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Moacyr Scliar

Indesejável efeito colateral

[22/10/2005]

Está estreando nos cinemas O jardineiro fiel, dirigido pelo talentoso


Fernando Meirelles, com locações em Nairóbi, no Quênia, e no
Sudão, e baseado no livro homônimo de John Le Carré. Ao
investigar a morte da esposa, Tessa (Rachel Weisz), uma ativista
pelos direitos humanos na África, o funcionário do serviço
diplomático Justin (Ralph Fiennes) descobre uma trama envolvendo
o teste de uma droga antituberculose pela indústria farmacêutica.
Deve-se dizer que, embora um tanto alarmista em relação ao
potencial da tuberculose, Le Carré, autor best-seller, abordou um
assunto que está sendo objeto de discussão em todo o mundo. A
indústria farmacêutica é das que mais crescem, e o faz mediante a
descoberta de novas drogas, empreendimento no qual, em 2003,
foram investidos, pelos laboratórios americanos, quase 40 bilhões
de dólares. Nos países mais adiantados há normas rigorosas para o
teste de novos medicamentos em seres humanos. Mas em regiões
como a África, e é isso que o filme quer mostrar, pessoas pobres
podem servir de cobaias humanas.

***

Não se esgotam aí as críticas feitas à indústria farmacêutica. Suas


atividades promocionais têm sido objetos de debate,
particularmente no que se refere aos médicos, que, afinal, têm um
papel decisivo através da prescrição de medicamentos. E isso
depende de promoção. Nos Estados Unidos, a indústria
farmacêutica emprega cerca de 160 mil pessoas, 28% das quais
estão envolvidas na atividade de propaganda. Os gastos com
publicidade não raro excedem aqueles destinados à pesquisa.
Segundo o The New York Times, as empresas gastam por ano
cerca de 10 mil dólares por médico. Metade dos fundos é destinada
a anúncios e mala direta. A outra metade está alocada em eventos
especiais, tais como exibição de produtos em encontros científicos,
simpósios para grupos médicos, publicações, pesquisas, jantares,
coquetéis, viagens…
Recentemente, a Folha de S. Paulo publicou matérias sobre o
assunto, comentando a “promíscua relação entre médicos e a
indústria farmacêutica”, segundo a expressão do cardiologista
Roberto Luiz d’Avila, diretor-corregedor do Conselho Federal de
Medicina. Médicos fazem palestras a favor do uso de certos
medicamentos. Nada contra — desde que o profissional informe
sobre a existência daquilo que é chamado “conflito de interesses”,
ou seja, iniciativa não resultante do estrito objetivo científico. Uma
outra prática tem suscitado discussão.
Matérias publicadas na imprensa internacional dizem que a
indústria
farmacêutica contrata “escritores-fantasmas” para elaborarem
artigos científicos favoráveis às suas drogas e, depois, paga
cientistas famosos para assiná-los. A prática de presentes para os
médicos é deplorável, diz o infectologista Caio Rosenthal, do
Conselho Regional de Medicina de São Paulo, acrescentando: “Mas
compreendo que sejam seduzidos, pois muitos vivem em situação
de
penúria”. Gabriel Tannus, presidente da Associação da Indústria
Farmacêutica de Pesquisa, lembra que existe uma resolução da
Agência Nacional de Vigilância Sanitária estabelecendo normas
para a relação entre médicos e indústria, e que as práticas pouco
éticas são antes a exceção do que a regra.
O fato é que ninguém pode negar os enormes avanços científicos
da
indústria farmacêutica. Medicamentos salvam vidas, aliviam o
sofrimento, melhoram a qualidade de vida, e a indústria estimula a
pesquisa. Mas é preciso separar bem as coisas. Estímulo ao
desenvolvimento científico e cultural, sim. Mordomia, não. É um
indesejável efeito colateral.

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