senhora nos daria neste momento de implementação do Programa?

Eu achei que o projeto está muito bom, muito detalhado, muito bem pensado.
O mais importante de um projeto desses, pelo menos foi o que eu concluí trabalhando
esse tempo todo na escola pública, porque eu, desde que comecei a trabalhar, quando
eu me formei em Letras e fui lecionar português numa escola pública, vi que o problema
principal é a raiz, são os alicerces: a criança aprender a ler, escrever e a ler textos,
interpretar textos e escrever textos, que é a partir do letramento. E que esses processos
deveriam acontecer ao mesmo tempo. E esse é um dos princípios que eu defendo com
muita convicção, porque, até pouco tempo atrás, a ideia era que os alunos, que as
crianças, primeiro tinham que aprender a ler e a escrever, entendido como decodificar
e codificar, pra depois poder ler e escrever. Quantas vezes eu via a professora dizendo
“não pode mexer nos livros, deixa os livros quietos lá, quando vocês souberem ler e
escrever, aí vocês vão mexer nos livros”. Isso é um absurdo! Quer dizer, a criança está
aprendendo um artefato cultural, uma tecnologia que é bastante complexa, abstrata,
porque o sistema alfabético de escrita é um sistema bastante complexo e abstrato, e
a criança está aprendendo isso sem saber para quê, e ao mesmo tempo em que ela

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não está tendo contato, na escola, com o uso que a sociedade e a cultura fazem dessa
tecnologia.
Há muita gente que é contra, que acha que tem de primeiro alfabetizar e depois
entrar no letramento. Mas é um engano a criança primeiro aprender a relação entre
fonemas e letras, sem saber pra que que aquilo serve e a que que isso vai levar. Isso é
o grande equívoco do MEC, atualmente na Secretaria de Alfabetização, ficar insistindo
neste método fônico, que não tem fundamentos linguísticos, nem fundamentos
científicos, apesar de eles falarem que é o único que tem evidências científicas. Isso
não é verdade, é o contrário: trata-se de um método que fere os princípios mais básicos
da Linguística, de fazer junto a alfabetização e letramento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A generosidade da professora Magda Soares, bem como a sua lucidez diante
dos desafios que envolvem a alfabetização, especialmente em tempos de pandemia/
pós-pandemia, nos faz pensar que o Programa de Leitura e Escrita na Escola precisa
ser construído a partir de princípios coesos e respeitosos com as crianças e com os
professores. Nesse sentido, temos apostado em um trabalho pautado no coletivo, que
contribua para que nossas crianças sejam contempladas com ações efetivas para a
garantia dos seus direitos de aprendizagem.
Temos consciência de que implementar um programa dessa magnitude implica
assumirmos que, para a alfabetização, cuja consolidação é decisiva para a continuidade
da escolarização, não há “receitas”. Alfabetizar é um trabalho grandioso que envolve
muitos saberes do professor, entre os quais destacamos os conhecimentos de base
linguística, os relacionados à aprendizagem e ao desenvolvimento e a consciência do
compromisso docente de contribuir para a formação de sujeitos capazes de construir
uma sociedade menos opressora para as próximas gerações.
Para finalizarmos, reiteramos nossa gratidão à professora Magda Soares pelos
diálogos estabelecidos, pelo olhar cuidadoso para este texto que foi escrito por duas
professoras que, hoje, atuam na formação continuada de seus pares e, principalmente,
por sua constante preocupação com a construção de uma escola pública de qualidade.
Se “só se aprende a alfabetizar ao alfabetizar”, que possamos estar permanentemente
próximas aos professores alfabetizadores, contribuindo com esse processo de
desenvolvimento da criança e do profissional nele envolvido.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 23ª
edição. São Paulo: Cortez Editora, 1989.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1974.
MORAIS, Artur Gomes de. Sistema de escrita alfabética. São Paulo: Melhoramentos,
2014.
SOARES, Magda. Alfaletrar, toda criança pode aprender a ler e a escrever. São

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Só se aprende a alfabetizar ao alfabetizar: Uma entrevista com Magda Soares

Paulo: Contexto, 2020.


SOARES, Magda. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Contexto,2019.
SOARES, Magda. Alfabetização e Letramento. São Paulo: Contexto, 2008.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e Formação Profissional. Petrópolis, RJ: Vozes,
2002.

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