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Resenha Crítica

André Luiz de Paiva

Sessão 2 – Matrizes epistemológicas para o estudo em Administração

Um dos debates de maior relevância no que se refere à ciência, e de modo


específico às ciências como a Administração, trata-se das bases ontológicas,
epistemológicas e metodológicas que servem de referência para pesquisadores
(BURREL; MORGAN, 1969, GIOIA; PITRE, 1990, FARIA, 2012). Nesse sentido, esta
resenha apresenta alguns dos principais textos que permitem uma melhor compreensão
e reflexão crítica acerca desta temática.
Inicialmente, em “Sociological Paradigms and Organizational Analysis”, Gibson
Burrel e Gareth Morgan buscaram explorar e relacionar as teorias das organizações a
seus fundamentos sociológicos e filosóficos mais amplos. Ao buscarem conhecer as
bases das teorias das organizações, Burrel e Morgan (1979) destacam duas tradições
intelectuais antagônicas que preconizavam, de uma lado, a ordem, e do outro, o conflito.
A partir dessa dicotomia, os autores estruturam quatro paradigmas que servem como um
mapa intelectual para se compreender as ciências sociais e os estudos das organizações.
Com base nos elementos discutidos nos 3 primeiros capítulos, Burrel e Morgan
(1979) estruturam a matriz paradigmática das ciências sociais e especificamente dos
estudos em Administração. Assim, no eixo horizontal estão situados as duas dimensões
que marcam os pressupostos da natureza da ciência: subjetiva (à esquerda) e objetiva (à
direita), ao passo que no eixo horizontal situam-se as dimensões que dicotomizam os
pressupostos da natureza da sociedade: a sociologia da mudança racial (acima) e a
sociologia da regulação (abaixo). No escopo da sociologia da regulação, na dimensão
subjetiva, situa-se o paradigma interpretativo (referencias de Kant, Weber, Schutz, a
partir das abordagens: fenomenologia, etnometodologia, interacionismo simbólico,
etc.); ao passo que na dimensão objetiva figura o paradigma funcionalista (de maior
proeminência nesse campo, toma como principais referências Durkheim, Pareto, Comte
e Spencer, a partir das abordagens: objetivismo, teoria do sistema social, pluralismo,
teorias das disfunções burocráticas, etc.). Destarte, no escopo da sociologia da mudança
radical, na dimensão subjetiva, situa-se o humanismo radical (com ênfase na
consciência humana, tem como referencias Kant, Hegel, Marx, Escola de Frankfurt,
Gramsci, etc. que apresentam, acima de tudo, abordagens baseadas na inversão da
ordem, ou da anti-organização) e na dimensão objetiva, o estruturalismo radical (se
concentra nas relações estruturais dentro de um mundo real, com influencias de Marx,
Althusser, entre outros).
É importante considerar que os quatro paradigmas fornecem um mapa para uma
compreensão mais ampla das diferentes visões alternativas possíveis no estudo das
organizações. Além disso, as fronteiras dos paradigmas tendem a não ser tão rígidas,
especialmente a partir de desenvolvimentos recentes da teoria social. Deve-se ressaltar
ainda que Burrel e Morgan (1979) reconhecem que a proposta por eles apresentada é
passível de críticas (que de fato foram bem fundamentadas ao longo dos anos). Desse
modo, esse esquema deve ser visto como “um dispositivo heurístico em lugar de um
conjunto de definições rígidas” (BURREL; MORGAN, 1979, p. 4).
Considerando a repercussão e as implicações do trabalho de Burrel e Morgan
(1979) para os estudos em organizações, Gioia e Pitre (1990), em “Multiparadigm
perspectives on theory building”, estão interessados em ampliar a discussão das
matrizes paradigmáticas, abrangendo a possibilidade de estudos que se apoiem em mais
de um paradigma. É discutida, então, a abordagem multiparadigmática como uma forma
de construção de teorias em Administração.
Gioia e Pitre (1990) criticam as limitações que a proposição dos paradigmas de
Burrel e Morgan (1979), a partir Thomas Kuhn, impuseram ao desenvolvimento dos
estudos em Administração. Essa crítica é fundamentada sobretudo pelo entendimento de
que as organizações são fenômenos sociais multifacetados, e portanto, de complexo
entendimento pleno e, segundo, pela tese defendida pelos autores, de que a construção
de teorias é fundamentada nos paradigmas, o que pode limitar a criatividade de
pesquisadores. Por isso, Gioia e Pitre (1990) defendem que abordagens
multiparadigmáticas permitem a construção de pontes entre fronteiras nebulosas de dois
ou mais paradigmas.
Em sua descrição dos paradigmas de Burrel e Morgan (1979), os autores trazem
quadros de grande valia para uma melhor compreensão dos elementos constitutivos de
cada quadrante, destacando suas possibilidades e caminhos para a construção de teorias.
Disso, buscam superar a noção de incomensurabilidade paradigmática que perpassou (e
ainda perpassa) este campo. Além disso, os autores propõem a perspectiva de
metaparadigmas, que podem permitir com que abordagens diferentes possam ser
consideradas em conjunto para a construção de teorias.
Essa noção é importante para que pesquisadores reconheçam e reconciliem
diferentes teóricas marcantes nos estudos em Administração, distanciando-se das
fronteiras que a noção de paradigmas, como tratada por Burrel e Morgan (1979) podem
trazer para esse campo científico.
Finalmente, em “Dimensões da Matriz Epistemológica em Estudos em
Administração: uma proposição”, José Henrique de Faria apresenta uma reflexão de
natureza científico-filosófica em torno do conhecimento em Administração. A partir
disso, o autor apresenta uma matriz epistemológica composta por dimensões
epistemológicas constitutivas, as quais compõem áreas de domínio epistemológico que
servem de referência para o campo.
Assim como Burrel e Morgan (1979), o objetivo de Faria (2012) é apresentar
uma visão pluralista do conhecimento científico, opondo-se ao “mito de uma única e
verdadeira forma de produção do saber” (FARIA, 2012, p. 1). Nesse modelo, Faria
considera que o conhecimento é produzido por meio de diferentes Áreas de Domínio,
que incluem Elementos Constitutivos comuns.
Para compreender o estudo da epistemologia, é importante considerar a
existência de dois paradigmas pré-epistemológicos: o empirismo/experimentação e o
racionalismo. Entre esses dois polos encontram-se diferentes Dimensões
Epistemológicas que perfazem uma matriz. É essa matriz que permite compreender as
bases do conhecimento científico a partir de pressupostos, finalidades, metodologias,
etc. (FARIA, 2012).
Cada Dimensão Epistemológica ocupa um espaço nessa matriz, apresentada por
Faria (2012) a partir de três categorias de análise: Produção do Conhecimento, Modo de
Investigação e Técnicas de Pesquisa. Cada categoria de análise traz Elementos
Constitutivos que vão caracterizar a Dimensão Epistemológica, ainda que não sejam
exclusivos de cada. Nessa direção, Faria (2012) crítica apropriações descabidas de
elementos constitutivos de certas dimensões epistemológicas aplicados ao uso de
métodos ou propostas de estudos de um certo fenômeno, de modo que chama atenção
para a necessidade de maior coerência nos estudos. Essa coerência é que permite que
teorias e abordagens conversem entre si, de forma responsável e coerente, mantendo a
substância científica que torna o trabalho legítimo nos campos científicos.
Faria (2012) apresenta, então, uma Matriz Epistemológica Geral, comporta por
seis Dimensões. Essas dimensões referem-se a “espaços epistêmicos distintos e indicam
diferentes formas de abordagem da ciência do conhecimento, bem como diferentes
perspectivas acerca do processo de produção do conhecimento científico” (p. 6). A
Dimensão é única uma vez que não pode ser comparada no interior da Matriz, embora
isso não impeça que elementos constitutivos estejam presentes em duas ou mais
Dimensões. A ordem da composição dos Elementos Constitutivos em uma Dimensão
forma uma Área de Domínio Epistemológico.
Em suma, cada Área de Domínio Epistemológico tem sua Dimensão
Epistemológica, formada pela ordem de Elementos Constitutivos que a caracteriza, em
combinações independentes e únicas. Nessa direção, identifica seis Dimensões
Epistemológicas marcantes nos estudos em Administração: Positivismo, Pragmatismo,
Funcionalismo, Estruturalismo, Fenomenologia e Materialismo Histórico. O autor
apresenta um quadro explicativo, contendo cada Elemento Constitutivo dessas
Dimensões. É importante ressaltar que desenvolvimentos recentes das ciências sociais
podem ser articulados como junções de diferentes Dimensões.
Considerando os três textos, percebe-se a centralidade da discussão em torno da
epistemologia das ciências administrativas, embora as considerações estejam mais
próximas a posicionamentos sociológicos (em detrimento de outras ciências que servem
de referência para a área como a Economia, a Psicologia, etc.). Por isso, esse debate,
impulsionado sobretudo pelo estudo de Burrel e Morgan (1969) ainda carece de novas
contribuições. A incorporação da perspectiva multiparadigmática representou uma
crítica ao texto seminal e uma retomada à complexidade de fenômenos organizacionais
(GIOIA; PITRE, 1990). Por sua vez, Faria (2012) procura se distanciar da noção de
paradigma (embora não problematize isso em seu texto), a qual está fundamentada em
uma discussão que recebe críticas ainda hoje devido a uma má interpretação da proposta
de Thomas Kuhn por parte de pesquisadores do campo. Entretanto, a proposta de Faria
retoma, de certa forma, a estruturação de bases do conhecimento no campo da
Administração, premissa que incentivou Burrel e Morgan (1969) na construção das
matrizes paradigmáticas.
Em suma, as três propostas são exercícios fundamentais para um melhor
encaminhamento teórico das pesquisas no campo da Administração. Essas reflexões
deveriam, certamente, fazer parte da formação de todos os pesquisadores, inclusive para
uma melhor legitimidade desse corpo de conhecimento diante do campo científico das
ciências sociais e sociais aplicadas.

Referências Bibliográficas

FARIA, JH de. Dimensões da Matriz Epistemológica em Estudos em Administração:


uma proposição. ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E
PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO, v. 36, 2012.

BURREL & MORGAN, "Sociological Paradigms and Organizational Analysis",


Heineman, London, l979.

GIOIA, Dennis A.; PITRE, Evelyn. Multiparadigm perspectives on theory building.


Academy of management review, v. 15, n. 4, p. 584-602, 1990.

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