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CONTEXTOS DE PRODUÇÃO -
INSTRUMENTOS LÍTICOS PLANO-
CONVEXOS PROVENIENTES DE SÍTIOS
LITO CERÂMICOS DO ESTADO
ARTIGO
DE MATO GROSSO*
SIBELI A. VIANA**
É nosso propósito neste artigo tratar dos principais aspectos teórico-metodológicos que
nortearam a análise dos instrumentos líticos lascados dos sítios lito-cerâmicos locali-
zados no vale do rio Manso, região centro-sul do estado de Mato Grosso1. Para isso,
tomaremos como eixo condutor a discussão acerca de dois instrumentos do tipo plano
convexo, tradicionalmente denominados de “lesmas”,2 as quais são consideradas tão
singulares no Brasil Central a ponto de, no passado, serem indicativos de marcadores
artigo
É também nosso propósito apresentar os argumentos tecnológicos que têm nos
levado a considerar que esses instrumentos – “lesmas” – não provêm do sistema tec-
nológico de lascamento dos grupos que ocuparam os sítios lito-cerâmicos de Manso e
confeccionaram os demais instrumentos no referido sitio.
Estas questões foram primeiramente discutidos por Viana et al. (2002), quando
questionavam sobre as hipóteses simplistas, normalmente aplicadas à estas situações
relacionadas à apropriação de instrumentos, empréstimo de material ou transferências
de conhecimentos tecnológicos entre grupos distintos. A hipótese de um simples reas-
sentamento sobre sítio mais antigo, não se sustenta, já que os perfis estratigráficos e a
análise geral da indústria lítica não demonstravam vestígios dessas eventuais instalações
mais pretéritas. No entanto, tais explanações pouco avançaram, e se limitaram a ad-
mondon (1969) e Boëda (1997), onde são considerados os aspectos evolutivos e a gênese
dos objetos técnicos.
Para a explanação dessa questão, parte-se do princípio de que a tecnologia pode
mudar e se desenvolver dentro de um determinado grupo, ela é dinâmica na medida em
que os ajustes, as situações imprevistas e a criatividade são inerentes aos indivíduos em
todos os tempos. Mas, ao buscarmos os argumentos técnicos para assegurar a susten-
tação da referida hipótese constatamos algumas restrições. Observamos, com base nos
estudos tecnológicos, que as mudanças tecnológicas seguem uma trajetória lógica tendo
por parâmetros características tecno-sociais da própria cultura. Mas o que significa
seguir uma “trajetória lógica”?
Goiânia, v. 9, n.1, p. 101-131, jan./jun. 2011.
“L’ objet technique (c’est-à-dire l´objet étudié comme aboutissement d´une chaîne opératoire) est
d´abord le fruit d´une connaissance abstraite conçue par le cerveau humains; il est ensuite fabriqué
au moyen d´un processus technique de réalisation qui organise progressivement une matière inorga-
nique et la finalise comme un prolongement du corps humain vers le milieu extérieur.
artigo
comparada a todo o momento com a imagem mental idealizada a ser praticada no
próximo estágio.
Nesse sentido, a produção de qualquer instrumento por mais simples que se con-
figure, deve ser compreendida a partir de uma concepção “não-aleatória”, presente des-
de a seleção da matéria-prima, a produção do suporte, passando pelos diferentes estados
de modificação deste suporte (alguns instrumentos podem ser caracterizados sem mo-
dificação intencional, utilizados em estado bruto) e, finalmente chegando à função e ao
funcionamento do instrumento. Isso reforça a idéia de que, mesmo entre os instrumen-
tos pouco transformados, como é o caso da grande maioria dos instrumentos líticos dos
sítios do Vale do rio Manso, houve uma pré-concepção mental de sua estrutura. Nas
palavras de Deforge (1985, p.53), “tous les objets que l’homme a inventés, produits et
Chaque objet se traduit par une forme, portée par une structure, elle-même composée d’autres élé-
ments – des caractères techniques – liés entre eux de sorte que la spécificité de leur agencement crée la
forme requise. De ce fait, la forme n’est qu’une des composantes de la structure. Si la forme peut être
considérée comme la manifestation extérieure de la structure, cela n’ implique pas que la structure
105 puisse être réduite à la forme (BOËDA, 1997, p. 8).
Enfim, podemos perceber os instrumentos inseridos em linhagens evolutivas
específicas. Essa evolução, todavia, não pode ser pensada em uma ascensão sempre
positiva, há interrupções que podem levar ao fim do ciclo de vida da produção do
instrumento, assim como há saltos ou continuidades4. É interessante pensar que, se
nos tempos atuais, o desenvolvimento e as mudanças tecnológicas são mais rápidas, ou
seja, ocorrem em um espaço de tempo relativamente curto, o mesmo não ocorreu na
ARTIGO
pré-história e, segundo Boëda (2004, p. 23), as principais causas dessa aceleração são a
“capacidade de memorização” e a “comunicação” entre os homens.
Ainda sobre essa questão, pode-se perguntar até onde segue essa evolução tecno-
lógica? Há alguma restrição? Para Simondon (1969), há dois tipos de restrições: uma
econômica relacionada à quantidade de matéria-prima, de trabalho e o consumo de
energia gasto; a outra diz respeito ao fato do objeto não ser “auto-destrutivo”, ele se
mantém em funcionamento estável o maior tempo possível. Boëda (1997) acrescenta
que o instrumento pode ser abandonado por algum efeito circunstancial, de “moda”,
embora operacionalmente ainda esteja respondendo às suas funções (BOËDA, 1997).
Segundo Simondon (1969), a evolução dos objetos técnicos segue num processo,
cujo ápice é seu estado de concretização, ou seja, há uma transformação progressiva
Goiânia, v. 9, n.1, p. 101-131, jan./jun. 2011.
de uma estrutura denominada “abstrata”, que segue rumo à uma estrutura “concreta”.
Uma forma primitiva do objeto técnico, a forma “abstrata”, na qual cada unidade teóri-
ca e material é tratada como única e seus elementos não estão em sinergia. Essa forma
“abstrata” tende ao modo “concreto”, no qual o sistema é unificado, havendo uma siner-
gia de forma e função que resulta numa integração total do objeto técnico.
Outro aspecto importante sobre essa questão, diz respeito à simplificação do ob-
jeto técnico “concreto”. Deforge (1985) e Boëda (2004) baseiam-se nessa obra de Si-
mondon, para notar algumas características evolutivas desses objetos “concretos” como,
redução do seu volume e da sua massa. Segundo Deforge (1985), a concretização leva à
“evolução rumo ao simples”. Ele observa, através da evolução de algumas linhagens de
objetos modernos, uma tendência à simplificação do objeto técnico, que não significa
regressão tecnológica. Assim, por exemplo, a redução do número de peças da indústria
eletrônica é considerada como um indicador bastante claro da evolução que caminha
no sentido da simplificação.
Segundo Boëda (1997), o processo de concretização dos instrumentos também
tende a uma normalização das características morfotécnicas presentes nos processos
de produção tecnológica e, finalmente, ao estado de hipertelia, caracterizado por uma
especialização exagerada, que “desadapta” o instrumento em relação a uma mudança
na sua utilização, ou seja, a menor modificação influenciará sua estrutura, chegando
mesmo a inviabilizar a funcionalidade do instrumento. Nesse sentido, o estado de hi-
pertelia caracteriza, por um lado, o ápice da evolução tecnológica do instrumento.
Sobre os objetos técnicos pré-históricos “abstratos”, pode-se tomar como exemplo
os raspadores, bem conhecidos na literatura especializada sobre pré-história da região
Centro Oeste brasileira, estes apresentam um ou mais bordos ativos. Nesses instrumen- 106
tos as partes ativas do instrumento podem ser utilizadas independentes umas das outras
e, no caso de uma quebra ou de qualquer outro acontecimento não previsto, é possível
retomar o objeto, reorganizando-o e mantendo sua função primeira ou adaptando-o a
outras funções. Esses raspadores, teoricamente, não poderiam, por exemplo, se trans-
formar (evoluir) em pontas de flechas, pois pertencem a linhagem técnicas distintas, e a
evolução tecnológica é possível de ocorrer no interior de sua própria linhagem.
artigo
No caso de objetos técnicos “concretos”, os exemplos mais clássicos são as peças
bifaciais ou foliáceas, como por exemplo, as pontas de projéteis, nas quais todas as
partes foram confeccionadas de modo integrado, há sinergia entre todas as suas partes.
Uma vez fracionada em qualquer uma de suas partes, o instrumento não funcionará
mais de maneira adequada.
Para tratar acerca da gênese de linhagens evolutivas, é preciso considerar a es-
trutura dos instrumentos e, para isso, é importante de destacar o suporte no qual os
instrumentos foram produzidos. Neste contexto, destaca-se como via de análise o mé-
todo de debitagem, caracterizado pela exploração dos núcleos, a partir de métodos
específicos:
A evolução das estruturas dos núcleos foi tratada em Boëda et al. (2005), quando
detalham as estruturas de debitagem, a partir de sistemas tecnológicos distintos: “A”,
“B”, “C”, “D” e “E”. As concepções de debitagem “A”, “B”, e “C”, caracterizam-se em
núcleos “abstratos”, nelas as seqüências de exploração do bloco são independentes uma
em relação à outra (as partes não estão em sinergia). Mesmo que haja várias superfícies
de debitagem, elas são independentes entre si.
O sistema “C”, o mais comum na região do rio Manso, se caracteriza pela ocor-
rência de uma organização algoritma que, segundo Boëda (2001), corresponde a menor
operação técnica, necessitando de uma superfície de plano de percussão e de uma su-
perfície de debitagem; que podem ou não serem previamente organizadas. Podem estar
presentes séries de retiradas, sendo que a mais comum é uma seqüência de até quatro
retiradas. A inicialização dos núcleos pode ser realizada a partir de uma superfície
natural, de uma superfície antiga de debitagem ou de uma preparação específica do
plano de percussão. Em todos os casos, ela se situa em uma ou mais partes do bloco,
não ocorrendo, portanto, uma estruturação total da peça.
Entre esses sistemas de debitagem mais simples, destacamos ainda, na região do
107 rio Manso, os núcleos explorados por procedimentos bipolares, realizados sob uma
bigorna, conforme descrição de Crabtree (1972) e núcleos explorados por “fatiagem”.
A debitagem por “fatiagem” consiste na exploração de um seixo rolado, sendo que toda
a superfície natural do bloco é relevante para a exploração da debitagem1.
O sistema de debitagem “D” é caracterizado por uma maior complexidade tecnológi-
ca. Refere-se às concepções de debitagem discóide e piramidal. Nesse sistema de exploração
um maior número de características do bloco são determinantes: as superfícies e as extremi-
ARTIGO
dades laterais e distais são levadas em consideração no momento da escolha do bloco. Esta
sinergia das partes é igualmente necessária: durante o processo de debitagem, cada retirada
influenciará no sucesso da próxima lasca. O que está em jogo não é somente a predetermi-
nação das lascas, mas também a manutenção da estrutura dos núcleos, para garantir a reti-
rada de outras lascas predeterminadas, de modo que, por exemplo, um golpe abrupto pode
desestruturar os núcleos discóides. Há um início de normatização da produção.
O ápice da evolução das estruturas de debitagem está representado pela levallois
e laminar, denominadas de sistema “E”. Nelas há um alto investimento técnico de pro-
dução (BOËDA, 1997). Isto é, primeiramente ocorre a preparação total dos núcleos e,
posteriormente, sua exploração. No caso da estrutura levallois, todo o bloco é preparado
para a retirada de uma única lasca ou de uma seqüência de lascas, os suportes produzi-
Goiânia, v. 9, n.1, p. 101-131, jan./jun. 2011.
artigo
objetivo é moldar uma matriz cujos bordos serão, em um segundo momento, orga-
nizados para obter um ou mais instrumentos. As atividades de façonnage podem ser
realizadas em suportes brutos ou estar relacionadas a qualquer nível evolutivo de debi-
tagem. Segundo Boëda et al (2005), podem ser distinguidos três sistemas de produção
dos instrumentos: um primeiro, mais elementar, nele busca-se formas naturais que
possuam o maior número de características desejadas, de modo que praticamente não
são feitas transformações no objeto, aproveitando ao máximo as formas naturais dos su-
portes. O segundo sistema é caracterizado pela existência de certa organização técnica,
restrita ao gume do instrumento. Há, portanto, pouca transformação para se chegar ao
produto esperado. Esse segundo estágio é caracterizado pela adição de uma ou de várias
partes transformativas associadas a uma parte preensiva. Finalmente, o terceiro estágio
Gestão de Matéria-Prima
A região do rio Manso possui nos tempos atuais abundante matéria-prima lítica,
que esteve disponível para as populações pré-históricas que ocuparam a região. A maior
disponibilidade está nos estratos geológicos do Grupo Cuiabá (bacia do rio Manso).
Esta disponibilidade, em menor proporção, também é atestada às margens dos rios
da bacia do rio Casca (Formação Furnas e Botucatu), bem como nos relevos de topo
tabular, onde se destacam o Morro da Mesa, Morro do Descalvado, Morro do Chapéu.
Pela análise do material lítico constata-se que o sílex e o arenito constituem as
matérias-primas predominantemente utilizadas, ambas são provenientes de seixo de rio
e fragmentos de colúvio (seixo, calhau e bloco). O sílex pode ainda ser encontrado sob 110
a forma de veio. Em geral, a qualidade da matéria-prima na região varia de média a re-
gular, dependendo do local de procedência. As rochas que provém de veio apresentam,
em geral, grãos mais compactos e homogêneos, com menos intrusões e superfícies de
aspectos translúcidos, consideradas de melhor qualidade se comparadas com aquelas
provenientes de seixos rolados ou de fragmentos coluviais (seixos, calhaus e blocos), que
apresentam mais fissuras e uma granulação menos compacta. Ressalta-se que é justa-
artigo
mente na forma de veio que ocorre a maior parte do material arqueológico em sílex de
boa qualidade.
Embora a maior ocorrência de material arqueológico em arenito tenha sido re-
gistrada na forma de seixo rolado, a melhor qualidade ocorre nos grandes blocos. No
entanto, em nenhuma das duas situações, a qualidade dessa matéria-prima não se apro-
xima da alta qualidade da matéria no qual os instrumentos “lesmas” foram confeccio-
nados.
Os instrumentos líticos em seixos de arenito e de sílex apresentam vestígios de
córtex que denotam uma preferência por seixos volumosos, de superfícies convexas,
formando ângulos naturais, representados por quinas, o que, em termos tecnológi-
cos, permite um melhor direcionamento de debitagem da lasca (TIXIER, et al 1980).
Pantanalzinho 02 X 01 01
Fartura 01 X 01 02
São Roque X X X -
Roncador 02 X - -
Estiva 1 1 - 04 02
Milharal X X 1 -
Coca-cola X X X -
Legenda: X = concepção de debitagem atestada pelos produtos de lascamento.
Fonte: Viana (2005).
Goiânia, v. 9, n.1, p. 101-131, jan./jun. 2011.
ou côncava. O plano de corte está entre 60o a 90o. Note-se que os planos de corte foram
artigo
produzidos e sua seção, na maioria dos casos, é plana/côncava.
Proveniência
do PC - UTF
Tecno- Espes produzido
Quan- Comp. Largura No PB - PC PC - prehensiva
tidade sura PB (oC) (façonnage/ Suporte
tipo (mm) (mm) UTF superfície (oC) superfície
debitage) ou Produto/
(mm
natural do natural
suporte
Lasca de
Negativos de
debitage “C”, Negativos
A 45 31 12 1a4 44 - 75 cc- cx - pl 30 - 75 cc - pl debitage e
volumosa de debitage
natural
com dorso
Goiânia, v. 9, n.1, p. 101-131, jan./jun. 2011.
Lasca de
debitage
Negativos de
“C”, nervura Negativos
B 23 44 32 14 1a4 30 - 80 cc - pl - cx 25-80 cc - pl - cx debitage e
central ou de debitage
produzido
paralela ou
em Y
Produzido Natural e
Lasca “C” ,
D 5 61 38 21 1a3 40 -70 cx - pl 50 - 70 pl - cx debitage ou negativos de
com nervura
façonnage debitage
Lasca de
debitage
Negativos
E 2 65 43 30 3a4 70 e 100 pl - cc 70 - 80 pl - cc Natural “C”, espessa
de debitage
e talão
avantajado
Negativos Negativos
Lasca
F 7 39 46 22 1 a 4 70 - 95 cc - cx 40 - 75 cc - pl debitage e de
ultrapassada
produzido debitage
Natural ou
Negativos
Lasca “C” – negativos
G 2 53 75 17 1 a 2 50 60 cc - pla 40 - 60 cc - pl debitage e
tranche de
produzido
debitage
Négatifs
cc - cx Negatifs
H 3 26 30 10 2 a 4 55 - 80 cc - pl - cx 55 - 80 Écaille “C” de
- pl debitage
debitage
Negativos
Negativos
cc - cx Lasca “C” - de
I 21 50 43 15 1 a 9 35 - 85 cc - pl - cx 35 - 85 debitage e
- pl s/ nervura debitage e
produzido
natural
continua...
116
conclusão
Negativos
Negativos de
J 15 53 46 23 1 a 5 45 - 90 cc - cx - pl 50 - 75 cx - pl debitage e Lasca “C” debitage
produzido ou
natural
artigo
Negativos
de
Lasca de
Negativos debitage,
proveniente
K 38 44 36 23 1 a 3 45 - 75 cc - cx - pl 20-75 pl - cc debitage e de
de
produzido façonnage
façonnage
e de
retoque
Negativos Negativos
cc - cx Debitage
L 45 58 45 21 2 a 4 55 - 115 cc - cx - pl 55 80 debitage et de
- pl “C”
produzido debitage
Debitage Negativos
Negativos
M 24 40 39 17 1 a 4 25 - 45 cx - pl 25-60 cx - pl discóide- de
debitage
núcleo “D” debitage
Lasca
Negativos
Negativos proveniente
N 2 63 34 22 2 a 4 60 a 85 pl - cc 60 - 70 pl de
debitage debitage
Negativos
de
Negativos Lasca
O 2 54 56 2 1 a 2 55 - 65 pl - cx 45 - 65 pl debitage
debitage Kombewa
e de
façonnage
Negativos
Lasca de
Negativos de
P 12 50 35 23 1 a 3 50 - 75 pl - cc 40 - 70 pl - cc fragmentos
debitage debitage e
naturais
natural
Negativos
Lasca de
Negativos de
Q 11 26 24 24 1 a 3 55 - 100 pl - cc - cx 55 90 pl - cc núcleo
debitage debitage
piramidal
ou natural
Negativos
Negativos
pl - cc Debitage de
R 4 77 55 21 1 a 4 40 - 90 pl - cc - cx 40 - 80 debitage e
- cx “C” debitage
produzido
ou natural
Negativos
Negativos
pl - cc Debitage de
S 13 50 39 29 1 a 4 65 - 90 cc - cx - pl 60 - 80 debitage et
- cx “C” debitage e
produzido
natural
Legenda:
PC = plano de colte
PB = plano de bico
pl = plano; cc = cx=convexo; bicc - bl côncavo; blcx = bl convexo
= Instrumentos de categoria 4.
Categoria 4 – é formada por peças menos volumosas, nela estão presentes os instrumen-
tos provenientes do sistema de debitagem “D”. Em geral apresentam dimensões menores e
são bastante normatizadas se comparadas aos produtos de debitagem provenientes do “C”.
Apresentam maior comprimento na largura ou forma quadrada, com face superior marcada
por uma ou mais nervuras-guias. Elas não têm dorso, seu perfil é helicoidal e os gumes são
rasantes. O ângulo de percussão de obtenção a lasca é semi-rasante (Figura 8).
Sobre a confecção desses instrumentos, as lascas-suporte não foram molda-
das, no sentido de retirada de volume. Receberam retoques para delineamento do
gume ou foram utilizados em estado natural. Todavia, deve-se estar atento, pois esse
aspecto “circunstancial” camufla um aspecto importante desses instrumentos, carac- 118
terizado pelo sistema de debitagem que produziu tais suportes, no caso, o sistema “
D” – discoide .
Poder-se-ia questionar sobre o porquê desses instrumentos terem sido pouco
modificados, já que neles há evidencias de organização elaborada de debitagem.
A explanação dessa questão não está na ausência de conhecimento técnico para tal
atividade, pois ao contrário do que a priori pode se imaginar, essas peças denotam
artigo
um conhecimento tecnológico complexo, já que esses instrumentos foram planejados
e praticamente finalizados, durante as operações de debitagem (concepção de debi-
tagem discóide - “D”), portanto, antes mesmo da confecção do instrumento (Tabela
3). Dessa forma, trata-se de lascas pré-determinadas cujos suportes já trazem em si
as características almejadas para o futuro instrumento. Não há, por isso, necessidade
de modificá-los!
com certas UTFs transformativas, contribuiu para isso a baixa ocorrência de estruturas
com dorso.
As quatro categorias aqui definidas atestam conhecimento e aplicação de ações
técnicas precisas para a configuração de instrumentos diversos. Os instrumentos do vale
do Rio Manso são unifaciais, com a face inferior do suporte sendo naturalmente plana e
reservada. Há uma integração entre a face superior e inferior, o que garante o bom funcio-
namento do instrumento. A sinergia destas peças unifaciais se limita às zonas específicas
da peça, formadas pelas combinações de UTF transformativas e UTF preensivas.
Total de Total de
Sítios Área (m2)
material cerâmico material lítico
FA 1.148 89 65.000
SR 18 27 3.500
RO 155 16 13.500
CC 127 32 17.600
120
Implantação e Estratigrafia do Sítio Poção
artigo
almente, atingindo o início da terceira camada, mas de forma intrusiva. As “lesmas”
estavam presentes na primeira camada.
Com base no instrumento inteiro (PO 10), a leitura dos estigmas técnicos indica se
tratar de um suporte em lasca, obtida por procedimentos unipolares. A matéria-prima é
em arenito de cor vermelha, sem córtex e de qualidade excepcional, o que difere dos
demais instrumentos desse sítio, bem como de todos os demais estudados na região.
Quanto às dimensões, ele mede cerca de 110mm de comprimento, 45mm de largura
e 20mm de espessura. O eixo tecnológico coincide com o morfológico, nós temos,
portanto, uma lasca-suporte de forma retangular, cujo comprimento é mais de duas
vezes a sua largura. Apresenta ainda uma extremidade arredondada pelas seqüências
de façonnage e de retoques. A técnica de obtenção da lasca-suporte foi por realizada
por percussão dura, com um golpe tangencial. O perfil original é ligeiramente he-
licoidal, o talão é liso e mede cerca de 15 mm de comprimento e 6 mm de largura
(Figura 9).
Face inferior
Face superior
Produção do suporte
Com base nas informações tecnológicas das faces inferior e superior, nós reco-
nhecemos que esta lasca suporte tem características de predeterminação.
No sítio Poção, assim como em outros sítios da região, não há núcleos que possam
estar relacionados à produção da lasca-suporte das referidas “lesmas”.6 Isto reforça a hipó-
tese segundo a qual estas “lesmas” sejam provenientes de outros locais. Essa situação não
ocorre nas demais categorias de instrumentos. Entre os núcleos presentes, percebe-se uma
coerência técnica entre a estrutura, os negativos de núcleo e os suportes dos instrumentos.
Por outro lado, também não se pode considerar que a lasca-suporte desta “lesma”
seja proveniente de um sistema de debitagem “C”, pelo menos quando comparada com 122
os outros suportes de instrumentos ou mesmo quando comparada com negativos de
retiradas desses núcleos, constata-se que não há nenhuma semelhança tecnológica.
Diante dos dados disponíveis, se aceita o argumento de Boëda (2005, com. pessoal)
Mello (2005) e de Fogaça e Lourdeau (2006), de que o sistema de debitagem desses instru-
mentos estaria inscrito num processo técnico de evolução “intermediária”, de uma linhagem
original de objetos técnicos cujas estruturas técnicas ainda não foram localizadas.
artigo
Estrutura Volumétrica do Instrumento PO 10
O outro instrumento de sítio lito-cerâmico dessa região que, num primeiro mo-
mento, poderia se assemelhar, em termos tecnológicos, às duas peças do sítio Poção
encontra-se no sítio Estiva 1. No entanto, embora os lascamentos ocorram nos dois bor-
dos e também se entrecruze em algumas partes, a organização tecnológica do façonnage
resulta em superfícies superiores planas e convexas, ou seja superfície inferior plana e
superfície superior ora plana ora convexa.
Nota-se que há uma “harmonia” entre as diferentes partes da peça, inclusive com
a face inferior, não trabalhada. O trabalho de façonnage produziu um volume convexo.
Tal organização é percebida, a princípio, pelos negativos anteriores (produzidos duran-
te a debitagem do suporte) de direção oblíqua, que contribuíram para a convexidade
123 dos negativos posteriores, provenientes da façonnage e pela sequência de retoques.
A organização tecnológica desse instrumento está caracterizada por seqüências de
negativos de façonnage e de retoques. A primeira sequência é de façonnage presente por
toda a superfície superior da peça, porém ausente nas extremidades distal e proximal.
Pela análise diacrítica, nota-se que os lascamentos iniciaram a partir da porção proxi-
mal. Trata-se de lascamentos longos e largos (com extensão de até 18 mm e largura de
até 16 mm), quadrangulares ou mais largos do que compridos, profundos, com nervu-
ARTIGO
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Figura 12: Instrumento plano convexo retomado – “lesma” reomada – identificação das UTFs e análise
Diacrítica 126
Finalmente entendemos que os instrumentos tipo “lesmas” aqui analisados (PO
10 e PO 11), não se tratam de peças “hipertélicas”, em estágio “concreto”, como defi-
nido anteriormente Todavia, segundo Boëda (com. pessoal 2005), também não pode
considerá-los puramente “abstratos” devido ao alto índice de padronização, tomando
por base as muitas peças analisadas por Fogaça e Lourdeau (2006), que atestam essa
“normatização”. Dessa forma, tanto as informações relativas ao sistema de debitagem,
artigo
como aquelas provenientes do sistema de façonnage, contribuem para a hipótese de ins-
trumentos em fase de evolução tecnológica de nível “intermediário”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
por meio de fenômenos externos, além de fatores técnicos e/ou sociais internos, que
podem igualmente intervir na tradição tecnológica do grupo. Mas, como discutido
anteriormente, é preciso que o meio interno seja favorável (LEROI-GOURHAN,
1964) para que uma “novidade” seja aceita e persista, o que parece não ser o caso da
região de Manso.
Finalmente, pensamos que as indústrias líticas dos sítios lito-ceramicos de Manso
e suas características de variabilidade e complexidade tecnológica não sejam únicas da
região centro-oeste do Brasil7. E, considerando que as indústrias de sítios lito-cerâmicos
em geral são quantitativamente pouco representativas (o que não é o caso de todos os
sítios da região de Manso), é preciso adotar uma metodologia que considere e releve
com acuidade os valores técnicos dos objetos.
Entendemos que esses “valores técnicos” sejam possíveis de serem apreendidos
são somente pela identificação do conjunto de técnicas em si, o que Boëda (1997, p. 37)
define como “análise tecnológica total”: os sistema de debitagem e sistema de façon-
nage, suas evoluções tecnológicas e seus estados de abstração e concretização; o funcio-
namento dos instrumentos, por meio da identificação das unidades técnico-funcionais
(UTFs). Para tanto, é necessário pensar no sujeito, ou seja, quem executa as ações.
Essa proposição se traduz em um conceito antropotécnico, definido por Rabardel (1995)
que compreende que em toda técnica, deve-se considerar o utilizador e o produtor do
objeto (sujeito) e o contexto onde a situação se desenvolve, bem como o potencial dos
indivíduos e as suas capacidades intelectuais e físicas que estão relacionadas aos objetos
técnicos. Nesse sentido, a análise tecnológica se humaniza, em outras palavras, o objeto
técnico é concebido não somente por sua dimensão técnica, mas também pela dimen-
são humana e social. 128
TOOLS LITHICS OUT OF THEIR CONTEXTS OF PRODUCTION: PLAN-
CONVEX TOOLS FOUNDED IN LITHIC-CERAMIC ARCHAEOLOGICAL
SITES IN MATO GROSSO – BRAZIL
Abstract: this article discusses the methodological issues that guided the review of the chipped ins-
truments of lito-ceramic sites located in the valley of the river Manso, center-south region. It took
artigo
as a reference the epistemological concepts of technological evolution of technical objets, proposed by
Simondon (1969), developed and implemented prehistoric by Boëda (1997). The thrust of the arti-
cle is a discussion about the presence of chipped instruments, traditionally regarded as from sites of
ancient hunter-gatherers groups (Tradition Itaparica, with about 11000 BP), in contexts of more
recente archaeological sites, groups farmers and potters (Uru Tradition with about 760 BP).
Notas
1 Para mais detalhes, ver Viana (2005).
2 As pesquisas arqueológicas nessa região se iniciaram a partir da implantação de um projeto de arque-
ologia de contrato, desenvolvido pela UCG/IGPA e Furnas Centrais Elétricas, (Viana et al, 2002).
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