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RESUMO
A presente entrevista, concedida pela professora Magda Soares, aconteceu no
contexto da implementação de um programa institucional que tem como propósito
qualificar os processos de alfabetização em nossa rede. O texto está organizado em
três blocos. O primeiro trata da obra da pesquisadora, em especial o livro “Alfaletrar”,
focado na sua experiência da parceria com Lagoa Santa. O segundo fala da formação
de professores para a alfabetização e da importância dos estudos da Linguística nessa
área. O terceiro apresenta comentários da pesquisadora sobre a implementação do
Programa de Leitura e Escrita na Escola em Novo Hamburgo/RS.
1 Especialista em Gestão Escolar - Mestranda em Educação UFRGS, professora, Núcleo de Formação Continuada SMED.
2 Mestra e Doutoranda em Linguística Aplicada - Unisinos - professora, Núcleo de Formação Continuada SMED
ABSTRACT
The present interview, granted by Professor Magda Soares, took place in the context
of the implementation of an institutional program that aims to qualify the literacy
processes in our network. The text is organized into three blocks. The first deals with
the researcher's work, especially the book “Alfaletrar”, focused on her experience of the
partnership with Lagoa Santa. The second talks about teacher training for literacy and
the importance of linguistics studies in this area. The third presents the researcher's
comments on the implementation of the Reading and Writing Program at School in
Novo Hamburgo/RS.
INTRODUÇÃO
1. Gostaríamos que a senhora nos contasse sobre a parceria com Lagoa Santa: como ela
iniciou? Como foi a adesão dos professores? Como foi o processo de reconfiguração das
práticas pedagógicas? O que foi necessário reconfigurar também no acompanhamento da
própria secretaria de educação?
É preciso partir do princípio de que nós não temos, nos cursos de Pedagogia,
nenhuma formação para a alfabetização. É uma luta que eu acabei desistindo de fazer, a
de que a alfabetização tivesse um lugar grande, maior, no curso de Pedagogia. No currículo
de um ou outro curso há uma disciplina sobre alfabetização, nunca sobre letramento,
em geral seguida de um estágio, as alunas vão pra alguma escola e voltam com um
relatório. Não adianta. Além disso, nós não podemos contar (eu não conto, nunca contei)
com o que as alfabetizadoras já sabiam ou não. Então, em Lagoa Santa, elas foram se
tornando alfabetizadoras por meio de um processo de desenvolvimento, com muito apoio
de uma coordenação especializada em alfabetização e letramento, às vezes apoio de
professoras mais experientes que toda escola tem. O argumento da experiência já obtida
costuma ser um problema, porque a alfabetizadora que se considera experiente pensa
assim: “eu já sei alfabetizar, fiz a vida inteira, deu certo”. As que pensam assim querem
repetir o que sempre fizeram, costumam ser resistentes a uma nova proposta. Mas,
quase sempre, as professoras se ajudam muito, aperfeiçoam a alfabetização, revendo e
alterando suas ações. Aprendem, por exemplo, pela própria discussão sobre quais são
as metas que nós temos que alcançar no processo de alfabetização, acompanhando a
evolução das crianças. Ao discutir isso, a professora que vai ser ou já é alfabetizadora
está aprendendo.
Outro conceito muito frequente, não só nas escolas, nas pessoas em geral é
que, se a pessoa sabe ler e escrever, sabe ensinar a ler e escrever, o que é uma ideia
inteiramente equivocada. Não é quem sabe ler e escrever que está pronto para ensinar
o outro a ler e escrever. Mas também não adianta você fazer um curso que pretenda
ensinar a alfabetizar. As professoras têm que vivenciar esse desafio com orientação de
que é preciso pensar o que fazer para que a criança aprenda. Eu tenho muita esperança
de que meu livro Alfaletrar, que relata a experiência em Lagoa Santa, ajude.
Quando eu entreguei esse livro para a editora, ela falou: “Magda, mas está tão
bom, você pega a professora pela mão e vai conduzindo-a”. Tomara que seja isso,
porque é com essa orientação que ela vai fazendo, lendo, fazendo e aprendendo. Mas
não pense que você vai ter alguma “varinha de condão” para transformar uma pedagoga,
ainda que saída do melhor curso de pedagogia do Brasil, nem uma professora sai “pronta”
para alfabetizar. Essa é uma falha muito grande nossa, porque nós deveríamos, no meu
entender, ter um curso específico de formação de alfabetizadores, articulado com o
desenvolvimento profissional. Mas em faltando isso, vamos fazê-lo quando a professora
já está com a “mão na massa”, trabalhando. Talvez isso seja até uma vantagem, porque
ela já vai aprendendo no fazer. Aliás, qualquer profissional aprende no fazer. O que
nós aprendemos foi no fazer. Quer dizer, eu fiz um bom curso de Letras, em uma boa
universidade, mas eu fui aprender a dar aula quando entrei na sala de aula para trabalhar
com os alunos. E na alfabetização acontece algo semelhante.
2. No mês de agosto, nosso município lança o Programa Veredas, que tem como foco
qualificar os processos de alfabetização na nossa rede. Ele reúne um conjunto de ações
que vão desde a formação continuada e o acompanhamento sistemático das práticas
pedagógicas e da aprendizagem dos estudantes até a qualificação de tempos, espaços e
ações dentro das nossas escolas. Com base na sua experiência em Lagoa Santa, que dicas/
recomendações a senhora nos daria neste momento de implementação do Programa?
Eu achei que o projeto está muito bom, muito detalhado, muito bem pensado.
O mais importante de um projeto desses, pelo menos foi o que eu concluí trabalhando
esse tempo todo na escola pública, porque eu, desde que comecei a trabalhar, quando
eu me formei em Letras e fui lecionar português numa escola pública, vi que o problema
principal é a raiz, são os alicerces: a criança aprender a ler, escrever e a ler textos,
interpretar textos e escrever textos, que é a partir do letramento. E que esses processos
deveriam acontecer ao mesmo tempo. E esse é um dos princípios que eu defendo com
muita convicção, porque, até pouco tempo atrás, a ideia era que os alunos, que as
crianças, primeiro tinham que aprender a ler e a escrever, entendido como decodificar
e codificar, pra depois poder ler e escrever. Quantas vezes eu via a professora dizendo
“não pode mexer nos livros, deixa os livros quietos lá, quando vocês souberem ler e
escrever, aí vocês vão mexer nos livros”. Isso é um absurdo! Quer dizer, a criança está
aprendendo um artefato cultural, uma tecnologia que é bastante complexa, abstrata,
porque o sistema alfabético de escrita é um sistema bastante complexo e abstrato, e
a criança está aprendendo isso sem saber para quê, e ao mesmo tempo em que ela
não está tendo contato, na escola, com o uso que a sociedade e a cultura fazem dessa
tecnologia.
Há muita gente que é contra, que acha que tem de primeiro alfabetizar e depois
entrar no letramento. Mas é um engano a criança primeiro aprender a relação entre
fonemas e letras, sem saber pra que que aquilo serve e a que que isso vai levar. Isso é
o grande equívoco do MEC, atualmente na Secretaria de Alfabetização, ficar insistindo
neste método fônico, que não tem fundamentos linguísticos, nem fundamentos
científicos, apesar de eles falarem que é o único que tem evidências científicas. Isso
não é verdade, é o contrário: trata-se de um método que fere os princípios mais básicos
da Linguística, de fazer junto a alfabetização e letramento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A generosidade da professora Magda Soares, bem como a sua lucidez diante
dos desafios que envolvem a alfabetização, especialmente em tempos de pandemia/
pós-pandemia, nos faz pensar que o Programa de Leitura e Escrita na Escola precisa
ser construído a partir de princípios coesos e respeitosos com as crianças e com os
professores. Nesse sentido, temos apostado em um trabalho pautado no coletivo, que
contribua para que nossas crianças sejam contempladas com ações efetivas para a
garantia dos seus direitos de aprendizagem.
Temos consciência de que implementar um programa dessa magnitude implica
assumirmos que, para a alfabetização, cuja consolidação é decisiva para a continuidade
da escolarização, não há “receitas”. Alfabetizar é um trabalho grandioso que envolve
muitos saberes do professor, entre os quais destacamos os conhecimentos de base
linguística, os relacionados à aprendizagem e ao desenvolvimento e a consciência do
compromisso docente de contribuir para a formação de sujeitos capazes de construir
uma sociedade menos opressora para as próximas gerações.
Para finalizarmos, reiteramos nossa gratidão à professora Magda Soares pelos
diálogos estabelecidos, pelo olhar cuidadoso para este texto que foi escrito por duas
professoras que, hoje, atuam na formação continuada de seus pares e, principalmente,
por sua constante preocupação com a construção de uma escola pública de qualidade.
Se “só se aprende a alfabetizar ao alfabetizar”, que possamos estar permanentemente
próximas aos professores alfabetizadores, contribuindo com esse processo de
desenvolvimento da criança e do profissional nele envolvido.
REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 23ª
edição. São Paulo: Cortez Editora, 1989.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1974.
MORAIS, Artur Gomes de. Sistema de escrita alfabética. São Paulo: Melhoramentos,
2014.
SOARES, Magda. Alfaletrar, toda criança pode aprender a ler e a escrever. São