Sessão 2 – Matrizes epistemológicas para o estudo em Administração
Um dos debates de maior relevância no que se refere à ciência, e de modo
específico às ciências como a Administração, trata-se das bases ontológicas, epistemológicas e metodológicas que servem de referência para pesquisadores (BURREL; MORGAN, 1969, GIOIA; PITRE, 1990, FARIA, 2012). Nesse sentido, esta resenha apresenta alguns dos principais textos que permitem uma melhor compreensão e reflexão crítica acerca desta temática. Inicialmente, em “Sociological Paradigms and Organizational Analysis”, Gibson Burrel e Gareth Morgan buscaram explorar e relacionar as teorias das organizações a seus fundamentos sociológicos e filosóficos mais amplos. Ao buscarem conhecer as bases das teorias das organizações, Burrel e Morgan (1979) destacam duas tradições intelectuais antagônicas que preconizavam, de uma lado, a ordem, e do outro, o conflito. A partir dessa dicotomia, os autores estruturam quatro paradigmas que servem como um mapa intelectual para se compreender as ciências sociais e os estudos das organizações. Com base nos elementos discutidos nos 3 primeiros capítulos, Burrel e Morgan (1979) estruturam a matriz paradigmática das ciências sociais e especificamente dos estudos em Administração. Assim, no eixo horizontal estão situados as duas dimensões que marcam os pressupostos da natureza da ciência: subjetiva (à esquerda) e objetiva (à direita), ao passo que no eixo horizontal situam-se as dimensões que dicotomizam os pressupostos da natureza da sociedade: a sociologia da mudança racial (acima) e a sociologia da regulação (abaixo). No escopo da sociologia da regulação, na dimensão subjetiva, situa-se o paradigma interpretativo (referencias de Kant, Weber, Schutz, a partir das abordagens: fenomenologia, etnometodologia, interacionismo simbólico, etc.); ao passo que na dimensão objetiva figura o paradigma funcionalista (de maior proeminência nesse campo, toma como principais referências Durkheim, Pareto, Comte e Spencer, a partir das abordagens: objetivismo, teoria do sistema social, pluralismo, teorias das disfunções burocráticas, etc.). Destarte, no escopo da sociologia da mudança radical, na dimensão subjetiva, situa-se o humanismo radical (com ênfase na consciência humana, tem como referencias Kant, Hegel, Marx, Escola de Frankfurt, Gramsci, etc. que apresentam, acima de tudo, abordagens baseadas na inversão da ordem, ou da anti-organização) e na dimensão objetiva, o estruturalismo radical (se concentra nas relações estruturais dentro de um mundo real, com influencias de Marx, Althusser, entre outros). É importante considerar que os quatro paradigmas fornecem um mapa para uma compreensão mais ampla das diferentes visões alternativas possíveis no estudo das organizações. Além disso, as fronteiras dos paradigmas tendem a não ser tão rígidas, especialmente a partir de desenvolvimentos recentes da teoria social. Deve-se ressaltar ainda que Burrel e Morgan (1979) reconhecem que a proposta por eles apresentada é passível de críticas (que de fato foram bem fundamentadas ao longo dos anos). Desse modo, esse esquema deve ser visto como “um dispositivo heurístico em lugar de um conjunto de definições rígidas” (BURREL; MORGAN, 1979, p. 4). Considerando a repercussão e as implicações do trabalho de Burrel e Morgan (1979) para os estudos em organizações, Gioia e Pitre (1990), em “Multiparadigm perspectives on theory building”, estão interessados em ampliar a discussão das matrizes paradigmáticas, abrangendo a possibilidade de estudos que se apoiem em mais de um paradigma. É discutida, então, a abordagem multiparadigmática como uma forma de construção de teorias em Administração. Gioia e Pitre (1990) criticam as limitações que a proposição dos paradigmas de Burrel e Morgan (1979), a partir Thomas Kuhn, impuseram ao desenvolvimento dos estudos em Administração. Essa crítica é fundamentada sobretudo pelo entendimento de que as organizações são fenômenos sociais multifacetados, e portanto, de complexo entendimento pleno e, segundo, pela tese defendida pelos autores, de que a construção de teorias é fundamentada nos paradigmas, o que pode limitar a criatividade de pesquisadores. Por isso, Gioia e Pitre (1990) defendem que abordagens multiparadigmáticas permitem a construção de pontes entre fronteiras nebulosas de dois ou mais paradigmas. Em sua descrição dos paradigmas de Burrel e Morgan (1979), os autores trazem quadros de grande valia para uma melhor compreensão dos elementos constitutivos de cada quadrante, destacando suas possibilidades e caminhos para a construção de teorias. Disso, buscam superar a noção de incomensurabilidade paradigmática que perpassou (e ainda perpassa) este campo. Além disso, os autores propõem a perspectiva de metaparadigmas, que podem permitir com que abordagens diferentes possam ser consideradas em conjunto para a construção de teorias. Essa noção é importante para que pesquisadores reconheçam e reconciliem diferentes teóricas marcantes nos estudos em Administração, distanciando-se das fronteiras que a noção de paradigmas, como tratada por Burrel e Morgan (1979) podem trazer para esse campo científico. Finalmente, em “Dimensões da Matriz Epistemológica em Estudos em Administração: uma proposição”, José Henrique de Faria apresenta uma reflexão de natureza científico-filosófica em torno do conhecimento em Administração. A partir disso, o autor apresenta uma matriz epistemológica composta por dimensões epistemológicas constitutivas, as quais compõem áreas de domínio epistemológico que servem de referência para o campo. Assim como Burrel e Morgan (1979), o objetivo de Faria (2012) é apresentar uma visão pluralista do conhecimento científico, opondo-se ao “mito de uma única e verdadeira forma de produção do saber” (FARIA, 2012, p. 1). Nesse modelo, Faria considera que o conhecimento é produzido por meio de diferentes Áreas de Domínio, que incluem Elementos Constitutivos comuns. Para compreender o estudo da epistemologia, é importante considerar a existência de dois paradigmas pré-epistemológicos: o empirismo/experimentação e o racionalismo. Entre esses dois polos encontram-se diferentes Dimensões Epistemológicas que perfazem uma matriz. É essa matriz que permite compreender as bases do conhecimento científico a partir de pressupostos, finalidades, metodologias, etc. (FARIA, 2012). Cada Dimensão Epistemológica ocupa um espaço nessa matriz, apresentada por Faria (2012) a partir de três categorias de análise: Produção do Conhecimento, Modo de Investigação e Técnicas de Pesquisa. Cada categoria de análise traz Elementos Constitutivos que vão caracterizar a Dimensão Epistemológica, ainda que não sejam exclusivos de cada. Nessa direção, Faria (2012) crítica apropriações descabidas de elementos constitutivos de certas dimensões epistemológicas aplicados ao uso de métodos ou propostas de estudos de um certo fenômeno, de modo que chama atenção para a necessidade de maior coerência nos estudos. Essa coerência é que permite que teorias e abordagens conversem entre si, de forma responsável e coerente, mantendo a substância científica que torna o trabalho legítimo nos campos científicos. Faria (2012) apresenta, então, uma Matriz Epistemológica Geral, comporta por seis Dimensões. Essas dimensões referem-se a “espaços epistêmicos distintos e indicam diferentes formas de abordagem da ciência do conhecimento, bem como diferentes perspectivas acerca do processo de produção do conhecimento científico” (p. 6). A Dimensão é única uma vez que não pode ser comparada no interior da Matriz, embora isso não impeça que elementos constitutivos estejam presentes em duas ou mais Dimensões. A ordem da composição dos Elementos Constitutivos em uma Dimensão forma uma Área de Domínio Epistemológico. Em suma, cada Área de Domínio Epistemológico tem sua Dimensão Epistemológica, formada pela ordem de Elementos Constitutivos que a caracteriza, em combinações independentes e únicas. Nessa direção, identifica seis Dimensões Epistemológicas marcantes nos estudos em Administração: Positivismo, Pragmatismo, Funcionalismo, Estruturalismo, Fenomenologia e Materialismo Histórico. O autor apresenta um quadro explicativo, contendo cada Elemento Constitutivo dessas Dimensões. É importante ressaltar que desenvolvimentos recentes das ciências sociais podem ser articulados como junções de diferentes Dimensões. Considerando os três textos, percebe-se a centralidade da discussão em torno da epistemologia das ciências administrativas, embora as considerações estejam mais próximas a posicionamentos sociológicos (em detrimento de outras ciências que servem de referência para a área como a Economia, a Psicologia, etc.). Por isso, esse debate, impulsionado sobretudo pelo estudo de Burrel e Morgan (1969) ainda carece de novas contribuições. A incorporação da perspectiva multiparadigmática representou uma crítica ao texto seminal e uma retomada à complexidade de fenômenos organizacionais (GIOIA; PITRE, 1990). Por sua vez, Faria (2012) procura se distanciar da noção de paradigma (embora não problematize isso em seu texto), a qual está fundamentada em uma discussão que recebe críticas ainda hoje devido a uma má interpretação da proposta de Thomas Kuhn por parte de pesquisadores do campo. Entretanto, a proposta de Faria retoma, de certa forma, a estruturação de bases do conhecimento no campo da Administração, premissa que incentivou Burrel e Morgan (1969) na construção das matrizes paradigmáticas. Em suma, as três propostas são exercícios fundamentais para um melhor encaminhamento teórico das pesquisas no campo da Administração. Essas reflexões deveriam, certamente, fazer parte da formação de todos os pesquisadores, inclusive para uma melhor legitimidade desse corpo de conhecimento diante do campo científico das ciências sociais e sociais aplicadas.
Referências Bibliográficas
FARIA, JH de. Dimensões da Matriz Epistemológica em Estudos em Administração:
uma proposição. ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO, v. 36, 2012.
BURREL & MORGAN, "Sociological Paradigms and Organizational Analysis",
Heineman, London, l979.
GIOIA, Dennis A.; PITRE, Evelyn. Multiparadigm perspectives on theory building.
Academy of management review, v. 15, n. 4, p. 584-602, 1990.