Você está na página 1de 5

Por um novo conceito de

cultura – Zygmunt Bauman


Ao contrário das concepções duais do ser humano, o homo duplex,
que tem como expressão mais bem feita a teoria de Durkheim, em
que o ser humano é uma guerra entre suas determinações biológicas,
fruto da evolução, e das constrições sociais a que está submetido,
para Bauman, o ser humano precisa ser visto como aquele que, em
sua própria vida e em sua própria constituição, move forças de auto
afirmação, auto constituição e auto construção que não revelam uma
oposição entre natureza e cultura, entre gene e sociedade, mas sim
mostram a completa necessidade de um termo por outro.

by Vinicius SiqueiraPublished julho 3, 2014Deixe um comentário

O Ocidente passa por transformações que colocam em xeque o


próprio conceito de cultura como é postulado pelas ciências humanas, sendo
um sistema que visa estabelecer a ordem em meio ao caos que é a natureza.
Buscando resolver este problema, Zygmunt Bauman propõe uma nova noção
de cultura em O Mal Estar na Pós-Modernidade, relacionando a teoria de
Levi-Strauss com uma noção de indivíduo que tenta ultrapassar a dicotomia
entre cultura e natureza.

As mudanças que podem ser entendidas como uma transformação da


modernidade para uma dita pós-modernidade, modernidade líquida, já são
conhecidas e discutidas. Acontecem há anos e Weber já havia previsto um
futuro frio e cinza para o Ocidente com sua tese sobre o desencantamento do
mundo, com o paulatino crescimento da autoridade racional-burocrática que
tende a dificultar a manutenção de qualquer misticismo. Porém, é necessário
pontuar que este diagnóstico e previsão não é validado pela realidade
contemporânea, a partir do crescimento repentino da lógica religiosa aliada ao
conservadorismo em toda Europa e nos Estados Unidos (e até mesmo no
Brasil, com a ascensão da bancada evangélica).
RECEBA TUDO EM SEU E-MAIL!
Assine o Colunas Tortas e receba nossas atualizações e nossa newsletter semanal!

Endereço de e-mail

ASSINAR

A ascensão religiosa ainda não foi capaz de diminuir o protagonismo da


autoridade racional-burocrática, pelo contrário, ambas andam lado-a-lado,
junto com tantas outras lógicas que formam a cultura ocidental. Entretanto,
para Bauman é necessário começar entender que a cultura vista como
algo único e em progresso (uma Cultura com “C” maiúsculo, portanto, uma
noção hierárquica, que não comporta a existência de uma lógica religiosa ao
lado de uma lógica científica) precisa ser deixada de lado em proveito do
conceito diferencial de cultura, ou seja, aquele que a concebe não enquanto
produto criado para a satisfação de necessidades humanas, mas que entende
que as “necessidades humanas semelhantes devem ser satisfeitas de modo
diferente, não sendo um [modo] forçosamente melhor do que os outros”. Cada
cultura seria, portanto, “produto da escolha arbitrária entre muitas
possibilidades” em uma sociedade dada.

Porém, apesar do conceito diferencial ter ganhado lugar nas ciências humanas,
algumas características da noção hierárquica ainda sobrevivem sub-
repticiamente:

 Cultura como uma entidade ou processo estabelecedor da ordem;


 Portanto, com normas coerentes e não-contraditórias. Tudo que é
contraditório é tido, então, como anormal e precisa ser corrigido;
 Sendo a cultura um sistema coerente de prescrições e proscrições,
somente artefatos com alguma funcionalidade podem pertencer a ela.
Tudo aquilo que não tem funcionalidade é tido como um resíduo do
estágio anterior da cultura;
 O sistema possui uma estrutura, ou seja, um conjunto irredutível de
relações que aparece em todas as culturas, sendo a característica
universal da cultura que é aplicado particularmente: “deve haver um
‘sistema de valores centrais’ no topo do sistema cultural” e todo o
restante é somente sua aplicação.

“É assim que tendemos a pensar a cultura até hoje: como um dispositivo


antialeatoriedade, um esforço para estabelecer e manter uma ordem, como
numa guerra contínua contra a aleatoriedade e esse caos que a aleatoriedade
ocasiona”, explica Bauman.

Se apropriando do termo de Thomas Kuhn, Bauman diz que o discurso


cultural atual tem os sintomas da “crise de paradigma”, “uma situação em que
os conceitos que organizam as nossas percepções impelem-nos a tratar as
ocorrências mais típicas e frequentes como exceções, tornando a ‘norma’ uma
noção cada vez mais nebulosa”. Mas de onde surgiu essa crise de paradigma?
Da mudança drástica dos fenômenos culturais? Da mudança da nossa maneira
de encarar e explorar o mundo, com novos interesses e novos objetivos? Ou
do próprio colapso do poder ordenador cognitivo, da referência prática que
deveria nortear nossa forma de ver o mundo?

Talvez esses três motivos sejam importantes para entender a crise


paradigmática da cultura, entretanto, a tentativa de reformulá-la passa por
Levi-Strauss. O autor estruturalista postula que:

1. “Não existe ‘estrutura’ global da cultura ‘como um todo’ (nem da


‘sociedade como um todo’). As culturas, como as sociedades, não são
“totalidades”. Em vez disso, existem processos de estruturação
contínuos e perpétuos em diversas áreas e dimensões da prática
humana”. A cultura não provê um modo de viver artificialmente
produzido, pelo contrário, sua contribuição à natureza é em seu
“incessante impulso para diferenciar, separar, dividir, classificar”.
2. “A estrutura que surge das práticas acima […] não é uma entidade
estacionária, mas um processo, algo assemelhado ao vento que não é
senão o soprar, ou a um rio, que não é senão o fluir”. Ou seja, a cultura
é um conjunto estruturado, mas nunca fixo. Essa estrutura (ao contrário
da estrutura elementar do parentesco) não é universal ou fixa, mas é
sujeita a processos de mudança perpétuos.
3. A cultura não pode ser associada à “necessidade”. A prática cultural
deve ser relatada “sem fazer referência a  ‘necessidades’ que a cultura
deve supostamente satisfazer”. Necessidades só surgem com a
emergência de novos usos, assim como o sentido de um sinal só surge
com a emergência deste sinal. Necessidades e usos “passam a existir
juntos e juntos deixam o palco”, explica o autor.

A cooperativa de consumo como


metáfora para o novo conceito de
cultura
Procurando uma metáfora para explicar o novo conceito de cultura que
pretende lançar, Bauman utiliza o exemplo das cooperativas de consumo. As
cooperativas clássicas, com seu tipo-ideal, são formas de distribuição de
autoridade para os consumidores, que são os próprios administradores das
cooperativas: isto é o autogoverno, a verdadeira emancipação na recusa de se
sujeitar a cargos institucionalizados. É a possibilidade de se exercer influência
de forma dispersa.

Acima de tudo, na cooperativa, recebe mais quem consome mais, “quanto


mais o membro consome, maior é seu quinhão de riqueza comum da
cooperativa. A distribuição e apropriação, não a produção, são portanto o eixo
da atividade cooperativa”, explica Bauman. As cooperativas de consumo são,
então, produtoras de consumidores. O agente e o autor são a mesma pessoa,
pois todos podem exercer influência e todos devem se engajar em um
consumo cada vez mais exigente (que só os beneficiaria). O que dá
significado para a cultura é a ação cotidiana de seus “consumidores”, assim
como na cooperativa. E assim ela vai se transformando continuamente.

Além disso, a neutralidade da cultura em relação às necessidades também


serve para complementar essa metáfora. Primeiramente, é necessário
classificar e disponibilizar simbolicamente para o uso, para depois estabelecer
um determinado uso como uma necessidade, “a não
instrumentalidade essencial, o caráter imotivado dos fenômenos culturais
revela-se”.

Ao contrário das concepções duais do ser humano, o homo duplex, que tem
como expressão mais bem feita a teoria de Durkheim, em que o ser humano é
uma guerra entre suas determinações biológicas, fruto da evolução, e das
constrições sociais a que está submetido, para Bauman, o ser humano precisa
ser visto como aquele que, em sua própria vida e em sua própria constituição,
move forças de auto afirmação, auto constituição e auto construção que não
revelam uma oposição entre natureza e cultura, entre gene e sociedade, mas
sim mostram a completa necessidade de um termo por outro.
A natureza, enquanto caos e liberdade, não pode ser tida como oposto da
cultura, enquanto ordem e, portanto, prisão. A liberdade só existe enquanto
um impulso de tentar ir além da própria necessidade de se fazer uma escolha
e, ao mesmo tempo, a determinação só existe em atos de emancipação, de
tentativas de liberdade plena, quando as regras imperiosas se mostram.
Cultura e natureza não são forças heterogêneas, elas vêm do mesmo tronco e
partem para ramificações diferentes. Elas se realizam em conjunto – são frutos
da própria existência humana.

Cultura é prisão e liberdade, nunca estrutura fixa. É transformada a cada


prática de seus agentes, já que nenhuma ação é igual a outra (mesmo que
obedeça o mesmo modelo), e está sempre em processo de mudança.

Você também pode gostar