Fichamento – “ A Política da Saúde no século XVIII “
Bianca Cortazzi – UFCSPA Psicologia
A obra do filósofo francês Michel Foucault, “ A Microfísica do Poder “, contempla um de seus mais famosos textos, “ A Política da Saúde no século XVIII “. Nele, é discutido desde a formação da ideia do controle da saúde e bem-estar físico da população como um poder político, até os meios em que se consolidará esse domínio tendo, por exemplo, o uso da família como uma peça chave para o funcionamento dessa rede. Logo de início, Foucault disserta que tanto o surgimento de uma medicina “privada” como a “social”, apesar de suas diferenças, fazem parte de uma estratégia global. Também é apresentado o conceito de nosopolítica, denominação dada a basicamente à política social que tem a saúde como um ideal e uma responsabilidade de todos (Zorzanelli, Cruz, 2018). Foucault argumenta, além disso, que o Estado não é a apenas o único a partir da iniciativa da nosopolítica, pois instituições religiosas, sociedades científicas e associações de caridade também exalavam a necessidade de tornar a saúde todos uma preocupação e problema geral. O cuidado com a saúde que se tinha anteriormente à essa nova necessidade e ferramenta de controle, era de certa forma muito limitante. A ideia de saúde pública era praticamente inexistente, visto que tanto o conhecimento e o poder político ainda não se encontravam aliados. Um exemplo é a questão dos hospitais, que tinham uma função tênue de isolar certos grupos de pessoas, principalmente as mais vulneráveis economicamente e consequentemente, mais atingidas ainda por enfermidades. No entanto, não era de interesse ainda se pensar em tratamentos e prevenções das doenças, ou então, de transformar o cuidado da saúde daquelas pessoas e da população como um todo em uma vantagem de exercer uma força disciplinar sobre estas. É a partir da nosopolítica que essa ideia vai surgindo e os meios de efetivar o controle de poder se concretizando. Outro ponto importante levantado no texto é a questão do grande aumento demográfico que ocorre no Ocidente europeu durante o século XVIII, levando a surgir novos mecanismos de vigilância e análises da população vigente, como por exemplo pirâmides demográficas, cálculos de estimativa de vida e natalidade, etc. Isto contribuiu para que os traços biológicos das pessoas se tornassem relevantes para que o Estado exercesse essa vigilância e controle da população, além de o mesmo também visar o aumento de cidadãos que fossem considerados úteis, como com expectativa de vida mais alta. É através dessa necessidade de controle que se moldam as características da nosopolítica, sendo uma delas a nova responsabilidade familiar de se atentar à saúde das crianças, principalmente as relações de pais e filhos. O cuidado físico, que favoreça o corpo da criança e a induza à sobrevivência e evolução da mesma, começa a se tornar um dos objetivos mais obrigatórios da família, além de se tornar o agente mais ativo da medicalização. Essa nova movimentação de tornar a família, que até então parece ser privada a cada indivíduo, na verdade faz parte de uma estratégia coletiva do Estado, como dita Foucault, pois através do dever de cada estrutura familiar de proporcionar as condições favoráveis para cuidar de suas crianças, as autoridades asseguram com isso um certo controle da saúde populacional. Além disso, Foucault ressalta três pontos importantes para a instauração de uma medicina preventiva, como o sumiço dos surtos epidêmicos, a baixa taxa de mortalidade e o aumento da estimativa de vida. Estas questões implicaram em mudanças no ambiente da cidade e as localidades dos hospitais, como também impuseram um dever do médico de ensinar às pessoas regras básicas de higiene e cuidados. Por conseguinte, ocorreu uma ascendência do profissional da medicina, tendo sua presença cada vez maior em sociedades científicas e organizações mais próximas de um poder estatal, por exemplo, o que tornou a figura do médico politicamente privilegiada, sendo um perito na área de melhorar o "corpo" social e mantê−lo em um permanente estado de saúde (Foucault, 1978). Logo, Foucault faz um encerramento em relação a visão do hospital como ultrapassada, ou pelo menos o modelo de hospital que era vigente na época. Ao invés de seguir o ideal de medicina social que estava sendo construído e instituído, o hospital e sua política de funcionamento fazia o oposto de proporcionar um bem-estar físico para a população, causando a busca de formas de substituí-lo. No entanto, o completo desaparecimento do hospital fora uma ilusão e começaram a surgir, na verdade, planos para reformá-lo. Os pontos importantes que foram considerados para se começar as reformar foram a necessidade de ajustá-lo ao espaço urbano, o tornando funcional e ao mesmo tempo fácil de ser manipulado, além acabar com os motivos que o torna perigoso para aqueles que o habitam e que haja uma articulação entre o saber médico e a eficácia terapêutica. Assim, a reforma desta instituição da saúde juntamente com as outras mudanças que ocorreram no século, como a construção e implementação da nosopolítica, a descoberta da importância das características biológicas da população para um poder disciplinar e as novas responsabilidades da célula familiar, constituem alguns dos eventos de efervescência da política da época. Foucault disserta brilhantemente a questão da nosopolítica desde os seus primórdios até as suas solidificações, expondo os fatos de maneira muito histórica e que vão fazendo muito sentindo se compararmos com a forma que a sociedade ocidental funciona atualmente. Seu enfoque na tese de que o bem-estar físico da população é de interesse para o Estado, pois lhe concede mais um meio de exercer poder direto sobre os cidadãos, é esclarecedor, principalmente se olharmos para o contexto histórico em que essas mudanças começam a ocorrer, sendo os primórdios do fim da Idade Moderna, em que o absolutismo começa a dar indícios de que não irá mais se sustentar. Outro ponto muito relevante apontado por Foucault é a questão de tornar a família responsável pela saúde das crianças, principalmente na relação de pais e filhos. Acredito que seja um dos pontos chave do texto do autor pois essa construção feita no século XVIII permeia até os dias de hoje, exercendo o mesmo papel de seu primórdio, que é ser um dos mecanismos de controle do Estado para cuidar do bem-estar da população ao mesmo tempo que exerce um poder. Então, o filósofo francês argumenta e constrói suas ideias em torno da política da saúde de forma muito compreensiva, em que as peças se encaixam e é possível notar as heranças que essas mudanças feitas na época possuem nos tempos atuais. Os entornos da política da saúde do século XVIII foram reflexos dos acontecimentos da época e resultado da nova forma de se governar que estava sendo instituída, rompendo com os modelos tradicionais que haviam sido vigentes e instaurando um funcionamento de sociedade que nunca fora visto. Referências Foucault, M. Microfísica do Poder. Organização e introdução de Roberto Machado. 3.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1982. Zorzanelli RT, Cruz MGA. O conceito de medicalização em Michel Foucault na década de 1970. Interface (Botucatu). 2018; 22(66):721-31.
Sistema Único de Saúde: Um Direito Fundamental de Natureza Social e Cláusula Pétrea Constitucional: A Cidadania e a Dignidade da Pessoa Humana como Fundamentos do Direito à Saúde no Brasil