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A pintura holandesa nas Lições sobre a estética de Hegel


Como princípio metafísico que se encontra na base da avaliação hegeliana da
pintura holandesa, pode-se tomar a seguinte passagem do começo da Forma de arte
romântica. Ela retoma a questão da relação da natureza com o ideal ( que remete a
Schiller, quando este afirma a “oposição do ideal e do mundo de sombras”), tal como
Hegel a expõe no começo da primeira parte sobre o ideal. A pergunta é: Como o ideal no
romântico se apresenta no exterior e lida com o mundo exterior?

“Temos, desse modo, dois mundos no romântico, um reino espiritual que é em si


mesmo acabado, o ânimo, que se reconcilia em si mesmo e que primeiramente dobra a
retomada retilínea do nascimento, da decadência e do renascimento para o verdadeiro
percurso circular, para o retorno em si mesmo, para a autêntica vida de fênix do espírito;
do outro lado, temos o reino do exterior enquanto tal que, libertado da união consistente
com o espírito, se torna uma efetividade completamente empírica, em vista de cuja
forma a alma fica imperturbada. Na arte clássica o espírito dominou o fenômeno
empírico e o penetrou completamente, pois era nele que ele tinha de manter sua
realidade completa. Mas agora o interior é indiferente quanto ao modo de configuração
do mundo imediato, uma vez que a imediatez é indigna da beatitude da alma em si
mesma. O que aparece externamente não é mais capaz de expressar a interioridade, e se
mesmo assim ainda é convocado para isso, apenas mantém a tarefa de mostrar que o
exterior é a existência que não satisfaz e que deve apontar de volta para o interior, para o
ânimo e o sentimento, enquanto apara o elemento essencial. Mas justamente por causa
disso a arte romântica também deixa a exterioridade, por seu lado, novamente livre para
si mesma e permite, a este respeito, que toda e cada matéria, desde as flores, árvores até
o objeto caseiro mais cotidiano, chegue sem entraves à exposição, também na
contingência natural da existência. Mas este conteúdo, contudo, traz ao mesmo tempo
consigo a determinação de que ele, enquanto matéria meramente exterior, é indiferente e
baixo e apenas alcança seu autêntico valor quando o ânimo se introduziu nele e ele não
apenas deve expressar o interior [Innerliche], mas a interioridade [Innigkeit] que, em
vez de se fundir com o exterior, apenas aparece em si mesma consigo mesma
reconciliada. O interior, nesta relação, impelido desse modo ao ponto mais alto, é a
exteriorização destituída de exterioridade, invisível como que se percebendo apenas a si
mesmo, um ressoar enquanto tal, sem objetividade e forma, um pairar sobre as águas,
um tilintar sobre um mundo que em seus fenômenos e junto a eles apenas pode acolher e
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espelhar um reflexo deste estar em si mesmo da alma.” (“3. O modo de exposição


romântico na relação com seu conteúdo”, 2ª parte, Werke 14, p. 140-41/trad., vol. II,
p. 261-262)

1) “Todavia, é primeiramente mediante a utilização das cores que a pintura leva


a plenitude da alma à sua autêntica aparição [Erscheinung] viva. Mas nem todas as
escolas de pintura tinham a arte do colorido num mesmo nível, aliás, trata-se de um
fenômeno peculiar o fato de quase somente os venezianos, e principalmente os
holandeses, terem sido os mestres completos na cor: ambos próximos ao mar, numa terra
baixa, cortada por pântanos, águas e canais. No caso dos holandeses, podemos esclarecer
isso pelo fato de terem tido diante de si, no horizonte sempre brumoso, a constante
representação do fundo cinzento e que, devido a esta turvação, foram tanto mais levados
a estudar o elemento da cor em todos os seus efeitos e variedades de iluminação,
reflexos, brilhos de luz etc., de salientá-lo e encontrar nisso justamente uma tarefa
central para a sua arte. Comparada com os venezianos e holandeses, a pintura restante
dos italianos, exceto Correggio e alguns outros, aparece como mais árida, mais seca,
mais fria e menos viva.” (“As determinações mais precisas do material sensível”, 1°
capítulo: “A pintura”, 3ª parte, Werke 15, p. 69-70/trad., vol. III, p. 232)

2) “α) O conteúdo pode ser neste caso totalmente indiferente ou apenas nos
interessar na vida cotidiana, no exterior da exposição artística, de passagem e
momentaneamente. Neste sentido, por exemplo, a pintura holandesa soube transformar
[umschaffen] as aparências fugazes e dispostas na natureza, enquanto novamente
recriadas pelo homem, em milhares e milhares de efeitos. O veludo, o brilho do metal, a
luz, os cavalos, os servos, as mulheres velhas, os camponeses que soltam fumo pelo
cachimbo, o brilho do vinho em copos transparentes, pessoas com casacos sujos jogando
com cartas velhas: tais e outras centenas de objetos pelos quais na vida comum mal nos
importamos – já que mesmo quando jogamos, bebemos e tagarelamos sobre isto ou
aquilo, somos tomados de interesses completamente diferentes –, nos são levados diante
dos olhos por meio destes quadros. Mas o que em um tal conteúdo imediatamente nos
atrai, na medida em que a arte o apresenta, é justamente esta aparência e aparecer dos
objetos enquanto produzidos pelo espírito, o qual transforma o exterior e sensível do
conjunto da materialidade no mais íntimo interior. Pois em vez da lã e da seda
existentes, em vez do cabelo, do vidro, da carne e do metal efetivos, vemos meras cores;
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em vez das dimensões totais que o natural necessita para sua aparição [Erscheinung],
vemos uma mera superfície e, contudo, temos a mesma visão que o efetivo oferece.
β) Por conseguinte, contra a realidade prosaica e dada, esta aparência produzida
pelo espírito é o milagre da idealidade, uma troça se quisermos, e uma ironia sobre a
existência natural exterior. Pois que preparativos a natureza e o ser humano não
necessitam fazer na vida comum e de que incontáveis meios da mais variada espécie não
necessitam se servir para produzi-la; que resistência não oferece aqui o material, como o
metal, por exemplo, quando deve ser trabalhado. Em contrapartida, a representação a
partir da qual a arte cria, é um elemento simples e macio, elemento que retira do seu
interior de modo leve e dócil tudo o que a natureza e o homem devem alcançar de modo
árduo em sua existência natural. Igualmente os objetos expostos e o homem cotidiano
não são de riqueza inesgotável, mas limitados; as pedras preciosas, o ouro, as plantas, os
animais e assim por diante constituem por si apenas esta existência limitada. Mas o ser
humano, enquanto alguém que cria artisticamente, é todo um mundo de conteúdo, que
ele retira da natureza e reúne em um tesouro no âmbito abrangente da representação e da
intuição, e assim, de um modo simples, libera livremente a partir de si sem as
inumeráveis condições e disposições da realidade.
Nesta idealidade, a arte é o meio entre a existência carente meramente objetiva e
a representação meramente interior. Ela nos fornece os próprios objetos, mas a partir do
interior; ela não os cede para uma outra utilidade, e sim limita o interesse à abstração da
aparência ideal para a visão meramente teórica.
γ) Desse modo, a arte ao mesmo tempo eleva por meio desta idealidade os
objetos antes destituídos de valor, os quais ela fixa para si - não obstante seu conteúdo
insignificante -, transforma em finalidade e dirige nossa simpatia para eles, os quais de
outro modo passariam desapercebidos. A mesma coisa a arte realiza no que diz respeito
ao tempo e é também aqui ideal. A arte consolida em duração o que na natureza é
passageiro; um sorriso que desvanece rapidamente, um rasgo repentino e chistoso em
torno da boca, um olhar, um brilho de luz fugaz, bem como traços espirituais na vida dos
seres humanos, incidentes, acontecimentos que vem e passam, que aí estão e novamente
são esquecidos - tudo e cada coisa ela arranca da existência momentânea e também neste
sentido supera a natureza.
Nesta idealidade formal da arte, porém, não é o próprio conteúdo que
principalmente nos chama a atenção, mas a satisfação da produção espiritual. A
exposição deve aqui aparecer natural, mas não deve aparecer nela a naturalidade
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enquanto tal, e sim o poético e ideal em sentido formal é o fazer [Machen], a eliminação
justamente da materialidade sensível e das condições exteriores. Alegramo-nos com uma
manifestação que deve aparecer como se a natureza a houvesse produzida, quando de
fato ela é uma produção do espírito, sem os meios daquela; os objetos não nos deleitam
porque são de tal modo naturais, mas porque são feitos [gemacht] tão naturalmente.
b) Um outro interesse, contudo, que penetra mais profundamente, procura fazer
com que o conteúdo não seja apenas representado [zur Darstellung komme] em Formas
nas quais ele se nos oferece em sua existência imediata, e sim que, enquanto apreendido
pelo espírito, ele também seja alargado e empregado de um outro modo no seio daquelas
Formas. O que existe naturalmente é pura e simplesmente um singular e, na verdade,
tornado singular segundo todos os pontos e lados. A representação, em contrapartida,
tem em si a determinação do universal e o que dela resulta já adquire desse modo o
caráter da universalidade, à diferença da singularização natural. A representação oferece
neste contexto a vantagem de ser de maior amplitude e, assim, ser capaz de apreender o
interior, de ressaltá-lo e explicitá-lo de modo mais visível. A obra de arte certamente não
é mera representação universal, e sim a corporificação determinada desta representação;
todavia, enquanto procedente do espírito e de seu elemento representante, ela deve
deixar perpassar por si este caráter do universal, a despeito de sua vitalidade intuitiva. É
isso que resulta na idealidade superior do poético em oposição àquela idealidade formal
do mero fazer. Aqui a tarefa da obra de arte consiste, pois, em apreender o objeto em sua
universalidade e suprimir em sua aparição [Erscheinung] exterior aquilo que
permaneceria meramente exterior e indiferente para a expressão do conteúdo. O artista,
por causa disso, não recolhe em Formas e modos de expressão tudo o que encontra lá
fora, no mundo exterior, e apenas porque o encontra; e sim, caso queira produzir poesia
autêntica, ele apenas lança mão dos traços corretos e adequados ao conceito da coisa. Se
ele toma a natureza e suas produções como modelos, o que está dado em geral, isso não
acontece porque a natureza os fez desse ou de outro modo, mas porque os fez bem; este
“bem”, porém, é algo superior em relação ao que está dado.” (“A relação do ideal com
a natureza”, 1ª parte, Werke 13, p. 214-217/trad., vol. I, p. 174-176)

3) “Há, com efeito, no mundo do espiritual uma natureza externa e internamente


ordinária; esta natureza é externamente comum justamente porque o é o interior, e em
seu agir e no conjunto do exterior leva à aparição [Erscheinung] apenas fins do ciúme,
da inveja e da cobiça no que é mesquinho e sensível. A arte também pode tomar como
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matéria esta natureza comum e já o fez. Mas então, ou bem, como já foi dito
anteriormente, o único interesse essencial é a representação [Darstellung] enquanto tal, a
artificialidade da produção, e em tal caso experaríamos em vão que uma pessoa culta se
sentísse atraída pela obra de arte em seu todo, isto é, também pelo conteúdo – ou bem o
artista, por meio de sua concepção, deve fazer algo ainda mais vasto e profundo. Foi
principalmente a assim chamada pintura de gêneros que não desprezou tais objetos e foi
conduzida pelos holandeses ao topo da completude. O que, pois, conduziu os holandeses
a este gênero? Que conteúdo é expresso nestas pequenas imagens que, no entanto,
demonstram a mais alta força de atração? Elas não devem ser pura e simplesmente
colocadas de lado e desprezadas sob o título de natureza comum. Pois a autêntica
matéria destes quadros, se a pesquisarmos mais detidamente, não é tão comum como
acreditamos costumeiramente.
Os holandeses escolheram o conteúdo de suas representações [Darstellungen] a
partir deles mesmos, do presente [Gegenwart] de sua própria vida, e não se deve
censurá-los por terem pela arte efetivado mais uma vez este presente [Präsente]. O que é
posto diante dos olhos e do espírito dos contemporâneos deve também lhes pertencer,
para que possam levar em consideração todo o seu interesse. Para saber no que consistia
o interesse daquela época dos holandeses, devemos perguntar à sua história. O holandês
construiu em grande parte ele próprio o solo onde mora e vive, e é forçado a defendê-lo
e mantê-lo continuadamente contra o ataque do mar; os cidadãos das cidades assim
como os camponeses por meio da coragem, da perseverança e da valentia acabaram com
o reinado espanhol de Filipe II, filho de Carlos V, este poderoso rei do mundo, e lutaram
pela liberdade política como também na religião pela liberdade religiosa. O conteúdo
universal de suas imagens é constituído por esta cidadania e vontade de empreendimento
nas coisas pequenas e grandes, no próprio país quanto no vasto mar, por esta bela
prosperidade, cuidada e ao mesmo tempo limpa, pela satisfação e atrevimento no
sentimento de si [Selbstgefühl] e pelo fato de deverem tudo isso à sua própria atividade.
Mas não se trata aqui de nenhuma matéria e conteúdo [Gehalt] comuns, dos quais não
devemos nos aproximar com a altivez de um nariz empinado e com a delicadeza da boa
sociedade. Foi neste sentido de nacionalidade robusta que Rembrandt pintou sua famosa
“Ronda noturna” em Amsterdam, que van Dyck pintou tantos de seus retratos,
Wouwerman suas cenas de cavaleiros, e mesmo aqueles banquetes, jovialidades e festas
agradáveis dos camponeses se situam neste contexto.
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Para mencionar uma equivalência, também temos, por exemplo, bons quadros de
gêneros na nossa mostra artística deste ano, mas em termos da arte de exposição, eles
estão longe de alcançar os quadros da mesma espécie dos holandeses e também quanto
ao conteúdo não podem elevar-se à liberdade e alegria semelhantes. Vemos, por
exemplo, uma mulher que caminha para a taverna a fim de ralhar com o seu marido. Isto
não resulta em nada a não ser numa cena de pessoas corrosivas e virulentas. No caso dos
holandeses, em contrapartida, em suas tabernas, em casamentos e danças, no regalo e na
bebida, ocorre apenas alegria e prazer, mesmo quando também há rixas e brigas, as
mulheres e as crianças também participam e o sentimento [Gefühl] de liberdade e
descontração perpassa a tudo e cada um. Esta alegria espiritual de um prazer legítimo
que se extende até nos quadros que retratam animais e dá ares de fartura e prazer, esta
liberdade e vitalidade espirituais, despertadas e frescas na apreensão e na exposição,
constituem a alma superior de tais pinturas.
Num sentido semelhante, os meninos mendigos de Murillo (na galeria central de
Munique) são primorosos. Considerado segundo o exterior, o objeto aqui também é da
natureza comum: a mãe cata piolhos em um dos meninos enquanto ele come seu pão em
silêncio; outros dois num quadro semelhante, esfarrapados e miseráveis, comem
melancias e uvas. Mas precisamente nesta pobreza e quase nudez brilha interna e
externamente nada mais do que a total indiferença e despreocupação - um Dervixe não
as poderia ter melhor - nos sentimentos [Gefühle] plenos de sua saúde e vontade de vida.
É esta ausência de preocupação pelo exterior e a liberdade interior no exterior que o
conceito do ideal requer. Em Paris há um retrato de menino de Rafael: a cabeça está
apoiada preguiçosamente sobre o braço e olha com tal felicidade de satisfação destituída
de preocupação para o horizonte e para o vazio, que não conseguimos parar de observar
esta imagem de saúde alegre e espiritual. Idêntica satisfação nos concedem aqueles
meninos de Murillo. Vê-se que eles não têm interesses e fins mais amplos, não devido à
estupidez, e sim estão sentados no chão, satisfeitos e felizes, quase como os deuses
olímpicos; eles não agem nem falam nada, mas são seres humanos baseados numa peça,
sem desgosto e insatisfação em si; e nesta base para toda a capacidade tem-se a
impressão de que tudo pode acontecer a partir de tais jovens. Tais modos de apreensão
são totalmente diferentes daquilo que vemos naquela mulher briguenta e amarga, no
camponês que está guardando seu chicote ou no postilhão que dorme sobre a palha.
Tais quadros de gêneros, porém, devem ser pequenos e aparecer em todo o seu
aspecto sensível como algo insignificante, como algo que já superamos no que diz
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respeito ao objeto exterior e ao conteúdo. Seria insuportável vê-los executados em


tamanho natural e, assim, com a pretensão de que pudessem efetivamente nos satisfazer
em sua totalidade.
É deste modo que deve ser apreendido o que costumamos denominar de natureza
comum para que possa entrar na arte.” (“A relação do ideal com a natureza”, 1ª parte,
Werke 13, p. 222-225/trad., vol. I, p. 179-182)

4) “A última fase, atingida pela arte alemã e dos Países Baixos, consiste no
completo habituar-se [Sicheinleben] ao mundano e cotidiano e na conseqüente
separação da pintura nas mais diversas espécies de representação [Darstellung], que se
separam umas das outras e se constituem unilateralmente tanto no que se refere ao
conteúdo quanto ao tratamento. Já na pintura italiana manifesta-se a passagem do
progresso da magnificência simples da devoção para uma mundanidade que sempre mais
se sobressai, mas que em tal caso, como em Rafael, por exemplo, permanece em parte
penetrada de religiosidade, em parte limitada e mantida unida pelo princípio da beleza
antiga, ao passo que o decurso posterior é menos uma dispersão na representação
[Darstellung] dos objetos de toda espécie, guiada pelo colorido, do que uma confusão
mais superficial ou reprodução eclética de formas e modos de pintar. A arte alemã e dos
Países Baixos, em contrapartida, percorreu de modo o mais determinado e surpreendente
todo o círculo do conteúdo e dos modos de tratamento: desde as imagens totalmente
tradicionais para as igrejas, as figuras e os bustos singulares, passando por
representações plenas de sentido [sinnigen], da piedade e devoção até a animação e
desdobramento delas em composições e cenas maiores. Nestas, porém, a livre
caracterização das figuras, a elevada vitalidade por meio de cortejos, da criadagem, de
pessoas comuns da comunidade, do enfeite dos vestidos e dos vasos, da riqueza do
retrato, das obras de arquitetura, dos ambientes naturais, dos panoramas de igrejas, ruas,
cidades, rios, florestas e Formas montanhosas, ainda são reunidas e sustentadas pelo
fundamento religioso. É este ponto central que agora se ausenta, de tal modo que o
círculo de objetos até agora mantido em unidade se separa e as particularidades em sua
singularidade e contingência específica de alternância e mutação se entregam à mais
variada espécie da apreensão e execução pictórica.
Para também neste lugar apreciar de modo completo o valor desta última esfera,
como já foi feito anteriormente, devemos mais uma vez colocar diante de nós o estado
nacional no qual ela teve sua origem. Neste contexto temos de justificar da seguinte
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maneira a passagem da igreja e das intuições e figurações da piedade para a alegria no


mundano enquanto tal, nos objetos e nos fenômenos particulares da natureza, na vida
caseira em sua probidade, no bem-estar e silenciosa estreiteza, assim como nas
festividades nacionais, nas festas e cortejos, nas danças rurais, nas brincadeiras de
romaria e nas animações. A Reforma havia penetrado na Holanda; os holandeses se
tornaram protestantes e superaram o despotismo da igreja e do reino espanhol. E
certamente, sob o aspecto político, não encontramos aqui nem uma alta nobreza que
persiga seus príncipes e tiranos ou lhes prescreva leis, nem um povo de agricultores e
camponeses oprimidos que se rebelassem como os suíços; e sim a maior parte – aliás o
mais corajoso do país e o mais astuto herói do mar – consistia de longe em habitantes da
cidade, cidadãos empreendedores e abastados que, sossegados em sua atividade, não
queriam subir muito, mas quando chegou a hora de defender a liberdade de seus direitos
conquistados de modo justo – os privilégios particulares de suas províncias, cidades e
corporações –, com confiança audaz em Deus, acordaram seu ânimo e entendimento,
sem medo da enorme opinião da hegemonia espanhola sobre metade do mundo, e se
expuseram a todos os perigos, derramaram corajosamente seu sangue e, por meio desta
audácia e perseverança justificadas, conquistaram vitoriosamente sua autonomia
religiosa e civil. Se podemos designar alemã uma particular tendência de ânimo, ela é
esta condição burguesa [Bürgerlichkeit] fiel, audaz e afetuosa que, no sentimento de si
[Selbstgefühl] sem orgulho e na piedade não permanece meramente entusiasmada e
devota1, e sim permanece no mundano concretamente piedosa [konkret-fromm],
despretensiosa e satisfeita em sua riqueza, simples, elegante e limpa na moradia e no
ambiente. Ao mesmo tempo, fiel aos costumes antigos, sabe preservar de modo
transparente a habilidade patriarcal no completo cuidado e divertimento em todos os
seus estados, com sua autonomia e liberdade imponente.
Este povo engenhoso e artisticamente dotado quer alegrar-se também na pintura
com esta essência tão vigorosa quanto honesta, modesta e sossegada; ele quer gozar mais
uma vez em suas imagens, em todas as situações possíveis, a limpeza de suas cidades,
casas, utensílios caseiros, sua paz caseira, sua riqueza, a honra da toilette de suas
mulheres e filhos, o brilho de suas festas políticas municipais, a audácia de seus
marinheiros, a fama de seu comércio e de seus navios que navegam pelos oceanos de
todo o mundo. E justamente este sentido de uma existência honesta e alegre é o que os

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“devota” traduz “andächtelnd”. O termo alemão não é usual e indica um sentido pejorativo do
termo Andacht (devoção) (N. T.).
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mestres holandeses trouxeram também para os objetos naturais e em todas as suas


produções picturais ao mesmo tempo também ligam à liberdade de fidelidade da
concepção, ao amor para o que é aparentemente insignificante e momentâneo, ao frescor
claro da visão e ao aprofundamento não distraído de toda a alma, no que está mais
acabado e delimitado, a mais alta liberdade na composição artística, o sentimento
apurado, mesmo para o que é acessório, e o completo cuidado na execução. Por um lado,
esta pintura possui nas cenas de guerra e da vida militar, nas encontros nas tabernas, nos
casamentos e em outros banquetes de camponeses, na representação [Darstellung] das
relações da vida caseira, nos retratos e nos objetos da natureza, nas paisagens, nos
animais, nas flores etc. a magia e o encanto das cores [Farbenzauber] da luz, da
iluminação e do colorido em geral; por outro lado, ela desenvolveu de modo insuperável
a característica completamente viva na suprema verdade da arte. E se ela também
transita do que é insignificante e contingente para o rústico e para a natureza tosca e
comum, estas cenas aparecem tão penetradas de uma alegria e jovialidade desenvoltas
que não é o comum, que é apenas comum e mau, e sim esta alegria e desenvoltura que
constituem o autêntico objeto e conteúdo. Por isso, não vemos sentimentos e paixões
comuns diante de nós, e sim o rústico e o vizinho da natureza nas classes inferiores, o
alegre, travesso e cômico. É nesta mesma animação despreocupada que reside o
momento ideal: é o domingo da vida que tudo nivela e afasta toda a maldade; seres
humanos que estão cordialmente de bom humor não podem ser completamente ruins e
abjetos. Quanto a isso, não é a mesma coisa se o mal aparece apenas como momentâneo
ou como traço fundamental de um caráter. Nos holandeses o cômico supera o grave da
situação e isso torna-se imediatamente claro para nós: os caracteres ainda podem ser
algo diferente do que são neste instante diante de nós. Uma tal alegria e comicidade
pertence ao inestimável valor destas pinturas. Em contrapartida, quando nas imagens
atuais se pretende ser picante do mesmo modo que eles o foram, representa-se [darstellt
man] freqüentemente algo que é internamente vulgar, ruim e mau, sem o cômico
reconciliado. Uma mulher brava, por exemplo, ralha com seu marido bêbado na taberna
e, de fato, de modo muito mordaz; nisto mostra-se então, como já mencionei
anteriormente, nada mais a não ser que ele é um sujeito desregrado e ela uma mulher
velha enraivecida.
Se observarmos os mestres holandeses com estes olhos, não mais acharemos que
a pintura deveria abster-se de tais objetos e apenas ter representado [darstellen] os
deuses antigos, os mitos e as fábulas ou as imagens de Madonas, as crucificações, os
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mártires, os papas, os santos e as santas. O que é próprio de toda obra de arte é também
próprio da pintura: a intuição do que se encontra em geral no ser humano, no espírito e
no caráter humano, o que é o ser humano e o que é este ser humano. Esta apreensão da
natureza humana interior e de suas Formas exteriores vivas e os modos de aparição
[Erscheinungsweisen], este prazer desenvolto e a liberdade artística, este frescor e a
alegria da fantasia, bem como a ousadia segura na execução constituem aqui o traço
poético fundamental que permeia a maioria dos mestres holandeses deste círculo. Em
suas obras de arte podemos estudar e conhecer a natureza humana e os seres humanos.
Hoje em dia, porém, necessitamos colocar muitas vezes diante dos olhos retratos e
pinturas históricas, onde, apesar de toda a semelhança com seres humanos e indivíduos
efetivos, já à primeira vista se vê que o artista não sabe nem o que é o ser humano e a cor
humana, nem o que são as Formas nas quais o ser humano expressa o fato de ser ser
humano.” (“A pintura alemã e dos Países Baixos”, 1° capítulo: “A pintura”, 3ª
parte, Werke 15, p. 127-131/trad., vol. III, p. 273-276)

5) “O círculo dos objetos que esta esfera pode abranger se expande ao sem-
limite, já que a arte não toma como conteúdo o que é em si mesmo necessário, cujo
âmbito é fechado em si, e sim a efetividade casual em sua modificação sem limite de
formas e relações, a natureza e seu jogo variegado de configurações singularizadas, o
agir e o atuar humanos do dia-a-dia em sua necessidade natural e satisfação agradável,
em seus costumes contingentes, situações, atividades da vida familiar e dos negócios
burgueses, mas em geral a incerta mutação na objetividade exterior. Desse modo, a arte
não se torna apenas da espécie do retrato, como o é o romântico em maior ou menor grau
em todos os lugares, e sim ela se desagrega completamente na exposição de retratos, seja
na plástica, na pintura ou nas descrições da poesia, e regressa para a imitação da
natureza, para a aproximação intencional, a saber, da contingência da existência
imediata, considerada por si não bela e prosaica. – Coloca-se, portanto, a questão de
saber se tais produções podem em geral ainda ser denominadas de obras de arte. Se neste
caso tivermos em vista o conceito das autênticas obras de arte no sentido do ideal, onde
se trata, por um lado, de um conteúdo em si mesmo não contingente e passageiro, por
outro lado, do modo de configuração pura e simplesmente correspondente a tal conteúdo
[Gehalt], os produtos de nosso estágio atual devem sem dúvida ficar para trás perante
tais obras. Em contrapartida, a arte ainda possui um outro momento que principalmente
aqui se torna de importância essencial: a apreensão e execução subjetivas da obra de
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arte, o aspecto do talento individual, que nos fins mais externos da contingência, para os
quais desemboca o talento, ainda sabe permanecer fiel à vida em si substancial da
natureza assim como às configurações do espírito e sabe tornar significativo, por meio
desta verdade assim como por meio da admirável habilidade da exposição, o que é
propriamente por si sem significado. A isso ainda se acrescenta a vitalidade subjetiva,
com a qual o artista com seu espírito e ânimo se acostuma à existência de tais objetos,
segundo toda a sua forma e fenômeno interiores e exteriores, e nesta vivificação
[Beseelung] os coloca para a intuição. Segundo este aspecto, não podemos privar os
produtos deste círculo do nome de obras de arte.
Em termos mais precisos, foram principalmente a poesia e a pintura que, entre as
artes particulares, se dirigiram para tais objetos. Pois, por um lado, o particular em si
mesmo fornece o conteúdo, por outro lado, a peculiaridade casual, mas em seu círculo
autêntica, do fenômeno exterior, deve ser aqui a Forma da exposição. Nem a arquitetura
nem a escultura e a música se prestam para a execução de uma tal tarefa.
α) Na poesia é a vida comum e caseira, que tem como sua substância a
integridade, a prudência mundana e a moral diária, que é representada [dargestellt] em
complicações, em cenas e em figuras das classes intermediárias e inferiores. Entre os
franceses foi principalmente Diderot quem deu um impulso neste sentido da naturalidade
e da imitação do dado exterior. Entre nós alemães, em contrapartida, foram Goethe e
Schiller que, num sentido superior, em sua juventude seguiram um caminho semelhante,
mas em meio a esta naturalidade e particularidade vivas procuravam por um conteúdo
[Gehalt] mais profundo e conflitos essenciais e ricos de interesse, ao passo que
principalmente Kotzebue e Iffland – o primeiro com uma pressa superficial na
concepção e na produção, o segundo com uma exatidão muito grave e uma moralidade
de burguês atrasado – retrataram, com pouco sentido para a autêntica poesia, a vida
diária de sua época nas relações estreitas e prosaicas. Mas de modo geral, mesmo que
tardiamente, a nossa arte acolheu de preferência este tom e alcançou nele uma
virtuosidade. Pois por longo tempo a arte era para nós em maior ou menor grau algo
estranho, recebido, não produzido a partir de nós mesmos. Nesta orientação para a
efetividade diante de nós reside a necessidade de que a matéria para a arte seja imanente,
familiar e que constitua a vida nacional do poeta e do público. Neste ponto da
apropriação da arte, que segundo o conteúdo e a exposição, pura e simplesmente deveria
ser algo nosso e que, junto a nós, deveria estar em casa, mesmo com o sacrifício da
beleza e da idealidade, partiu o impulso que conduziu a tais exposições. Outros povos
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desprezaram mais tais círculos ou mesmo agora apenas chegam ao interesse vivo por tais
matérias da existência corrente e cotidiana.
β) Entretanto, se quisermos colocar diante da intuição a maravilha que pode ser
alcançada neste contexto, precisamos olhar para a pintura de gêneros dos holandeses
tardios. Já mencionei na primeira parte, quando da consideração do ideal enquanto tal, o
que nesta pintura, segundo o espírito universal, é o fundamento substancial a partir da
qual ela foi produzida. A satisfação na presença da vida, mesmo no que é mais comum e
menor, decorre do fato de que eles necessitam elaborar por meio de penosas lutas e
esforço árduo o que para os outros povos a natureza oferece imediatamente, e, em local
limitado, se desenvolveram na preocupação e na valorização do que é insignificante. Por
outro lado, eles são um povo de pescadores, marinheiros, cidadãos, camponeses e, desse
modo, já estão por natureza referidos ao valor do que é necessário e útil nas coisas
grandes e pequenas, que eles sabem proporcionar para si mediante a mais assídua
atividade. Na religião os holandeses foram protestantes, o que constitui um aspecto
importante, pois é apenas ao protestantismo que pertence o também instalar-se
completamente na prosa da vida e deixá-la valer completamente por si, independente das
relações religiosas, e de se formar em liberdade ilimitada. Nenhum outro povo, sob
outras relações, teria tido a idéia de transformar os objetos que a pintura holandesa nos
coloca diante do olhar em conteúdo principal das obras de arte. Em todos estes
interesses, porém, os holandeses não viveram na miséria e na penúria da existência e na
opressão do espírito, e sim reformaram eles mesmos sua igreja, dominaram o despotismo
religioso bem como o poder mundial e a grandezza dos espanhóis e chegaram por meio
de sua atividade, seu esforço, sua coragem e economia nos sentimentos de uma liberdade
conquistada por eles mesmos à prosperidade, comodidade, honestidade, ânimo, alegria e
mesmo ao atrevimento da existência diária e feliz. Esta é a justificativa para a escolha de
seus objetos artísticos.
Um sentido mais profundo, que se dirige para um conteúdo [Gehalt] em si
mesmo verdadeiro, tais objetos não podem satisfazer; mas mesmo que o ânimo e o
pensamento também não sejam satisfeitos, a intuição próxima se reconcilia do mesmo
modo com tais objetos. Pois é pela arte de pintar e do pintor que devemos ser satisfeitos
e arrebatados. Com efeito, se quisermos saber o que é pintar, devemos observar estas
pequenas imagens, para dizer deste ou daquele mestre: este sabe pintar. Por isso,
também não se trata de modo algum para o artista, em sua produção, de nos fornecer
mediante a obra de arte uma representação do objeto que ele nos mostra. Já possuímos
13

de antemão a intuição a mais completa de uvas, flores, veados, árvores, praias, do mar,
do sol, do céu, da limpeza e dos adornos dos instrumentos da vida diária, de cavalos,
guerreiros, camponeses, do fumar, do extrair dentes, de cenas caseiras da mais variada
espécie; de semelhantes coisas a natureza está cheia. O que nos deve atrair não são o
conteúdo e sua realidade, mas o aparecer totalmente desinteressado no que diz respeito
ao objeto. Do belo é como que fixado para si o aparecer enquanto tal, e a arte constitui a
maestria na exposição de todos os mistérios do aparecer, que se aprofunda em si, dos
fenômenos exteriores. A arte consiste principalmente em acolher e espreitar
[ablauschen], com um sentido apurado, do mundo dado em sua vitalidade particular e
mesmo assim concordante com as leis universais do aparecer, os traços momentâneos,
completamente mutáveis de sua existência e apreender o que é fugaz de modo fiel e
verdadeiro. Uma árvore, uma paisagem já são algo por si firme e permanente. Mas
apreender o brilho dos metais, o cintilar de uma uva iluminada, uma visão desvanescente
da lua, do sol, um sorriso, a expressão de afetos do ânimo que rapidamente passam,
movimentos cômicos, posições, expressões faciais – apreender essas coisas as mais
dissipadoras, transitórias, e torná-las duradouras para a intuição e sua mais plena
vitalidade, esta é a dura tarefa deste estágio da arte. Se a arte clássica em seu ideal
essencialmente apenas configura o que é substancial, aqui, pelo contrário, a natureza
mutável é aprisionada e levada à intuição em suas expressões fugidias, uma corrente de
água, uma cascata, vagas marítimas espumantes, uma vida quieta com o cintilar casual
dos copos, talheres etc., a forma externa da efetividade espiritual nas situações
particulares, uma mulher que sob a luz enfia um fio pela agulha, uma parada de ladrões
em seu movimento casual, o momentâneo de um gesto, que rapidamente de novo se
desfaz, e o riso e arreganhar de dentes de um camponês, onde Ostade, Teniers e Steen
são mestres. Trata-se de um triunfo da arte sobre a transitoriedade, onde o substancial é
como que logrado em vista de seu poder sobre a contingência e o fugaz.
Assim como aqui o aparecer enquanto tal fornece o autêntico ideal aos objetos, a
arte ainda vai mais longe, na medida em que torna estável2 a aparência transitória.
Abstraindo dos objetos, também os meios da exposição tornam-se para si mesmos
finalidade, de tal modo que a habilidade subjetiva e o emprego de meios artísticos se
ressaltam em objeto objetivo [objektiven Gegenstande] das obras de arte. Já os antigos
holandeses estudaram exaustivamente o elemento físico das cores; van Eick, Memling,
Scorel sabiam reproduzir de modo o mais enganador possível o brilho do ouro, da prata,
14

o reluzir das pedras preciosas, das sedas, do veludo, das peles etc. Esta maestria para
provocar, por meio da magia das cores e do mistério de seu encanto, os efeitos mais
surpreendentes, permite-se agora uma validade autônoma. Assim como o espírito,
pensando e conceitualizando, reproduz para si o mundo em representações e
pensamentos, a questão central que agora se coloca, independente do próprio objeto, é a
recriação subjetiva da exterioridade no elemento sensível das cores e da iluminação. Se,
a saber, na música o som singular por si não é nada, e sim apenas produz efeito em sua
relação com outro som, em sua oposição, concordância, passagem e fusão, o mesmo
acontece aqui com a cor. Se observarmos de perto a aparência da cor, que reluz como o
ouro e cintila como galões iluminados, veremos apenas traços e pontos esbranquiçados e
amarelados, superfícies tingidas; a cor singular enquanto tal não possui este brilho que
ela produz; é a combinação que pela primeira vez produz este reluzir e cintilar. Se
considerarmos, por exemplo, o Atlas de Terborch, cada mancha de cor é por si mesma
um cinza apagado, em maior ou menor grau esbranquiçado, azulado e amarelado, mas
colocado numa certa distância, mediante a posição em relação a um outro, surge o belo e
suave brilho, que é próprio do Atlas efetivo. E assim também acontece com o veludo,
com o jogo de luzes, com a bruma das nuvens, em geral com tudo o que é exposto. Não
é o reflexo do ânimo que quer expor-se nos objetos, tal como, por exemplo, acontece
com freqüência nas paisagens, e sim é a habilidade completamente subjetiva que se
exprime desse modo objetivo como a habilidade do próprio meio em sua vitalidade e
efeito de por si mesmo poder criar uma objetividade.
γ) Mas então o interesse pelos objetos expostos se modifica, de tal modo que é a
pura subjetividade do artista mesma que tenciona mostrar-se e na qual não se trata da
configuração de uma obra por si acabada e repousando sobre si mesma, e sim de uma
produção na qual o sujeito produtor apenas se dá a conhecer a si mesmo. Na medida em
que esta subjetividade não mais se interessa pelos meios de exposição externos, e sim
pelo próprio conteúdo, a arte torna-se então arte do capricho e do humor.” (“A imitação
artística subjetiva do dado exterior”, “A forma de arte romântica”, 2ª parte, Werke
14, p. 223-229/trad., vol. II, p. 331-335)

“γ) Uma terceira espécie de interioridade [Innigkeit], por fim, é aquela que se
encontra em parte em objetos inteiramente insignificantes, que são arrancados de sua

2
“statarisch” é o termo alemão empregado por Hegel, cuja origem é latina: statarius (N. T.).
15

vitalidade paisagística, em parte nas cenas da vida humana, que nos podem aparecer não
apenas inteiramente contingentes, mas inclusive vulgares e ordinários. Em outra
oportunidade eu já procurei justificar o caráter artístico de tais objetos (vol. I, p.214 ss. e
p.222 ss). No que diz respeito à pintura eu apenas ainda quero acrescentar à
consideração feita até o momento as seguintes observações.
A pintura não tem de se ocupar apenas com a subjetividade interior, mas ao
mesmo tempo com o interior em si mesmo particularizado. Este interior, justamente
porque tem como princípio a particularidade, não permanece preso ao objeto absoluto da
religião e muito menos toma do exterior apenas a vitalidade natural e seu caráter
paisagístico determinado como conteúdo, mas deve prosseguir a toda e qualquer coisa
onde o homem, como sujeito singular, pode depositar seu interesse e encontrar sua
satisfação. Já em exposições do círculo religioso, a arte, quanto mais evolui tanto mais
também introduz seu conteúdo no terrestre e atual e dá ao mesmo a completude da
existência [Dasein] mundana, de modo que o lado da existência [Existenz] sensível
torna-se por meio da arte a questão principal e o interesse da devoção torna-se o que é
menor. Pois também aqui a arte tem a tarefa de elaborar o que é ideal inteiramente para a
efetividade⎪62⎪, de tornar sensivelmente passível de exposição o que está deslocado dos
sentidos e de trazer os objetos de cenas distantes do passado para a atualidade e os
humanizar.
Em nosso estágio é a interioridade [Innigkeit] na presença imediata mesma, nos
ambientes cotidianos, no que é mais comum e menor, que é tornada conteúdo.
αα) Mas se questionarmos o que na pobreza ou indiferença restantes de tais
matérias fornece o Conteúdo autenticamente conforme à arte, então o substancial que
nisso se alcança e se faz valer é a vitalidade e a alegria da existência autônoma em geral,
na maior multiplicidade da finalidade e interesse peculiares. O homem sempre vive no
presente imediato; o que ele faz a cada instante é uma particularidade e o direito consiste
em preencher cada ocupação, e mesmo que seja a menor, estar como toda a alma
empenhado nisso. Então o homem une-se com tal singularidade, para a qual ele parece
unicamente existir, na medida em que ele nela introduziu toda a energia de sua
individualidade. Esta aderência produz aquela harmonia do sujeito com a particularidade
de sua atividade em seus estados próximos, que também é uma interioridade [Innigkeit]
e constitui aqui o encanto da autonomia de uma tal existência para si mesma total,
acabada e completa. Assim, portanto, o interesse que podemos ter por tais
representações [Darstellungen] reside não no objeto, mas nesta alma da vitalidade, a
16

qual por si, independente daquilo por onde ela se revela viva, já concorda com cada
sentido incorrupto, com todo ânimo livre e é para ele um objeto de participação e de
alegria. Não devemos, por isso, turvar nosso gosto pelo fato de que somos exortados a
admirar obras de arte desta espécie a partir do ponto de vista da assim chamada
naturalidade e imitação ilusória da natureza. Esta exortação, que tais ⎪63⎪ obras
parecem sugerir, é ela mesma apenas uma ilusão que desconhece o ponto propriamente
dito. Pois então a admiração apenas provém da comparação meramente exterior de uma
obra de arte com uma obra da natureza e refere-se apenas à concordância da exposição
com uma coisa que já está presente de outro modo, ao passo que aqui o autêntico
conteúdo e o elemento artístico na concepção e execução são a concordância da coisa
exposta consigo mesma, a realidade por si mesma animada. Segundo o princípio da
ilusão, os retratos de Denner3 podem certamente ser elogiados, os quais são na verdade
imitações da natureza, mas em grande medida não atingem de modo algum a vitalidade
enquanto tal da qual se trata, e sim justamente se dedicam a representar [darzustellen] os
cabelos, as rugas, em geral o que não é na verdade algo abstratamente morto, mas
tampouco a vitalidade da fisionomia humana.
Se permitirmos, além disso, que o nosso prazer torne-se trivial por meio da
distinta reflexão do entendimento, de modo a considerarmos tais sujets como ordinários
e indignos aos nossos pensamentos mais elevados, então igualmente não tomamos o
conteúdo tal como a arte o oferece efetivamente a nós. Então apenas restringimos a
relação que temos com tais objetos segundo nossas necessidades, prazer, nossa
formação restante e outras finalidades, isto é, nós os apreendemos apenas segundo a sua
conformidade a fins exterior, onde nossas necessidades com a finalidade própria viva
tornam-se a questão principal, mas a vitalidade do objeto está aniquilada, na medida em
que ele essencialmente apenas aparece determinado a servir como mero meio ou a
permanecer para nós inteiramente indiferente, porque não sabemos como utilizá-lo. Uma
luz do sol que entra por uma porta aberta em um quarto no qual entramos, uma região
pela qual viajamos, uma costureira, uma criada que vemos bastante ocupadas pode ser
para nós algo inteiramente indiferente, porque damos curso aos pensamentos e aos
interesses ⎪64⎪ muito afastados disso e, por isso, neste monólogo ou diálogo com outros,
diante de nossos pensamentos e discursos não deixamos que a situação à nossa frente se

3
Estes retratos são conhecidos por serem geralmente estudos psicológicos particularmente
realistas. Denner já foi citado por Hegel na primeira parte dos Cursos de estética, vol.I, p.176
(N. da T.).
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manifeste ou dedicamos a isso apenas uma atenção inteiramente fugaz que não
ultrapassa juízos abstratos como „é agradável, é belo, é feio“ etc. Assim certamente
também nos alegramos com a jovialidade de uma dança de camponeses, ao observarmos
a mesma superficialmente ou nos afastamos dela e a desprezamos porque somos „um
inimigo de tudo o que é rude“. De modo semelhante nos ocorre com fisionomias
humanas com as quais mantemos contato na vida diária ou com as quais deparamos de
modo contingente. Nossa subjetividade e atividade alternante sempre entra em jogo.
Somos impelidos a dizer a esse ou aquele isso ou aquilo, temos de tratar de negócios,
tomar precauções, pensamos isso ou aquilo dele, o observamos em vista desta ou
daquela circunstância que sabemos dele, nos orientamos na conversa desse modo,
silenciamos sobre algo para não ofendê-lo, não tocamos em tal assunto porque ele iria
nos interpretar mal, em suma, temos sempre como objeto sua história, seu nível, seu
estamento, nosso comportamento ou nosso negócio com ele e permanecemos numa
relação inteiramente prática ou no estado de indiferença e de dispersão desatenta.
Mas a arte, na exposição de tal efetividade viva, transforma completamente
nosso ponto de vista em relação a ela, na medida em que igualmente corta todas as
ramificações práticas que nos colocam comumente em conexão com o objeto e nos
manifesta o mesmo inteiramente de modo teórico, bem como também supera a
indiferença e conduz inteiramente nossa atenção ocupada com outras coisas para a
situação exposta, para a qual nós, a fim de desfrutá-la, devemos nos recolher e
concentrar em nós. – A escultura, particularmente, suprime por princípio, mediante seu
modo de produção ideal, a relação prática com o objeto, na medida em que sua obra
mostra imediatamente ⎪65⎪que não pertence a esta efetividade. A pintura, ao contrário,
nos conduz, por um lado, inteiramente para a presença de um mundo cotidiano que nos é
próximo, mas nele ela rompe, por outro lado, todos os fios da carência, da atração, da
inclinação ou da aversão que nos atraem a uma tal presença ou nos afastam dela, e nos
aproxima os objetos como finalidade própria em sua vitalidade peculiar. Ocorre aqui o
inverso do que o senhor [A. W.] von Schlegel, por exemplo, expressa assim inteiramente
de modo prosaico na história do Pigmalião como o retorno da obra de arte completa à
vida ordinária, à relação da inclinação subjetiva e do prazer real, um retorno que é o
contrário daquela distância na qual a obra de arte coloca os objetos para a nossa
necessidade e justamente com isso nos apresenta sua vida e aparecer autônomos
próprios.
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ββ) Assim como a arte neste círculo reivindica para um conteúdo, que não
deixamos estar por si em sua peculiaridade, a autonomia perdida, assim, em segundo
lugar, ela sabe fixar tais objetos que na efetividade não se apresentam a ponto de que
nos acostumamos a considerá-los por si. Quanto mais se eleva a natureza em suas
organizações e em sua aparição movimentada, tanto mais ela se assemelha ao ator que
apenas serve ao instante. Nesta relação anteriormente eu já enalteci como sendo um
triunfo da arte sobre a efetividade, o fato de que ela também é capaz de fixar o que é o
mais fugaz. Na pintura este fazer algo ser durável [Dauerbarmachen] do instante refere-
se, por um lado, novamente à vitalidade momentânea concentrada em situações
determinadas, por outro lado, à magia do aparecer da mesma em sua cor momentânea
mutável. Um grupo de cavaleiros, por exemplo, pode modificar-se a cada instante em
seu agrupamento, nos estados de cada indivíduo singular. Se nós mesmos estivéssemos
junto a isso, teríamos de nos ocupar com coisas inteiramente diferentes do que atentar
para a vitalidade destas mudanças; teríamos ⎪66⎪ então de apear, de montar, de abrir a
mochila, comer, beber, descansar, desatrelar os cavalos, dar de beber e comer a eles, etc.;
ou se nós mesmos fôssemos espectadores na vida prática comum, observaríamos tudo
com interesses inteiramente diferentes; iríamos querer saber o que eles fazem, que tipo
de pessoas são, em vista de que finalidade eles saem por aí e outras coisas mais. O
pintor, ao contrário, segue furtivamente os movimentos os mais passageiros, as
expressões as mais fugazes do rosto, os fenômenos de cor os mais instantâneos nesta
mobilidade e os coloca diante nós meramente no interesse desta vitalidade, que não
desaparece deles, da aparência. Particularmente o jogo da aparência da cor, não a cor
enquanto tal, mas seu claro e escuro, o surgir e desaparecer dos objetos são o
fundamento de a exposição aparecer natural, a qual nas obras de arte estamos menos
acostumados a perceber do que este lado merece, o qual apenas a arte nos leva à
consciência. Além disso, o artista nestas relações possui a sua vantagem de penetrar no
detalhe, de ser concreto, determinado, individualizado, na medida em que conserva para
seus objetos a individualidade idêntica da aparição viva em seu brilhar o mais rápido e,
todavia, não oferece à mera percepção singularidades imediatas, reproduzidas
rigidamente, e sim oferece à fantasia uma determinidade na qual ao mesmo tempo
permanece ativa a universalidade.
γγ) Quanto mais insignificantes, em relação às matérias religiosas, são os objetos
que este estágio da pintura toma como conteúdo, tanto mais justamente a produção
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artística, a espécie do olhar, da concepção, da elaboração, do inserir-se do artista no


círculo inteiramente individual de suas tarefas, a alma e o amor vivo de sua execução
mesma constituem um lado principal do interesse e pertencem conjuntamente ao
conteúdo. O que o objeto se torna em suas mãos não deve contudo ser nada que ele
mesmo não é de fato e pode ser. Nós apenas acreditamos ver algo inteiramente diferente
e novo, porque na efetividade ⎪67⎪ não reparamos no detalhe de tais situações e sua
aparição de cores. Inversamente, sem dúvida também se acrescenta algo de novo a estes
objetos comuns, a saber, o amor, o sentido e o espírito, a alma a partir dos quais o artista
os apreende, se apropria deles e assim infunde seu próprio entusiasmo da produção como
uma nova vida naquilo que ele cria.” (“O conteúdo romântico”, 1° capítulo da 3.
seção: “A pintura”, 3ª parte, Werke 15, p. 61-67/trad., vol. III, p. 226-230)

Fonte: Hegel, G. W. F. Werke [in 20 Bänden], Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1986.


Tradução de Marco Aurélio Werle para a EDUSP.

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