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O QUE É LITERATURA E TEM ELA IMPORTÂNCIA?

– JONATHAN CULLER
O que é literatura não parece ser uma questão muito importante para a
teoria literária, principalmente por 2 motivos:
1) Como a própria teoria mistura filosofia, história, politica, psicanalise,
etc. a textos literários não parece relevante separar o que é o quê.
Isso não quer dizer que os textos sejam todos iguais; alguns são mais
exemplares, mais contestadores, mais centrais que outros, mas
textos literários e não-literários podem ser estudados juntos e de
formas semelhantes.
2) A diferenciação não parece central, pois os teóricos encontraram o
que chamam de “literariedade dos textos não-literários”.

Qualidades pensadas como intrinsecamente literárias são


encontradas em produções não-literárias. Por exemplo, o historiador,
para descrever a História, não se apoia em bases científicas como as
da física que explica como X e Y ocorreram, mas o modelo que usa é
a narrativa literária. Apresenta um fato histórico através da
concatenação dos fatos, como em uma história, ligando início,
desenvolvimento e conclusão de forma que seja inteligível.
Os teóricos também demonstraram a importância do uso de recursos
retóricos em obras não-literárias, como em obras de filósofos como
Freud e Nietzsche. Recursos como metáfora e símile que não eram
usados apenas como recursos puramente ornamentais, mas que
contribuíam para a significação do texto. Dessa forma, há uma
literariedade muito forte em textos não-literários, que torna difícil a
separação do literário do não-literário.
Apesar disso, o fato da literariedade existir também nos fenômenos não
literários indica que a noção de literatura tem importância e um papel e é
preciso abordá-la.
O que é literatura poderia se desdobrar também nas características
específicas das obras literárias: o que as distingue de obras não-literárias? E
ainda, há algum traço distintivo comum às obras literárias?
A literatura vem em vários tamanhos e formatos, e às vezes, algumas obras
literárias tem menos a ver com outras obras literárias do que obras não-
literárias. Alguns romances, por exemplo, podem se aproximar mais de
autobiografias do que de textos poéticos. Alguns poemas podem se
aproximar mais de outro gênero, como crônicas, do que de outros textos
poéticos. É muito relativo.
Mesmo a perspectiva história faz a questão ficar ainda mais difícil. Nós
chamamos hoje de literatura coisas que foram escritas nos últimos 25.000
anos, sendo que o conceito de literatura que usamos não tem nem metade
dessa idade. Antes de 1800 literatura em diversas línguas europeias
indicava textos escritos, e mesmo hoje, quando um biólogo diz que há muita
literatura sobre evolução, não quer dizer que muitos poemas foram escritos
sobre evolução, mas que há muitas fontes escritas sobre esse assunto. O
contrário também é possível, por exemplo, uma obra como a Eneida de
Virgílio não era estuada como literatura, como fazendo hoje, analisando e
fazendo paráfrases, buscando o que queria dizer: era tomada como modelo
de uso da língua, etc, estudada de forma totalmente diferente antes do
século XIX.
O sentido ocidental moderno de literatura se deve, em grande parte, a
teóricos românticos alemães. Porém, mesmo se nos restringirmos a
literatura posterior a esse evento, vários poemas hoje que se aproximam de
trechos de conversas, e são em versos brancos ou livres poderiam não ser
considerados literatura pelos parâmetros herdados dos românticos.
Se pensarmos a respeito da literatura não europeia, fica ainda mais difícil. É
muito fácil dizer que literatura é aquilo que dada sociedade considera como
tal.
Isso nos faria mudar o foco da pergunta para “o que faz com que nós
consideremos algo como literatura?” Um exemplo análogo é o de ervas
daninhas. Como saber o que é uma erva daninha na limpeza de um jardim?
Existe uma “daninheza” das ervas que as torna diferentes? Na verdade, as
ervas daninhas são aquilo que os jardineiros não querem em seus jardins.
Talvez isso seja a literatura.
Mesmo assim, essa resposta não resolve e também muda a pergunta para o
que envolve tratar algo como literatura em uma determinada cultura. Em
alguns casos, a linguagem destacada de outros contextos e propósitos pode
ser interpretada como literatura, mas também deve possuir algumas
qualidades que possibilitem essa interpretação. Nesse sentido, literatura,
fora de um contexto específico, se torna um contexto possibilitando outras
leituras, e, assim, parece envolver algumas operações interpretativas que o
leitor possa fazer.
Um conceito relevante que surgiu da análise de histórias foi o “princípio
cooperativo hiper-protegido”. A comunicação depende da convenção
básica de os participantes cooperarem um com o outro e de que o que um
diz é relevante para o outro. Dessa forma, se pergunto “João é um bom
aluno?” e me respondem “Ele é pontual”, ao invés de eu reclamar que na
pessoa não respondeu à pergunta, eu sou capaz de entender que não há
muitas coisas boas a dizer sobre João como aluno, e que meu interlocutor
está, na verdade, cooperando.
As narrativas literárias entram em uma categoria mais ampla, aquela dos
“textos de demonstração narrativa”, discursos cuja relevância para os
interlocutores não está em passar uma informação específica, mas na
narratividade. Contando um caso ou escrevendo um conto, o produtor tenta
ser útil de alguma forma, divertindo ou dando prazer, produzindo algo que
vá valer a pena. O que diferencia os textos literários de outros discursos de
“demonstração narrativa” é que eles são publicados, resenhados e
republicados para que os leitores se aproximem com a certeza de que são
bem construídos e de valor. Assim, na literatura pode-se dizer que o
princípio cooperativo é hiper-protegido, pois os leitores presumem que, na
literatura, as complicações da linguagem têm um sentido e um propósito
comunicativo, e não imaginam que o interlocutor não está sendo
cooperativo, como poderia ser em outros contextos de fala. Os leitores se
esforçam para interpretar coisas que zombam dos princípios de
comunicação eficiente. A literatura faz com que pensemos que nossos
esforços valerão a pena, e assim, dediquemos uma determinada atenção ao
texto. Porém, na maioria das vezes, o que faz um leitor tratar algo como
literatura, é encontra-lo em um contexto que o identifica como tal.
Não podemos simplesmente falar que são determinados traços que tornam
algo literário. Às vezes o texto tem traços que o tornam literário sim, mas às
vezes é o contexto literário que nos faz tratar algo como literatura. Também
não é possível transformar em literatura qualquer fragmento de texto por
possuir determinados traços que outros textos literários possuem.
1. A literatura como a “colocação em primeiro plano da
linguagem”
Muitas vezes se diz que a literariedade reside na organização da linguagem
que diferencia a literatura da linguagem usada com outras finalidades. A
literatura é a linguagem que coloca em primeiro lugar a própria linguagem,
tornando-a estranha e jogando-a no leitor, de modo que não é possível
ignorá-la. A poesia, por exemplo, organiza o plano sonoro, tornando, através
da rima (considerada marca convencional de literariedade) explícito o ritmo
que já estava ali.
Também ocorre que o leitor não perceba o aspecto sonoro especificamente,
como na narrativa. Mas, quando um texto é enquadrado como literatura, faz
com que procuremos marcas distintivas da organização da linguagem,
diferentes das que vemos em outros textos.
2. Literatura como integração da linguagem
Literatura é a linguagem na qual os vários elementos que a compõe
estabelecem relações complexas. Na literatura, o som ecoa sentido, por
exemplo, e então, e possível observar relações de reforço, contraste e
dissonância. Em uma correspondência bancária, é improvável que isso
ocorra. Porém, essa ocorrência também não define literatura.
Nem toda literatura coloca a linguagem em primeiro plano, como é o caso
de alguns romances. E nem tudo que coloca linguagem em primeiro plano é
literatura. Um exemplo, é a exemplificação que Roman Jakobson dá da
função poética: “I like Ike” é um jogo de palavras, da campanha política de
Dwight D. “Ike” Eisenhower que relaciona o sujeito e o sujeito “gostado” à
ação de gostar (like contem “Ike” e “I”). Dessa forma, o uso da linguagem
em primeiro plano e as relações entre diferentes níveis linguísticos
(gramática e temáticas, sons e sentido, forma e conteúdo) não são
necessariamente usos exclusivos da literatura. Um marciano, por exemplo,
não conseguiria com esses parâmetros determinar o que é e não é literário.
Portanto, normalmente, essas caraterísticas são usadas com o intuito de
fazer-nos a dirigir a atenção a certos aspectos da literatura e tentar
entender a contribuição que cada coisa traz ao todo.
3. Literatura como ficção
Uma das razões pelas quais os leitores prestam uma tenção diferente à
literatura é o fato de que suas elocuções tem uma relação especial com um
mundo: uma relação ficcional. A obra literária é um evento linguístico em
que há um mundo ficcional com narrador, personagens, acontecimentos e
público implícito (implícito porque se define a medida que se decide o que
deve ser explicado e o que se supõe que o publico saiba).
As obras literárias se referem a personagens fictícios e não históricos. Os
dêiticos, elementos que servem para localizar o fato no tempo e espaço sem
defini-lo, como pronomes pessoais (eu, você) ou advérbios (hoje, amanhã,
aqui, agora, ali) indicam uma dimensão dentro do texto. O “agora” em um
poema, pode não ser o momento em que o autor escreve, mas um tempo
dentro do universo ficcional. O “eu” pode não ser o autor empírico, mas o
eu-lírico, o falante dentro da obra. Um poema pode ter um autor velho e um
falante jovem, ou vice-versa. Da mesma forma, personagens e narradores
podem tem visões de mundo e experiências diferentes das de seus autores,
de modo que isso transpareça na obra.
Na ficção, a relação entre o que as personagens dizem e o que diz o autor é
questão de interpretação. O mesmo vale para os acontecimentos no mundo
narrativo-ficcional e as situações do mundo. Os textos não-ficcionais,
normalmente, estão inseridos em contextos que dizem como interpretá-los,
como uma bula de remédios, uma notícia de jornal, etc. Já a ficção, deixa
isso em aberto. A relação com o mundo pode ser tanto uma propriedade das
obras literárias quando uma atribuição dada por determinada interpretação.
Por exemplo, interpretar Hamlet como uma obra que fala algo sobre a
Dinamarca, pois o mundo ficcional está relacionado a Dinamarca, é uma das
várias maneiras de interpretar Hamlet, mas não significa que essa relação
seja necessária. A ficcionalidade da literatura separa a linguagem usada de
outros contextos e deixa a relação do texto com o mundo aberta à
interpretação.
4. Literatura como objeto estético
As características discutidas até agora – o uso da linguagem em primeiro
plano, a literatura como integração da linguagem, a ficcionalidade e
separação de contextos práticos – podem ser unidas dentro da estética. A
estética é o nome dado a teoria da arte e envolve debates sobre se a beleza
é uma propriedade objetiva da obra de arte ou se é subjetivamente
atribuída pelos espectadores.
Par Kant, o principal teórico da estética moderna ocidental, “estética” é o
nome da tentativa de transpor a distância entre mundo material e espiritual.
Objetos estéticos, como pinturas e esculturas, apresentam formas sensoriais
(cores, sons) combinadas a formas espirituais (ideias) e demonstram a
possibilidade de juntas material e espiritual. Uma obra literária é um objeto
estético, porque, deixando outras funções comunicativas suspensas ou
adiadas, leva os leitores a considerar a inter-relação entre forma e conteúdo.
Os objetos estéticos para Kant e outros teóricos tem uma “finalidade sem
fim”, isto é, são feitos de forma que suas partes atuem conjuntamente para
algum fim, mas como um todo não possuem finalidades externas,
finalidades outras que a própria obra de arte, o prazer na obra ou o prazer
ocasionado pela obra. Assim, considerar um texto como literário significa
considerar a contribuição de suas partes para o todo, mas não considerar a
obra especificamente e necessariamente destinada a algum fim, como
informar ou persuadir. Isso não quer dizer que não possam estar destinadas
a esses fins, por exemplo, mas não é possível dizer que uma boa obra
literária é aquela que faz qualquer dessas coisas, seja divertir ou informar
ou persuadir.
5. Literatura como construção intertextual ou auto reflexiva
Teóricos recentes argumentaram que obras literárias são feitas a partir de
outras obras literárias, são tornadas possíveis pelas obras anteriores, pela
tradição anterior, com a qual dialogam, retomando, repetindo,
contradizendo, contestando, transformando. Essa noção é conhecida como
intertextualidade. Desse modo, ler algo como literatura significa considera-
lo como possuidor de significado em relação a outros textos.
Como ler um texto como literatura é relacioná-lo a outros textos, sendo
também comparar ou contrastar o modo como ele faz sentido com o modo
como outros textos fazem sentido, é possível ler os textos literários como
sendo sobre os próprios textos literários/literatura. Eles se relacionam com
as operações da imaginação e interpretação poética. Daí, é possível falar de
um conceito importante na teoria recente: a auto-reflexividade da literatura.
Os romances/poemas são, em algum nível sobre os romances/poemas. Por
exemplo, é possível, ao ler Madame Bovary, perceber a relação entre a
“vida real” de Emma Bovary com os romances românticos que ela lê e com
o próprio romance de Flaubert e como eles conseguem que a experiência
faça sentido. Sempre é possível indagar a respeito de um romance ou
poema: como o que ele diz a respeito de fazer sentido se relaciona com o
modo como ele próprio faz sentido.
A literatura é prática na qual os autores tentam fazer avançar ou renovar a
literatura, assim é também uma reflexão implícita sobre a própria literatura.
Isso também é algo que pode ser dito de outras formas de discurso, por
exemplo. A intertextualidade e auto-reflexividade não são, tampouco,
definidores da literatura, mas são a colocação em primeiro plano de
aspectos do uso da linguagem e de representação que podem ser usados
em outros lugares.
Nesses cinco casos, encontramos essa estrutura: há o que pode ser descrito
como propriedade objetiva das obras literárias, mas que também pode ser
visto como os resultados de um tipo particular de atenção. Nenhuma dessas
perspectivas engloba a outra de forma abrangente. As qualidades da
literatura não podem ser traduzias nem em características objetivas nem
em uma atenção particular. Isso, porque quando procuramos padrões e
coerência há resistência. A linguagem resiste aos enquadramentos que
fazemos. É difícil considerar o dístico de uma poesia simbolista como uma
sorte de biscoitos da sorte, assim como e difícil considerar uma ordem
expressa por uma receita como uma poesia, mesmo fora de seus contextos
originais. Assim, a literariedade da literatura pode residir na tensão que há
entre o material linguístico e a expectativa convencional do leitor do que é
literatura. Assim mesmo, deve-se dizê-lo com cuidado, pois todas as outras
características do texto literários vistas até aqui não são definidoras de
literatura, porque também são verificáveis em outros textos.
Nas décadas de 80 e 90 do século XX, a teoria não se importou muito com a
definição de literatura, pois refletiam sobre a literatura como uma categoria
histórica e ideológica, com funções políticas e sociais. Na Inglaterra do
século XIX, a literatura surgiu como uma ideia muito importante, uma forma
especial de escrita que desempenhava diversas funções. Nas colônias do
império britânico serviu como meio de instrução, ensinando uma admiração
mansa da grandeza da Inglaterra e envolvendo os nativos como
participantes gratos de um processo civilizador histórico. Na metrópole, a
literatura se contrapunha ao egoísmo e materialismo da nova doutrina
capitalista, fornecendo valores alternativos à burguesia e à aristocracia, e
dando aos trabalhadores uma baliza na cultura que os tratava como
subordinados. Era capaz de, ao mesmo tempo, proporcionar um senso de
grandeza nacional, um sentimento de camaradagem entre as classes e
substituir a religião como fator de união social.
Uma coisa que é crucial para essa literatura é a exemplaridade em ação.
Uma obra literária é fundamentalmente a história de uma personagem
ficcional, mas se apresenta de alguma forma exemplar. Porém, se recusa a
especificar e delimitar sobre o que se trata essa exemplaridade. Assim, é
fácil para leitores e críticos falarem de universalidade da literatura. Como
todas as repostas que podemos dar às perguntas sobre “a quais categorias
a literatura se refere” são insuficientes, é mais fácil o leitor tomar como
implícita a possibilidade de universalidade.

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